Introdução
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre as relações de trabalho entre animais humanos e não humanos no contexto do turismo a partir das atrações de observação de vida silvestre ofertadas no Pantanal Norte (Mato Grosso (mt). A análise é baseada na proposta de etnografia multiespécies (Kirskey e Helmreich, 2010; Süssekind, 2018) e os dados foram coletados entre 2016 e 2019, compreendendo a região entre o município de Poconé e a localidade de Porto Jofre. Este artigo se insere no panorama contemporâneo de revisão das relações entre espécies e se apoia na teoria dos Estudos Animais (Mello, 2012; Bekoff, 2010). Por isso, utilizo um referencial teórico interdisciplinar que promove o diálogo entre diferentes áreas, entre elas antropologia, sociologia, comunicação, biologia e etologia cognitiva.
Na primeira parte, apresento informações obtidas durante a pesquisa de campo e discuto as relações entre os atores no turismo da região a partir da classificação dos animais silvestres como trabalhadores. Na segunda parte, argumento que a adequação dos animais às atividades de turismo de observação lhes garante uma rede de proteção relativa, mas tal posição camufla assimetrias numa relação que, apesar de calcada na liberdade, cria situações de vulnerabilidade para os animais não humanos e evidencia que o respeito à vida das outras espécies permanece ligado ao seu valor de uso. Nas considerações, aponto a importância de se buscar um novo modelo de convivência entre animais humanos e não humanos no turismo, levando em conta os perigos ligados a interações negativas, especialmente aquelas que venham a afetar turistas.
As atrações de lazer baseadas em aprisionamento de animais silvestres vêm enfrentando um forte processo de revisão. Nas últimas décadas, o novo movimento de proteção animal conseguiu aumentar a sensibilização sobre a crueldade em atrações como circos e zoológicos. Mas David A. Fennel (2016) aponta que, apesar de os animais não humanos estarem envolvidos, de um modo ou de outro, como trabalhadores ou objetos em praticamente todas as atividades turísticas, há pouca reflexão sobre esses usos. O autor indica ainda que os teóricos do turismo se concentram principalmente no conceito de benestarismo e que as relações de trabalho entre espécies são aceitáveis desde que se cuidem das necessidades físicas e psicológicas dos animais não humanos. No turismo de vida livre é pouco comum se refletir sobre tais condições. Especialmente porque a questão das relações de trabalho entre animais humanos e não humanos na sociedade contemporânea é geralmente ligada aos conceitos de coerção e domesticação. De um lado, há as espécies exploradas como ferramentas. De outro, animais de “serviço”, como cães-guia. São domínios em que subjaz a ideia da submissão (Arluke e Sanders, 1996).
Numa sociedade em que cada vez mais camadas populacionais vivem afastadas do que se convencionou chamar “natureza” e em que racionalidades colonialistas impõem a desvalorização de saberes tradicionais (Shiva, 2002), o conceito de “parceria” entre animais humanos e não humanos parece obscurecido. Para o senso comum, animais de serviço estão integrados ao nosso círculo de consideração moral (Singer, 2010) e atuam na chave do afeto - apesar de seu trabalho ser criticado por grupos abolicionistas como uma forma de opressão. Já os animais da pecuária, especialmente entre grupos urbanos ocidentalizados, seriam objetos, despidos de subjetividade a partir de estratégias de racionalização explicitadas por Carol J. Adams (2012) e Melanie Joy (2014). Neste cenário, talvez seja difícil lembrar que, nós, humanos, evoluímos em regimes de cooperação com outras espécies (Mello, 2012). Jocelyne Porcher (2014) vai além e considera que, sem os relacionamentos com os animais, a categoria “humano” não existiria. “Yet above all, living with animals signifies working with them. The question of work is not a theoretical anecdote, it is at the heart of our lives and of the relations that we maintain with domestic animals (cows as well as dogs), and with certain “wild” animals, at work in animal parks, zoos, and circuses” (Porcher, 2014, p. 2).
É válido notar como os animais chamados de selvagens pela autora se encontram num ambiente de confinamento. Mas o que dizer daqueles que “fogem” do nosso controle? As espécies envolvidas no turismo de vida livre não estabeleceriam relações de trabalho por não estarem coagidas ou por não serem domesticadas? A partir destas reflexões, busquei identificar como o trabalho entre espécies aparece no turismo do Pantanal e discutir as implicações desses relacionamentos.
O trabalho animal no turismo do Pantanal
Os destinos turísticos de observação de animais livres geralmente são considerados eticamente corretos e vendidos como livres de sofrimento. Uma percepção que pode esconder conflitos. Reinaldo Dias (2008), por exemplo, afirma que a contemplação de baleias selvagens gera lucros bilionários e ajuda a manter a proibição à caça em várias partes do mundo. No entanto, estudos demonstram que o barulho dos barcos diminui a eficácia do sonar dos mamíferos em até 99 % e prejudica sua busca por alimento. É tão grave que o turismo pode ser tão nefasto quanto a caça (Dias, 2008). No Brasil, o nado com botos cor-de-rosa resulta em danos para os animais, que sofrem com feridas no queixo e nas nadadeiras, pois os guias precisam manipular essas partes dos seus corpos para mantê-los fora d’água (Daly, 2019).
No Pantanal mato-grossense, os pacotes turísticos são divulgados como livres de crueldade. Na fase de aquisição, os clientes são avisados de que o encontro com outras espécies não é garantido. Os animais aparecem conforme a própria vontade. Hotéis e guias apenas oferecem itens que favorecem os encontros: transporte, localização e conhecimento sobre o bioma. O discurso de liberdade reforça, para muitos turistas, o caráter eticamente orientado de sua opção de lazer. A maioria, contudo, desconhece características ecológicas marcantes do bioma (Baptistella, 2020), como o pulso de inundação: alternância anual entre cheia e seca que determina variações na distribuição espacial dos animais não humanos (Mistch e Gosselink, 2007). Essa configuração permite, especialmente quando as águas baixam, a visualização de uma infinidade de espécimes, entre aves, répteis e mamíferos, favorecendo as atividades turísticas. Na região de Poconé, o turismo de vida silvestre se configura a partir de transformações pós-produtivistas do ambiente rural (Ratamaki e Peltola, 2016), que passa a ser reconfigurado para a prática. As atividades gravitam em torno da observação de fauna e as opções mais comuns de passeios são contemplação em barcos e veículos adaptados, trilhas e mirantes.
Foi possível perceber que os turistas orientavam suas expectativas pelo que já haviam visto na mídia, caracterizando o que John B. Thompson (2011) chama de mundanidade mediada: a interpretação do que está fora do alcance da experiência pessoal é modelada pela mediação de formas simbólicas. Mas as expectativas muitas vezes não se cumpriam, especialmente na cheia, quando os animais se dispersam pela planície e a visualização é mais difícil. Se a ideia de liberdade era valorizada pelos visitantes, a ausência de espécies provocava frustração e até mesmo revolta. Guias e profissionais do turismo não estão alheios a esta contradição. Por isso, conforme me explicou o guia G1,1 conhecer bem o ambiente e os animais é fundamental: “Tem coisa que parece mágica pro turista. Fala assim: ‘nossa, chamou e o macaco veio!’, ‘como que viu o coelho no meio desse mato?¡. A gente tá aqui todo dia. Sabe onde vai ter jacaré. Sabe o lugarzinho que costuma ter tachã. Esses bugio (sic) mesmo, tá mais ou menos por ali nesse horário sempre. Então não cai do céu. A gente conhece, vive com eles.”
Há mais estratégias que respondem à demanda dos turistas por encontros com outras espécies e em duas delas - o estímulo à permanência dos animais e a ceva - encontrei menções frequentes à condição dos animais não humanos como trabalhadores. A primeira se caracteriza por estabelecer uma população de animais que chamei de residentes. Através da oferta de ambiente propício, os estabelecimentos contam com conjunto de espécies que habita seu entorno e aparece recorrentemente. Os empresários também criam um contexto para que os animais se fixem nas propriedades: ausência de cães, lagos artificiais, reforço de espécies nativas que atraem certos bichos são modos de atração. Dependendo do empreendimento há moradores de fácil visualização como tuiuiús, emas, araras-azuis, capivaras, veados, lobinhos, jacarés-do-pantanal, tamanduás-bandeira, entre outros.
Estes animais que convivem bem com a presença humana são chamados de habituados. No caso de diversas espécies, é um processo natural, na medida em que os hotéis estão dentro dos seus habitats e oferecem ainda boas condições de segurança, por serem áreas sem caçadores. Nesse caso, muitos guias defendiam que a proximidade era benéfica para “os dois lados” e posicionavam os animais não humanos como trabalhadores. Para eles, a consciência dos animais era um fato demonstrado pela cooperação: isso comprovava que os animais reconheciam a rede de proteção que recebiam e atuavam para mantê-la. O guia G2 definia assim: “Se não fosse pelo turismo talvez nem tivesse (sic) mais vivos, né? Acho o melhor isso, que é uma coisa que não faz mal para ninguém. Não machuca os bichos, é bom para os moradores. O animal não é burro, ele sabe que é bom para ele”.
A habituação, no entanto, muitas vezes está interligada com a ceva: “uma complementação alimentar fornecida a animais silvestres com o objetivo de habituá-los a frequentar determinado lugar” (Macedo, Barbi, Branquinho e Bergallo, 2016). Ela está relacionada com práticas adotadas por caçadores, que depositam alimento em certos pontos para atrair presas. No turismo, é apontada como nociva, pois muda os hábitos dos animais e os deixa em situação de vulnerabilidade. Conforme o guia G1 sublinhava, um animal que não tem medo de humanos tem mais chances de sofrer nas mãos de alguém mal-intencionado. Além disso, ela pode estimular conflitos, pois quando um grande carnívoro passa a associar humanos à oferta de alimentos, há risco de acidentes. Durante a pesquisa de campo, um famoso guia precisou reimplantar dois dedos após ser mordido por um jacaré quando oferecia carne para outro animal.
Na primeira década do século XXI,2 percorri diversos hotéis do Pantanal nos quais a ceva era uma forma de promover a interação com clientes, inclusive possibilitando fotos de turistas “acariciando” jacarés. As onças-pintadas de Porto Jofre, que toleram bem a presença dos visitantes e constituem, hoje, a maior atração da região, são “herdeiras” da prática. Seus pais foram habituados a partir da ceva ofertada por pescadores no início do século e ensinaram aos filhotes quais grupos humanos não representam perigo.3 Contudo, episódios de conflitos e um ataque de onça que resultou na morte de um pescador acenderam um alerta sobre a prática (Arini, 2009). Por isso, o Governo do Estado criou uma regulamentação para a observação de onças-pintadas que proíbe a ceva. A prática teria ficado “queimada” segundo vários profissionais e muitos hotéis passaram a proibi-la ou negar sua existência.
Mas a ceva persiste em alguns locais e pode ser determinante para a experiência turística. Numa ocasião, passei horas na mata e apareceram poucos macacos-prego. Em outro local, com a presença da ceva, os macacos se fizeram presentes em poucos minutos. Nesse passeio, o guia G3 vocalizava para chamar os animais e depois oferecia o alimento. Quando falei sobre a pesquisa, pediu para que eu não desse detalhes que permitissem revelar sua identidade ou o local em que estávamos, porque: “O povo anda muito chato com essa coisa de ceva. Ceva isso, ceva aquilo. Não é assim desse jeito que falam. Isso é um trabalho do bicho também. O turista quer ver, o bicho vem. Aí tem que vim (sic) a troco de nada? É um agrado. Eu recebo meu dinheiro, o macaco tem que receber alguma coisa. Daí, parece até que é um leão, que vai matar alguém. Eu coloco até umas frutas lá na frente, o pessoal vendo os macaquinhos, todos feliz (sic). A senhora é dessas também, que fica achando ruim? Porque eles merecem. Eu acho que eles merecem, porque eles vêm, todo mundo tira foto. A senhora mesmo tirou foto”.
A ceva também faz parte da performance (Ratamaki e Peltola, 2016) de alguns guias. A interação é muito apreciada por turistas e há profissionais que se destacam justamente por sua “intimidade” com os animais. Nesse ato, o guia chama o animal pelo nome, consegue tocá-lo e estabelece até mesmo diálogos. Muitas vezes chamados de encantadores de animais, eles usam alimentos como fator de atração. Os turistas raramente reconhecem a ceva como prejudicial. Pelo contrário, ela é vista como uma forma de cuidado e índice de confiança entre espécies. Para os visitantes, o animal que é reconhecido como indivíduo passa a ser visto como um equivalente aos pets de seu cotidiano. Um bom exemplo é o tuiuiú Tafarel, que passa o dia sobre um flutuante recebendo peixes dos turistas. Ele é tratado com expressões afetuosas e muitos tentam chamar sua atenção usando vocalizações comuns àquelas direcionadas à cães e gatos.
Assim, a relação de trabalho entre espécies no turismo tinha na ceva o pagamento justo por um serviço prestado ou uma forma de cuidado. Apesar de alguns profissionais a considerarem prejudicial, outros se ressentiam da proibição. Entre funcionários dos hotéis e pousadas imperava a segunda opinião. A insatisfação costumava ser manifestada com linguagem corporal. Apesar de afirmarem seguir as determinações dos administradores, faziam “cara feia” ou sacudiam as cabeças em negativa enquanto falavam do assunto. A ordem de interromper a ceva era vista como uma imposição da qual não poderiam recorrer, mas com a qual não necessariamente concordavam. Era forte a noção de que alguns animais não humanos mereciam ser pagos por suas aparições. Uma funcionária de hotel verbalizou: “Eles estão aqui gastando o tempo deles. A gente gasta o tempo e pagam a gente. Daí, o bicho para ficar aqui tem que ter alguma coisa. Eles não vão ficar aqui, gastando o tempo deles sem ter nada em troca, por que eles precisam comer. Vão ficar aqui de graça, que horas que vão comer?”
Em entrevistas com moradores da região, encontrei casos de animais que se aproximam de certa forma do que Felipe Vander Velden (2011) chama de familiarizados. São animais silvestres que convivem cotidianamente no raio das propriedades. Nesse contexto, a partilha de alimento é vista como natural. O mesmo ocorre em algumas pousadas, em que se oferecem sobras como forma de “ajudar” animais em períodos de carestia. Assim, a questão da ceva é delicada por envolver diferentes visões de mundo e uma disputa de discursos em que todos afirmam querer o que é melhor para os animais não humanos. A profissionalização do turismo, os acidentes envolvendo a prática e as novas sensibilidades em relação aos direitos dos animais aumentam a complexidade do debate e trazem questionamentos sobre a própria natureza do trabalho animal nesse segmento econômico.
Liberdade restrita: a expressão de comportamentos naturais e os riscos das interações negativas
O turismo no Pantanal é simbolicamente representado como uma narrativa de convivência harmônica entre espécies. No âmbito da pesquisa, os animais não humanos foram considerados actantes (Latour, 1994) e sua cooperação, reconhecida como essencial. Entre os profissionais entrevistados é consenso que eles identificam situações de perigo e estão livres para se afastar daquilo que pode lhes prejudicar. Quando a relação de trabalho traz constrangimentos, como no caso dos filhotes de jacaré que são tirados da água e imobilizados para fotos, a situação é vista como um sacrifício em prol da “preservação”: o animal está sofrendo, mas as imagens vão estimular na sociedade o discurso de proteção em relação à espécie.
O problema de o animal ficar “bobo” e parar de buscar alimento por conta própria foi também reconhecido e citado por guias. Já os perigos da aproximação de humanos mal-intencionados quase não são admitidos. Diante da menção do fato de que vivemos num país em que a liberação da caça é cada vez mais iminente, os trabalhadores humanos sempre argumentam que ali não há risco, pois os animais estão protegidos pela própria comunidade local. Contrariando tal discurso, avistei dois jacarés mortos a tiros na Transpantaneira e, em 2019, uma onça-pintada foi encontrada morta, com um tiro na cabeça, dentro da reserva do Sesc Pantanal. Também recolhi diversos relatos sobre uma ariranha cevada que foi morta em Porto Jofre, em julho de 2018, ao subir num barco. Alguns informantes diziam que seu comportamento assustou um pescador que a matou a pauladas. Outros afirmavam que o animal foi morto a facadas como parte de uma brincadeira.
Hoje, no nível do discurso, a ceva é considerada uma má prática e muitos hotéis não admitem a atividade. A proibição se apoia na esfera das ciências biológicas, que apontam alterações de comportamento nocivas para os animais não humanos. Na prática, nos locais em que ainda ocorre, a ceva é justificada a partir de argumentos que tanto incluem o animal não humano como elo de uma cadeia produtiva quanto como ato ligado à amizade, confiança e afetividade - elementos que, inclusive, fazem parte de relações de trabalho entre espécies (Mello, 2012). Porcher (2014) sugere que os animais de criação precisam ser integrados ao domínio das ciências sociais pois é nele que a subjetividade dos animais se destaca e isso abre caminho para novas formas de relação. Os trabalhadores animais do turismo de vida livre, apesar de não domesticados, também merecem essa inserção, como forma de aprofundar a discussão sobre o sofrimento que não é percebido durante as atividades turísticas. Sua cooperação durante as observações lhes garante uma segurança relativa, uma chance de existir em meio à crescente pressão sobre seus meios de vida. As onças de Porto Jofre são a prova inequívoca disso. Apesar de ainda serem mortas em fazendas devido à predação de rebanhos, ali elas se transformaram em ativo econômico e, por isso, não são molestadas. Não por acaso, a propaganda de um hotel advoga que no estabelecimento “a onça vale mais viva” - frase repetida à exaustão por trabalhadores da região. A ariranha, espécie refratária à presença humana, também começa a tolerar barcos de turistas pois o custo de se transferir para outros territórios é muito alto (Baptistella, 2020).
Conforme demonstra Luisa Fanaro (2020), o status dos animais pode variar conforme seu grau de submissão ao controle humano. No Pantanal, se adequar à atividade turística é a forma que os animais silvestres estão encontrando para sobreviver. No contexto dessa pesquisa isso claramente inclui sua incorporação na esfera que Arnold Arluke e Clinton Sanders (1996) chama de “bons animais”: sua subordinação surge tanto por cooperarem no trabalho quanto por sua adequação ao imaginário de animais de estimação; pacíficos e até dóceis, não é raro serem comparados a pets pelos turistas.
Mas é no comportamento que se encontra um nó. Quem pagaria a conta de um incidente de interação negativa envolvendo um animal e um turista? Nas Ilhas Fraser, por exemplo, dingos que atacaram humanos foram exterminados apesar de os turistas terem sido os responsáveis por desrespeitar as normas de observação (Burns, 2016). No Pantanal os animais experimentam a liberdade de ir e vir, mas ainda é preciso perguntar sobre a liberdade de expressar agressividade, irritação - sentimentos comuns a todos nós, mas que para eles podem significar a diferença entre vida e morte. Afinal, muito se fala sobre animais não humanos habituados aos humanos, mas pouco se pensa no contrário, que os humanos também se adaptam e adquirem condutas específicas na convivência com animais. Guias e moradores locais são habituados. Os turistas, geralmente, não. Para um humano habituado, certos comportamentos, como um arranhão, não adquirem tons dramáticos. Conforme me disse um guia: “o bicho também acorda de ovo virado, né?”. No caso dos humanos não habituados o território é nebuloso e os resultados de uma interação negativa quase sempre resultam em prejuízos proporcionalmente maiores para os animais não humanos.
Donna Haraway (2008) aponta caminhos para convivermos com as outras espécies dentro de um panorama de responsabilidade - algo que as correntes abolicionistas repudiariam, por admitir a manutenção do sofrimento dos animais não humanos. No entanto, sua proposta é consistente com um ponto em que não podemos mais dar aos outros bichos tudo que lhes foi tirado, mas em que também é inegável que eles têm direitos e que esses direitos precisam ser legalmente reconhecidos e respeitados. O que a autora chama de “graus de liberdade” pode ser vivenciado de forma mais ampla no trabalho animal turístico em vida livre, mas as assimetrias persistem e precisam ser alvo de reflexão constante.
Considerações
Reconhecer os animais não humanos como trabalhadores no turismo de vida livre é também admitir sua cooperação, agência e individualidade. Isso é importante pois o reconhecimento dos animais como indivíduos é uma das chaves para lhes garantir direitos (Bekoff, 2010). A ceva, no entanto, traz riscos altos para determinadas espécies, como grandes carnívoros. Haraway (2008) defende que precisamos tornar a consideração ética permanente no que chama de “uso desigual” das espécies. Seu trabalho envolve o emprego de animais não humanos como cobaias, mas é possível transpor a reflexão para o turismo: a exploração dos animais não humanos deve envolver um tipo de responsabilidade que não permita a acomodação dos humanos num certo tipo de conforto moral - o cálculo da soma de benefícios é um sedativo poderoso em que o “sacrifício” imposto aos animais não humanos é até mesmo romantizado. Em vez de se considerar fora da matança, seria mais importante assumir a complexidade dessas relações e buscar maneiras de tornar essas vidas significativas (Haraway, 2008).
Aqui, sugiro que o atual modelo deve ser visto como valioso no contexto da preservação das espécies, mas encarado como transitório. Um terreno em que as sementes de novas formas de relação sejam cultivadas. Os animais não humanos estão adotando mudanças extremas para continuar sobrevivendo. Os humanos do turismo de observação animal não poderiam dar um passo também na construção de um novo formato? Precisamos realmente das interações que tornam a expressão do comportamento natural um risco para os indivíduos? São muitas perguntas e muitos problemas estabelecidos. A maioria dos trabalhadores compreendem as assimetrias da prática, mas se ressentem de um repúdio e proibição a uma atividade que também é representativa dos laços de afetos e do reconhecimento pela cooperação.
Temos, assim, a constatação de que relações de trabalho entre espécies no turismo do Pantanal são admitidas e estão em plena reconfiguração. Contudo, é impossível prever cenários pois uma reviravolta está em andamento. Em 2020, durante os incêndios que consumiram 30% do bioma, milhares de animais morreram queimados ou de inanição. Outros milhares sobreviveram justamente devido à oferta de alimento feita por humanos. Em 2021, é a seca extrema que vem comprometendo a existência de inúmeras espécies. Desde agosto do corrente ano, entidades governamentais - como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (ibama) - e organizações da sociedade civil - como o Grupo de Resgate de Animais em Desastre e a Ampara Silvestre - estão se mobilizando diariamente para oferecer alimentação e cuidados a animais não humanos debilitados pela fome e pela sede (Barbosa, Del Vecchio e Schlickmann, 2021). A ceva passou a ser admitida como forma de salvar aquelas populações de animais. Um ato solidário, mas que já começou a reconfigurar comportamentos: animais de observação raríssima, como iraras e antas, passaram a ser vistas nas dependências de locais que oferecem comida para as vítimas da tragédia ambiental. Os efeitos dessa nova dinâmica nas relações entre animais humanos e não humanos no turismo apenas começam a se desenrolar.