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Lingüística
versão On-line ISSN 2079-312X
Lingüística vol.32 no.2 Montevideo nov. 2016
https://doi.org/10.5935/2079-312X.20160015
Lingüística
Vol. 32-2, diciembre 2016: 25-46
ISSN 2079-312X en línea
ISSN 1132-0214 impresa
DOI: 10.5935/2079-312X.20160015
A EXPRESSÃO DA 2A PESSOA DO SINGULAR EM CONTEXTOS DE COMPLEMENTAÇÃO E DE ADJUNÇÃO: RETRATOS DO ENCAIXAMENTO ESTRUTURAL E SOCIAL
THE EXPRESSION OF THE 2ND PERSON SINGULAR IN CONTEXTS OF COMPLEMENT AND ADJUNCT: PORTRAIT ON EMBEDDING STRUCTURAL AND SOCIAL
Márcia Cristina de Brito Rumeu
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
Thiago Laurentino de Oliveira
Doutorando em Língua Portuguesa
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
thiago.laurentinodeoliveira@gmail.com
Analisamos, neste trabalho, a emergência da forma você no paradigma pronominal do português brasileiro (PB), focalizando especificamente os contextos de complementação e adjunção verbal e não-verbal. Para tanto, utilizamos uma amostra de cartas pessoais produzidas por um casal de noivos entre os anos de 1936 e 1937. Na análise, resgatamos o problema do encaixamento estrutural e social proposto por Weinreich, Labov e Herzog (1968), além dos princípios gerais da sociolinguística histórica (Conde Silvestre, 2007; Hernández-Campoy e Conde Silvestre, 2012). Os resultados indicaram que as relações sintáticas oblíquas de complementação e dativas projetadas por predicadores verbais foram as que mais favoreceram o emprego das formas você não-sujeito. Quanto aos fatores sociais, a informante feminina, com menor domínio de escrita, foi a que mais utilizou a forma inovadora em suas cartas.
Palavras-chave: variação e mudança linguística; português brasileiro; pronomes pessoais.
Keywords: variation and linguistic change; Brazilian Portuguese; personal pronouns.
We analyze, in this work, the emergence of você-pronoun in Brazilian Portuguese (BP), focusing specifically on the contexts involving verbal and non-verbal complement and adjunct pronouns. For this, we used a sample of private letters produced by a couple between the years 1936 and 1937. In the analysis, we rescued the problem of structural and social embedding, proposed by Weinreich, Labov and Herzog (1968), and the general principles of historical sociolinguistics (Conde Silvestre, 2007; Hernández-Campoy e Conde Silvestre, 2012). The results show that the oblique and dative syntactic positions selected by verbs favor the entry of você non-subject in the pronominal system. Regarding social factors, female informant with less domain writing favors the innovative form in her letters.
(Recibido: 31/01/2016; Aceptado: 19/04/2016)
1. Considerações iniciais
O objetivo principal deste trabalho é contribuir para a compreensão do caminho percorrido pelo você, ao se inserir, no paradigma pronominal do português brasileiro (doravante PB), especificamente através das relações gramaticais de complementação e de adjunção ao verbo e ao nome. Considerando que a função sintática de sujeito tem-se revelado como a principal via de acesso de implementação do você no sistema do PB (Rumeu, 2013a; Silva, 2012; Souza, 2012; Lopes e Cavalcante, 2011; Chaves, 2006), voltamos o foco da discussão para os contextos sintáticos de complementação e de adjunção ao verbo e ao nome pelos quais o você não-sujeito também se fixou como um legítimo pronome de 2a pessoa do singular (doravante 2P). Nesse sentido, buscamos trazer evidências empíricas acerca do grau de inserção do você em contextos de complementação e de adjunção. Com base em dados de cartas amorosas produzidas por um casal de noivos cariocas entre os anos de 1936 e 1937, desejamos responder às seguintes questões: (I) O você acessou o sistema do PB com mais força pelas relações gramaticais de complementação ou de adjunção?; (II) Com qual tipo de núcleo predicador (verbal ou nominal) o você seria mais produtivo?; (III) Qual seria o grau de interferência do fator externo gênero do missivista na propagação do você não-sujeito nas cartas amorosas em análise? Atuaria a mulher como a principal difusora da progressão do você não-sujeito, assim como se revelou em relação ao você-sujeito, cf. Rumeu (2013a)?; (IV) Em que medida o grau de domínio sobre os modelos de escrita dos remetentes interfere nos usos registrados na documentação pessoal remanescente desse casal?
Fundamentados nessas questões motivadoras, bem como nos resultados de análises diacrônicas acerca da pronominalização das formas você e a gente, sumarizamos as seguintes hipóteses: (I) Conjecturamos que as funções dativa e oblíqua de complementação projetadas por predicadores verbais representem contextos favorecedores à inserção do você no sistema do PB, bem como também foi verificado para as cartas mineiras, cf. Rumeu (2014), e para o a gente, cf. observado por Vianna e Lopes (2013). Essa conjectura está fundamentada no fato de que recai sobre o você, com acentuada proeminência discursiva, cf. Company (2006, p. 500-511), a função de especializar a referência à 2P. A fim de entendermos melhor essa noção de proeminência discursiva, observamos, na seguinte sentença “[...] Você terá de recolher a importancia [...] cuidando de obter um recibo para Você proprio por via das duvidas[1]“, a individualização do sujeito de 2P do discurso através do emprego do você não-sujeito explícito na referência à 2P que, por sua vez, é ratificado através do substantivo 'próprio', em 'para Você proprio”; (II) Supomos que o você não-sujeito contíguo a formas de você se mostre mais profícuo em contexto de paralelismo formal e semântico, cf. atestado por Rumeu (2014), com base na análise de cartas mineiras, e por Vianna e Lopes (2012) em relação ao a gente à luz de Omena (2003); (III) Acreditamos que os fatores externos sexo/gênero dos remetentes e o grau de domínio dos modelos de escrita se revelem como condicionadores do fenômeno investigado, uma vez que a informante feminina, que é também a com menor grau de domínio da escrita, favoreça a ocorrência das estruturas contendo o você.
Optamos por estruturar este texto em seis seções. Nas considerações iniciais, apresentamos não só o objetivo principal desta investigação, mas também expusemos questões e hipóteses, ancorando-as em relação ao panorama geral de trabalhos já desenvolvidos sobre a inserção do você no PB. Na sequência, passamos em tom de uma breve retrospectiva pelos resultados de trabalhos acerca das estruturas morfossintáticas do você não-sujeito no PB.
A seguir, apresentamos os pressupostos teórico-metodológicos que alicerçam esta análise à luz da sociolinguística histórica, cf. Conde Silvestre (2007), e Hernández-Campoy e Conde Silvestre (2012), atentando ao problema do encaixamento estrutural e social à luz Weinreich, Labov e Herzog (1968), com o intuito de interpretarmos o nível de intersecção da implementação do você nas estruturas linguística e social do PB. A seguir, caracterizamos brevemente as amostras de missivas amorosas que subsidiaram esta análise. Passamos aos critérios que nortearam a nossa interpretação acerca das estruturas de você não-sujeito seja em estruturas de complementação, seja em estruturas de adjunção orientados pela noção de predicador (palavra predicativa), cf. Duarte e Brito (2003: 183 apud Mateus et al. 2003), Raposo (2013), Ilari et alii (2015). Dando continuidade ao trabalho, passaremos à exposição e à discussão dos principais resultados na expressão de um retrato sociolinguístico do comportamento linguístico de um casal não-ilustre do século XX no que se refere à produtividade de você não-sujeito quer em estruturas de complementação, quer em estruturas de adjunção. Sumarizamos, nas considerações finais, os principais resultados relacionados à inserção do você não-sujeito na expressão escrita de brasileiros não-ilustres da década de 1930 do século XX.
2. As estruturas morfossintáticas do você não-sujeito no português brasileiro: uma breve retomada dos principais resultados dos estudos diacrônicos.
Considerando que o principal objetivo deste trabalho é refletir sobre as formas de 2P em estruturas sintáticas de complementação e de adjunção, passamos à exposição de resultados de estudos que enfocaram, em sua maioria, as estruturas de complementação verbal de 2P. Nesse sentido, expomos os resultados do trabalho de Araújo (2014) acerca da variação te ~ lhe em cartas novecentistas cearenses; em relação às missivas cartas cariocas (XIX-XX) apresentamos os resultados de Oliveira (2014) e de Souza (2014), respectivamente, acerca das estratégias pronominais variáveis de complementação verbal nas funções dativas e acusativas de 2P. Ainda no que diz respeito às estruturas de complementação verbal de 2P, apresentamos à discussão os resultados de Rumeu (2014) que trabalhou especificamente com o você em estruturas de complementação e de adjunção nas missivas mineiras. Já em Rumeu(2015), observamos as estruturas de complementação verbal de 2P, nas funções de acusativo, dativo e oblíquo, correlacionadas ao contexto sintático de sujeito de 2P em missivas mineiras e cariocas, entre 1850 e 1950.
Com base em cartas cearenses produzidas entre 1940 e 2000 por indivíduos do povo do município de Quixadá, Araújo (2014), à luz dos princípios da Sociolinguística Variacionista (Weinreich, Labov e Herzog, 1968; Labov, 1994), assume como o seu principal objetivo a alternância entre as formas te e lhe como pronomes complementos de 2P. Constatou assim uma acirrada disputa entre as formas te (50,9%) e lhe (49,1%), respectivamente, num universo de 481 dados das formas pronominais em questão. Assumindo que o foco deste trabalho está voltado para o lhe, visto se tratar de uma estratégia de 3a pessoa cuja referência semântica é a 2P, os resultados a seguir expostos estão vinculados ao lhe na escrita cearense no decorrer do século XX. Araújo (2014: 134-135), ao assumir o lhe como valor de aplicação para a análise da regra variável te ~ lhe, constatou que a sua produtividade se mostrou motivada não só pelo fato de ser precedida por formas de 3a pessoa (você, o senhor, consigo, seu/sua), mas também pelo exercício da função sintática dativa.
Fundamentado em 318 missivas particulares produzidas, entre 1880 e 1980, por cariocas e fluminenses, Oliveira (2014) se voltou para as possibilidades variáveis de expressão das estratégias de complementação verbal dativas de 2P.
Orientado não só pelos parâmetros teórico-metodológicos da sociolinguística variacionista de base laboviana (Weinreich, Labov e Herzog, 1968; Labov, 1994) mas também pelos princípios da sociolinguística histórica (Conde Silvestre, 2007; Hernández-Campoy e Conde Silvestre, 2012), Oliveira chegou a algumas generalizações: (I) o te se mostrou como a estratégia dativa de 2P mais produtiva, ainda que de forma não-correlata aos subsistemas tratamentais (subsistema de tu-suj., subsistema de você-suj., subsistema de você/tu-suj.); (II) o dativo nulo, após 1930, teve a sua produtividade elevada em missivas movidas por um menor grau de intimidade entre os interlocutores; (III) As estratégias preposicionadas a/para ti e a/para você se mostraram com baixo nível de produtividade nas cartas cariocas, ainda que as formas de 2P (a/para ti) tenham se evidenciado mais profícuas nas cartas amorosas.
Embasada em 521 missivas cariocas (1880-1980), Souza (2014) investiu esforços no estudo das estratégias variantes de acusativo de 2P. Encaminhada pela união dos princípios da sociolinguística variacionista (Weinreich, Labov e Herzog, 1968; Labov, 1994) aos princípios teórico-metodológicos da sociolinguística histórica (Conde Silvestre, 2007; Hernàndex-Campoy e Conde Silvestre, 2012), voltou-se para as estratégias variáveis de complementação acusativa de 2P, tais como: te, lhe, o/a, você, acusativo nulo, o que conduziu a autora às seguintes conclusões: (I) o te se mostrou como a estratégia acusativa de 2P mais produtiva nas epístolas cariocas, seguida pelos clíticos o/a, pelo pronome você, pelo clítico lhe e também pelo acusativo nulo, este em contextos bem específicos de coordenação de orações; (II) A prevalência do te em relação às demais estratégias de complementação acusativa de 2P, independentemente dos subsistemas tratamentais das cartas (subsistema de tu-suj., subsistema de você-suj., subsistema de você/tu-suj.), assim como também observado por Oliveira (2014); (III) O subgênero da missiva se mostrou relevante, visto que, em rodadas binárias, o te se mostrou como a estratégia acusativa preferida tanto nas cartas amorosas, quanto nas cartas familiares.
As cartas pessoais, por outro lado, favoreceram as estratégias formais de 3P (o/a, você e lhe) na referência à estrutura de complementação acusativa de 2P, imprimindo ao lhe-acusativo um maior nível de formalismo.
Os resultados de Oliveira (2014) para o dativo de 2P e os de Souza (2014) para o acusativo de 2P se coadunam em dois aspectos para a desconstrução do discurso da tradição gramatical em relação à homogeneidade do sistema tratamental e, consequentemente, à uniformidade tratamental. São eles: (I) a consolidação de sistemas com diversificadas estratégias de complementação verbal acusativa (te, o(a), lhe, você) e dativa de 2P (te, lhe, a/para ti e a/para você) e (II) a ausência da famigerada “uniformidade tratamental” até mesmo na produção escrita mais solta de brasileiros letrados, o que é corroborado pela detecção da convivência de te-dativo e te-acusativo em cartas de você-sujeito.
O principal caminho da implementação do você no PB foi a posição sintática de sujeito, cf. Rumeu (2013a), Souza (2012), Lopes e Cavalcante (2011). Assumindo esse ponto de partida, Rumeu (2014) analisou, seguindo a orientação teórico-metodológica da Sociolinguística Laboviana, a inserção do você pelos demais contextos sintáticos: estruturas de complementação e de adjunção. Em relação ao verbo, foram consideradas as seguintes funções: (i) acusativo; (ii) dativo; (iii) oblíquo complemento de verbo e (iv) oblíquo adjunto de verbo. No que se refere ao nome (substantivo, adjetivo) e ao advérbio também foram analisadas as relações de complementação e de adjunção. Com base na produção escrita de mineiros acompanhou-se, no período de 1900 a 1990, a difusão do você pelos contextos de complementação e adjunção. Os resultados evidenciaram as estruturas dativas e oblíquas de complementação verbal como contextos favoráveis a expansão do você nas cartas mineiras novecentistas.
Com base na produção escrita de 128 missivas brasileiras, produzidas por mineiros e cariocas, Rumeu (2015) observou, no período de 1850 a 1950, não só a produtividade de tu e você, mas também a heterogeneidade de estratégias de complementação verbal de 2P em estruturas de acusativo, dativo e oblíquo. Correlacionaram-se quantitativamente as estratégias de referência à 2a pessoa do discurso (tu e você) às estratégias de complementação verbal de 2a pessoa (te, lhe, a você, para você, o/a, a ti, para ti). Os resultados já trouxeram à cena os subsistemas tratamentais atualmente solidificados no eixo Minas Gerais-Rio de Janeiro: a prevalência do você-sujeito nas cartas mineiras e a variação entre os pronomes-sujeito tu e você nas cartas cariocas, cf. Lopes e Cavalcante (2011). A alternância te ~ lhe em contexto de dativo mostrou-se vigorosa nas missivas cariocas e mineiras diacrônicas.
Uma vez levantados alguns resultados de estudos linguísticos acerca das estratégias de 2P tu e você em contextos de complementação e de adjunção, passamos à exposição dos pressupostos teórico-metodológicos condutores deste trabalho.
3. Pressupostos teórico-metodológicos
3.1 O encaixamento estrutural e social
A noção de encaixamento aparece sistematizada, pela primeira vez na literatura da sociolinguística, como um dos cinco problemas empíricos inerentes ao estudo da mudança linguística formulados por Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog no clássico ensaio Empirical Foundations for a Theory of Language Change (1968). Ao descreverem o “embedding problem” (ing.), os autores afirmam que “(...) as mudanças linguísticas sob investigação devem ser vistas como encaixadas no sistema linguístico como um todo” (Weinreich, Labov e Herzog, 1968: 122). A partir dessa assunção, os linguistas ressaltam que “o problema de oferecer fundamentos empíricos sólidos para a teoria da mudança traz à tona diversas questões sobre a natureza e a extensão deste encaixamento.” (p.122). Em outras palavras, propor que a mudança – e, evidentemente, a variação – linguística encaixa-se ao sistema como um todo implica em definir como e o quão as formas em competição estão encaixadas a esse sistema.
No que diz respeito a sua natureza, postula-se que o encaixamento pode ser pensado em duas instâncias: um encaixamento na estrutura linguística propriamente dita (encaixamento estrutural) e um encaixamento na estrutura da comunidade de falantes que utilizam a língua (encaixamento social).
Em relação ao encaixamento estrutural, Weinreich, Labov e Herzog (1968) destacam que “a mudança linguística, ela mesma, raramente é um movimento de um sistema inteiro para outro”, visto que “um conjunto limitado de variáveis num sistema altera seus valores modais gradualmente de um polo para outro” (p.123). De fato, conforme já mostraram diversos estudos de mudança linguística, não se registram casos de línguas que tenham se modificado integral e simultaneamente em todos os seus níveis de constituição. Recorrendo às palavras de Faraco (2008), se assim fosse, os processos de mudança comprometeriam tanto a plenitude estrutural (isto é, sua organização enquanto sistema) quanto o potencial semiótico (isto é, sua capacidade de estabelecer interação socioverbal) das línguas.
Dessa maneira, percebemos que as variáveis linguísticas mudam gradualmente – como sublinharam os referidos autores –, de modo que nem o arranjo estrutural e nem a função comunicativa são prejudicadas.
No que tange ao encaixamento social, Weinreich, Labov & Herzog (1968) são bastante objetivos ao declararem que “a estrutura linguística mutante está ela mesma encaixada no contexto mais amplo da comunidade de fala, de tal modo que variações sociais e geográficas são elementos intrínsecos da estrutura” (p.123). Dito de outro modo, para que haja entendimento pleno de uma mudança linguística, é preciso investigar sua origem dentro da estrutura social, analisando como ela se difundiu entre os diferentes grupos sociais. As transformações na língua de uma dada comunidade podem refletir, em boa medida, as transformações sociais pelas quais a própria comunidade passou.
Aplicando essas duas instâncias à variação na representação pronominal da 2P no PB, podemos constatar que, de um ponto de vista estrutural, é evidente que a forma inovadora você foi sendo implementada gradualmente no quadro de pronomes pessoais. Como apontamos na seção 2 deste artigo, o você passa a competir diretamente com o pronome tu por volta de fins do século XIX e, ainda hoje, não é possível afirmar que tal processo de variação tenha se concluído (cf. Maia, 2012; Scherre et al., 2015). Além disso, o você ainda apresenta variação nos seus “valores modais”, de maneira que traços de forma de tratamento ainda parecem persistir em alguns de seus usos, ao lado dos traços de pronome pessoal adquiridos com o processo de gramaticalização (cf. Lopes 2009).
Já de um ponto de vista social, é plausível imaginar que as diversas transformações políticas e sociais pelas quais passou o Brasil entre meados do século XIX e meados do século XX, tenham atuado consideravelmente no processo de difusão da forma você em detrimento da forma tu em quase todo o território nacional. Fatos históricos como a queda do Império e a proclamação da República (1889) ao lado de transformações sociais de impacto, como o êxodo rural e a urbanização pouco planejada das principais cidades do país, possivelmente exerceram algum efeito nesse e em outros fenômenos de variação até os dias atuais. Infelizmente, por enquanto, essas afirmações são apenas conjecturas, uma vez que essa correlação criteriosa e analítica entre os fenômenos de variação e as transformações sociais ocorridas no Brasil dos séculos XIX e XX ainda é um trabalho a ser feito.
Quanto à questão da extensão do encaixamento estrutural e social apresentada em Empirical Foudations, podemos pensar, então, em dois sentidos. Um primeiro, mais amplo, segundo o qual se acredita que as formas em variação em um determinado estrato linguístico articulam-se a outras formas em variação pertencentes a outros estratos, de modo que os processos de variação e mudança não são vistos como aleatórios, mas sim encadeados. Nesse sentido, podemos dizer que certos processos variáveis figuram no sistema linguístico como causa ou consequência de outros processos variáveis. A segunda leitura que podemos depreender a partir da noção de encaixamento, mais estrita, é a de que as formas variantes de uma variável não se manifestam livremente na língua; em vez disso, elas são condicionadas por fatores estruturais, impostos pelo sistema, e que regulam quando cada variante pode ou não se manifestar. Nesse sentido, salienta-se que duas ou mais formas variantes não se empregam aleatoriamente; na realidade, elas se adéquam às regras estruturais impostas pelo sistema e, por isso mesmo, estão encaixadas a este.
Esse último ponto correlaciona-se diretamente com o objeto de investigação deste artigo. Cabe ressaltar que a variação na referência pronominal à 2P envolve não apenas dois elementos intercambiáveis (tu e você), mas, na verdade, dois paradigmas que se realizam a depender do contexto morfossintático específico em que ocorrem. Dessa forma, por trás do rótulo simplificado “variação entre tu e você” existe um conjunto mais amplo de formas pronominais (os clíticos te, lhe e o/a, os sintagmas preposicionados junto à forma ti, os sintagmas preposicionados junto à forma você, o próprio você em função de objeto direto, o pronome contigo, os possessivos teu e seu).
Conforme aludimos na seção 2, uma série de estudos recentes tem destacado o complexo encaixamento estrutural do fenômeno em foco, bastante condicionado quanto à função sintática que o pronome desempenha na sentença. Já se sabe, por exemplo, que a função de sujeito é a que parece favorecer mais significativamente a ocorrência do você (cf. Rumeu 2008; Machado 2011; Souza 2012, dentre outros), ao passo que as funções de complemento verbal acusativo e dativo parecem favorecer as formas relacionadas ao tu, especificamente o clítico te (cf. Souza e Oliveira, 2013; Souza 2014; Oliveira 2014). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, pretendemos investigar, neste estudo, o encaixamento do você em estruturas de complementação e adjunção em sintagmas verbais e nominais.
Ao lado desse olhar analítico para o encaixamento na estrutura linguística, discutiremos, também, o encaixamento da variação entre tu e você na estrutura social. Especificamente, observaremos tal fenômeno nas cartas pessoais trocadas entre um casal de noivos durante a década de 1930, período este apontado como decisivo na implementação do você como pronome pessoal (Duarte 2006; Machado 2011; Souza 2012).
A seguir, apresentamos algumas considerações relativas à metodologia utilizada para a descrição e análise do corpus adotado. Descrevemos, ainda, as particularidades dessa amostra de cartas pessoais, seus problemas e soluções encontradas a partir dos pressupostos teóricos da sociolinguística histórica.
3.2 Um retrato sociolinguístico de um casal não-ilustre[2]
A fim de que possamos apresentar um retrato da variação pronominal de 2P nas estruturas de complementação e adjunção de verbos e nomes, com destaque para o encaixamento linguístico e social desse fenômeno, em cartas pessoais produzidas nos anos 1930, é preciso considerarmos a dimensão sócio-histórica que caracteriza tal corpus. Para tanto, adotamos alguns pressupostos teóricos e metodológicos da sociolinguística histórica, apreciados nas linhas subsequentes.
O corpus selecionado para análise carece de uma contextualização mínima, uma vez que seria um equívoco lidar com os dados de cartas escritas há oitenta anos como se fossem dados da atualidade; essa postura caracterizaria um anacronismo (cf. Bergs 2012), na medida em que estaríamos avaliando um material do passado com um olhar do presente. Além disso, é preciso situar, no espaço e no tempo, os informantes, já que pretendemos verificar se variáveis extralinguísticas – o sexo/gênero dos remetentes e o grau de domínio sobre os modelos de escrita – podem influenciar na escolha da forma pronominal de 2P utilizada em estruturas de complementação e adjunção.
Diferentemente da pesquisa sociolinguística sincrônica, lidar com dados produzidos por informantes de épocas recuadas no tempo implica sempre um trabalho de reconstituição. Como afirmam Hernàndez-Campoy & Schilling (2012), o estudo de formas linguísticas históricas conta sempre com registros incompletos e, por isso, o conhecimento das situações do passado sociocultural deve ser reconstruído, dada a impossibilidade de uma observação direta. Os autores mencionados apontam sete problemas relacionados à pesquisa sócio-histórica, dentre os quais destacamos a autoria, a autenticidade e a validade social e histórica. Tais problemas estão intimamente ligados à natureza do corpus e aos informantes.
O problema da autoria diz respeito ao fato de, em um passado não muito distante, os textos serem frequentemente registrados pela mão de terceiros. Dentre as razões, podemos destacar a alta taxa de analfabetismo da população em geral. Textos escritos por terceiros não constituem o material mais adequado para a análise linguística, pois certas variantes podem ter sido introduzidas ou bloqueadas por influência desse redator desconhecido, que pode ter filtrado determinados usos que o verdadeiro autor legítimo tenha feito.
O problema da autenticidade refere-se ao grau de pureza nos textos em relação aos usos autoconscientes (como é o caso das hipercorreções). Usos linguísticos conscientes podem impedir a ocorrência de certas formas, principalmente daquelas mais características da fala. Os textos escritos procuram seguir uma norma “padrão” que pode se distanciar da língua em uso. É necessário que o linguista “filtre” a interferência desse padrão e tente separá-lo dos usos mais próximos ao vernáculo.
O problema da validade social e histórica salienta o fato de que, em geral, conhecemos pouco sobre o perfil social dos autores e a estrutura da sociedade na qual eles estavam inseridos. Isso faz com que seja preciso investigar minimamente o modo como se estruturava a comunidade a que pertenciam esses autores. Cumpre recuperar algumas informações necessárias para que seja possível interpretar os padrões de variação presentes nos textos.
Esses três problemas são encontrados no corpus de cartas pessoais selecionado para o presente estudo. Tais cartas foram editadas por Silva (2012), que descreve a dificuldade de obter dados biográficos do casal de remetentes, visto que ambos não eram pessoas ilustres da sociedade carioca de seu tempo:
Essa documentação que serviu de base para esta análise, ao contrário de outros materiais utilizados em estudos linguístico-históricos, não foi localizada em nenhum acervo ou arquivo de acesso público, e sim recolhido, ao acaso, no lixo, no bairro de Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro. Por essa razão, todos os dados obtidos foram retirados das próprias cartas a fim de que fosse possível fazer uma descrição acerca dos autores das mesmas. (Silva 2012: 43)
Segundo Conde Silvestre (2007), os documentos deixados por pessoas não-ilustres, dos estamentos sociais mais baixos, são bastante raros e contêm escassos dados biográficos, o que torna praticamente anônimos seus informantes. Por essa razão, Silva (2012) extraiu todos os dados biográficos das próprias cartas. A partir da leitura das 97 missivas que compõem a amostra completa, a autora chegou à conclusão de que: i) quanto à autoria, os remetentes eram os próprios autores das cartas, devido à presença de assinaturas e à regularidade de certos desvios grafemáticos e gramaticais presentes nos textos; ii) quanto à autenticidade, identifica-se nas cartas o uso de uma norma bastante próxima ao que se acredita ser o PB popular da época; iii) quanto à validade histórica e social, sabe-se, através da leitura dos documentos, que os informantes eram pessoas comuns, residentes na região metropolitana do Rio de Janeiro. O noivo trabalhava no centro da cidade. A noiva, além de ser mãe solteira de uma menina, também trabalhava fora, em algum ofício desconhecido, como comprova o trecho a seguir, extraído de uma de suas cartas:
(01) “Eu te escrevo esta as 11 ½ horas da noite depois que eu acabei o serão todos os dias desta semana eu vou trabalhar até as 11 horas da noite.” (MRC. 02.02.1937)
Como não foi encontrada qualquer pista acerca do grau de escolaridade/letramento do casal, Silva (2012) utilizou informações disponíveis dentro das cartas para formular parâmetros que pudessem mensurar o grau de contato dos remetentes com a norma culta que deveria vigorar na época. Os parâmetros baseiam-se no número e no tipo de edições feitas nos documentos, tais como: junções, segmentações e modernizações de palavras escritas diferentemente da grafia padrão (indicadores de menor domínio de escrita); modernização de palavras etimologizadas e expansão de abreviaturas (indicadores de maior domínio de escrita).
A partir da aplicação desse método, Silva (2012) atestou que
(...) [JOS] apresenta em sua escrita mais evidências do seu maior contato com variados textos e modelos de escrita e, consequentemente, o seu maior grau de letramento se comparado com o perfil de escrita de sua noiva. [MRC], por sua vez, não demonstra ter muito domínio da norma escrita, visto que comete mais desvios referentes à segmentação e à grafia das palavras. A presença significativa de palavras latinizantes nas cartas de [JOS] (...) demonstra grande contato de [JOS] com o texto escrito e sua preocupação em parecer mais letrado. (Silva 2012: 74-75)
Pautando-se na proposta de Barbosa (2005) para o estabelecimento do grau de letramento a partir de fontes escritas, Silva (2012) concluiu que os noivos não possuíam nível de domínio sobre os modelos de escrita muito distanciado, embora seja evidente que JOS possuía um grau de letramento relativamente superior ao de MRC:
(...) [MRC] era uma moça com cultura mediana, (...) pois sabia ler e escrever, mas tinha pouco domínio das regras de escrita. As cartas de [MRC] seriam uma fonte preciosa para o conhecimento da norma popular do português brasileiro da primeira metade do século XX. [JOS], por outro lado, demonstra ter um grau de letramento um pouco maior que a noiva. Não se trata de um informante completamente escolarizado por também apresentar certos desvios de grafia e marcas de oralidade em seu texto, mas certamente teve mais acesso aos bancos escolares que sua noiva. (Silva 2012: 92)
Após delinear os pressupostos teóricos e metodológicos que nortearão as análises das construções de complementação e adjunção envolvendo as formas pronominais de 2P levantadas a partir do corpus, descrevemos, na próxima seção, os critérios e as convenções de análise definidas para este estudo. Explicitamos, de maneira objetiva, o que será considerado uma construção de complementação e de adjunção a núcleos predicadores verbais e nominais. Em seguida, expomos a análise dos resultados obtidos com base na amostra de cartas do casal de noivos.
4. A expressão da 2a pessoa do singular em contextos de complementação e de adjunção
Neste trabalho, entendemos que as relações de complementação e de adjunção estão fundamentadas no conceito de predicador[3] (palavra predicativa) concretamente expresso através de verbos, substantivos, adjetivos e advérbios que como núcleos lexicais com exigências sintático-semânticas específicas, orientam a configuração estrutural dos seus constituintes. Nesse sentido, dialogamos com Duarte e Brito (2003: 183 apud Mateus et al. 2003) que assumem o predicador ou palavra predicativa como “toda e qualquer palavra que tenha argumentos, lugares vazios ou valência própriaˮ, interpretando, pois, o nome, o adjetivo, o advérbio e a preposição como palavras predicativas, bem como os verbos, “palavras predicativas por excelênciaˮ, capazes, pois, de projetar uma estrutura argumental ou grelha temática.
O estatuto de um dado constituinte seja como complemento, seja como adjunto no português é coerentemente discutido por Raposo (2013), ao entendê-lo como “exclusiva responsabilidade do predicador (...) Ou seja, não existe nenhuma característica intrínseca dos constituintes, de natureza sintática ou semântica, que determine a priori se funcionam como argumento ou como adjunto numa frase”, cf. Raposo (2013: 365-366). Nesse sentido, também Raposo (2013) dialoga com Duarte e Brito (2003) acerca da noção de predicador:
Para a Lógica de Predicados, as proposições – e, para o linguista, as frases que as veiculam – organizam-se em redor de um elemento central, a que chamamos aqui predicador. A propriedade fundamental dos predicadores consiste em combinarem-se com argumentos (...). Os argumentos são requeridos pelo predicador para lhe completar o sentido, formando assim uma proposição completa. (Raposo 2013: 358)
Estão ilustrados, de (02) a (05), evidências de predicadores verbais, em (02), e não verbais – substantivo, em (03), adjetivo, em (04) e advérbio, em (05) – independentemente de os constituintes com eles articulados estarem em estruturas de complementação ou de adjunção. Em (02), observemos as ocorrências dos constituintes adjunto e complemento de 2P te e contigo articulados às estruturas consubstanciadas com os verbos suporte (verbos leves) ter e fazer nas construções ter um sonho e fazer mal, respectivamente. Achamos por bem separar tais construções de verbo suporte dos demais predicadores, tendo em vista a especificidade de tal construção semanticamente consubstanciada no nome, ainda que sintaticamente seja preservada a grelha argumental do verbo leve ou suporte[4], cf. Duarte (2003: 311-312 apud Mateus et al. 2003). Para a identificação dos predicadores e dos seus constituintes, optamos por expor, neste trabalho, estes entre colchetes e aqueles, sublinhados.
(02) Verbo a. “(...) para encontrar [voce] que é a minha felicidade (...)” (JOS. RJ, 22.09.1936) (acus.)
b. “(...) eu peço-[te] para ires ao médico (...) (MRC. Paulo de Frontim , 22.09.1936) (dat.)
c. “(...) só [de ti] minha flor que eu espero todo o meu ideal (...)” (JOS. RJ, 22.09.1936) (obl.)
Verbo Suporte d. “(...) Minha flor esta noite tive um sonho tão lindo [contigo], que muito desejava (...)” (JOS. RJ, 06.04.1937)
e. “(...) Você disse para eu não escrever palavras doces que [te] fazem mal ao estômago (...)”(MRC. 14.09.1936)
(03) Subst. a. “(...) e [para ti] minha querida, recebe tantos beijos quantos (...)” (JOS. RJ, 30.09.1936)
b. “(...) e tenho tanta confiança [em ti] (...)” (JOS. RJ, 12.01.1937)
(04) Adj. a. “(...) Minha flor, mas eu sofro igual [a você] (...)” (JOS. RJ, 08.03.1937)
b. “(...) e que a viagem [te] tenha sido boa (...)” (JOS. RJ, 12.01.1937)
(05) Adv. a. “(...) ser condenado aos serviços mais rudes que existe a estar longe [de ti] (...)” (JOS. RJ, 24.09.1936)
b. “(...) se estivesse perto [de ti], as horas voa-riam (...)” (JOS. RJ, 05.04.1937)
c. “(...) eu estava junto [de você] (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 22.09.1936)
Uma vez ilustradas as estruturas sintáticas que constituem o foco deste trabalho, passaremos, em 4.1 e 4.2, à explicitação mais pormenorizada dos critérios assumidos para a identificação das estruturas de complementação e de adjunção de 2P.
4.1 A expressão da 2a pessoa: as estruturas de complementação
Nas estruturas de complementação, estão em análise as formas de 2P que, pertencentes aos paradigmas de tu e você, complementam o seu núcleo lexical (verbal e não-verbal) de forma obrigatória, formando uma unidade sintática plena, como também discutido por Ilari et alii (2015: 173-174). Em relação ao núcleo lexical verbal, as funções sintáticas por ele projetadas, cf. discutido por Duarte (2003) e por Raposo (2013), são as seguintes: acusativo, dativo e oblíquo.
Concebemos como acusativo o tradicional objeto direto. Produzido por predicadores verbais de dois ou três lugares, o objeto direto de 2P é o argumento formalmente cliticizável nos pronomes oblíquos o/a, te, lhe, dispensando regência por preposição. Semanticamente, o acusativo evidencia o papel temático de paciente ou tema. Do ponto de vista da tradição gramatical, somente o pronome-complemento te corresponde ao pronome-sujeito tu, estabelecendo a uniformidade tratamental. Contudo, a inserção do você-sujeito no sistema pronominal do PB conduziu à fusão de paradigmas concretizada através da convivência de formas de tu (te) com formas de você (lhe, você, o/a) e com o objeto nulo (Ø) no mesmo domínio funcional. De (06) a (10), ilustramos as formas acusativas variantes de 2P[5] projetadas pelos verbos transitivos diretos esperar, ver e abraçar.
(06) “(...) Eu espero [você] no dia 20 do corrente na estação (...)” (MRC. Paulo de Frontem, 14.09.1936)
(07) “(...) se você for eu [te] espero no portão da Penha 8 ½ as 9 ½. (...)” (MRC. RJ, 19.01.1937)
(08) “(...) de alegria por [lhe] ver tão contente e feliz (...)” (MB. SP, 22.10.1925)
(09) “(...) pareço vê-[la], mas tudo isso não passa de uma ilusão (...)” (JOS. RJ, 24.09.1936)
(10) “(...) ha 4 mezes que não tenho o consolo de [te] ver e [Ø] abraçar (...)”[6] (PF. 27.11.1912)
O complemento verbal dativo é parcialmente contemplado pela gramática tradicional sob o rótulo de objeto indireto em virtude exclusivamente da sua conexão indireta ao predicador verbal através de uma preposição. Sintaticamente, assumimos como expressão do dativo o complemento que projetado por predicadores verbais de dois ou três lugares é cliticizável através do pronome lhe. Semanticamente, o dativo assume o papel semântico de alvo, fonte, beneficiário da ação com o traço semântico [+ animado].
As formas variantes dativas de 2P evidenciam também a fusão de paradigmas de 2a e 3a pessoas pronominais, visto que as formas de tu (te, a/para ti), de você (lhe, a/para você) e até o zero (dativo nulo) coexistem no mesmo domínio funcional. De (11) a (17), ilustramos as estratégias variantes dativas de 2P projetadas pelos predicadores verbais de três lugares pedir, dedicar, escrever, dar, dedicar e comprar.
(11) “(...) eu peço-[te] para ires ao médico (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 22.09.1936)
(12) “(...) para continuar dedicando [a ti] todo o amor que mereces (...)” (JOS. RJ, 16.03.1937) MRC
(13) “(...) a noite toda escrevendo [para ti] (...)” (JOS. RJ, 02.03.1937)
(14) “(...) eu [lhe] darei um beijo como chegada, nos lábios não no rosto (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 29.09.1936)
(15) “(...) tu sabes perfeitamente que eu dediquei todo o meu amor [a você] (...)” (MRC. RJ, 10.01.1937)
(16) “(...) comprei um vestido [para você] eu acho que tu não vais gostar (...)” (JOS. RJ, 05.04.1937)
(17) “(...) e a tarde irei na tua casa conforme [Ø] prometi. (...)” (JOS. RJ, 30.03.1937)
Os oblíquos articulam-se sintaticamente a um predicador verbal na forma de sintagmas preposicionados não-dativos (não-cliticizáveis), correspondentes à sintaxe dos casos genitivo e ablativo latinos. A relação entre o predicador e o seu complemento oblíquo é obrigatória. Ao oblíquo nuclear, coube, segundo o gramático Rocha Lima[7], o rótulo de complemento relativo intuindo, pois, o domínio estrutural da complementação como o específico do argumento que nutre de sentido o seu predicador, cf. discutido por Ilari et alli (2015), Raposo (2013), Duarte e Brito (2003). De (18) a (21), expusemos dados de complementos oblíquos de 2P que projetados por núcleos verbais (gostar, sonhar e combinar) se constituem como argumentos que assumem formas de tu (sprep+ti) e formas de você (sprep+você) nas missivas amorosas cariocas.
(18) “(...) fazem-me gostar cada vez mais [de ti], sonho, penso sofro tudo enfim (...)” (JOS. RJ, 13.02.1937)
(19) “(...) Minha querida quando sonho [contigo] não quisera mais acordar (...)” (JOS. RJ, 22.03.1937)
(20) “(...) eu sonhei muito [com você] na noite de Domingo para segunda-feira (...)” (MRC. RJ, Petrópolis 15.03.1937)
(21) “(...) eu quero combinar uma coisa [com você] enquanto antes possível (...)” (MRC. RJ, 19.01.1937)
Também é possível que as estruturas oblíquas complementizadoras estejam vinculadas a um núcleo lexical não-verbal (substantivos, adjetivos, advérbios) complementando-o. Nesse sentido, substantivos, adjetivos e advérbios (predicadores não-verbais) exemplificados a seguir através dos itens lexicais confiança, cheia, junto e longe são responsáveis por projetar, respectivamente, os constituintes oblíquos de 2P em ti, de você e de ti que lhes nutrem de sentido, como é possível observarmos de (22) a (25).
(22) “(...) e tenho tanta confiança [em ti] (...)” (JOS. RJ, 12,01.1937)
(23) “(...) eu já estou cheia [de você] não é por minha vontade que eu estou aqui (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 01.10.1936)
(24) “(...) porque quando estou junto [de ti] a emoção embarga-me a voz (...)” (JOS. RJ, 02.03.1937)
(25) “(...) Longe [de ti], sou um pobre sonhador que vive a sonhar (...)” (JOS. RJ, 29.01.1937)
Apresentadas as estruturas de complementação de 2P, passemos à exposição das estruturas de adjunção articuladas aos predicadores verbais e não-verbais.
4.2 A expressão da 2a pessoa: as estruturas de adjunção
Nas relações de adjunção, o predicador está vinculado ao seu constituinte de uma forma menos estreita, abstendo-se da projeção desse constituinte. Segundo Ilari et al. (2015: 173), “o critério para falar de adjunção é que o constituinte considerado se acrescenta à construção que precede sem ser necessário à boa formação sintática dessa mesma construção (...)”. Os adjuntos figuram como circunstanciais, acessórios à grade argumental do seu predicador (verbal e não-verbal). De (26) a (28), ilustramos as relações de adjunção promovidas pelos predicadores verbais (os tradicionais verbos intransitivos vir, viver, dançar) responsáveis por conectar, numa relação sintática não obrigatória, as construções oblíquas de adjunção de 2P com você e sem você.
(26) “(...) eu escrevi para ela vir [com você] se você pudesse (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 26.09.1936)
(27) “(...) eu não posso viver mais [sem você] (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 06.10.1936)
(28) “(...) eu estava dançando [com você] (...)” (MRC. RJ, 21.02.1937)
As relações de adjunção também se expressam através de predicadores não-verbais. Em (29) e (30), temos o substantivo mundo e o adjetivo boazinha como os predicadores com os quais estão articuladas, numa relação mais estreita de conexão, as estruturas oblíquas de adjunção de 2P sem você e pra você, respectivamente:
(29) “(...) o mundo para mim [sem você] não e mundo (...)” (MRC. RJ, 19.01.1937)
(30) “(...) para a tua mãe ficar boazinha [pra você] (...)” (MRC. Petrópolis, 22.02.1937)
As estruturas sintáticas preposicionadas, independentemente dos tipos de núcleos lexicais com os quais estejam articuladas (verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio), assumem a função de mediadoras de argumentos e adjuntos no PB. Especificamente em relação à distinção entre oblíquos complementos e oblíquos adjuntos, assumimos, em consonância com Ilari et al. (2015: 172-181), que a preposição é gerada por seu constituinte complemento (palavra ou sintagma) especificamente nas estruturas de complementação, como observamos em (31), ao passo que a “natureza do adjunto” é que seleciona a preposição nas unidades sintáticas de adjunção, como ilustramos em (32).
À luz deste critério de identificação das estruturas de adjunção, detectamos, nas cartas amorosas analisadas, duas ocorrências de oblíquos adjuntos, em (33) e (34), projetados pelos pronomes pessoais dos casos reto (eu) e oblíquo (mim) como evidências clarividentes de que a natureza do adjunto (consubstanciados nas duas ocorrências do sintagma preposicionado sem ti) é que determina a preposição na estrutura sintática de adjunção.
Ainda há de considerarmos, de (35) a (37)[8], o constituinte oblíquo adjunto de 2P gramaticalmente estruturado numa relação sintática predicativa também levantadas nas cartas amorosas analisadas.
(31) “(...) que eu já estou cheia [de você] (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 01.10.1936)
(32) “(...) dizendo tudo quanto sinto [por ti] (...)” (JOS. RJ, 02.03.1937)
(33) “(...) eu [sem ti] minha querida jamais seria o teu Jayminho ou o teu noivinho (...)” (JOS. RJ, 01.10.1936)
(34) “(...) ou o teu noivinho que seria de mim [sem ti], minha amada? (...)” (JOS. RJ, 01.10.1936)
(35) “(...) Os retratos já devem estar [com você] até você ficou na serra (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 01.10.1936)
(36) “A menina parece [com você]/[contigo]”
(37) “A encomenda é [para você]/[para ti]”
Considerando os critérios de identificação das estruturas de complementação e de adjunção de 2P, passamos à discussão dos principais resultados deste trabalho.
5. A distribuição geral das formas pronominais não-sujeito de 2P nas missivas cariocas amorosas
Na tabela 1, apresentamos a distribuição das formas pronominais não-sujeito de 2P correlacionadas aos núcleos sintáticos com os quais estão articuladas.
Tabela 01: A produtividade das formas pronominais não-sujeito de 2P vinculadas aos núcleos sintáticos.
De um modo geral, constatamos que as formas de tu prevaleceram, em 76% dos dados (345 oco). Em relação às formas do paradigma de você e à ausência de estratégias pronominais não-sujeito de 2P constatamos frequências de uso de 19% (87 oco) e 05% (24 oco), respectivamente. Observamos a vinculação preferencial de tais estratégias pronominais ao núcleo verbal, em 90% dos dados (411 oco). Para os núcleos nominal, adverbial e de verbo suporte, verificamos as baixíssimas produtividades de 06%, 03% e 01%, respectivamente. Interessante atentarmos ao fato de que as formas de tu (322 oco, 93,3%) e de você (64 oco, 75%) se mostraram predominantemente regidas pelo núcleo verbal, cf. constatado por Rumeu (2014) em relação ao você nas cartas mineiras. Passemos à uma exposição mais minuciosa das estratégias pronominais não-sujeito de 2P correlacionadas aos tipos de núcleos sintáticos (verbal, nominal, adverbial e verbo suporte).
Tabela 02: A produtividade das formas pronominais não-sujeito de 2P relacionadas aos tipos de núcleo.
Em síntese, a tabela 02 nos revela estratégias variantes de pronomes complemento e adjuntos de 2P, corroborando o que Oliveira (2014), Souza (2014) e Rumeu (2015) já haviam interpretado não só em relação à estabilização de um diversificado panorama de estratégias pronominais não-sujeito de 2P (te, prep.+ti, a ti, para ti, você, para você, a você, prep.+você, lhe, o/a, zero), mas também no que se refere à inexistência de um sistema movido por “uniformidade tratamental”. Em relação às formas de tu, observamos que as formas te, prep.+ti, a ti e para ti articuladas ao núcleo verbal alcançaram as frequências de 99%, 60%, 100% e 80%, respectivamente, como ilustramos de (38) a (41).
(38) “(...) eu não queria [te] dizer eu fui ao médico” (MRC. Petrópolis, 12.01.1937)
(39) “(...) só [de ti] minha flor que eu espero todo o meu ideal (...)” (JOS. RJ, 22.09.1936)
(40) “(...) tu sabes que só [a ti] é que pertenço (...)” (JOS. RJ, 19.01.1937)
(41) “(...) E [para ti], recebe uma carroçada de beijos e abraços (...)” (JOS. RJ, 02.03.1937)
Ainda dentre as formas do paradigma de tu vinculadas ao advérbio, ao nome e ao verbo suporte constatamos a prevalência de prep+ti com 23%, 10% e 07%, respectivamente, como é possível visualizarmos de (42) a (44).
(42) “(...) se estivesse perto [de ti], as horas voa-riam (...)” (JOS. RJ, 05.05.1937)
(43) “(...) só para estar juntinho [de ti] (...)” (JOS. RJ, 29.01.1937))
(44) “(...) Minha flor esta noite tive um sonho tão lindo [contigo] (...)” (JOS. RJ, 06.04.1937)
Com qual tipo de predicador o você não-sujeito estaria preferencialmente vinculado, ao considerarmos que, nas cartas mineiras novecentistas, o você preferiu o núcleo verbal (Rumeu 2014), bem como também o a gente (Vianna e Lopes 2012)? Uma vez separadas as formas pronominais não-sujeito que expressam formalmente o você (você, para você, a você, prep+você), verificamos que tais estratégias, ainda que com baixíssimas ocorrências (86 oco, 19%), observáveis de (45) a (48), se mostraram com maiores frequências de uso articuladas ao núcleo verbal (100%, 58%, 80% e 75%), confirmando, pois, a hipótese de que o nível oracional se deixasse evidenciar, em consonância com os resultados de Rumeu (2014), como uma fecunda porta de acesso do você ao sistema pronominal do PB.
(45) “(...) para encontrar [voce] que é a minha felicidade (...)” (JOS. RJ, 22.09.1936)
(46) “(...) a Hilda manda um beijo [para você] (...) para você” (MRC. Paulo de Frontem, 12.09.1936)
(47) “(...) tu sabes perfeitamente que eu dediquei todo o meu amor [a você] (...)” (MRC. RJ, 19.01.1937)
(48) “(...) Minha flor sonhar [com você] é para mim um grande prazer (...)” (JOS. RJ, 22.03.1937)
Ainda em relação às estratégias pronominais formalmente estruturadas com o você e articuladas ao núcleo nominal, observamos, de (49) a (51), as formas para você (10 oco), prep.+você (07 oco) e a você (01 oco). As duas únicas ocorrências do você corporificadas em estruturas sintáticas compostas por verbo suporte, na construção ter um sonho, estão expostas em (52) e (53).
(49) “(...) e da Hilda um beijo [para você] (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 01.10.1936)
(50) “(...) Ia me esquecendo por causa [de você] (...)” (JOS. RJ, 28.09.1936)
(51) “(...) Minha flor, mas eu sofro igual [a você] (...)” (JOS. RJ, 08.03.1937)
(52) “(...) Eu tive um sonho [com você] e tua mãe mas não foi muito bom (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 22.09.1936)
(53) “(...) eu tive um sonho [com você] (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 07.10.1936)
As formas relacionadas semanticamente à 2P do discurso, ainda que formalmente representem a 3P lhe e o/a obtiveram um ínfimo uso categórico marcado por uma única ocorrência ilustrada em (54) e (56). A ausência de constituinte pronominal de 2P se deixou evidenciar categoricamente vinculada ao núcleo verbal, como observamos em (56).
(54) “(...) eu [lhe] darei um beijo como chegada (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 29.09.1936)
(55) “(...) pareço vê-[la], mas tudo isso não passa de uma ilusão (...)” (JOS. RJ, 24.09.1936)
(56) “(...) eu ja [Ø] mandei 7 com esta 8 e já estou ficando sem Assunto. (...)” (JOS. RJ, 28.09.1936)
Apresentado o panorama geral dos dados de formas pronominais não-sujeito de 2P correlacionados aos seus respectivos núcleos sintáticos, passemos à discussão pormenorizada acerca da correlação entre as estratégias pronominais e as estruturas gramaticais de complementação e de adjunção.
5.1. As formas pronominais não-sujeito de 2P e as relações gramaticais de complementação e de adjunção
Correlacionamos as formas pronominais não-sujeito de 2P, cf. se observa na tabela 3, não só em relação às estratégias pronominais, mas também no que se refere às relações gramaticais.
Tabela 03: A produtividade das formas pronominais não-sujeito de 2P vinculadas às relações gramaticais de complementação e de adjunção.
Em termos gerais, constatamos que as estratégias pronominais de 2P em estruturas de complementação, 87% (400 oco), suplantaram as relações de adjunção, 12% (45 oco) e as predicativas, 12% (54 oco). No que se refere às formas do paradigma de tu, observamos a prevalência do te dativo, 71% (124 oco), e do te acusativo, 92,14% (147 oco), cf. exemplificado em (57) e (58), seguida, ainda que com baixos índices de produtividade, pelas formas prep+ti, 42% (28 oco), em estruturas oblíquas de complementação, a ti, 07% (12 oco) e para ti, 01% (02 oco) em estruturas dativas, como ilustrado de (59) a (61). Nas relações oblíquas de adjunção, as formas prep.+ti, em 35% (19 oco), e para ti, em 15% (08 oco) se deixaram evidenciar, mesmo que com diminutas frequências de uso, nas missivas amorosas, como verificamos em (62) e (63).
Ainda no que diz respeito às formas de tu, observamos uma única ocorrência da forma prep.+ ti, na relação gramatical predicativa, como exemplificamos em (64).
(57) “(...) eu [te] peço para não estar com muita pressa no sábado (...)” (MRC. Petrópolis, 16.02.1937)
(58) “(...) eu queria ir buscar-[te] já que mandas-te a tua mãe (...)” (JOS. RJ, 24.09.1936)
(59) “(...) não faz esquecer-me [de ti], pelo contrário (...)” (JOS. RJ, 13.02.1937)
(60) “(...) Deste que tão somente [a ti] pertence aceita mil abraços, (...)” (JOS. RJ, 19.01.1937)
(61) “(...) seria capaz de ficar a noite toda escrevendo [para ti] (...)” (JOS. RJ, 02.03.1937)
(62) “(...) não vou ao médico antes do carnaval, que é para poder passeiar [contigo] (...)” (JOS. RJ, 19.01.1937)
(63) “(...) Recomendações aos teus beijos para a Hilda e [para ti] minha querida, recebe tantos beijos (...)” (JOS. RJ, 30.09.1936)
(64) “(...) Apesar de eu ontem estar [contigo] duas vezes não matei as saudades (...)” (MRC. Petrópolis, 26.01.1937)
O você não-sujeito acessou com mais intensidade o sistema pronominal do PB através das relações de complementação ou de adjunção? Voltando o foco especificamente para as formas pronominais não-sujeito consubstanciadas na forma você (você, para você, a você, prep+você) observamos que as relações de complementação, 66% (57 oco), suplantaram as de adjunção, 34% (29 oco), ainda que com baixas frequências de uso. Dentre as relações gramaticais, constatamos a produtividade da função oblíqua de complementação, 63% (36 oco), seguidas pelas construções dativas, 21% (12 oco), e acusativas, 16% (09 oco). Para as relações oblíquas de complementação, verificamos a prevalência da forma a você, 63%, 36/57 oco, cf. exemplificamos em (65) e (66). Para as relações dativas, observamos a convivência entre as formas para você, 67% 08/12 oco, e a você, 33% 04/12 oco, cf. ilustramos em (67). Ainda no âmbito das relações de complementação, observamos o exercício da função acusativa unica e exclusivamente com a forma você, 16% 09/57 oco, como está ilustrado em (68) e (69).
(65) “(...) Minha flor, mas eu sofro igual [a você] somente por te amar (...)” (JOS. RJ, 08.03.1937)
(66) “(...) comprei um vestido [para você] eu acho que tu não vais gostar (...)” (JOS. RJ, 16.03.1937)
(67) “(...) tu sabes perfeitamente que eu dediquei todo o meu amor [a você] (...)”(MRC. RJ, 19.01.1937)
(68) “(...) eu espero [você] no Domingo sem falta na Estação (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 01.10.1936)
(69) “(...) Estimo que esta vá encontrar [você] e a Hilda melhores do resfriado (...)”(JOS. RJ, 29.09.1936)
No âmbito da adjunção, constatamos tão somente as relações de oblíquo adjunto e de predicativo. Para as relações oblíquas de adjunção, verificamos a alternância entre as formas para você, 59% 16/27 oco, e prep.+você, 41% 11/27 oco, cf. observamos em (70) e (71). Na função predicativa, temos o seu uso categoricamente com a forma de você consubstanciada na estratégia prep.+você em tão somente duas ocorrências, cf. (72) e (73).
(70) “(...) vai no Domingo na minha casa pode ter alguma carta [para você] que eu vou escrever (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 23.09.1936)
(71) “(...) Eu não me zango [com você] nem precisavas pedir pela carta o meu amor é cego. (...)” (MRC. Petrópolis, 12.01.1937.)
(72) “(...) Os retratos já devem estar [com você] até você ficou na serra (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 01.10.1936)
(73) “(...) e hoje que é Domingo recebi 4 carta 3 é [de você] e 1 é do meu irmão Zezinho (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 11.10.1936)
Considerando esses resultados, é possível constatarmos que as relações gramaticais de complementação, mais especificamente, as oblíquas de complementação e as dativas, se deixaram revelar como contextos suscetíveis à entrada do você no sistema pronominal do PB. Passemos à análise da influência do paralelismo formal e semântico sobre a produtividade das formas pronominais não-sujeito de 2P, atentando mais especificamente aos contextos (formas de tu ou formas de você) com os quais os dados de você não-sujeito estão avizinhados.
5.2 As formas pronominais não-sujeito de 2P e o paralelismo formal e semântico
Expomos, na tabela 4, o número de ocorrências e os percentuais de frequência das estratégias não-sujeito de referência à 2P de acordo com o paralelismo formal e semântico. Em outras palavras, essa correlação visa a verificar se, o uso de formas relacionadas ao inovador você propiciaria o aparecimento de outras formas relacionadas ao você.
Tabela 04: A produtividade das formas pronominais não-sujeito de 2P e o paralelismo formal e semântico.
Numa apreciação panorâmica, podemos assinalar que as formas preposicionadas relacionadas ao tu foram as que registraram maior efeito de paralelismo formal e semântico. A forma a ti, por exemplo, contabilizou um percentual de 56% (09/16 oco) em contexto de contiguidade com o clítico te ou com os possessivos teu/tua. Nesse mesmo contexto, as formas para ti (60%, 06/10 oco) e prep+ti (38%, 18/48 oco) também registraram seus maiores índices de frequência em relação ao fator linguístico focalizado. Ilustramos, em (74) e (75) alguns exemplos presentes no corpus:
(74) “(...) o que mais me contenta é ter-te em meus braços, beijar-te e extasiar-te com a loucura de todo o meu amor Minha querida só [a ti] é que pertence todo o meu amor (...)” (JOS. RJ, 22.09.1936)
(75) “(...) Recomendações aos teus beijos para a Hilda “minha futura filha”, e [para ti] minha flor recebe com amor muitos beijos deste teu apaixonado noivinho, que só [a ti] pertence. (...)” (JOS. RJ, 05.10.1936)
Além do contexto apresentado, as formas preposicionadas relacionadas ao tu mostraram-se produtivas quando antecedidas por tu em outras funções sintáticas (prep.+ti = 27%, 13/48 oco, a ti = 13%, 02/16 oco) e pelo tu na função de sujeito (prep. +ti = 21%, 10/48 oco, a ti = 19%, 03/16 oco). Confiram-se os exemplos:
(76) “(...) De ti minha flor eu espero o amor mais puro que existe no mundo, tenho tanta confiança em teu amor, como na propria vida como na morte. [De ti] minha adorada é que eu espero todo o meu ideal (...)” (JOS. RJ, 23.09.1936)
(77) “(...) fazem-me gostar cada vez mais de ti, sonho, penso sofro tudo enfim, mais meu amor é fiel, de-dica-se somente [a ti] (...)” (JOS. RJ, 13.02.1937)
No que tange às formas relacionadas ao você, não podemos, com base nas ocorrências obtidas, verificar um efeito de paralelismo formal e semântico na amostra carioca, tal qual foi detectado por Rumeu (2014) para as cartas mineiras. Como revelam os percentuais de frequência da tabela 4, as formas preposicionadas relacionadas ao você e o sintagma preposicionado para você foram mais recorrentemente antecedidos pelo clítico te ou pelos possessivos teu/tua (41%, 10/24 oco e 60% 29/48 oco, respectivamente). Tal resultado parece evidenciar, já nos dados da década de 1930, o subsistema que viria a vigorar no dialeto carioca, marcado pela alternância entre tu/ você nos diferentes contextos morfossintáticos da sentença.
A única exceção, contudo, a esse padrão de uso diz respeito à forma a você: 04 das 05 ocorrências computadas no corpus apareceram antecedidas por formas relacionadas ao você em contextos de tu-sujeito de 2P (não imperativo), como demonstram os exemplos a seguir:
(78) “(...) tu sabes perfeitamente que eu dediquei todo o meu amor [a você] (...)” (MRC. RJ, 19.01.1937)
(79) “(...) Tu bem sabes se não fora isto já teria escrito [a você] há muito tempo. (...)” (JOS. RJ, 23.02.1937)
(80) “(...) porque tu sabes que não pertenço a mais ninguém a não ser [a você] (...)” (JOS. RJ, 19.01.1937)
(81) “(...) eu então pensava só em você o quanto tens sofrido por minha causa somente por amar-me. Minha flor, mas eu sofro igual [a você] (...)” (RJ, 08.03.1937)
Feitas essas apreciações em relação aos fatores de ordem estrutural, cabe agora apreciarmos os resultados atinentes aos fatores de ordem social. Em específico, comentaremos os resultados relacionados ao sexo/gênero dos informantes e seus respectivos domínios sobre os modelos de escrita da época.
5.3 As formas pronominais não-sujeito de 2P e a influência do gênero (sexo)
Conforme já explicitamos em outros momentos deste artigo, a amostra de cartas que constitui o corpus da presente análise foi produzida por um casal de noivos, pessoas comuns, não-ilustres. Por essa razão, limitamo-nos a controlar dois fatores que estão, de certa forma, correlacionados nessa amostra: o sexo/gênero dos remetentes e o grau de escolaridade de ambos. Conjecturamos, segundo nossas hipóteses de trabalho, que (i) MRC, nossa remetente feminina, empregaria mais formas relacionadas ao você, fato que estaria de acordo com estudos anteriores (Pereira 2012, Rumeu 2013b), que apontam as mulheres como as propulsoras da difusão da forma inovadora no sistema pronominal do PB, e que (ii) MRC, por ser também a informante com menor grau de domínio sobre os modelos de escrita, evidenciaria, em suas cartas, o paradigma variável tu/você que hoje vigora no subsistema de tratamento do PB (Lopes e Cavalcante 2011), deixando entrever aspectos da variedade do PB popular que deveria ser utilizado na oralidade. Na tabela 5, organizamos as ocorrências das formas pronominais relacionadas a ambos os paradigmas, tu e você, de acordo com o sexo/ gênero do escrevente:
Tabela 05: A produtividade das formas pronominais de 2P segundo o sexo/gênero dos remetentes.
Analisando a frequência geral das ocorrências, podemos notar que, de fato, JOS, o remetente masculino, utiliza em suas cartas mais formas pertencentes ao paradigma de tu, ao passo que MRC, sua noiva, utiliza um número de formas relacionadas ao você relativamente maior. A partir desses dados, organizamos a tabela 6, a fim de verificar com quais núcleos predicadores as formas empregadas pelo casal estavam ligadas.
Tabela 06. Distribuição das formas pronominais de 2P quanto ao núcleo predicador e ao sexo/gênero dos remetentes (apenas nº oco)
Levando em consideração os números de ocorrências registrados na tabela 6, percebemos que, embora no conjunto possa parecer que não havia uma diferença muito representativa quanto ao uso de formas de você verificado nas cartas dos noivos, se analisamos o tipo de núcleo predicador, algumas diferenças tornam-se perceptíveis.
Se descartarmos os dados pronominais vinculados a núcleos verbais – contexto em que, de fato, parece não haver um comportamento distinto entre ambos – observamos que, quanto aos pronomes ligados aos núcleos nominais e adverbiais, MRC é nitidamente uma informante que prefere formas ligadas ao você que corresponde a 93% (14/15 oco) dos dados relacionados a um núcleo nominal (82) e 60% (03/05 oco) dos dados relacionados a um núcleo adverbial (83). Em contrapartida, JOS exibe um padrão oposto ao da sua noiva. A maioria dos dados desse remetente ligados a núcleos nominais e adverbiais é de formas do paradigma de tu (64% - 07/11 e 100% -09/09 dos dados, respectivamente), cf. em (84) e (85).
(82) “(...) Jayme eu tenho rezado todas as noites a Nossa Senhora da Penha para a tua mãe ficar boazinha [pra você] eu te peço para você rezares (...)” (Petrópolis, 22.02.1937)
(83) “(...) lembrando-me do domingo a noite que eu estava junto [de você] (...)” (MRC. Paulo de Frontim, 22.09.1936)
(84) “(...) e tenho tanta confiança [em ti] (...)” (JOS. RJ, 12.01.1937)
(85) “(...) preferia ser condenado aos serviços mais rudes que existe a estar longe [de ti] (...)” (JOS. RJ, 24.09.1936)
A partir da diferença comentada na tabela 6, podemos interpretar que, de fato, MRC já evidenciava em seus textos pessoais traços que se consolidariam, ao longo do tempo e se tornariam características do dialeto carioca. Sabemos que atualmente, na área do Rio de Janeiro, a frequência de formas pronominais de 2P preposicionadas relacionadas ao paradigma de tu é baixíssima (para não dizer nula). Formas como a ti e para ti deixam de ser gradativamente registradas em cartas pessoais produzidas durante o século XX (Oliveira 2014).
Ainda que MRC utilize mais formas relacionadas ao tu ligadas a núcleos verbais, contexto no qual registramos maior índice de dados, podemos pensar que excetuando os núcleos verbais, que são, sem dúvida, o principal contexto de implementação em termos quantitativos, percebemos que os contextos envolvendo nomes e advérbios também parece favorecer a entrada do você no sistema. Retomando a noção de encaixamento, discutida na seção 3, tudo parece levar a interpretar, com base nos resultados da MRC, que talvez as mulheres, que, na época em questão, geralmente tinham menor contato com a escola e com os estudos, tenham sido as responsáveis pela difusão das formas variantes ligadas ao você não-sujeito. Rastrear as explicações para essa evidência extrapolam os limites deste artigo e, certamente merecerão investigações específicas futuras.
6. Considerações finais
A análise das estruturas de complementação e de adjunção ao verbo e ao nome pelas quais o você não-sujeito também se sedimentou como um legítimo pronome de 2P orientou algumas generalizações em resposta às questões fomentadoras deste trabalho. Considerando a estreita relação não só entre as 1a e 2a questões, mas também entre a 3a e 4a, optamos por relacioná-las, ao respondê-las: (I) O você acessou o sistema do PB com mais força pelas relações gramaticais de complementação ou de adjunção?; (II) Com qual tipo de núcleo predicador (verbal ou nominal) o você seria mais produtivo? Nas cartas amorosas novecentistas (1936-1937), as relações sintáticas oblíquas de complementação e dativas projetadas por predicadores verbais se mostraram mais produtivas, respectivamente, consubstanciadas, em termos de prevalência, nas formas a você e para você.
Confirmamos a hipótese de que as estruturas dativas e oblíquas de complementação vinculadas ao núcleo verbal se mostrariam como contextos propícios à difusão do você não-sujeito, cf. constatado por Rumeu (2014) para as cartas mineiras novecentistas. Esses resultados parecem encaminhar-nos para a interpretação do status informacional do você, sobretudo, nas relações de acentuada projeção discursiva como é o caso das dinâmicas gramaticais dativas e oblíquas de complementação verbal, cf. também observado por Vianna e Lopes (2013: 34) em relação ao a gente. Se por um lado, no nível da complementação projetado pelo núcleo verbal, o você não-sujeito parece ter se pronominalizado com mais força, por outro lado, o domínio da adjunção pareceu se evidenciar como um contexto de restrição/retenção ao espraiamento do você, como também constatado, para o a gente, por Vianna e Lopes (2013: 34).
(III) Qual seria o grau de interferência do fator externo gênero do missivista na propagação do você não-sujeito nas cartas amorosas em análise? Atuaria a mulher como a principal difusora da progressão do você não-sujeito, assim como se revelou em relação ao você-sujeito, cf. Rumeu (2013)?; (IV) Em que medida o grau de domínio sobre os modelos de escrita dos remetentes interfere nos usos registrados na documentação pessoal remanescente desse casal? Considerando os limites impostos pela natureza da amostra (cartas amorosas trocadas entre noivos cariocas entre os anos de 1936 e 1937), evidenciamos, ainda que timidamente, a informante feminina não-ilustre como a irradiadora das formas de você não-sujeito, encaminhando-se na direção histórica da mudança linguística, cf. Rumeu (2013b).
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[1] Dado de uma carta mineira que não faz parte dos resultados deste trabalho.
[2] Com o intuito de preservar a identidade dos informantes, nos referiremos ao noivo como JOS e à noiva como MRC.
[3] Essa proposta repousa na proposta Fregeana (1978) conduzida pelas noções de predicado e argumento.
[4] Segundo Duarte (2003: 312 apud Mateus et al. 2003), verbos leves “sofreram um processo de esvaziamento lexical a que alguns autores chamam gramaticalização, que permite que o centro semântico da frase se desloque para a expressão nominal (...). Contudo, o processo de esvaziamento lexical dos verbos leves não é total, sendo preservada a grelha argumental que o verbo tem como verbo pleno (...)”.
[5] Os dados de acusativo de 2P ilustrados em (06) e (08) foram discutidos por Souza (2014) com base em cartas familiares cariocas.
[6] Convém esclarecermos o fato de a não-expressão do acusativo (a estratégia zero) de 2P, amplamente discutida por Souza (2014: 102), ter se mostrado restrita ao contexto de estruturas sintáticas de coordenação de orações, como também é possível observamos em (09), também exemplificado por Souza (2014).
[7] A relação sintática oblíqua de complementação foi interpreta pelo gramático Rocha Lima (2001: 251-252 [1915-1991]), sob o rótulo de complemento relativo, como “complemento que ligado ao verbo por uma preposição determinada (a, com, de, em, etc.), integra, com o valor de objeto direto, a predicação de um verbo de significação relativa [...] precisar de conselhos, gostar de uvas, depender de despacho”.
[8] Os dados em (36) e (37) não constam do corpus deste estudo, mas foram expostos à título de exemplificação de unidades sintáticas de adjunção de 2P consolidadas em estruturas predicativas.