Introdução
O cenário mundial, marcado pelo processo de globalização, neoliberalismo, competitividade, mudanças tecnológicas constantes e grande fluxo de informação, causou uma revolução nos paradigmas organizacionais, ocasionando o aumento das exigências para manter a empregabilidade no mercado de trabalho (Del Prette & Del Prette, 2003).
Atualmente, exige-se do profissional o contínuo investimento em atualizar-se e adaptar-se às transformações da contemporaneidade. Para acompanhar essas mudanças, além de intervenções específicas que visem desenvolver tais habilidades (Guerra, Aguiar, Girotti, Lindau & Juliani, 2016; Lopes, Descanio, Ferreira, Del Prette & Del Prette, 2017; Lopes, Gerolamo, Del Prette, Musetti & Del Prette, 2015), as instituições de formação acadêmica vêm empreendendo ações, visando também aproximar os conhecimentos teóricos e as habilidades necessárias para a profissão.
Pode-se citar, como exemplos específicos do contexto brasileiro, a implementação de Empresas Júnior, que visam aproximar o estudante da realidade das organizações, a partir de projetos multidisciplinares, que incentivam a aplicação da teoria na prática. Além disso, incentivam o desenvolvimento das competências individuais, como empreendedorismo, habilidades para trabalhar em equipe, conhecimento técnico e liderança, e contribuem para a experiência profissional ainda no processo de formação (Dal Piva, Pillati, Ferraza & Silva, 2006; Gondim, 2002; Vieira, Souza, Parão, Oliveira & Santos, 2017).
Há também o Programa de Educação pelo Trabalho para a saúde (PET saúde), criado pelo Ministério da Educação brasileiro, que deve ser desenvolvido por estudantes universitários, com a tutoria de um professor, pautado no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, e na importância da educação tutorial. A proposta inclui a orientação de que os cursos façam projetos pedagógicos e planos de trabalho que articulem as necessidades educativas e produtivas da educação profissional, com base nas necessidades locais e regionais de trabalho (Tavares et al., 2014).
Durante a formação acadêmica, cada curso de graduação pauta-se nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino superior (Brasil, 1997), as quais possuem, entre seus objetivos, o de incentivar uma formação geral consistente que contribua para o futuro enfrentamento das atuais condições do mercado de trabalho, através do estímulo à articulação entre teoria e prática, pesquisa individual e coletiva e estágios e atividades de extensão.
Considerando-se especificamente os cursos de Psicologia (Brasil, 2004; 2019; Vieira-Santos, 2016) e Enfermagem (Brasil, 2001), as Diretrizes Curriculares Nacionais-DCN preconizam que os profissionais destas áreas devem desenvolver as seguintes competências gerais: atenção à saúde, tomada de decisões, comunicação, liderança, administração e gerenciamento e educação permanente, além das competências e habilidades específicas do seu campo de atuação.
As competências gerais contidas nas DCN para estes cursos, e mais especificamente para o curso de Enfermagem, são competências gerenciais que não prescindem das habilidades sociais para serem efetivadas. O ambiente do trabalho é permeado por diversas situações interacionais que requerem respostas eficazes (Menkes, 2011) também no que diz respeito à formação em Medicina (Barletta, 2014). Essas habilidades são definidas como o conjunto de comportamentos que um indivíduo emite no contexto interpessoal de forma adequada, ao expressar seus sentimentos, atitudes, desejos, opiniões ou direitos, respeitando os mesmos comportamentos nos demais, resolvendo os problemas imediatos da situação e minimizando a probabilidade de futuros problemas (Hargie, 2011). Definição similar é apresentada por Del Prette e Del Prette (2010) em termos de comportamentos socialmente emitidos a fim de suprir necessidades interpessoais, além de acrescentarem que esses comportamentos para serem considerados competentes devem gerar maior equilíbrio de benefícios para as partes envolvidas. É importante implementar práticas pedagógicas que desenvolvam, além das habilidades técnicas, essas competências e habilidades necessárias à inserção do profissional no mercado de trabalho (Rosin, Tres, Santos, Peres & Oliveira, 2016).
Apesar de necessárias, as habilidades sociais não têm sido sistematicamente abordadas no meio acadêmico, sendo apenas almejadas, porém nem sempre desenvolvidas pela maioria dos estudantes, uma vez que nesse contexto são enfatizadas principalmente as capacidades analíticas e instrumentais (Del Prette & Del Prette, 2003). Em geral, na educação formal, o desenvolvimento das habilidades sociais termina ocorrendo naturalmente, de modo não planejado e, possivelmente, em alguns casos insuficiente. Isso pode acarretar, principalmente para indivíduos que tenham o desempenho em habilidades sociais comprometido, um déficit no desempenho profissional, em especial em áreas que exijam o relacionamento interpessoal intenso como é o caso da Psicologia e da Enfermagem. Em função disso, torna-se importante investigar as habilidades sociais de estudantes, principalmente nos referidos cursos.
Nesse sentido, em um estudo realizado por Pereira, Wagner e Oliveira (2014), foram investigados aspectos da saúde mental e o repertório de habilidades sociais de estudantes de Psicologia de duas universidades privadas. Considerando que as bases da atuação profissional do psicólogo está nas relações que estabelece com clientes, os resultados das avaliações de habilidades sociais e nível de ansiedade apontaram que uma parcela considerável dos graduandos apresentou níveis de ansiedade elevados (23% com indícios de transtorno de fobia social) e 43.5% com déficits nas habilidades sociais em pelo menos um dos fatores avaliados pelo Inventário de Habilidades Sociais de Del-Prette (IHS-Del-Prette) (ver também Bolsoni-Silva & Loureiro, 2014).
Além do comprometimento da saúde mental, os estudos com universitários apontam muitas correlações entre habilidades sociais; variáveis sociodemográficas, como sexo, idade, classe social; e acadêmicas, como desempenho acadêmico e conclusão do curso no período previsto.
A exemplo desses estudos, Brandão, Bolssoni-Silva e Loureiro (2017) estudaram 287 estudantes universitários de uma cidade do interior de São Paulo, sendo 141 homens e 146 mulheres com idade média aproximada de 20 anos. Entre os avaliados estavam estudantes das áreas de humanas, biológicas e exatas. O estudo visou identificar os preditores de graduação levando em consideração as seguintes variáveis: habilidades sociais, saúde mental, desempenho acadêmico no início do curso, dados sociodemográficos e características acadêmicas. Os dados evidenciaram que o sexo feminino, a área de humanidades e o desempenho acadêmico inicial médio ou acima da média foram preditores de graduação dentro do prazo estabelecido. As habilidades sociais distinguiram os grupos nas análises univariadas, indicando maiores escores médios entre os egressos para os fatores F1 (Comunicação e Afeto) e F3 (Falando em público) do Questionário de Avaliação das Habilidades Sociais, Comportamentos e Contextos para Universitários. A diferença encontrada indica que os estudantes que apresentaram maiores médias no F1 podem ter construída uma rede de apoio que tenha facilitado a aprendizagem e, portanto, atividades relacionadas ao bom desempenho acadêmico, como a apresentação de seminários. Pode-se concluir também que o treino natural das habilidades sociais nas atividades propostas durante os cursos pode ter contribuído para o desempenho acadêmico.
Com o intuito de aprofundar o conhecimento sobre essa temática e considerando a escassez de oportunidades inseridas nos currículos de forma obrigatória ou facultativa, o objetivo dessa pesquisa foi fazer uma investigação comparativa do repertório de habilidades sociais entre estudantes em início e em término dos cursos de Psicologia e Enfermagem de uma instituição pública de ensino superior. Além disso, foram verificadas também possíveis relações entre esse repertorio e aspectos da trajetória de formação, como a inserção em atividades acadêmicas extra-classe (projetos de extensão e de iniciação científica, monitorias e estágios).
Esse estudo pode contribuir para uma melhor compreensão acerca do desenvolvimento do repertório de habilidades sociais durante a graduação de ambos os cursos em foco, Psicologia e Enfermagem. Por se tratarem de profissões cuja atuação é essencialmente dependente da qualidade das relações profissional-cliente, requerem ainda mais que as habilidades sociais sejam aperfeiçoadas na formação universitária (Brandão, Bolssoni-Silva & Loureiro, 2017; Del Prette, Del Prette & Branco, 1992).
Método
Participantes
A amostra foi composta por 139 estudantes universitários, sendo 82 participantes pertencentes ao curso de Psicologia e 57 ao curso de Enfermagem de uma instituição pública de ensino brasileira. Foram incluídos na amostra os estudantes matriculados no 1º, 4º, 8º e 10º períodos do curso de Enfermagem e 1º, 2º, 9º e 10º do curso de Psicologia e excluídos os estudantes menores de 18 anos. Dentre esses, 77 (55.4%) pertenciam aos primeiros períodos (1°, 2° e 4°) e 62 participantes (44.6%) estavam em fim de curso (8°, 9° e 10°).
A maior parte (74.3%) dos participantes era do sexo feminino. A idade dos estudantes variou entre 18 e 59 anos (M = 23.79 anos; DP = 6.349). A maioria declarou-se solteiro (83.8%) e sem exercer atividade remunerada (77%).
Instrumentos
Para a coleta de dados, foram utilizados dois instrumentos: uma versão para pesquisa do IHS-Del-Prette (Bandeira, Costa, Del Prette, Del Prette & Gerk-Carneiro, 2000; Del Prette & Del Prette, 2013; Del Prette, Del Prette & Barreto, 1998) e um questionário inicial, elaborado para a presente pesquisa. Atualmente existe uma nova versão do IHS-Del-Prette, o IHS2-Del-Prette (Del Prette & Del Prette, 2018), porém a coleta referente ao presente trabalho foi realizada antes dessa atualização no instrumento.
O IHS-Del-Prette é um instrumento composto por 38 afirmativas que apresentam variadas situações, incluindo reações emocionais e comportamentos. Cada situação deve ser avaliada pelo respondente de acordo com a frequência de emissão do comportamento descrito pelo item, considerando a frequência em que se encontrou naquela situação, a partir de uma escala tipo Likert de cinco pontos variando entre “raramente ou nunca” a “sempre”. Os fatores analisados pelo instrumento são: (F1) enfrentamento e autoafirmação com risco; (F2) autoafirmação na expressão de sentimento positivo; (F3) conversação e desenvoltura social; (F4) autoexposição a desconhecidos e situações novas; e (F5) autocontrole da agressividade; além de itens que não se encaixam em nenhum fator. Os escores totais são obtidos a partir da soma dos valores atribuídos a cada item enquanto os escores de cada um dos fatores são calculados por meio da média dos valores atribuídos a cada item. O IHS-Del-Prette apresenta bom índice de fidedignidade na correlação teste-reteste (r=.9) e bom índice de validade concomitante (r=.79) (Bandeira et al., 2000).
O questionário inicial foi constituído por 20 itens, incluindo questões sociodemográficas, como idade, sexo, estado civil, assim como perguntas sobre a formação, como período atual de curso, ingresso em outro curso e participação em atividades acadêmicas.
Procedimento para coleta de dados
Os participantes foram recrutados por meio de listas de participação voluntária passadas nas turmas e, posteriormente, contatados para agendamento da coleta de dados. Após a apresentação, esclarecimentos e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foram preenchidos o questionário inicial e o IHS-Del-Prette, momento em que foi salientada a importância de que nenhum item fosse desconsiderado e enfatizado o fato de não haver respostas corretas ou incorretas.
Os instrumentos da pesquisa foram aplicados individual e/ou coletivamente, de acordo com a disponibilidade dos participantes, em sala climatizada. Também foram utilizadas salas pertencentes ao local de estágio dos estudantes dos últimos períodos.
Considerações éticas
A coleta de dados só foi iniciada após análise e aprovação do protocolo CAAE: 45764215.6.0000.5196, pelo Sistema CEP/CONEP. Foram respeitadas as orientações acerca dos procedimentos previstos na resolução CNS 466/12 (Brasil, 2012), a partir da apresentação do TCLE, com informações sobre o objetivo da pesquisa, em uma linguagem acessível, contendo justificativa e procedimentos utilizados.
Análise de Dados
Os dados foram analisados por meio do software estatístico IBM SPSS, versão 20. Foram realizadas análises descritivas acerca do escore geral e de cada um dos cinco fatores do IHS-Del-Prette, bem como das demais variáveis relevantes, como quantidade de atividades acadêmicas extra-classe, ingresso em outro curso e dados sociodemográficos, por meio de medidas de tendência central (média, desvio padrão, escores mínimo e máximo).
Também foram feitos testes paramétricos e não-paramétricos, utilizando-se o intervalo de 95% de confiança. Quanto às variáveis de cunho quantitativo, foi realizado o teste de Kolmogorov-Smirnov, a fim de avaliar a normalidade da distribuição dos dados.
Os testes paramétricos T-Student para amostra independente e não-paramétricos U de Mann-Whitney foram realizados a fim de comparar os escores de estudantes de início de curso e dos concluintes de cada graduação, para comparar os dois cursos, e, ainda, para comparar os estudantes que se engajavam em atividades extra-classe e aqueles que não o faziam. O teste bilateral de correlação rho de Spearman foi utilizado para verificar a possível correlação entre o repertório de habilidades sociais e o envolvimento com atividades acadêmicas, além do tempo de curso.
Essas análises serão apresentadas em alguns momentos considerando os cursos separadamente, a fim de avaliar características específicas de cada curso, e em outros momentos considerando toda a amostra em conjunto, para avaliar questões comuns aos cursos, como tempo no curso, realização de atividades extra-classe e diferenças entre sexos.
Resultados e Discussão
A partir do teste de Kolmogorov-Smirnov, foi constatada a distribuição normal dos dados apenas em F1 (enfrentamento e autoafirmação com risco) (p=.83), F3 (conversação e desenvoltura social) (p=.07) e escore total do IHS-Del-Prette (p=.55), de modo que as demais variáveis quantitativas, F2 (autoafirmação na expressão de sentimento positivo), F4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas), F5 (autocontrole da agressividade) e quantidade de atividades acadêmicas extra-classe, tiveram que ser avaliadas por meio de testes não-paramétricos.
Conforme demonstrado na Tabela 1, a média do escore geral do IHS-Del-Prette obtida pelos participantes foi de 135.35 (DP=8.29), variando entre 90 e 168 pontos, considerando-se que a pontuação mínima possível era de 38 pontos e a máxima, de 190 pontos. A média geral dos cinco fatores avaliados pelo instrumento foi de 3.6 pontos (DP=.51), sendo que a frequência poderia variar entre 1 e 5. Quanto aos fatores do inventário, F2 (autoafirmação na expressão de sentimento positivo) apresentou o maior escore médio, com 4.09 pontos (DP=.64), seguido de F5 (autocontrole da agressividade) com média de 3.68 pontos (DP=.74), F3 (conversação e desenvoltura social) com média de 3.66 pontos (DP=.64), F4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas) com média de 3.51 pontos (DP=.88), e, por último, F1 (enfrentamento e autoafirmação com risco) que apresentou média de 3.05 pontos (DP=.69).
Para melhor compreensão dos resultados, os dados serão descritos a partir das categorias de análise comparativa. Na categoria tempo de curso, a média do escore total do IHS-Del-Prette obtida pelos estudantes de início de curso foi de 133.17 pontos (DP=18.64) e os participantes dos últimos períodos obtiveram 138.06 pontos, em média (DP=17.61). Apesar desse dado descritivo, não houve diferença estatisticamente significativa na comparação das médias do escore total assim como dos fatores isolados. A partir do teste rho de Spearman, o tempo de curso apresentou correlação apenas com F3 (conversação e desenvoltura social) (p=.05; rho=.16).
Esses resultados corroboram o estudo de Del Prette et al. (1992), realizado com 79 estudantes de Psicologia em início e fim de curso. Nesse estudo, foi utilizado um questionário com 13 situações críticas de interação social, cuja escala de respostas referia-se ao grau de incidência da situação na experiência do participante, o grau de incômodo produzido, a emissão de resposta que indicasse competência social adequada à situação e a satisfação com a própria resposta emitida. Os autores não evidenciaram diferenças relevantes entre esses dois grupos quanto às dimensões do instrumento, ressaltando apenas que os concluintes apresentaram maior “sensibilidade” quanto a situações críticas de interação social.
Em contraponto, a pesquisa realizada por Carneiro e Teixeira (2011), com uma amostra de 24 estudantes de Psicologia em início, meio e fim de curso, apresentou maiores escores para os participantes do primeiro grupo quanto aos fatores F1 (enfrentamento e autoafirmação com risco), F3 (conversação e desenvoltura social), F4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas) e F5 (autocontrole da agressividade), a partir do IHS-Del-Prette. A inconsistência entre os resultados desse estudo e aqueles apresentados por Del Prette et al. (1992) talvez esteja relacionada ao tamanho das amostras, uma vez que um número reduzido de participantes poderia afetar a generalização dos resultados. De qualquer forma, os dados do presente trabalho em conjunto com os dados de Del Prette et al. (1992) indicam que habilidades sociais requeridas para o exercício profissional e para uma vida mais saudável podem não ser desenvolvidas ao longo da graduação sem intervenções específicas para tanto.
Quanto ao curso, houve uma pequena diferença estatisticamente significativa na comparação das médias entre os dois cursos (p=.05), destacando-se que a média obtida pelos participantes de Enfermagem no escore total (M=138.91; DP=16.20) sobressaiu-se à dos estudantes de Psicologia (M=132.88; DP=19.32), conforme o teste t para amostras independentes (p=.05). Dentre todos os fatores do IHS-Del-Prette, F2 (autoafirmação na expressão de sentimento positivo) sobressaiu-se com maior média tanto pelos participantes de Enfermagem (M=4.26, DP=.53), como pelos estudantes de Psicologia (M=3.97, DP=.69). A menor pontuação média obtida pelos estudantes de Enfermagem e de Psicologia foi em F1 (enfrentamento e autoafirmação com risco) (M=3.13, DP=.63; M=3.00, DP=.73, respectivamente), conforme a Tabela 2.
O teste Mann-Whitney apontou diferença estatisticamente significativa entre as médias de F2 (autoafirmação na expressão de sentimento positivo) (p=.01; U=1954.5), F4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas) (p=.04; U=2091.5) e F5 (autocontrole da agressividade) (p=.03; U=2083.0) destes cursos, de forma que os estudantes de Enfermagem parecem ter sobressaido aos de Psicologia, conforme aponta a Tabela 2. Porém, é importante mencionar que a maior quantidade de estudantes de Psicologia do que de Enfermagem na amostra limita a confiança dessas afirmações.
Esses dados sugerem diferenças no repertório de habilidades sociais com relação à variável curso que, no entanto, precisam ser melhor investigadas. Uma vez que os estudantes de Enfermagem aparentemente se destacaram sobre os de Psicologia, essa diferença pode ser explicada pela maior carga horária prática ofertada no curso de Enfermagem, 745 horas a mais do que no curso de Psicologia da instituição avaliada, como também pela qualidade das atividades práticas desenvolvidas por esses estudantes, nas quais encontram-se envolvidos em relacionamentos interpessoais com pacientes e equipe multidisciplinar dos campos de atuação, conforme apresenta o Projeto Político Pedagógico do curso. De fato, estudos explicitam a importância das habilidades sociais para a relação entre enfermeiro(a) e paciente (Bhana, 2014), assim como para a relação médico(a) e paciente (Gilis, Morris & Ridgway, 2015). Além de afetar a qualidade da relação com pacientes, as habilidades sociais podem funcionar como um fator protetor para burnout entre médicos residentes, como apontado por Pereira-Lima e Loureiro (2017).
Diferenças entre cursos também foram encontradas por Soares, Mourão, Santos e Melo (2015), estudo no qual estudantes do curso de informática obtiveram menores médias nos escores de autoafirmação e autoexposição a desconhecidos em situações novas e maiores médias nos escores de autocontrole da agressividade comparados a estudantes do curso de Psicologia. Nesse estudo, o envolvimento em atividades não obrigatórias foi maior entre os estudantes do curso de Psicologia. Porém, também existem evidências contrárias. Um estudo comparativo sobre a competência social de estudantes de Psicologia, Serviço Social e Engenharia Mecânica (Del Prette, Del Prette & Correia, 1992) sugere que o curso não se constituiu como fator relevante para a competência social, porém, nesse caso, as diferenças de carga horária prática não foram analisadas.
Com relação as atividades acadêmicas extra-classe realizadas durante o curso, os resultados apontam que 55.4% (n=82) dos participantes se envolveram em pelo menos uma atividade, cujo tempo variou entre um e 60 meses, no total. Dos participantes em início de curso, 77.1% (n=64) não se envolveram em nenhuma atividade. Quanto aos concluintes, apenas 3.1% (n=2) dos participantes não desenvolveram atividades acadêmicas extra-classe, destacando-se 64.6% (n=42) que declararam envolver-se em pelo menos duas atividades. Com relação ao curso, 44.9% (n=40) dos alunos de Psicologia e 44.1% (n=26) dos alunos de Enfermagem declararam não estar envolvidos nesse tipo de atividade.
A variável quantidade (em meses) de atividades acadêmicas extra-classe associou-se positivamente com o escore total do IHS-Del-Prette (p=.00; rho=.25) assim como com F1 (enfrentamento e autoafirmação com risco) (p=.00; rho=.24), com F3 (conversação e desenvoltura social) (p=.01; rho=.20) e com F4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas) (p=.04; rho=.16). Quando comparados os grupos dos que participavam de atividades acadêmicas extra-classe com os que não participavam, houve diferença significativa para as médias de F1 (enfrentamento e autoafirmação com risco) (p=.00), F3 (conversação e desenvoltura social) (p=.00) e escore total (p=.00), conforme o teste T para amostras independentes; e F5 (autocontrole da agressividade) (p=.05; U=2211.5), a partir do teste Mann-Whitney. Em todos os escores das categorias mencionadas, destacaram-se os que estavam envolvidos em pelo menos uma atividade.
Ressalta-se que a correlação entre F3 (conversação e desenvoltura social) e o tempo de curso, citada anteriormente, pode indicar a possibilidade de que o envolvimento com atividades acadêmicas interfira positivamente no desenvolvimento dessas habilidades sociais durante a graduação. Essa conclusão é corroborada pelo fato de que a maioria dos estudantes em início de curso (77.1%) declarou não ter se envolvido em atividades, em contraponto ao grupo dos concluintes, dos quais apenas dois não estavam engajados em pelo menos uma atividade. De acordo com Bardagi e Boff (2010), atividades extracurriculares são importantes na preparação para o mercado de trabalho, o que, considerando a importância da competência social para a atuação profissional, concorda com os resultados apontados pela presente pesquisa.
Dentre os participantes, 102 (69%) relataram não estar realizando outro curso, enquanto 28% já cursaram por um tempo ou concluíram. Houve ainda quatro participantes (3%) que relataram estar cursando outra graduação concomitantemente. O teste t para amostras independentes apontou diferença significativa desta variável apenas quanto ao escore total (p=.00) e F3 (conversação e desenvoltura social) (p=.00), sendo que a menor média foi obtida pelos estudantes que nunca ingressaram em outro curso. Não foram encontrados outros estudos na literatura brasileira que pesquisassem a possível relação entre essas variáveis, no entanto, é possível inferir que as experiências em outros cursos representam oportunidades adicionais para o desenvolvimento do repertório das habilidades sociais, como afirmado por Soares e Del Prette (2015).
Nessa amostra, a variável sexo parece não ter interferido no desenvolvimento das habilidades sociais, a não ser quanto à F2 (autoafirmação na expressão de sentimento positivo) (p=.00; U=1457.0), a partir do teste de Mann-Whitney, no qual as mulheres obtiveram o maior escore. Resultado semelhante aparece no estudo realizado com estudantes de Psicologia de várias regiões do país: São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro (Del Prette et al., 2004), cujos autores verificaram que também houve maior média para as mulheres em F2 (autoafirmação na expressão de sentimento positivo). Porém, no que concerne à amostra do presente trabalho, cabe mencionar que a diferença na proporção entre mulheres e homens enfraquece conclusões sobre diferenças entre sexos e aponta para a necessidade de estudos adicionais.
Considerações finais
A leitura dos Projetos Pedagógicos de Enfermagem e Psicologia pertencentes à instituição avaliada sugere que a proposta de desenvolvimento das competências gerais e específicas implica no bom desempenho das habilidades sociais. Assim, a presente pesquisa pode auxiliar na melhor adaptação dos métodos de ensino e aprendizagem desses cursos de graduação à medida em que sugere a importância das atividades práticas para o desenvolvimento dessas habilidades, trazendo benefícios aos estudantes que terão futuramente de lidar com as exigências do mercado. Além disso, o presente trabalho aponta para a necessidade de intervenções específicas para o desenvolvimento de habilidades sociais, principalmente aquelas requeridas na atuação profissional, pois apenas as atividades curriculares não parecem ser suficientes para tanto.
O estudo também contribui para a melhor caracterização do repertório de habilidades sociais de estudantes universitários, sugerindo variáveis, como participação em atividades extra-classe e ingresso em outro curso, como capazes de influenciar no desenvolvimento deste importante conjunto de comportamentos necessários às interações sociais.
Outras pesquisas podem ser desenvolvidas, a fim de melhor avaliar os aspectos mensurados no presente trabalho. Por exemplo, o desenvolvimento dessas habilidades ao longo do tempo durante a graduação seria melhor avaliado e compreendido por meio de estudos longitudinais. Além disso, a participação em atividades extra-classe e os fatores específicos dessas atividades que favorecem o desenvolvimento das habilidades sociais precisam ser melhor esclarecidos. As variáveis sexo e ingresso em outros cursos também carecem de maior detalhamento. É possível que os papéis culturalmente definidos como femininos gerem oportunidades de desenvolvimento de habilidades específicas como sugere o estudo de Soares, Seabra e Gomes (2014), porém essa é uma possibilidade que requer outras pesquisas para comprovação ou refutação. Sugere-se também pesquisas adicionais que possam comparar outras graduações ainda não estudadas para maior compreensão das relações entre o engajamento em diferentes cursos e o desenvolvimento das habilidades sociais.