Introdução
O Projeto Atlas linguístico do Brasil, cujos primeiros volumes referentes às capitais brasileiras foram publicados em 2014 (Cardoso et al. 2014a, 2014b), começa uma nova fase de sua elaboração com o tratamento dos dados coletados em localidades do interior do país. Para tanto, a equipe toma como ponto de partida análises prévias realizadas em trabalhos monográficos como o de Marins (2012), Ribeiro (2012), Portilho (2013), Romano e Seabra (2014a, 2014b), Romano (2015), Santos (2016), entre outros.
Os trabalhos arrolados têm apontado caminhos e desafios para uma cartografia racional e coerente do grande volume de dados coletados (Cardoso 2010). As pesquisas evidenciam os aspectos convergentes e divergentes de áreas linguísticas que revelam traços da história social de cada região do país e, de certa forma, colocam em discussão a clássica divisão dialetal estabelecida por Antenor Nascentes (1953), sob uma perspectiva lexical.
Este artigo discute a divisão dialetal de Nascentes (1953) tomando como objeto de análise dados coletados para a questão 039 do Questionário Semântico-lexical (QSL), cujo objetivo é documentar as variantes lexicais para a tangerina (Comitê Nacional do Projeto ALiB, 2001). Os dados se referem à fala de informantes radicados em uma ampla área geográfica do centro-sul do país correspondente ao território denominado por Nascentes (1953) como “subfalar sulista”. Desse modo, na próxima seção, apresenta-se o aporte teórico sob o qual se sustenta o trabalho. A seção 3 traz a descrição dos materiais e métodos empregados no estudo. Na seção 4, apresentam-se as análises empreendidas, seguindo-se as considerações finais (seção 5) e as referências bibliográficas utilizadas.
2. A divisão dialetal de Nascentes e o Projeto ALiB
A necessidade de estabelecer áreas dialetais subjaz aos trabalhos de natureza geolinguística explícita ou implicitamente. Todavia, embora Amaral (1981) reconhecesse já em 1920 a importância de trabalhos empíricos para definir “com segurança quais os caracteres gerais do dialeto brasileiro, ou dos dialetos brasileiros” (Amaral 1981: 44), a sistematização de um mapa dialetal para o Brasil só se concretizou de forma coerente em 1953 na obra O linguajar Carioca, de Antenor Nascentes. Naquela ocasião, o autor justificou que após ter realizado o seu “ardente desejo de percorrer todo o Brasil, do Oiapoc ao Xuí, de Recife a Cuiabá”, a divisão dialetal proposta por ele não poderia ser considerada como definitiva, “mas sim um tanto próxima da verdade”. (Nascentes 1953: 24)
Pautando-se na abertura de vogais pretônicas e aspectos prosódicos, Nascentes dividiu o PB em dois grandes falares, o do Norte e o do Sul, que contemplam seis subfalares, conforme se verifica na Figura 1.
O falar do Norte divide-se em Amazônico e Nordestino e o falar do Sul contempla o subfalar baiano (intermediário entre os dois grupos), o sulista, o fluminense e o mineiro. Somam-se a esses subfalares uma área denominada pelo estudioso como território incaracterístico.
O mapa de Nascentes tornou-se a clássica divisão dialetal do PB, muito referenciado e já estudado sob o ponto de vista fonético por Cardoso (1986; 1999), que confirmou a divisão Norte e Sul quanto à abertura das pretônicas em dados de atlas estaduais e regionais. Sob o ponto de vista lexical, Ribeiro (2012) se encarregou de estudar o subfalar baiano, Portilho (2013), o Amazônico, Romano (2015) investigou a área do subfalar sulista e Santos (2016), o fluminense.
De um modo geral, essas pesquisas atestam o fato de que esses subfalares não se limitam à faixa territorial estabelecida por Nascentes, mas adentram outras áreas. Apesar disso, apenas Romano (2015) faz a proposta de uma redefinição para área do subfalar sulista.
Nesse sentido, considerando-se os resultados obtidos pelo autor, apresenta-se, neste artigo, uma síntese de sua proposta a partir da análise da questão 039 do QSL1. O trabalho ratifica importância do Projeto ALiB para uma redefinição do mapa dialetal brasileiro, que, em meados da segunda década do século XXI, caminha para sua concretização.
3. Materiais e métodos
O corpus analisado refere-se aos dados ainda inéditos coletados pela equipe do Projeto ALiB junto 472 informantes, de escolaridade máxima o ensino fundamental, estratificados, equitativamente, entre homens e mulheres pertencentes a duas faixas etárias: faixa I (18 a 30 anos) e faixa II (50 a 65). Os informantes são naturais de nove estados federativos (Rio Grande do Sul - RS, Santa Catarina - SC, Paraná - PR, São Paulo - SP, Minas Gerais - MG, Rio de Janeiro - RJ, Mato Grosso do Sul - MS, Mato Grosso - MT, Goiás - GO), distribuídos em 118 municípios brasileiros2.
Após um estudo criterioso do mapa de Nascentes no que se refere à área geográfica do subfalar sulista, foi realizado o georreferenciamento da rede de pontos do Projeto ALiB. Na área do estudo, encontram-se 108 localidades às quais foram acrescentadas 10 pontos linguísticos para verificar os limites subfalar sulista com os outros subfalares (mineiro e o fluminense). Em cada ponto de inquérito foram entrevistados quatro informantes, sendo um homem e uma mulher da faixa I e um homem e uma mulher da faixa II3. Os dados coletados foram levantados a partir da consulta às transcrições e às gravações em áudio. A validação das variantes lexicais para a questão 039 do QSL respaldou-se em dois dicionários gerais da língua portuguesa, Houaiss e Villar (2001) e Ferreira (2004). Quanto à etimologia, em alguns casos, foi consultado o dicionário etimológico de Cunha (2010) e o Dicionário da Real Academia Española (2001). O corpus passou pelo processo de revisão e armazenamento no banco de dados do software desenvolvido para agilizar o processo de geração de relatórios e de cartografia linguística, o [SGVCLin] (Romano, Seabra, Oliveira 2014).
4. Análise dos dados
A questão 39 do QSL, que objetiva documentar os designativos para as frutas menores que a laranja que se descascam com a mão, no corpus selecionado, apresenta um total de 1106 registros distribuídos em 29 formas, incluindo-se variantes fonéticas e morfofonêmicas4. Considerando as formas que apresentam processos fonéticos e morfofonêmicos diversos, foram feitos os seguintes agrupamentos:
(i) Alternância de fonema inicial de /b/ > /v/ (bergamota/vergamota);
(ii) Alternância da vogal átona final /a/ > /e/ (bergamota/bergamote, moricota/moricote, mangota/mangote, morocota/morocote, muricota/muricote, morgota/morgote);
(iii) Sonorização da consoante velar de /k/ > /g/: (morcote/morgote, morcota/morgota, marcota/margota);
(iv) Casos de assimilação, seja pela influência da vogal tônica seguinte {mar-} > {mor-}, {ma-} > {mo-} (maricota/moricota); (margota/morgota/morgote, marcota/morcote); pela consoante nasal bilabial sobre a vogal {ma-} > {mu-} (maricota/muricota); seja pela influência da consoante nasal bilabial sobre a consoante da sílaba seguinte (morgota/mormota);
(v) Inserção de vogal epentética [i] ou [o] (marcota/maricota, morcote/moricote, morcota/moricota); (moricota/morocota/morocote);
(vi) Síncope de sílaba pretônica (muricote/mucote);
(vii) Adequação ao gênero do primeiro nome: {a} < {o} (laranja-crava/laranja-cravo).
Assim, foram consideradas nove formas lexicais distintas, registradas com diferentes índices de produtividade, figurando entre as mais produtivas as variantes: mexerica (333 ocorrências, 30,11%), poncã (314, 28,39%), tangerina (244, 22,06%) e bergamota com suas variantes morfofonêmicas (112 registros, 10,13%). Com menor produtividade, encontram-se morcote e variantes morfofonêmicas (54 ocorrências, 4,88%), mimosa (33, 2,98%), laranja-cravo(a) (13 registros, 1,18%), mandarina (duas ocorrências, 0,18%) e a hápax legomena carioquinha (0,09%).
Além desse conjunto de realizações lexicais, observa-se a ocorrência de adjetivos que especificam a variedade dessa fruta ou atribuem características à mexerica ou à bergamota, uma vez que esta questão do QSL prevê a apuração de detalhes sobre o referente. Este detalhamento se justifica pelo fato de a fruta ser amplamente conhecida em todo o território nacional e apresentar diversidade de tipos decorrentes ou da hibridização natural ou de experimentos realizados pelo homem, como bem assevera Costa (2011).
Assim, considerando os adjetivos que “denunciam quem comeu o fruto”, foram registradas 17 formas de mexerica enredeira, 15 de mexerica fuxiqueira, uma de mexerica fofoqueira. Ainda levando-se em conta o cheiro característico que delata quem manuseou a fruta, ocorrem três registros de mexerica fedidinha, uma ocorrência de mexerica cheirosinha e sete registros de mexerica bode/bodinha, motivação lexical justificada, possivelmente, por analogia ao odor do animal (bode)5.
Quanto às variedades de mexerica ou bergamota, encontram-se quatro ocorrências de vergamota do céu, sete registros de mexerica caipira, dez ocorrências de mexerica cravo, duas, de mexerica comum e um registro de mexerica rosa.
Portanto, essas 68 ocorrências que especificam ou qualificam o tipo de mexerica ou bergamota não foram consideradas dentro dos 1106 registros, uma vez que os informantes que forneceram esses detalhes já haviam respondido, como principais variantes ou mexerica ou bergamota. A Figura 2 apresenta uma carta linguística elaborada ad hoc na qual consta a distribuição diatópica das nove formas lexicais consideradas como designativos para o referente.
Nesta carta linguística é possível visualizar uma ampla distribuição das três variantes mais produtivas (mexerica, poncã e tangerina) nos estados de SP, sul de MG, sul de GO, no MT e MS. A variante poncã apresenta-se também amplamente difundida pelo estado do PR e também por SP, MS e MT. Bergamota distribui-se pelos estados do RS e SC, além de ocorrer no oeste paranaense. Morcote apresenta-se, sobretudo, no estado de SP, enquanto a variante mimosa ocorre em localidades paranaenses e catarinenses.
A Figura 3 apresenta uma carta que revela a arealidade6 da variante mexerica, evidenciando os limites da isoléxica na porção meridional do subfalar sulista.
Observa-se que no litoral central de SC, no interior deste estado, no litoral paranaense (ponto 221 - Morretes) e em grande parte do RS, não há ocorrência da variante mexerica, que, por sua vez, se distribui, amplamente, por todo o território do Estado de SP, MS, PR, MT, sul de GO, sul de MG, ocorrendo, inclusive, nas adjacências do subfalar sulista, em 100% das respostas de cada ponto linguístico (quatro aferimentos por ponto).
Como se verifica, o item está difundido na maior parte do território e está registrado nos dois principais dicionários da língua portuguesa na acepção buscada para o referente.
Para Ferreira (2004), esta variante provém do substantivo mexerico que, por sua vez, significa o “ato de mexericar; enredo; intriga” e, segundo Houaiss e Villar (2001), mexerica é uma forma regressiva do verbo mexericar. Desse modo, as obras lexicográficas e o uso dos informantes atribuem ao nome da fruta características que lhe são peculiares, ou seja, o fato de o odor forte denunciar quem o comeu justifica, por extensão de sentido, o uso do designativo mexerica, assim como adjetivos que intensificam esta característica, conforme se observa em relatos dos informantes7.
INF.- Mixirica, tem uma mixiriquinha piquena que tem um chero forte na casca, então a gente chama ela de irredera porque se você robá do vizinho e chegá perto do vizinho, o vizinho sabe que você pegô se ocê não tivé lá na tua casa, normalmente8.
INF.- Irridera (risos), irredera é uma pessoa fofo... é como se fosse fofoquera, porque a pessoa chupa não tem, num pode escondê de ninguém, porque o chero dela é muito forte (...)9
INF.- Muita gente fala mixirica enredera, porque quem chupá ela todo mundo sabe, né, porque o chero é muito forte.10
INF.- Tem a mixirica, a pocã que é grande e tem uma pequenininha que chama mixirica fuxiquera aqui.
INQ.- Ah, por quê?
INF.- É porque na hora que você descasca ela chera longe, é por isso que eles geralmente chama ela de fuxiquera (...)11
Considerando a produtividade do item mexerica, bem como a sua distribuição diatópica, possivelmente, esta variante seria uma das características do denominado falar paulista, que se difunde do estado de SP para o sul de MG, para os estados da região Centro-Oeste, interior do PR, e por um corredor central atinge campos de Lages em SC, parte do território catarinense já identificada como uma área de influência paulista, por Margotti e Vieira (2006), e denominada, por Romano e Aguilera (2014), como área do interior central de Santa Catarina.
Observando-se as áreas de ocorrência de poncã, segunda variante mais produtiva (Figura 4), nota-se que este item lexical está amplamente distribuído pela área investigada, não ocorrendo, principalmente, no extremo sul do território, em uma área que corresponde ao nordeste do RS (ponto 237 - Vacaria), litoral sul de SC (pontos 233, 232 - Criciúma e Tubarão) e em uma localidade do nordeste catarinense (Blumenau - ponto 227), além de não ocorrer também em uma localidade do sul de GO (ponto 126 - Quirinópolis).
Essa diminuição da incidência da variante poncã (Figura 4) e também de mexerica (Figura 3), em SC e RS, pode ser explicada pela presença de uma forma considerada típica desses estados, bergamota, atestada, inclusive, na fala dos informantes, conforme se apresenta adiante.
Para Houaiss e Villar (2001), poncã é um substantivo masculino na acepção de uma “rubrica da agricultura para a variedade de tangerina, grande e de casca frouxa, originária do Japão” (Houaiss e Villar 2001). Afirmam os lexicógrafos sobre a etimologia desta palavra que: “segundo Michaelis, vem do japonês ponkan”. Em Ferreira (2004), constam as mesmas informações acerca desta variante, porém, além desta acepção, o dicionarista traz alguns dados adicionais, por exemplo: o lugar onde geralmente se cultiva esse fruto, dizendo que esse “tipo de tangerina é hoje cultivada no Brasil, sobretudo em São Paulo, por japoneses, e que se caracteriza pelas dimensões avantajadas e casca muito frouxa” (Ferreira 2004). Quanto às características - avantajada, de casca frouxa - são as mesmas especificações dadas pelos informantes ao descrever o fruto.
INF.- A pocã tem casca grossa, e é bem graúda, bem grossa graúda, bem cascuda com a casca grossa e tem a tangerina que é a casquinha mais fininha, mais grudadinha, e tem a morgota também que tem a casca mais fininha ainda, e ela também a graúda, a morgota, e a bergamota é a tradicional.12
INF.- A diferença daqui da terra a senhora qué dizê né? A da terra, a pocã é que é uma casca grossa né, aquela mais fácil de descascá, aquela chamada pocã aí tem a mexerica que é um pouquinho mais difícil, aí tem a maricota que é um mais difícil inda. A maricota quela de casca lisa, bem lisinha memo, bem fininha também assim, na hora de descascá é té perigoso machucá os gomo.13
Poncã, assim como a variante mexerica, é uma forma lexical que, possivelmente, caracteriza o falar paulista, que avança a partir de SP e se estende a toda a região Centro-Oeste, ao estado do PR, parte do território catarinense, chegando até o RS, em algumas localidades.
A terceira variante mais produtiva, no conjunto das respostas, é tangerina e, conforme a Figura 5, observam-se diferentes índices de ocorrência por todo território investigado.
A variante não ocorre, contudo, em dois pontos do oeste e do nordeste do RS (ponto 234 - Três Passos e 239 - São Borja e ponto 243 - Porto Alegre e 244 - Osório, respectivamente).
Em SC, o item só não foi registrado em uma localidade do litoral sul (ponto 232 - Tubarão) e no PR, não se apresentou em Lapa (ponto 222). A variante também não ocorreu em Campinas/SP (ponto 173), em Parnaíba-MS (ponto 114) e em duas localidades do interior de GO (ponto 126 - Quirinópolis, e 122 - Goiás). Nos pontos de controle, tangerina não foi elicitada em Porangatu-GO (ponto 118), Unaí-MG (130) e Paraty-RJ (206). Ou seja, dos 118 pontos investigados, em apenas 13 a variante não ocorreu, o que ratifica o quanto a forma considerada padrão está difundida pelo território.
O estudo de Romano e Aguilera (2008), que se pautou em obras lexicográficas visando a discutir a dicionarização dos designativos para a questão, revelou que, dentre os dicionários investigados naquela pesquisa14, o de Houaiss e Villar (2001) parece ser o mais completo na definição do verbete tangerina, pois, além da acepção - fruto da tangerineira - registra as variantes regionais - bergamota, laranja-cravo, laranja-mimosa, mandarina, mexerica, mimosa, tangerina-cravo, tangerina-do-rio, vergamota - sem, contudo, indicar em que região essas formas são mais frequentes.
De fato, tangerina não se refere a uma área geográfica específica, trata-se de uma forma comum a todo território e, como se observa em outro estudo de Romano e Aguilera (2009), tangerina predomina em capitais das regiões Norte e Nordeste do Brasil, o que também pode ser observado na carta L05 do Atlas Linguístico do Brasil (Cardoso et al. 2014b). No que se refere ao território investigado, verifica-se a presença de tangerina na maioria dos pontos, ou seja, em 105 das 118 localidades selecionadas, não caracterizando nem um nem outro dos falares aqui discutidos.
A quarta variante mais produtiva que se apresenta, aproximadamente, em 10% do corpus é bergamota. Ferreira (2004) anota que bergamota vem do turco beg armudi, ‘pêra do príncipe’, pelo italiano bergamota, indicando como brasileirismo de SC e RS com remissiva à tangerina. Romano e Aguilera (2008), com base nas obras lexicográficas consultadas afirmam que:
Para Nascentes (1966), teria vindo através do italiano bergamotta ou do francês bergamotte. Segundo Bueno (1964), não se compreende como beg armudi passou a bergamotta em italiano e como o nome de uma pêra possa designar uma mexerica. Para Fontinha (s.d), bergamota veio mais especificamente de Pérgamo, na Itália e é uma espécie de cidra aromática, com que se fazem cosméticos; planta labiada, de perfume muito agradável; casta de pêra muito sumarenta (Romano e Aguilera 2008: 7).
Houaiss e Villar (2001), dentre outras acepções, indicam que é pequena árvore (Citrus aurantium subespécie bergamia) da família das rutáceas, de flores muito aromáticas e fruto piriforme com casca fina, lisa e amarela; bergamoteira, e ainda como fruto dessa árvore com remissiva para tangerina e como um regionalismo do RS e SC.
Em termos quantitativos, observa-se que bergamota obtém representatividade considerável nas localidades gaúchas, ultrapassando metade das respostas válidas (55,08%), seguindo-se SC (28%) e PR (8,63%). Com menor produtividade, registram-se como ocorrência única no MT (1,20%) e MS (1,75%).
Quanto à distribuição diatópica, bergamota, possivelmente, ela caracteriza o falar sulista, de influência sul-riograndense e das línguas em contato com o português, no caso, o italiano, uma vez que na Figura 6 pode-se observar a distribuição diatópica desta variante, definindo áreas de ocorrências bem delimitadas.
Assim, a variante se difunde por todo o estado do RS, de SC com índices de 100% de produtividades, atingindo também cidades localizadas no sul do PR (222-Lapa) até o ponto 214 (Piraí do Sul/PR), além de Morretes (221), no litoral, com menor índice. A ocorrência de bergamota na região de Lapa, que se difunde até Piraí do Sul, possivelmente, seria uma marca deixada pelos gaúchos no léxico da região, uma vez que a cidade de Lapa foi fundada a partir dos antigos ranchos dos tropeiros vindos do sul do país em direção ao estado de SP (Steca e Flores, 2002)15.
Por outro lado, essa área se estende também por um corredor do oeste paranaense, área que Altenhofen (2005) denominou como Corredor oeste de projeção rio-grandense, a partir do qual bergamota atinge o ponto 117 (Ponta Porã), no sudoeste do MS e ocorre isoladamente em Diamantino/MT (ponto 105).
O caráter regional de bergamota é ratificado pelos comentários de informantes de outras regiões do país, como goianos e paranaenses que associam a variante ao uso de gaúchos e catarinenses:
INF.- É... porque... é complicado o negócio, é tangerina, poncã, mixirica, no sul ela chama, é, bergamota, vai... Tanto nome, né?16
INF.- A vergamota como os gaúcho dizia, no tempo que eles passavam por aqui, né, e tinha o hotel Guarani que até eu trabalhei cum dezesseis ano. Então, eles dizia vergamota, “nós compramo vergamota”. Daí no começo eu não sabia o que era. “Tem vergamota?” Tinha a laranja baiana né, tinha a mixirica e tangirina, nóis dizia mixirica, nem tangirina num dizia, né. Daí que fomo aprendendo a tangirina e a vergamota. Vergamota era a mesma tangirina.
INQ.- E são iguais?
INF.- São tudo igual. O gaúcho dizia vergamota.17
INF.- Bom a poncã é uma fruta que... mais fácil de descascá né, fica assim desgrudado da casca, e aqui a gente chama de poncã, mas só que tem outros lugar que chama bergamota.
INQ.- Aqui não se usa a palavra bergamota?
INF.- Aqui não.
INQ.- Não. Mas a senhora ouviu onde?
INF.- Eu ouvi, eu ouvi uma mulher que veio de Santa Catarina, fala que lá chama bergamota.
INQ.- Isso.18
O Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (Altenhofen e Klassmann 2011), na carta 62, documenta as cinco principais variantes para o referente (bergamota, mexerica, tangerina, mimosa e poncã), separando, na legenda, as formas bergamota e vergamota. Na Figura 7, apresenta-se a referida carta (adaptada), incluindo esses dois itens como variantes do mesmo item lexical.
Adaptando a carta linguística do ALERS com o traçado de linhas de isoléxicas para as variantes bergamota/vergamota e mimosa, observa-se que essas duas linhas revelam três áreas lexicais na Região Sul do país. A primeira delas na parte meridional (linha azul), com ocorrência de bergamota/vergamota no RS, SC (com exceção do nordeste deste Estado), atingindo também o sudoeste e oeste do PR.
A segunda área revelada pela isoléxica em verde localiza-se, principalmente, na porção leste do PR, com ocorrência da variante mimosa. Por fim, a terceira área revelada pela delimitação dessas duas linhas de isoléxicas apresenta a distribuição de mexerica, localizada na porção central e norte do PR. Ademais, há ainda a ocorrência esparsa de tangerina e poncã em algumas localidades deste atlas regional.
A área de ocorrência de bergamota nos dados do ALiB em comparação com a área registrada nos dados do ALERS revela certa semelhança quanto à distribuição, principalmente no que se refere ao corredor do sudoeste paranaense, confirmando a hipótese de que o falar sulista de influência sul-riograndense e do português em contato com outras línguas se expande além do território gaúcho. Bergamota, desse modo, evidencia características desse falar sulista de influência sul-riograndense e de línguas de colonização.
Quanto à quinta variante lexical registrada no corpus, morcote, sabe-se que diversos grupos híbridos fazem parte do grupo das tangerinas, “entre eles, o tangor Murcote, o mais conhecido, é o resultado do cruzamento de laranja doce com tangerina” (Pio 2000).
De acordo com Gonçalves (2016) a “variedade murcott (murcote) denominado de Tangor é resultante do cruzamento da tangerina com a laranja doce (Citrus reticulata Blanco x Citrus sinensis L. Osbeck)”. Esta variedade de tangerina foi descoberta por Walter T. Swingle, em 1913, na Flórida, EUA, e propagada pelos agricultores, também da Flórida, Charles Murcott Smith e J. Ward Smith. No português, obviamente, o designativo, motivado pelo sobrenome de um dos pioneiros no cultivo da fruta, sofreu alterações fonéticas.
No corpus investigado, dentre as variantes lexicais documentadas, a que apresenta maior número de variantes fonéticas e morfofonêmicas (18 formas) é morcote, caracterizada pela maioria dos informantes como uma variedade do fruto que tem como característica principal a casca mais grudada à polpa, tornando-se difícil descascá-la.
INF.- Tem, mixirica tem vários tipo né, tem umas duras, a gente chama mangote, essas é... casca dura, pra ‘rancá ela tem que sê co’a mão mesmo, mais é bem preguenta, num sai fácil.19
Quanto à distribuição diatópica, a Figura 8 mostra a ocorrência do item principalmente em uma faixa territorial que vai do noroeste paranaense, passando pelo interior do MS até o ponto 105 (Diamantino-MT). Há também a distribuição do item pelo interior de SP e também na região do Vale do Ribeira, de onde avança para o centro do PR em uma faixa contínua.
Uma terceira área de ocorrência de morcote localiza-se no sudoeste do PR - ponto 223 (Barracão), atinge uma localidade do oeste de SC (229 - Concórdia) e três localidades do noroeste gaúcho (234 - Três Passos, 235 - Erechim e 236 - Passo Fundo). Há também ocorrências da variante em pontos isolados no litoral norte de SC (225 - São Francisco do Sul), litoral norte de SP (180 - Caraguatatuba), uma localidade no sul de MG (140 - Passos) e em Goiânia-GO (ponto 123). A baixa incidência de morcote, na maioria das vezes como ocorrência única na localidade, bem como sua distribuição na área do território investigado não permite enquadrá-la nem em um nem em outro falar aqui apresentado, uma vez que se mostrou comum a diferentes estados, assim como o item tangerina.
A variante mimosa, no cômputo geral das ocorrências, apresenta 33 registros representando 2,98% das respostas no corpus. Verifica-se que este item lexical ocorre apenas em três estados, PR (12,18%), SC (8%) e SP como ocorrência única, o que representa apenas 0,26% do estado. Embora se apresente como variante pouco produtiva, do ponto de vista diatópico mimosa comporta-se como uma variante regional, não figurando em outras áreas do território investigado além das mencionadas, conforme se verifica na Figura 9.
Em geral, a variante está registrada no PR e é reconhecida por alguns informantes como uma forma típica na cidade de Curitiba para denominar o referente:
INQ.- A senhora ouviu falar que a mixirica tenha algum outro nome em algum outro lugar? Curitiba...
INF.- Parece que em Curitiba eles chamam de mimosa, agora eu num... num lembro porque faiz muito tempo que eu num vô pra lá, né, então... porque lá... pra lá o palavriado é diferente, né, do nosso daqui do norte.
INQ.- É é diferente sim.
INF.- Do sul é bem mais diferente.20
Mimosa está presente no litoral paranaense, de onde atinge o litoral norte de SC, avança às cidades paranaenses até o ponto 212 (Campo Mourão), onde foi registrada na fala da informante de nº 4 (Mulher, faixa etária II). Ocorre em uma cidade do norte pioneiro (211 - Tomazina), de onde atinge, inclusive, uma cidade paulista no Vale do Ribeira (ponto 185 - Ribeira). Em direção sul, a variante avança à porção central do PR, passando pelo ponto 224 (Porto União, norte de SC), avança até o ponto 231 (Lages/SC) e chega até uma localidade no litoral sul catarinense (232 - Tubarão). Em comparação com a carta do ALERS (Figura 7), mimosa se apresenta na mesma área linguística registrada no atlas regional, dando indícios de um território que apresenta especificidades lexicais que o distinguem do falar de influência paulista e o de influência sul-riograndense.
Ferreira (2004) traz duas entradas para mimosa, sendo a segunda a que melhor se encaixa ao referente, pois o lexicógrafo remete este item a tangerina e ainda diz que é “forma reduzida de laranja-mimosa”. Esta, por sua vez pesquisada, ratifica a designação, aparecendo como um “substantivo feminino, brasileirismo do sul de SP, PR e norte de Santa Catarina, remetendo para tangerina” (Ferreira 2004), portanto, sinônimo do termo em questão. Houaiss e Villar (2001), dentre outras acepções, também trazem laranja-mimosa como um regionalismo do Sul do Brasil sinônimo de tangerina. O verbete mimo, para Cunha (2010), refere-se à “coisa delicada que se oferece ou dá”, do qual derivam por criação expressiva termos como ‘amimar, mimar, mimosa’, Desse modo, a denominação mimosa para a fruta em questão parece estar ligada às qualidades da casca, fina, macia e delicada, estendida pelos informantes à denominação do fruto.
Visualiza-se na Figura 10 distribuição diatópica pontual das três últimas variantes menos produtivas laranja-cravo/a (1,18%), mandarina (0,18%) e carioquinha (0,09%). Nesta carta, observa-se a presença de laranja-cravo/a no litoral sul de SC (pontos 233 e 232, Criciúma e Tubarão) e em duas localidades do litoral norte deste Estado (pontos 225 e 228 - São Francisco do Sul e Itajaí). No Estado de SP, o item ocorre, isoladamente, em três pontos (186 - Registro, 173 - Campinas e 176 - Guaratinguetá). Fora dos limites do subfalar sulista, laranja-cravo apresenta-se também no ponto de controle 130 - Unaí/MG.
A variante laranja-cravo/a encontra-se dicionarizada na acepção buscada para o referente nos dois dicionários consultados - Houaiss (2001) e Ferreira (2004) - indicada pelo primeiro como um regionalismo do Brasil e no segundo como um brasileirismo, sem, contudo, indicarem a região a que se referem.
Sabe-se, todavia, que laranja-cravo é uma forma recorrente no Nordeste do país, conforme Romano e Aguilera (2009) e está amplamente documentada na carta L05 do Atlas Linguístico do Brasil (Cardoso et al. 2014b).
A variante mandarina apresenta-se em Barracão/PR (ponto 223) e Terra Boa/PR (ponto 209) e evidencia traços do espanhol no português. Em Houaiss e Villar (2001) e Ferreira (2004), encontram-se duas entradas para o verbete. Na segunda entrada, a variante mandarina é apresentada como um regionalismo do RS (Houaiss e Villar, 2001) e como um brasileirismo do RS (Ferreira, 2004), sinônimo de tangerina. Todavia, a ocorrência de mandarina no corpus restringe-se a duas localidades paranaenses, uma na fronteira do Brasil com Paraguai e Argentina (Barracão - ponto 223) e outra no norte do Estado (209 - Terra Boa). Há indícios de que esta variante pertence ao falar sulista, entretanto, pelo fato de o ALERS não documentar a forma mandarina em nenhum dos três estados da Região Sul e por sua baixa representatividade no corpus sob análise, não seria conveniente incluí-la no conjunto de variantes que tipificam o falar sulista. De acordo com Cunha (2010), mandarina provém de mandarim, “alto funcionário público, antigamente na China” e mandarina tanto pode se referir à esposa do mandarim, quanto à tangerina, datando o ano 1873. O Dicionário da Real Academia Española (DRAE), no verbete mandarina, dentre outras acepções, apresenta a remissiva para naranja mandarina (tangerina): “Variedad que se distingue en ser pequeña, aplastada, de cáscara muy fácil de separar y pulpa muy dulce”21 e, de acordo com Corominas, o nome é dado ao fruto “por alusão à cor do traje dos mandarins” (Corominas apud Houaiss e Villar, 2001).
A hápax legomena carioquinha ocorre apenas na fala de um informante da cidade de São Paulo como uma segunda resposta e não se encontra registrada em nenhuma das obras consultadas.
Para finalizar a análise dos dados, a Figura 11 apresenta dois mapas que delimitam a arealidade de três variantes detalhadas neste estudo, mexerica, poncã e bergamota. Ambos os mapas são parecidos uma vez que espelham os dois possíveis falares aqui apresentados, o paulista, com a difusão da variante mexerica e poncã (cor verde) na parte setentrional do território investigado e o sulista, de influência rio-grandense, onde ocorre bergamota e variantes morfofonêmicas e também áreas de coocorrência deste item com poncã e mexerica. Este falar localiza-se na parte meridional do território.
5. Considerações finais
Pode-se concluir que território investigado não apresenta homogeneidade lexical. Ou seja, a área delimitada por Nascentes como subfalar sulista, de acordo com as cartas linguísticas aqui analisadas em correlação a outros trabalhos, pode ser dividida em dois grandes falares: (i) o falar paulista, localizado na porção setentrional (predomínio de mexerica e poncã) que se expande para estados da região Centro-Oeste e parte do Paraná e (ii) o falar sulista, situado na porção meridional do Brasil, caracterizado pelo maior número de formas regionais e variantes de origens não-lusas, evidenciando traços de língua de colonização. Vale salientar, todavia, que os limites e abrangência de ambos os falares são virtuais e fluidos, ora havendo a interinfluência de um em outro, ora prevalecendo a delimitação de áreas lexicais distintas. Ademais, somam-se subáreas lexicais que se localizam tanto em um falar quanto em outro, caso de morcote, na área do falar paulista e de mimosa, na área do falar sulista. Pontuam-se, assim, as seguintes conclusões:
(i)A variante mais produtiva, mexerica, denominação motivada pelo cheiro característico que denuncia quem manuseou ou comeu o fruto, está amplamente distribuída e pode ser considerada uma forma que tipifica o falar paulista.
(ii)Poncã é uma forma lexical que também tipifica o falar paulista amplamente distribuída por todo o território, mas com diferentes índices de produtividade.
(iii)Tangerina, forma considerada padrão pelos dicionaristas consultados, encontra-se distribuída em grande parte do território com diferentes índices e não caracteriza nenhum dos dois falares aqui defendidos, pois é uma forma identificada em outras regiões brasileiras, onde atinge grande produtividade, conforme se verifica na carta L05 do ALiB (Cardoso et al., 2014b) e descrevem detalhadamente Romano e Aguilera (2008) e Romano e Aguilera (2009);
(iv)A variante bergamota revela contato do português com línguas de colonização, no caso o italiano, e tipifica o falar sulista de influência sul rio-grandense que avança em sentido oeste catarinense e sudoeste do PR;
(v)Morcote é um item lexical motivado pelo sobrenome de um dos pioneiros no cultivo deste híbrido da fruta, e apresenta o maior número de variantes fonéticas e morfofonêmicas. A produtividade de morcote no corpus sob análise é baixa e sua distribuição espacial é esparsa, não se concentrando em determinada área Ou seja, morcote não tipifica nem o falar sulista nem o paulista;
(vi)Mimosa, por sua vez, embora se apresente com baixa produtividade, sob o ponto de vista diatópico, revela uma subárea lexical no falar sulista que compreende a parte leste do PR e de SC, cuja área de ocorrência coincide, inclusive, com o que se observa na carta 62 do ALERS.
(vii)As variantes menos produtivas laranja cravo/a, mandarina e carioquinha ocorrem esparsamente no território e estão atestadas em outros trabalhos geolinguísticos.
De posse desses resultados, embora a questão de áreas dialetais no PB seja de difícil definição, até mesmo pela natureza dos dados lexicais, este trabalho dá indícios de heterogeneidade linguística de uma grande área do território brasileiro, considerada homogênea no mapa de Nascentes.
Há de se observar, contudo, a necessidade de mais estudos que possam ratificar ou retificar as duas áreas linguísticas encontradas no centro-sul do país a partir de análises de outros níveis como o fonético-fonológico e o morfossintático. O ALiB, que começa a adentrar o interior do país, está prestes a desvendar esses caminhos e, em breve, o tão almejado mapa dialetal do Brasil será concretizado a partir de uma amostra atualizada da língua falada por 1100 brasileiros de 250 localidades distribuídas por todo o território nacional.