Introdução
Este artigo versa sobre o tema da democracia, e se dedica a situar o leitor no âmbito dos problemas do convívio democrático, no contexto da realidade brasileira contemporânea, uma vez que se encontra atravessada por fortes tensões políticas, sensação de ruptura do tecido social e descrença na legitimidade da classe política, das legendas partidárias e no papel da democracia. Em dois artigos recentes, publicados no Brasil, tive condições de, em primeiro lugar, diagnosticar que a crise brasileira está fundada num processo de modernização incompleta , o que ficou evidenciado no artigo de 2013, intitulado O Decreto n. 8243/2014 e os desafios da consolidação democrática brasileira,1 e, em seguida, que a crise brasileira somente poderia ser superada por um processo de reavaliação do sentido da democracia, o que incluiria a reforma política, a partir de concepções exploradas teoricamente por inúmeras correntes do debate político contemporâneo, e isto foi feito no artigo de 2016, intitulado Crise política e Teoria da Democracia: contribuições para a consolidação democrática no Brasil contemporâneo.2
Em ambos os artigos, a preocupação era a mesma: o estado de instabilidade da democracia brasileira. O cenário de instabilidades não cede, e, seu epicentro com as manifestações de 2013 se arrasta com dificuldades, desde então, alcançando, a esta altura, cinco anos de corrente situação de crise política associada a baixo desempenho da economia e a perda de credibilidade da democracia. Não por outro motivo, o que foi diagnosticado nos artigos anteriores, ganha aqui, nesta nova reflexão, um sentido de continuidade e, também, uma nova perspectiva de contribuição. Mas, este artigo, intitulado Democracia, Intolerância Política e Direitos Humanos: uma visão reflexiva a partir da realidade brasileira , mantém a mesma preocupação de fundo, avançando, no entanto, no sentido da indicação de uma possível agenda de trabalho, consideradas as tarefas da cultura da democracia e do respeito aos direitos humanos. Aqui, passa a ficar claro o quanto o passado autoritário ainda se encontra entranhado no convívio social, bastando as crises se revelarem, para que venham à tona os padrões comportamentais autoritários e desafetos aos direitos humanos, deixando-se farto registro do quanto a tarefa da educação para a democracia e os direitos humanos tem desafios para adiante, considerados os rumos de um processo mais amplo de afirmação e consolidação da democracia brasileira.
1. Intolerância política e direitos humanos
O Brasil possui uma ‘imagem internacional’ que está muito associada à ‘festa’, ao ‘samba’ e à ‘cordialidade’ do povo.3 Esta imagem, também como ‘auto-imagem’, engana a quem não se encontra imerso no cotidiano de sua realidade mais concreta e atual. Seja a sociologia romântica, seja o marketing global, seja a histórica miscigenação étnico-racial foram responsáveis por criar esta ‘imagem’ que, enquanto ideologia, nos afasta do enfrentamento necessário de nossas mazelas, agora plenamente reveladas, apenas a máscara de nossa ‘civilidade brasileira’ se esvair diante de nossos próprios olhos, em contexto de crise econômica e política. No cotidiano das distinções das relações é que se percebe, no Brasil atual, o quanto se vive no ‘fio da navalha’, diante de um cenário de polarização política, de extremos na opinião pública, de escândalos de corrupção, de instabilidades institucionais e de paralisia econômica. A percepção de que se padece da falta de rumo , de que se vive na desordem social e de que se convive com a desconfiança define os traços do presente, e, pelas previsões que derivam dos estudos sociológicos, não deverão se dissipar tão cedo.4
É evidente que todo este caldo de fatos, acontecimentos e situações - que vieram sendo denunciados pelas instituições legais e revelados pelas mídias - hão de afetar a confiança na democracia, e hão de afetar a dimensão das interações sociais. Não por outro motivo, as pesquisas mais recentes no campo da Ciência Política demonstram de forma clara o quanto a confiança na democracia está associada ao funcionamento do sistema democrático como um todo.5
É certo que, do ponto de vista histórico, a crise econômica sempre despertou os ‘fantasmas’ mais adormecidos que existem, na medida em que os temores populares são aflorados e manipulados, tornando toda propensão à exploração do medo, à intolerância e ao desentendimento as fagulhas para a distensão do tecido social. Mas, a crise econômica não é local, e não é um privilégio brasileiro; é global, e facilita extremismos em todas as partes do mundo, cada qual ao seu modo, como revelaram os atentados terroristas ocorridos na França (a exemplo do 13 de novembro de 2015, na cidade de Paris).
Em certa medida, todo período de crise se apresenta como uma oportunidade para a aparição do que estava oculto, trazendo à tona as contradições que se encontravam mal resolvidas. Para ficar em dois exemplos, no Brasil, trata-se do lento e débil processo de consolidação da democracia, e, já na França, a tensa, polêmica e ainda não resolvida situação da imigração. Estas tensões sociais, que clamam por soluções, irão, por isso, escorregar dos discursos cotidianos para as mídias e para os discursos institucionais e políticos, de forma a gozarem de aparições no âmbito dos discursos políticos. Não por outro motivo, períodos de crise são importantes para se colherem evidências do processo civilizatório, ou seja, do que foi realizado como verdadeira ‘expressão de civilidade’, e do que não foi realizado e faz restar ‘vestígios de barbárie’ sob a ‘capa da civilização’.6
O processo de modernização implica avanços e retrocessos, colhendo-se nesta perspectiva de análise, as observações da Dialektik der Aufklärung, de 1947, de Theodor Adorno e Max Horkheimer.7 Estas são tomadas aqui como advertências históricas, traçadas pela Escola de Frankfurt, das patologias do processo de modernização, na medida em que suas desenfreadas estruturas libertam, como também oprimem. Apresentar a ‘modernidade’ como uma ‘história da liberdade’, pura e simples, é falsear uma avaliação mais crítica do processo de modernização. Os jogos sociais que envolvem etapas de emancipação não são isentos de tensões, conflitos e contradições. Mesmo quando se consideram como dadas certas conquistas de liberdade, na medida em que toda liberdade conquistada também pode ser imediatamente solapada por uma inovação da tecnologia, por cenários de crise econômica, por um novo arranjo de forças políticas, ou por um cenário de incertezas sócio-históricas.
Num período tempestuoso, vale a advertência de que a intolerância política do passado já ceifou vidas demais na história. Por isso, a preservação das conquistas dos direitos humanos não pode sofrer retrocessos, nem em nome do ‘conservadorismo político’, no caso do Brasil, nem em nome da ‘segurança nacional’, no caso da França. Ainda que seja necessário combater a corrupção, no caso do Brasil, e prevenir atentados terroristas, no caso da França, estas ações não devem representar novos atentados em face dos direitos conquistados, arrastando-se a malha das redes de cidadania em direção ao desfiladeiro da exceção. A ameaça de retrocesso na cultura de respeito aos direitos humanos, na solidez do processo de consolidação da democracia e na crença na legalidade apontam muito mais para uma curva para trás, e não para frente, e propendem a apresentar-se nos desvãos de um passado não tão longínquo - no caso europeu, os totalitarismo, e no caso latino-americano, as ditaduras militares -, onde a tirania, o autoritarismo e as expressões do mal político se fizeram presentes.
No caso do Brasil, a situação é mais sensível, tendo em vista que sua democracia é instável, e, ainda pouco amadurecida. Após a ditadura civil-militar de 1964-1985, no período de restauração democrática da Constituição Federal de 1988, tem-se uma situação de três pedidos de impeachment apresentados a Presidentes eleitos pelo voto popular. No primeiro caso, o impeachment do Presidente Fernando Collor, após manifestações populares dos ‘caras pintadas’, com o conseqüente afastamento do cargo; no segundo caso, o pedido de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, após manifestações populares pró e contra. E, neste exato momento, um terceiro caso, o pedido de impeachment do Presidente Michel Temer (ainda em tramitação, enquanto este artigo foi escrito, em julho de 2017), este que sucede como Vice-Presidente após a saída de Dilma Rousseff.
Mas, para além de situações concretas, o mais trágico do ponto de vista histórico para a consolidação democrática brasileira é o fato de que a realidade contemporânea ainda vem profundamente marcada por: desemprego galopante; legitimidade política em baixos níveis; baixo desempenho da economia; manifestações populares e greves, a cada novo epicentro de crise política; atos de hate speech espalhados de forma viral nas redes sociais;8 violências pandêmicas;9 desigualdades sócio-econômicas; expressões da opinião pública autoritária entre cidadãos por razões políticas e ideológicas; tentativas legislativas de regressos nas pautas e agendas de direitos humanos, especialmente no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes; processo de justiça de transição incompleto;10 degradação do diálogo político na esfera pública; forte pressão midiática sobre o governo; sensação generalizada de desgoverno; descrença generalizada na política e nas instituições democráticas. Todos estes são apenas indicadores concretos do quanto a crise econômico-financeira e a fragilidade da democracia vêm acompanhadas do destempero nas interações sociais, na falta de respeito à dignidade humana e aos mais basilares valores republicanos e de cidadania.
2. Democracia, ação social e a vida em comum
Para efeitos desta análise, quer-se conceber o uso do termo democracia de forma mais conectada a um modo amplificado de compreensão, enquanto forma de ação social, e, portanto, muito associada a uma prática de paridade social e respeito cívico. Nesse campo, quando o filósofo Hans Kelsen11 estuda a Teoria da Democracia, aponta para a ideia de que, ponto de vista psicológico, a ‘personalidade democrática’ é afeita à relação entre eu e tu. Com isso, fornece um argumento importante a favor da compreensão de que democracia não é apenas ‘do governo’, ou ainda, ‘das instituições’, pois democracia implica uma forma de ação e interação na esfera pública, ligada a um padrão de comportamento, que pode ou não se concretizar e, assim, se plasmar em instituições, valores, práticas, ações, trabalhos, projetos, resultados, concepções e visões de mundo. Assim, tendo-se presente esta abordagem, é possível avaliar o estado da cultura republicana e democrática a partir da forma pela qual os cidadãos estabelecem seus vínculos, se aproximando mais, de uma parte, da violência e da astúcia, ou, de outra parte, do respeito e da cidadania.12
Assim, nesta linha ampliada de significação que o termo «democracia» ganha ainda mais relevo, pois é compreendido como forma de ação, de produção de valores sociais e como padrão de conduta , devendo atravessar as relações intersubjetivas em seus diversos níveis. A pergunta elaborada no texto sobre Democracia na família, publicada em Kinder der Freiheit (1997), pelo sociólogo alemão Ulrich Beck (2006),13 não pode ser calada, e deve ressoar com força, quando se quer refletir - no campo da Filosofia Política e da Teoria da Democracia - sobre os desafios da sociedade contemporânea: democracia como forma de vida e não apenas como forma de governo.
Nesta linha de raciocínio, a palavra «democracia» evoca o modus vivendi em que a partilha do que é comum é priorizada para a alterização do convívio e para a integração humana; nesta forma de ser, deve-se enfatizar a responsabilidade ético-democrática de estar-em-comum, e, por isso, o termo designa o modo de interação social voltado para a administração paritária do comum, e com o modo pelo qual os sujeitos se constroem identificados com o respeito-ao-outro e com o respeito-ao-que-é-comum. E isso é válido para políticos que usurpam o dinheiro público, dissolvendo a diferença entre o espaço privado e o espaço público, tanto quanto para cidadãos, que se apropriam do espaço público como se privado fosse,14 aí incluída a interação arbitrária e violentadora da esfera de direitos do outro. Assim, é na partilha do comum que se constituem os sujeitos ativos da democratização, onde individuação e socialização são apenas dois aspectos do mesmo processo. Com isso, se percebe que «democracia» implica encontro entre o eu-tu, mediado por instituições, no nível do governo, mas, sobretudo, encontro marcado pela igualdade ética, que é aquela que está atrelada à consideração do outro como pessoa moral, como constata Pedro Salazar Ugarte (2006)15.
É por isso que a palavra «democracia» sempre foi alvo de disputas entre concepções de mundo,16 e, é também por isso que se pode ver nela a palavra que pode e deve atingir outras aplicações e usos, em diversas perspectivas e contextos para além de democracia política e democracia social. Na perspectiva da democracia econômica, a fronteira da igualdade econômica se estabelece como desafio de justiça social, na perspectiva da democracia cultural, a promoção do acesso equilibrado aos bens culturais e à diversidade das formas de expressão humana, na perspectiva da democracia global, a construção do direito à democracia nas múltiplas fronteiras globais, para citar algumas frentes de trabalho. Esses breves apontamentos já indicam rumos e significam perspectivas inumeráveis de trabalho e construção, no sentido da amplitude da árvore semântica que deriva do termo «democracia».
De qualquer forma, o que se percebe é que, em todas estas dimensões apontadas, o termo é frequentemente invocado por seu profundo e grave sentido em face de processos de socialização, na medida em que o direito atribuído aos cidadãos de integrar como pares a vida social parece ser um dos traços fundamentais da vida democrática a implicar a própria noção de justiça.17
É dessa forma que a renovação dos significados do termo «democracia» permite ampliação de horizontes de trabalho e compreensão, a partir de onde se discute o sentido central de uma Constituição Democrática,18 com necessários ganhos no processo de expressão do significado do termo, o que, sem dúvida nenhuma implica uma maior complexificação das tarefas práticas e dos compromissos efetivos assumidos no plano da realização da democracia e dos valores republicanos.
O que se percebe é que os ganhos de sentidos agregados ao termo acabam representando, também, fortes inputs no plano da aprendizagem coletiva dos sujeitos em democracias contemporâneas, o que coloca a abertura semântica do termo «democracia» no ponto-de-encontro de inúmeras outras co-relações de significação, a saber, democracia e jogo aberto, democracia e redistribuição, democracia e reconhecimento, democracia e igualdade, democracia e diversidade, democracia e liberdade, democracia e justiça social, democracia e transparência, democracia e solidariedade, democracia e modernização social.19 Estas novas dimensões abertas para o campo de significação da democracia, na história do presente, acabam funcionando como novas fronteiras de significação, e acabam pesando como fatores que determinam a constituição de processos de socialização de alto nível, apontando horizontes normativos a serem acenados como perspectivas da ação social democrática.
Não por outro motivo, a filósofa política alemã Ingeborg Maus20 defende a ideia de que a eficácia da democracia é medida por sua capacidade de gerar transformação social e agregar liberdade ao convívio social, e é não somente o seu caráter procedimental de promotora de revezamento no poder que lhe confere este tipo de condição, mas também o fato de permitir a consolidação de certas prioridades práticas e reais que afetam a vida de todos(as) os(as) cidadãos(as). Assim, a democracia institucional em funcionamento é uma conquista importante, mas se faz enfraquecer, quando sob o véu democrático persistem a má distribuição de riquezas, a injustiça social, as desigualdades sociais abissais, as distorções de classe, a violência pandêmica, dominam o campo de ação da vivência cotidiana dos cidadãos. Seguindo-se de perto a visão de Robert Putnam, pode-se afirmar que a modernização sócio-econômica é tão decisiva para a estabilização democrática quanto o processo de democratização da política.21
A partir da realidade brasileira, estas questões acumuladas apontam para a ideia de que a democracia não é apenas uma forma do universo das relações políticas e de suas instituições. Pelo contrário, o que se quer afirmar, é que é mais do que isso, funcionando como um importante pressuposto das interações entre os(as) cidadãos(as). Mas, se trata de um pressuposto que é gerado pela própria ação prática, em estado de inter-ação e aprendizado de convívio, gerando-se uma espiral reversiva entre o plano das instituições e o plano da ação social derivado do convívio cotidiano e comum.
Por isso, entendida a sério, a democracia significa uma forma de interação capaz de realizar justiça social, aprimorar a forma de distribuição de recursos e oportunidades, franquear espaços múltiplos de participação, tornar transparentes as formas pelas quais os cidadãos são informados do que é relevante, promover inclusão e diversidade na interação social, abrindo campo para um processo de clareamento da vida pública, de ajuste social e de dinamização do convívio livre, justo e solidário, o que se reverte em maior capacidade de promoção de equilíbrio sócio-econômico, de inclusão e de oportunidades, fruto do próprio combate às formas de exploração, abuso e concentração cultural, política e econômica.22
Aqui, no atual quadro de realidade do Brasil, o que se percebe é que existe uma interconexão profunda entre a estabilidade democrática e a estabilidade econômica, não se podendo ignorar este co-dependência inter-sistêmica, sob pena de se produzir uma visão capaz de enxergar apenas uma meia-verdade.23 Assim, a crise econômico-financeira que se abateu sobre os mercados, foi a mesma que se tornou responsável pela escalada de depressão econômica, e, por conseguinte, pela desestabilização dos governos que souberam responder com dificuldades aos seus desajustes, desarranjos e desgastes. Assim, fica claro afirmar que o componente econômico não somente é determinante, como também serve para definir o quanto a economia floresce com efeitos positivos, na situação contrária, ou seja, quando o civismo se desenvolve mais acentuadamente.24
Acredita-se, neste sentido, que a situação de crise global econômico-financeira (2008-2017), bem como, a situação de crise político-social (2013-2017), estão intrinsecamente interligadas, devendo-se somar a estas últimas as revelações de escândalos de corrupção e malversação dos recursos do orçamento público, o que favorece um cenário de perda de credibilidade da democracia e de forte instabilidade política. Não por outro motivo, fica claro que, após o período da ditadura civil-militar (1964-1985), este período oferece o maior teste à democracia da história do Brasil, após um período de relativa calmaria e abundância consumista (1990-2010).
3. Democracia do convívio e republicanismo
Na realidade brasileira contemporânea, o cenário de crise econômico-política e de crise político-social, também traz consigo uma forte crise moral-cultural. A turbulência não é pouca e o furacão demora a ser superado.
E isso porque estes fatores não estão desligados entre si, estando correlacionados, de forma a se concatenarem. Quando a crise deixa um locus de manifestação para se expressar em outro, impõe-se a necessidade de revisão da identidade cultural , de crítica das patologias sociais , de reconsideração dos parâmetros de socialização , tendo-se presentes as formas de interação social, o espírito de convívio democrático, a crença nas instituições, e o grau de cidadania que sejam garantidores e afirmadores da democracia nas práticas de cidadania, num sentido ampliado. A disruptura do tecido social tem a ver com a conversão danosa do ‘ódio político’, da ‘insatisfação com o governo’, da ‘desesperança no estado da economia’, do ‘descontentamento com a qualidade dos serviços públicos’, da ‘descrença em partidos’, em ‘ódio social’, em ‘insatisfação com a totalidade social’, em ‘descontentamento generalizado’, em ‘descrença na cidadania’, em ‘desrespeito à alteridade’, de forma que esta migração torna contaminado pelas patologias da política mesmo aquilo que não é da esfera da política, de forma a torna o convívio social insuportável.
Operar este diagnóstico na realidade brasileira é, a um só tempo, perceber que se a democracia resiste nas instituições, debilmente se afirma nas falas e visões mais cotidianas, onde se percebe a facilidade com que se abandona o padrão republicano, para caminhar em direção ao padrão autoritário. Desta forma, o verniz civilizatório da democracia, da cidadania e dos direitos é rapidamente colocado de lado, para retomar o padrão do passado político e a repetição das mesmas fórmulas anquilosadas que reinaram na determinação do próprio processo histórico de colonização do país. Urge, neste sentido, descolonizar o imaginário político e fazer da autonomia, da igualdade e do respeito características intrínsecas ao processo de socialização em termos da vida democrática contemporânea e atual às exigências dos valores morais contemporâneos.
Mas, o cenário não é outro, senão o de divisão social, de disseminação do ódio político, de descrença política. Num certo sentido, parece que se roubou o futuro de um país que mal consegue enxergar o seu próprio passado, e, nesse sentido, que sequer completou o seu ciclo de modernização (social, política, econômica e cultural). Assim, a enormidade do fosso da descrença se combina com a ausência de um horizonte claro sobre o qual depositar as esperanças políticas para propor projetos de médio e longo prazo; sem rumos, o país oscila entre a descrença e a autoflagelação.
No cenário atual do país, se está diante de um enorme teste de resistência para as instituições democráticas, seja para a tradição do Direito brasileiro, seja para a cultura cívica, se para os padrões mal consolidados de civilidade democrática, alcançando-se o mais alto nível de exigência da história da democracia contemporânea. Não por outro motivo, a sensação de disruptura do tecido social é tão intensa, revelando-se, inclusive, nos mais alarmantes índices de violações de direitos humanos dos tempos atuais. As redes sociais têm sido, no Brasil, um termômetro, neste sentido, demonstrando a forma bruta com a qual se exprimem as manifestações populares nas ruas, as opiniões políticas no ambiente virtual e o ódio político nos veículos das mídias.25 É aí que a violência se torna uma linguagem .
Por isso, na realidade brasileira contemporânea, ganha força e importância a aposta na exploração dos usos mais ampliados do termo «democracia». Na história brasileira, a reconquista da democracia política (1985-1988) foi de fundamental importância para o país, apesar de a democracia brasileira compartilhar das mesmas mazelas que atingem as democracias contemporâneas em todo o mundo.26 No entanto, a experiência de democracia tem de alcançar sentidos e práticas mais amplos.
A democracia brasileira contemporânea tem de romper barreiras no nível da cultura e no nível da economia, no nível da justiça e no nível da cidadania, no nível da educação e da política e, também, no nível de esclarecimento da opinião pública, preparando-se para a superação do ciclo de pré-modernidade que ainda permite ao Brasil manter clivagens sociais injustificáveis, relações sociais violentas fundadas na pura barganha pelo direito à vida, autoritarismo social dominante, intensos traços de truculência na determinação da convivência social.
É nesta exata medida que começa a florescer, no debate contemporâneo em torno do termo, a perspectiva segundo a qual a radicalização da democracia -indo um pouco mais além da proposta contida em Direito e Democracia, de Jürgen Habermas (2003)27, da democracia de procedimentos para a democracia de convívio- hoje significa mais do que a reforma do ‘regime de governo’, e sim a construção de uma democracia des-institucionalizada, que esteja sustentada na base do elo moral entre os sujeitos democráticos em interação cidadã na esfera pública, ou seja, de uma forma de convívio que esteja entremeado pelos valores republicanos, de forma a constituir-se a democracia independente das condições da política e até mesmo das instituições. Fala-se, assim, também, de uma democracia do convívio e do cotidiano, de uma democracia consolidada na base da negociação ético-racional, do entendimento dialógico e colaborativo, bem como da construção de valores que tornem possível o lugar do que é comum, o que significa, em suma, um convívio pautado pelo respeito aos direitos humanos.
Para isso, os atores sociais precisam se empoderar do que é comum, dentro do cultivo da res publica,28 e daquilo que os torna uma comunidade de interesses e ações conjuntas; desta forma, não se trata de fazer democracia somente por meio das instituições políticas, mas estabelecer uma democracia no cotidiano das interações sociais; isto significa o desenvolvimento de elos sociais capazes de se construírem por práticas democráticas, onde valores sociais do convívio são afirmados e reafirmados independentemente de normativas ou exigências de Estado.
Enquanto atitude democrático-radical, coletiva e individual, este tipo de reflexão filosófica implica antes de tudo, identificar as formas e métodos pelos quais se poderão promover, cultivar e disseminar as formas de internalizar e praticar no diálogo um método de convívio e nos valores republicanos a substância moral as mínimas condições para a estabilidade de padrões elevados de socialização, interação, entendimento e convívio sociais.
Conclusões
O desafio do processo de modernização democrática do Brasil contemporâneo é enorme, e, por isso, sua fragilidade é já uma constante preocupação dos estudos acerca da democracia brasileira. Sabendo que, na realidade histórica brasileira, o passado pesa enormemente no presente, diante da escravidão, do genocídio indígena, das violências, dos déficits de políticas públicas, das desigualdades sociais, da ineficiência do Estado diante de diversas agendas do contemporâneo, e, portanto, diante dos legados de modernidade incompleta que se tem, a liberdade política, a consciência democrática e a cidadania são apostas estruturantes, sem as quais não há futuro possível, seja qual for o horizonte, nem na perspectiva da teoria e nem na perspectiva da prática.29 A preservação da democracia e os avanços da democracia não podem ignorar estes elementos e, muito menos, podem ignorar que os abalos sobre a vivência democrática do presente evocam o passado anti-democrático e despertam a falta de confiança no futuro da democracia. Por isso, a democracia do cotidiano e a prática de valores republicanos no convívio são questões consideradas de relevo, e a serem melhor exploradas no vocabulário político-intelectual contemporâneo, num cenário de crise econômica, política, social e moral, com vistas à afirmação ativa da cultura de integridade, respeito às leis e construção do que é comum no convívio.
Não em outra medida é que se deve avançar, sempre considerando que estas questões históricas, uma vez não atendidas, tendem a retornar em outras oportunidades, ainda que ocasionalmente negligenciadas ou escondidas. Por isso, ao se formular a noção contemporânea de «democracia», tem-se de considerar estes aspectos aqui tratados de modo mais profundo. Tem-se, também, de considerar o quanto o significado da radicalização da democracia é, assim, desafio para o processo de constituição do convívio social. O desacordo é algo tolerável nas democracias, mas o desrespeito contínuo a valores fundamentais do convívio, é algo que forma na incivilidade do convívio cotidiano, o caldo adequado para o fomento das intolerâncias e da ruptura do tecido social.
Por isso, chega-se ao ponto em que é possível afirmar que, enquanto não se avançar nestas novas fronteiras do conceito, a partir da prática, a «democracia» continuará a ter períodos de ‘assaltos’, ‘retrocessos’, ‘dúvidas’ e ‘indefinições’, ‘interrupções’, ‘hesitações’, ‘relativização’, pois nestes processos não se enxergam apenas ‘instituições políticas formais viciadas’, mas sim revelações mais profundas de ‘relações sociais cristalizadas em instituições’. Essas constatações definem rumos, e indicam por si mesmas, conclusões, todas elas apontando para a necessidade de se aprender com a crise econômico-financeira, que se tornou crise política, e, em seguida, crise social e moral, de constatar que os erros do presente estão nos déficits do passado, para que se possa avançar no sentido de se consolidar e estabilizar a «democracia» como valor. A cidadania pode estar munida de mais força, para o futuro, não no sentido de estar isenta de recair em novos ciclos de crise e destempero político, mas no sentido de se tornar mais imune enquanto cultura democrática, presente no quotidiano, ou seja, na vida individual e no espírito das trocas intersubjetivas, enquanto uma prática social e ativa, ali exatamente onde o eu e o tu se encontram, e onde os valores dos direitos humanos são mais severamente desrespeitados.