O INÍCIO DA EDUCAÇÃO CATÓLICA FEMININA NO BRASIL (1859-1919): OS COLÉGIOS DAS “FREIRAS FRANCESAS”
The beginning of female Catholic education in Brazil (1859-1919): the colleges of "french nuns"
IVAN A. MANOEL*
Resumo. Este artigo propõe a discussão do projeto educacional da Igreja Católica no Brasil, entre 1859 e 1919, tendo como objeto imediato de análise a instalação dos Colégios das Irmãs de São José de Chamberry na província de São Paulo, hoje Estado de São Paulo. A instalação do projeto educacional católico demonstra a ambigüidade da oligarquia paulista que, embora defensora de idéias liberais e positivistas, não hesitou em apoiar a doutrina conservadora do catolicismo ultramontano. A oligarquia brasileira em seu conjunto, apesar de projetar modernizações no âmbito da produção, como, por exemplo, a abolição da escravatura, no âmbito familiar e social temia a modernidade dos costumes e, principalmente, a modernidade no que dizia respeito à educação e profissionalização das mulheres1.
Abstract. The present article aims to discuss the educational project of the Brazilian Catholic Church, between 1859 and 1919, and its main object of analysis is the installation of the Sisters of San Joseph of
Keywords: State and
Recibido el 15 de octubre de 2012
Aceptado el 15 de noviembre de 2012
No Brasil as relações entre a Igreja Católica Romana e o Estado foram sempre muito boas durante o Império, e continuaram no mesmo registro após a Proclamação da República, em 1889. Do início da colonização, no século XVI, até a Constituição de 1891, a Igreja Católica Romana vivera sob a proteção e privilégios estatuídos pelo Padroado Régio, de tal sorte que os serviços religiosos se constituíram quase como que um serviço prestado pelo Estado e o clero católico, único existente em razão do monopólio, se constituíra em uma espécie privilegiada de funcionalismo público.
Entretanto, o Padroado Régio e o monopólio católico não impediram que a instituição católica e sua singular relação com o Estado se transformassem em alvo preferencial dos liberais, positivistas e todos os que se autodenominavam “racionalistas” em sua batalha pela abolição da monarquia e a laicização do Estado. Conforme Giacomo Marramao, as propostas modernas eram, desde o século XVI, a secularização da sociedade e do Estado (Marramao), e no Brasil esse movimento laicista e secularista ganhou impulso na segunda metade do século XIX: talvez seja coincidência, mas em 1852, foi contratado, Antônio Dias Machado o primeiro professor confessadamente positivista, ex-aluno de Augusto Comte, para lecionar Matemática no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, capital do Império (Lins, 13). De então, até 1889, se multiplicaram as associações, clubes e círculos de estudos e, a partir de 1870, criaram-se partidos políticos de inspiração positivista ou liberal.
Mas, houve vozes discordantes a gerarem arestas políticas entre os grupos intelectuais e envolveram a própria Igreja Católica Romana. Mais do que uma aresta, as posições divergentes acerca das propostas e atitudes em relação ao catolicismo revelaram a fragilidade e até a confusão entre seus defensores e no campo educacional, objeto deste ensaio, elas se mostraram de modo pleno, muito particularmente na Província de São Paulo, depois da Constituição de 1891, Estado de São Paulo.
A Província de São Paulo que fora pobre, e sua capital, a cidade de São Paulo, uma pequena vila inexpressiva, se enriqueceu vertiginosamente na segunda metade do oitocentos com o cultivo e exportação do café, riqueza que se tornou o alicerce de sua industrialização, do movimento republicano que se espalhou pelo Brasil todo e também deu origem a uma oligarquia poderosa e incoerente.
A oligarquia paulista, em sua maioria, mantinha residência na cidade de São Paulo. Ali passou a viver segundo o que considerava moderno e sofisticado. Ali construiu palacetes projetados por arquitetos europeus e empregando materiais de construção também de origem européia, e não querendo ficar defasada em relação à cultura de Paris, resolveu dar educação escolarizada às suas filhas, mas uma educação religiosa católica, criando para isso um colégio na cidade de Itu, em 1859, confiado às Irmãs de São José de Chamberry, vindas da França.
Cabe perguntar: por que a oligarquia paulista apoiou decisivamente a instalação de uma rede de escolas particulares pertencentes a uma congregação religiosa feminina, se havia um projeto modernizante em curso, englobando inclusive a proposta de tornar completamente pública a educação?
Ora, naquele momento histórico se fortaleciam as idéias liberais no Brasil, que desaguaram na abolição da escravatura, na mudança do regime político, na separação entre a Igreja e o Estado e na laicização do sistema educacional. Isto é, a oligarquia ao mesmo tempo em que se modernizava economicamente, no tocante à educação feminina em São Paulo optou por agir ao arrepio das idéias modernas e financiou um sistema educacional conservador, cujo ponto de referência em matéria pedagógica era o jesuitismo e se encontrava inserido no processo de romanização do catolicismo.
A leitura das listas de matrículas do Colégio das “freiras francesas”, em Itú revela que os nomes mais significativos da elite paulista freqüentaram esse colégio, independentemente da sua coloração partidária: eram monarquistas conservadores ou liberais, republicanos, mas todos fazendeiros, comerciantes ricos, com interesses em vários tipos de empreendimentos.
Essa constatação comprova o acerto do emprego do conceito oligarquia em lugar de burguesia, ou qualquer outro. Antes de tudo, porque essas fronteiras, entre os componentes da classe dominante, se existiram foram muito tênues. Depois, porque, de fato, o poder político em São Paulo ficou sempre restrito a um pequeno grupo, e o trânsito de uma posição dita monarquista para uma posição republicana não era incomum, de tal sorte que os nomes se repetiram no período imperial e republicano, e muitos se repetem até hoje.
A Província São Paulo foi um exemplo da paradoxal de convivência entre o moderno na esfera produtiva e o antigo na esfera cultural. Tratava-se, não da convivência entre o moderno, lento em sua implantação, e o antigo, que relutava em desaparecer. Tratava-se, isso sim, da convivência entre a necessidade de modernização nas forças produtivas e o antigo deliberadamente imposto no âmbito cultural, por temer que o mundo moderno viesse a provocar avanços da mentalidade, causar inquietações sociais, promover a “desordem” na família. Por isso, a oligarquia preferiu ouvir e concretizar o discurso educacional dos intelectuais ligados ao catolicismo ultramontano, que se confessava antimoderno e prometia afastar a modernidade das famílias.
Em São Paulo, na verdade não existia um sistema educacional criado e sustentado pelo Estado segundo um planejamento único. Existia apenas uma rede pública deficiente e ineficiente criada pelo Estado para o “povo”, sem preocupações com a educação feminina, e uma certa quantidade de escolas particulares, igualmente deficientes e ineficientes, sustentadas pela oligarquia, para a educação de suas filhas. Na segunda metade so século XIX, no âmbito da educação particular, por ser um domínio da oligarquia, os entraves existentes foram logo superados e um sistema eficiente de ensino foi organizado reapidamente.
No seu conjunto, a educação feminina paulista na segunda metade do século XIX se propunha a dar lições de leitura, escrita e de prendas domésticas. Para além desse objetivo imediato observava-se a preocupação de não permitir, ou obstar ao máximo, a idéia de profissionalização da mulher. Por isso, as matérias de ensino não necessitavam extrapolar os limites estreitos do currículo previsto pela Lei de 1827, que limitava a educação escolarizada feminia ao aprendizado de língua portuguesa, artimética, prendas domésticas e religião (Rodrigues, 68).
Quanto às meninas do “povo”, a preocupação com os “ares da modernidade” não existia. Afinal, um sistema educacional que além de deficiente era, de fato, quase inexistente, pouco podia alterar da mentalidade analfabeta e arcaica da maioria da população.
Sabedora da ineficiência do sistema público de ensino a oligarquia se dispôs financiar um sistema particular de educação. Mas, aí a questão. Quem poderia se encarregar dessa melindrosa tarefa, de modo a não permitir que a modernidade cooptasse suas filhas? Haveria que ser uma proposta educacional que se afastasse do moderno, que tivesse sua referência em uma visão conservadora, conformista e providencialista do mundo e da história, que se colocasse contra a profissionalização feminina.
Por essa razão, não só o projeto educacional feminino, efetivado pelas Irmãs de São José, mas toda concepção sócio-política do catolicismo ultramontano foi avalizada pela oligarquia paulista. Mesmo as vozes inicialmente discordantes, ou silenciaram ou se tornaram em número insuficiente para se contraporem à penetração do catolicismo romanizado e de seu sistema particular de educação.
A educação oferecida pelas Irmãs São José, patrocinada pela oligarquia para o sexo feminino lançava suas bases no ultramontanismo, isto é, na autocompreensão que a Igreja Católica Romana desenvolveu após a Revolução Francesa. Em uma síntese, pode-se dizer que o ultramontanismo foi uma orientação política desenvolvida pela Igreja após a revolução Francesa, marcada pelo centralismo institucional em Roma, um fechamento sobre si mesma, uma recusa de contato com o mundo moderno, visando à sua própria sobrevivência.
Segundo a interpretação do catolicismo ultramontano, o mundo moderno era pernicioso, e isso se devia ao fato de ele ter se constituído sob a égide da liberdade de consciência e ter proposto a “multidão” como legitimadora do poder político. Ou, em outras e mais precisas palavras, o mundo moderno recusava subordinar-se à doutrina e controle católicos, pretendia derrogar o estatuto da monarquia absolutista e estabelecer o contrato como instrumento de mediação entre as classes sociais.
O mundo burguês, portanto, subvertera todas as relações sociais, políticas e culturais criadas pela natureza e sancionadas por Deus, e essa subversão só poderia desaguar na violência, na Revolução Francesa, momento onde as forças do Mal ameaçaram destruir definitivamente a sociedade humana. Os ultramontanos, grupo católico que defendia essa tese acreditava que esse novo estado de coisas somente poderia ser revertido promovendo novamente a reunião Igreja e Estado sob a condução do “Rei cristianíssimo” para melhor conduzir o Estado e as massas (Wernet).
Ancorados na idéia de ser a Igreja portadora da Verdade, estabelecida desde sempre e claramente definida no Concílio de Trento, em 1870, o grupo ultramontano julgou que a salvação temporal da sociedade e eterna do homem dependiam da recristianização do mundo, tarefa de exclusiva competência do instituto católico.
O fortalecimento desse grupo se deu em dois momentos importantes que irriam pesar decisivamente nos eventos futuros: restauração da Ordem dos Jesuítas por Pio VII em 1814 e o pontificado de Gregório XVI. Esse fortalecimento possibilitou o grupo ultramontano executar um programa de ação composta de três tópicos básicos: 1) combater o pensamento moderno, em todos os lugares e em todos os momentos, visando recuperar para a Igreja o monopólio da produção do saber, segundo os cânones do tomismo; 2) internamente combater os adeptos de uma política descentralizadora com primazia do episcopado, impondo a concentração do poder institucional nas mãos do Papa e da Cúria romana; 3) externamente, neutralizar a ingerência do poder temporal nos assuntos da Igreja. Para o presente texto importa mais discutir a questão do fechamento ao mundo e ao pensamento moderno.
O silêncio imposto, a condenação sem defesa, a excomunhão, cumpriam um papel de isolante cultural é verdade, mas a política ultramontana era mais abrangente, visando recuperar a condição de única voz a falar, não apenas na Europa, mas em todo orbe. Esse objetivo levava a hierarquia romana colocar uma questão profunda, é verdade, mas com intenções políticas: pode o homem chegar, a saber, alguma coisa por seus próprios meios? Pode existir um conhecimento sem que ele seja revelado ao homem?
O grupo ultramontano respondeu negativamente a essa questão por meio de vários pronunciamentos da Sé romana, em particular com as encíclicas Qui Pluribus, Quanta Cura e o Syllabus, documentos assinados por Pio IX. Esses documentos enfatizam a revelação divina como fonte do conhecimento e o primado da Igreja na produção do saber humano.
O que preocupava a Cúria romana era a possibilidade de o homem conseguir independência em relação ao predomínio político e cultural imposto por ela à sociedade durante séculos. Um raciocínio fundamentado em bases experimentalistas, livre do formalismo escolástico, permitiria não apenas um avanço em relação ao conhecimento e domínio da natureza, como poderia levar a um questionamento dos dogmas católicos. Que se pense, por exemplo, no significado da teoria evolucionista ou do materialismo histórico.
Assim, a questão que se colocava para a Cúria era definir uma linha de ação que tanto impedisse a produção de idéias contrárias a sua doutrina, quanto à absorção dessas novas maneiras de pensar produzidas pelo mundo e pela ciência moderna. Desse modo, importava agir em duas frentes. Na primeira, reforçar a tradicional doutrina católica, tarefa executada por Pio IX, por exemplo, por meio da encíclica Qui Pluribus. Na segunda, impedir que as idéias produzidas pelas novas fórmulas científicas e filosóficas chegassem até o povo, usando-se para isso, entre outros meios, a censura da imprensa, conforme propunha Gregório XVI, e a criação de colégios católicos, femininos e masculinos.
No contexto da doutrina firme e até intransigente de Pio IX, a encíclica Qui Pluribus se destinou a apontar os erros modernos e os meios de os combater e dentre eles, principalmente a idéia do primado da razão sobre a fé.
Pio IX afirmava que a idéia de se conferir à razão independência em relação à fé e mesmo em alguns casos, supremacia da razão, revela mais um ardil do inimigo. Desse ponto a encíclica avança no sentido de demonstrar a “natural harmonia” entre a fé e razão não obstante a primazia da primeira em virtude justamente de a fé permitir à razão conhecer aquilo que Deus revelou.
Entretanto, Deus não está em comunicação direta com os homens, necessitando de um interlocutor, de alguém que fale aos fiéis em seu nome; isto é, Deus necessita do clero católico, única voz autorizada, porque interpreta corretamente a palavra divina:
Um problema aparecia naquela encíclica à respeito da independência da razão, cuja liberdade acaba por comprometer a própria fé, uma vez que aquela, seguindo suas próprias trilhas, não chega necessariamente às mesmas conclusões que esta. Admitir o primado da razão, ou ao menos sua independência, significava, para a hierarquia ultramontana, abdicar do “dever” de decidir para e pelo conjunto da sociedade, aquilo que é ou não verdadeiro e aceitável, significava abdicar da primazia social, da condição de matriz de todo saber.
Outros dois documentos pontifícios importantes, Quanta Cura e o Sylabus, embora tenham sido escritos em uma situação histórica bem definida — a ocupação dos Estados pontifícios durante o processo de unificação da Itália, eles não se limitavam a esse fato especificamente e nem os seus efeitos se restringiam à Itália unificada ou à França pós-Revolução. Toda a base doutrinária do ultramontanismo se expressava nesses documentos e fez deles um paradigma ideal e os transformaram em guias de todo o orbe católico.
Essa é a razão que tornava o controle do sistema de ensino fundamental para a Igreja. A romanização do catolicismo brasileiro não podia se restringir à doutrinação difusa das homilias, das missões ou das publicações periódicas. Era necessário acostumar as mentalidades aos modelos e práticas devocionais e à concepção de natureza, homem e sociedade desenvolvida pelo catolicismo ultramontano e essa formação de mentalidades encontrava terreno propício na educação da infância e da juventude.
Ao controlar o sistema educacional a Igreja poderia, na verdade, controlar o sistema de difusão de idéias. Se lhe era impossível controlar a produção do saber e circunscrever as idéias novas à sua doutrina, o controle do sistema educacional lhe dava a oportunidade de, ao menos, depurar a matéria de ensino, evitando, o quanto possível, a divulgação de idéias contrárias às suas teses e dogmas. Por isso a Igreja, no Brasil, ao lado de lutar arduamente contra a laicização do sistema educacional, organizou o seu próprio sistema de ensino.
CRIAÇÃO DO COLÉGIO NOSSA SENHORA DO PATROCÍNIO
Em 1851 assumiu a então Diocese de São Paulo o Bispo D. Antônio Joaquim de Mello, o primeiro bispo brasileiro a ocupar a Sé Paulista. D. Antônio nasceu em Itú, aos 27 de agosto de 1791. Com oito anos de idade sentou praça no Regimento capitaneado por seu pai, onde permaneceu até 1810. Nesse ano, decidindo-se pela vida religiosa, passou a cursar filosofia, teologia e latim e em 1814 já estava ordenado padre. Em 1851, o Imperador D. Pedro II nomeou-o Bispo de São Paulo.
Ex-soldado, monarquista convicto, a ponto de tomar partido do Imperador na revolta liberal de 1842, antiliberal, antimoderno, autoritário, o novo bispo era um defensor da ordem estabelecida, arauto e posto avançado da monarquia na capital e diocese de São Paulo.
O seu trabalho pastoral fundamentou-se em um programa básico com três pontos principais: 1) visitas pastorais de modo a conhecer a sua diocese, dar-se a conhecer aos diocesanos e zelar pelo bom funcionamento da Igreja em São Paulo; 2) reforma do clero paulista, educando-o, moralizando-o, afastando o clero iluminista e submetendo-o aos princípios do ultramontanismo; 3) fundação de estabelecimentos próprios para a educação da juventude masculina e feminina da diocese.
O projeto educacional executado por D. Antônio, nos marcos do ultramontanismo, pretendia abarcar duas esferas sociais ao mesmo tempo: a religiosa e a familiar. Na primeira, preparar sacerdotes dentro do espírito da romanização, constituindo um clero atuante, culto, virtuoso, capaz de interferir na religiosidade paulista e conformar os fiéis à postura política assumida naquele momento pela Cúria romana. Para isso instituiu o Seminário Episcopal, inaugurado em 1855, sob a direção dos capuchinhos. Na segunda, educar as meninas e jovens conforme os conceitos esboçados por Roma, naquele momento, de tal sorte que elas viessem, posteriormente, ser educadoras dos filhos e de toda sociedade, conforme os preceitos do catolicismo romanizado:
Pensava acertadamente (D. Antônio) que, conseguindo abrir uma importante escola para as meninas de classe elevada, essas, voltando às suas famílias, levariam o espírito cristão para o recesso dos seus lares. Assim, se formariam, para o futuro, mães cristãs, que ensinariam por sua vez a seus filhos os princípios da fé e da piedade. (“Uma página de história paulista”, 7)
Para isso, instituiu o Colégio de Nossa Senhora do Patrocínio, em Itú, sob a direção das Irmãs de São José de Chamberry, inaugurado em 1859. Essa proposta de se preparar agentes sociais que, por sua vez, preparam outros, num movimento crescente e ininterrupto, é uma concepção pedagógica que não está apenas na base da tradicional pedagogia dos jesuítas e do catolicismo ultramontano, mas também em outras doutrinas não católicas ou mesmo não religiosas. É o caso, por exemplo, da discussão de Tito Livio de Castro, citado por Safiotti, que fundando sua análise em uma abordagem histórica, se preocupava com a educação das mulheres, na exata medida em que elas seriam as educadoras da sociedade, (Safiotti, 206). É o caso, também, do positivista Teixeira Mendes, também citado por Safiotti que propunha uma escola feminina pública, transitória: “o tempo preciso para que todas as mulheres pudessem aprender, de modo a exercerem a sua função de mãe de família de formadora do homem” (Safiotti, 206, nota 107).
O conjunto doutrinário ultramontano aportou definitivamente em São Paulo trazido pelas Ordens e Congregações européias, inicialmente os capuchinhos no Seminário Episcopal e as Irmãs de São José em Itú.
A Congregação das Irmãs de São José de Chamberry foi fundada em 15 de outubro de 1648 em Puy, França, pelo padre jesuíta Jean Pierre Medaille, em colaboração com o Mons. Henry de Maupas. Essa congregação foi dispersada pela Revolução Francesa, mas se reorganizou no século XIX fundando as casa de Santo Estevão em 1807 e Aix-le Bains e Chamberry em 1812. Segundo consta, o Cardeal Fesch, tio de Napoleão Bonaparte colaborou no processo de reorganização dessa congregação (Rodrigues, 201).
A localização da congregação em Chamberry não configura uma casualidade. O Ducado da Sabóia, dada a atuante presença de luteranos e calvinistas, foi, desde o século XVI, um centro de ação contra-reformistas de capuchinhos e jesuítas. Na sua tarefa doutrinária e contra-reformista pela educação, os jesuítas fundaram em Chamberry um colégio em 1565 (Debesse, 214-15). De Chamberry sairão, mais tarde, importantes intelectuais ligados ao ultramontanismo.
Foram justamente os capuchinhos saboiardos e, por indicação deles, as irmãs, também saboiardas e ligadas ao jesuitismo, os primeiros requisitados por D. Antônio Joaquim de Melo para virem educar os futuros padres e futuras damas da sociedade paulistas como serão mais tarde, os jesuítas que fundarão, em Itú, o Colégio São Luis para os moços.
Releva observar, portanto, que a vinda das Irmãs, seja para São Paulo, seja para Curitiba mais tarde (Boletim Informativo da Casa Romário Martins, 5), não foi um evento fortuito, fruto de coincidências ou de forças extra-históricas, mas se constituiu em uma etapa de um planejamento bem elaborado e em escala mundial.
Tratava-se, para a Igreja, do mesmo processo desenvolvido para recuperar um lugar central na sociedade afastando o perigo da destruição institucional, como fora tentado na França. Utilizava-se, para isso, como linha de frente, os seus membros mais preparados e, talvez por isso, os mais conservadores e mesmo reacionários.
As Irmãs de São José, que interessam no caso presente, introduziram essa mentalidade em seus colégios através de todos os atos e movimentos, seus e de suas alunas, inclusive pela própria configuração física dos colégios. Antes de tudo, há que se considerar que essa congregação introduziu em São Paulo e mais tarde no Paraná, a fórmula do internato. Mesmo que em sua trajetória no Brasil essa congregação tenha criado escolas externas e orfanatos, a forma de organização pedagógica dominante foi o internato.
As paredes e os altos muros do internato desempenhavam uma função dupla — a de não permitir a saída das alunas e a entrada do mundo exterior, seja na forma de pessoas não reconhecidas, seja na forma de leituras proibidas, seja mesmo na forma da correspondência, toda ela censurada. Nesse recinto, isoladas do mundo exterior, as alunas eram colocadas em contato com um universo artificial, travado pela língua francesa, oficial do colégio, recortado segundo os critérios da doutrina e apresentado através de um método pedagógico claramente decalcado no Ratio Studiorum dos jesuítas.
Entrelaçando a vida colegial, alinhavando o cotidiano das alunas, uma sucessão de festas e comemorações religiosas, construíam o seu tecido cultural, tendo como referências devoções novas, diferentes das que estavam habituadas pela religiosidade brasileira. Eram agora festividades do Sagrado Coração de Jesus, da Imaculada Conceição, de São José, da Anunciação, a solene Primeira Comunhão (Poliantéia em homenagem à Madre Maria Teodora Voiron)
Enfim, retiradas da vida correntes, as alunas absorviam um conjunto de normas e preceitos educativos planejados pelo centro do ultramontanismo, concretizando o projeto de formação de um alicerce romanizado, sobre o qual se ergueria, ou melhor, se reconstruiria uma sociedade segundo os critérios e propostas da Igreja ultramontana, uma sociedade católica, ordeira, hierarquizada, moralizada, antimoderna, antiliberal, antifeminista. O projeto de D. Antônio, alimentado por essa visão de mundo providencialista, a-histórica, antiliberal, antimodernista e monarquista, se mostrava na medida e conveniência exatas para a sociedade monárquica, escravocrata e patriarcal de São Paulo.
De um lado porque a doutrinação católica era uma das poucas, senão única, ação educativa que atingia o povo. A figura do padre de pequenas vilas e cidades interioranas como único ponto de referência cultural é extremamente familiar e não se constituiu nas fímbrias de um sistema educacional que não teria chegado ao interior, mas ela mesma é a demonstração do que foi, por largos anos, o mecanismo de educação do povo: o instituto católico, presente onde às vezes não havia chegado ainda os meios de comunicação e a escola, pública ou privada.
Dessa maneira, convenientemente para o Estado e para a oligarquia paulista, a palavra ouvida pelo povo seria a palavra do ultramontanismo, uma palavra de conformismo, de resignação, que apontava o futuro sobrenatural como ponto de chegada, depois de uma trajetória de sofrimentos e provações.
De outro, porque o projeto educacional do Bispo de São Paulo solucionaria o grande problema representado pela necessidade de educação das moças. Se durante um largo tempo, que atravessou todo o período colonial e mesmo o Primeiro Reinado, a educação feminina não se constituiu em preocupações maiores, seja para as famílias, seja para o próprio Estado, dos meados do século XIX em diante, esse problema passou a ser uma preocupação da oligarquia paulista.
Educar as filhas não era mais um luxo ou uma desnecessidade. O advento de uma sociedade em contato com o mundo moderno, que caminhava para a urbanização, a consolidação de uma classe social que se enriquecia na produção agrícola, mas que via no comércio e mesmo na indústria o futuro bem próximo, demonstrava ser a educação feminina uma imposição social e uma temeridade ao mesmo tempo. Como educar sem corromper as jovens no contato com o “nefasto” mundo moderno, perigoso, indesejável de certa forma, mas sempre presente e impositor?
O projeto de D. Antônio era a resposta a essa questão. Ao projetar a educação feminina, D, Antônio Joaquim de Melo pretendia constituir um núcleo educacional solidamente apoiado nos pressupostos do ultramontanismo, que pudesse ser uma oportunidade educacional dada às jovens em um contexto onde as opções eram quase inexistentes.
As Irmãs de São José vieram para São Paulo no interior do projeto de romanização da Igreja paulista é certo, mas a oligarquia deu-lhes todo o apoio, porque tinha a certeza de que elas conduziriam as suas filhas para os caminhos seguros da teoria educacional do catolicismo ultramontano, isso porque a teoria educacional ultramontana dividia a esfera da educação em tais segmentos distintos, mas completamentares — a instrução e a educação, portanto, distinguia os objetivos instrucionais dos objetivos educacionais.
À instrução caberia municiar a inteligência com as conquistas e descobertas do saber e da ciência em assuntos meramente humanos. Assim, os objetivos instrucionais se limitariam a introduzir o educando no universo das ciências naturais, da matemática, da geometria, etc.
À educação caberia a tarefa de modelar o caráter do educando conforme os preceitos e os valores morais católicos. Os objetivos educacionais, portanto, se propunham levar o aluno a absorver esses preceitos morais e religiosos, através da prática das virtudes, do conhecimento de verdades religiosas e da assimilação dos bons exemplos preservados pela história.
Dessa forma, a educação ultramontana se apresentava como a única educação verdadeira em face das propostas educacionais leigas ou de outras religiões. Em face da educação leiga, porque essa propunha uma educação afastada de toda doutrina religiosa. Em face das outras religiões, porque elas não se fundamentavam na Verdade e, assim, a sua moral também não seria verdadeira. A proposta educacional das Irmãs de São José estava plenamente inserida nessa teoria ultramontana, de tal sorte que é possível identificar-se com clareza seus objetivos instrucionais e seus objetivos educacionais, sendo os primeiros subsumidos aos segundos.
O objetivo final, mais amplo, da educação proposta por essa congregação era formar jovens cultas, polidas, sociáveis, mas, acima de tudo, cristãs, católicas convictas, que difundissem, na família e na sociedade, os valores do catolicismo romanizado. Esse objetivo amplo estava inscrito com toda a evidência no Prospecto com que as Irmãs se apresentavam a sociedade paulista:
Formar as meninas na prática das virtudes que convém ao seu sexo; fazer com que cedo contraiam hábitos de ordem, modéstia, trabalho; inspirar-lhes com o amor à religião, um grande afeto às obrigações que ela impõe; ornar o seu espírito com uma instrução apropriada à sua idade e aos deveres que um dia terão de cumprir na sociedade; eis o fim a que se propõem as Irmãs de São José no seu desvelo para com as jovens pensionistas, cuja educação lhes é confiada. (Prospecto)
Estabeleceu-se a hierarquia dos objetivos nos próprios verbos empregados: formar na prática de virtudes e ornar o espírito com instrução no saber humano. Em outros termos, aí estão evidenciados os dois objetivos na sua hierarquia e na sua ordem de importância. A educanda deve ser solidamente formada nas virtudes preceituadas pela moral ultramontana e deve ter um ornamento cultural compatível com lugar que ocupará na sociedade.
A instituição do internato enquanto recurso pedagógico não é novidade nem privilégio da educação católica. No que diz respeito ao catolicismo, entretanto, o internato remonta suas origens aos mosteiros e escolas monacais da Idade Média, quando milhares de pessoas se afastaram do mundo para resguardar a sua espiritualidade.
No século XVI, com os jesuítas principalmente, o internato passou a desempenhar a função de preparar homens para exercerem a direção da sociedade conforme os preceitos catolicismo tridentino, não mais significando apenas uma escola de preparo para membros do próprio clero, mas local depreparação dos homens da elite dirigente. Daí em diante, o internato, enquanto recurso pedagógico, se fundava em uma teoria com dois pontos básicos.
Primeiro, a idéia de ser a criança naturalmente inclinada mal. O batismo apaga a mancha de origem é certo, mas não fortalece o espírito infantil em face do pecado. Assim, era necessário a construção de um local isolado, seguro, onde as crianças fossem habituadas a vencer as suas inclinações naturalmente pecaminosas. Segundo, e aqui plenamente o século XIX, a idéia de que o mundo está em permanente crise na exata medida em que o Mal, revivido pelo Renascimento e alimentado pela ciência materialista e pela política liberal, se constituía em ameaça constante à formação da criança. Nesse contexto, o internato promovia a “separação do mundo e, dentro desse recinto reservado, vigilância constante ininterrupta de todos os instantes, que visa construir um auxílio, um devotamento de todos os instantes” (Snyders, 271).
No que tange à educação feminina em especial, o recurso do internato havia que ser plenamente empregado, porque as meninas possuem uma pureza que dever ser resguardada a todo custo. Olívia Sebastiana Silva, biógrafa da Superiora do Colégio de Itú, Madre Teodora Voiron, ao descrever a educação recebida por essa religiosa, defende o recurso à clausura de maneira menos teórica que Snyders, acima citado, mas de maneira mais clara e contundente:
Cabe-lhe (à mãe) a defesa dessa alvura contra o toque venenoso do pecado. É a jóia que deve guardar e burilar para a consecução de seu máximo esplendor. / Mme Voiron sabe que, para um bom êxito, nada mais aconselhável que a vida oculta. / No livro da natureza, aliás, não é outro exemplo. / Tomemo-lo um pouco./ Onde está a semente? – No seio silencioso da terra. / Já agora a nossa vista recai sobre uma pérola. / de onde veio? – De um cofre tosco de conchas, mergulhado na profundeza dos mares. / E continuando nesta análise do volume do Criador, concluímos que, cá ou lá, o método é, invariavelmente, o mesmo. (Silva, 18-19)
A fórmula do internato, portanto, segundo seus defensores, não representaria nada mais do que o método mais natural para a educação das crianças, porquanto representaria a transposição dos ensinamentos da própria natureza criada por Deus, para a ação pedagógica humana.
Nesse local isolado do contágio do mundo, vivendo segundo regras severas e conscientemente empregadas as alunas eram educadas para atingirem os objetivos propostos pela Igreja ultramontana e explicitados pelo Prospecto acima citado. Essa educação percorria, portanto, os caminhos dos objetivos educacionais e dos instrucionais. Os objetivos educacionais, os mais importantes segundo a teoria ultramontana, se realizavam pelo ensino das virtudes religiosas. Mas, não apenas noções de doutrina cristã, ensinadas nas aulas de catecismo, ministradas diariamente durante toda a duração do curso, e sim uma doutrinação diária, segundo os princípios ultramontanos apoiada na leitura do catecismo elaborado por D. Antônio Joaquim de Melo. Além desse catecismo, outras máximas religiosas perpassavam todos os momentos da vida colegial, em especial as máximas de Madre Teodora, Superiora do Colégio. O alicerce religioso e ultramontano dessa educação continuava na própria seleção de livros adotados, todos eles produzidos por padres ou católicos militantes, conforme o Relatório do Inspetor de Itú, Carlos F. da Silva, em 7 de dezembro de 1876.
Em resumo, as alunas eram envolvidas por uma atmosfera de religiosidade, de devoção e piedade, de tal forma que essa religiosidade era incorporada à vida da educanda, no colégio ou fora dele. E esse era, de fato, o objetivo preponderante da educação ultramontana.
Entretanto, a realidade vivida pelas alunas fora do Colégio, exceção feita às que ingressavam na vida religiosa, era um meio exclusivamente secular — a família e a sociedade, e uma sociedade, que em face de sua evolução histórica, requeria um polimento sócio-cultural bastante sólido de suas jovens. Nessa medida, os objetivos instrucionais dos colégios das Irmãs de São José deveriam, ao mesmo tempo em que preparavam a cultura e a sociabilidade das educandas, reforçar a sua formação moral e religiosa. Por essa razão, o programa de ensino desses colégios contemplava mais as matérias que pudessem reforçar a cultura e a sociabilidade das alunas, juntamente com seu lastro religioso, do que as matérias voltadas para o conhecimento científico.
Os Prospectos para 1859, 1860 e 1888 dos colégios de Itú e Taubaté traziam programadas 17 matérias de ensino, indo da Educação Religiosa ao Desenho, que compunham essa proposta educacional e se desdobravam em uma seqüência de oito anos de estudos. Releva observar que as disciplinas formadoras da moral e religiosidade e as que preparavam o lastro cultural e de sociabilidade das educandas, preponderavam sobre as matérias ditas científicas, sendo treze para o “polimento” cultural, e quatro de disciplinas “científicas”.
A historiografia da educação escrita pelo catolicismo ultramontano justifica essa programação, apelando a pouca afinidade do “espírito” feminino com as ciências naturais e exatas: “A especialização prematura nas ciências exatas, a técnica que predomina o caráter educativo nessas mesmas ciências de nada aproveita ao espírito feminino, mais apto para as ciências de cunho literário e até filosófico do que para os estudos de orientação profissional” (Peeters y Cooman, 149).
Além disso, continuava essa historiografia, os conhecimentos científicos de nada adiantariam às jovens, na medida em que a sua educação não deveria formar um lastro de conhecimentos profissionalizantes ou de iniciação em uma carreira, e sim deveria formar um sólido lastro cultural:
Até o surto do movimento feminista que começou em fins do século XIX e, sobretudo depois do enorme impulso que lhe deu a Grande Guerra, a educação das classes abastadas tinha um cunho de formação literária e distinção notável. Não se preocupavam as moças da procura de uma carreira. As ciências físicas e naturais eram ensinadas como complemento da instrução e meio de conhecer a compreender algo do movimento científico crescente, mas a literatura, a história, as disciplinas formadoras da cultura geral, dominavam as demais. (Peeters y Cooman, 149)
Desde o ingresso da criança nesses colégios, essa preocupação se tornava manifesta, a partir do próprio programa da classe preparatória, que estipulava a ordem, o bom comportamento e a polidez, como as três práticas iniciais e obrigatórias dos objetivos instrucionais. Daí em diante, o treinamento diário das educandas se dava ao redor dessas práticas de sociabilidade, tendo por referência a etiqueta francesa, que se configurava no aprendizado dos gestos, do comportamento à mesa, da música instrumental, do canto, do francês, língua oficial dos colégios.
Entretanto, conforme o anunciado no início do texto, as divergências entre os grupos políticos se manifestaram no próprio campo jurídico e administrativo, além daquelas manifestadas no âmbito teórico e filosófico, e a aliança entre a oligarquia e a Igreja Católica Romana foi mais forte que os projetos positivisas, liberais e anti-clericais.
No âmbito jurídico e administrativo o problema tinha dois fundamentos: primeiro, deveria o Estado oferecer educação pública e gratuita? Segundo, poderia o Estado aceitar que instituições educacionais católicas se instalassem no Brasil e constituíssem um patrimônio inamovível segundo o princípio de “mão-morta”?
Quanto ao primeiro fundamento, estava em causa a proposta liberal de atribuir à iniciativa privada as tarefas educacionais, cabendo ao Estado, quando muito, uma função fiscalizadora, conforme se lê nas palavras de Liberato Barroso ou do Inspetor Geral da Instrução Pública de São Paulo, Diogo de Mendonça Pinto. Dizia Libertato Barroso:
O ensino médio particular é muito mais completo que o ensino público. Entretanto, não temos ainda a liberdade de ensino tão necessária para o desenvolvimento da instrução secundária. Se o magistério particular, ainda escravizado pela Lei, prospera mais que o público é claro que ele tem grande força pela natureza das coisas e pelas verdadeiras necessidades sociais. (Barroso en Haidar, 181)
O discurso de Liberato Barroso traduz bem o ideário liberal — a iniciativa particular deve ser o centro de toda movimentação da sociedade, impulsionada pelos interesses particulares e normatizada pela ação do Estado que, para tanto, não poderia representar o poder do Príncipe, mas os verdadeiros interesses nacionais.
Em São Paulo, o Dr. Diogo de Mendonça Pinto, Inspetor Geral da Instrução Pública de 1852 a 1872, foi um dos intransigentes defensores da absorção do ensino público pela iniciativa privada. No seu Relatório de 1870 ao Presidente da Província, lemos que:
E o que a Nação deve esperar da educação? Segundo ele, deve esperar a geração de homens adaptados, úteis. Entretanto, advertia o Dr. Diogo, a nação não deve dispender financeiramente com a educação, mas deve apenas dar: “estímulo à atividade individual provocações indiretas à organização de empresas particulares” (Relatório). Por meio dessas “provocações indiretas”, do estímulo do Estado, a Nação fará com que: “cada um, pelos meios ao seu alcance, adquira os conhecimentos indispensáveis à realização desse desideratum” (Relatório).
Por isso, as leis aprovadas naquele momento, de cunho liberal, atribuiam ao Estado também a tarefa de subvencionar as escolas particulares. Destarte, o Dr. Diogo de Mendonça Pinto nada mais fazia do que explicitar, na forma de seu Relatório, uma convicção que extraía do próprio movimento da realidade política vivida então — o Estado, na figura do governo provincial não podia, ou não queria, canalizar verbas para o ensino público, mesmo o do primeiras letras.
Desde a década de 1860, com certeza, o governo da Província de São Paulo vinha se eximindo de criar novas escolas ou de prover as escolas já existentes (Moacir, 42). Antes preferia executar a Lei Provincial no. 08 art. 32, de 19 de maio de 1862, que determinava que se subvencionasse as escolas particulares (Rodrigues, 83). Doze anos mais tarde, em face da Lei Provincial no. 22, de 23 de abril de 1874, que instituía obrigatoriedade da freqüência escolar, provocando necessariamente um aumento da despesa, o governo provincial expediu uma circular reservada, em outubro desse mesmo ano, insistindo para que não se gastasse dinheiro com a obrigatoriedade do ensino (Rodrigues, 90).
Na verdade, o governo provincial preferia executar a Lei Provincial no 49, já sancionada desde 17 de abril daquele mesmo ano, que determinava subvenção oficial para “associações particulares” que ministrassem o ensino de primeiras letras. Essa subvenção variava de 500$000 (quinhentos mil réis) para escolas do interior até 2000$000 (dois contos de réis), para escolas e associações da capital (Rodrigues, 92).
Quanto ao segundo fundamento, parte e parte considerável dos estudantes e intelectuais brasileiros que entraram em contato e aderiram à filosofia positivista, assumiram, posteriormente, cargos e funções administrativas e participaram ativamente da política imperial e depois republicana.
Por isso, contraditoriamente, os mesmos administradores que propunham a privatização do ensino eram os mesmos que rejeitavam a presença religiosa no âmbito da educação. Assim, ao mesmo tempo em que estimulavam a presença de colégios particulares, criavam entraves para a rede católica de educação e quando se tratava de jesuítas, a tendência dominante era de negar-lhes a devida licença.
Em São Paulo, essa rejeição ao jesuitismo se manifestava, com certeza, em 1864, quando o Inspetor de Itú, Bento (Benedito) Francisco de Paula Souza, oficiou ao Instrutor Geral recomendado que não se concedesse licença para os jesuítas se instalarem em Itú, dizendo que: “os jesuítas já produziram todos os resultados benéficos que podiam produzir e que hoje, só males podem trazer, como todos os princípios que a humanidade, em sua marcha progressiva, vai ultrapassando” (Relatório). A esse antijesuitismo dos homens públicos, veio se juntar as resistências do clero iluminista a ligado a Faculdade de Direito (Wernet).
Diante desse quadro, cabe indagar como as Irmãs conseguiram se fixar na Província de São Paulo. A razão possível, ao menos em sua fase inicial, foi à estratégia empregada por D. Antônio Joaquim de Melo, pelo seu sucessor, D. Sebastião Pinto do Rego e pelas próprias Irmãs: usar sempre a influência do Bispo nos trâmites burocráticos e evitar maiores envolvimentos com o poder público.
D. Antonio Joaquim de Melo planejava e realmente criou um “fato” político, diante do qual o inspetor Geral da Instrução Pública nada poderia fazer. Essa intenção ficou explícita em uma carta dirigida pelo Bispo à Madre Felicité, Geral da Congregação, em Chamberry, em 1856, onde diz que: “o inimigo da salvação e seus adeptos estão furiosos e desejariam impedir esta boa obra, mas Deus lhes confundirá a malícia e seremos felizes” (Silva, 46).
O tempo do verbo empregado indica que a estratégia do Bispo de São Paulo visava impedir qualquer intervenção da parte daqueles que se colocavam contra o seu projeto. Por isso, somente em 19 de setembro de 1858 é que o Bispo enviou ofício comunicando ao Inspetor Geral que as Irmãs já estavam em Itú aprendendo o português e se preparavam para o início das aulas.
No ofício, o Bispo revelava que havia se beneficiado da confiança da Corte e recebido autorização verbal para levar adiante o seu plano. Essa autorização verbal, dada pelo próprio Imperador, o desobrigaria de prestar informações às autoridades provinciais (Ofício de Mello, 19 de setembro de 1858).
Procurando se inteirar melhor sobre o projeto do Bispo, o Inspetor Geral oficiou ao Inspetor de Itú, Francisco Xavier Paes de Barros, solicitando informações sobre o colégio e sobre o pedido de licença. Em resposta datada de 15 de novembro de 1858, o Inspetor de Itu informava que: “O colégio deverá ser inaugurado no princípio próximo ano e estou certo que seus protetores conhecem as leis sobre a instrução e não deixarão de solicitar a competente licença; ao menos foi o que se me disse quando indaguei a respeito” (Ofício Inspetor de Itú, Francisco Xavier Paes de Barros).
Mas, foi somente em 11 de abril de 1859 que o Bispo oficiou ao Inspetor Geral informando que sabia da necessidade de se solicitar à licença e que só não o fizera antes por não ser o momento oportuno. Em anexo, além de requerer a licença, enviou um Prospecto do colégio. (Ofício de Mello, 11 de abril de 1859)
A má disposição inicial, que parecia resolvida com a licença de funcionamento concedida em 13 de abril de 1859, reapareceu em 1861, logo após o vencimento do prazo estipulado dois anos antes. Aproveitando-se de um lapso cometido por Madre Teodora, que solicitou por meio de um ofício seu a renovação da licença, o Inspetor Geral negou-a alegando que o procedimento estava irregular, devendo o requerimento ter sido formulado pelo próprio Bispo Diocesano. A negativa exigiu a intervenção do Vigário Capitular (sede vacante) Pe. Joaquim Manoel Gonçalves de Andrade. Em ofício de 13 de maio de 1861, o Vigário Capitular desculpou o procedimento de Madre Teodora, alegando que ela desconhecia as leis do país e obteve a renovação da licença em 28 de maio de 1861 (Ofício de Vigário Capitular, 13 de maio de 1861).
Essa aresta entre a direção do colégio, o Bispo e o Poder Público, reapareceu de forma mais contundente em 1863, e a troca de ofícios entre as partes interessadas revela que a situação não era tão simples de resolver. Em 20 de junho de 1863, o Inspetor Geral oficiou ao Bispo Diocesano, D. Sebastião Pinto do Rego, comunicando que estando vencido o prazo da licença: “tenho eu, ou de mandar fechar o colégio, ou de conceder nova licença”. Por isso solicitava que o Bispo informasse se “o colégio de que se trata é de instituição episcopal” (Ofício do Inspetor Geral da Instrução Pública de São Paulo, 20 de junho de 1863).
A resposta do Bispo foi bastante ácida, e em ofício de 25 de junho de 1863, em lugar de prestar a informação solicitada, comunicava ao Inspetor Geral que “nesta data faço constar isto ao Ex. Sr. Presidente da Província, como pareceu ser necessário, à vista do exposto por V. S. no citado ofício, que assim fica respondido” (Ofício de D. Sebastião Pinto do Rego, 25 de junho de 1863)
No mesmo dia 25 de junho, D. Sebastião Pinto do Rego oficiou ao Presidente da Província, Pe. Dr. Vicente Pires da Mota, lembrando-lhe que a licença para o colégio já fora renovada pela própria Presidência, de forma verbal e que agora “peço a V. Ex. a continuação dessa licença, na forma que à V. Ex. parecer mais conveniente” (Ofício de D. Sebastião Pinto do Rego, 25 de junho de 1863)
Entretanto, é no ofício de no 2689 de 03 de julho de 1863, do Inspetor Geral ao Presidente da Província, que os fundamentos desse atrito vêm à tona. Nesse ofício, o Inspetor Geral explicava ao Presidente que havia pedido esclarecimentos ao Bispo antes de conceder a licença, temendo que “munidas as Irmãs de São José de semelhante documento, no futuro chamassem a si a propriedade do estabelecimento, propriedade que eu, aliás, ignorava como ficava por morte do Bispo fundador” (Ofício nº 2689 do Inspetor Geral da Instrução Pública de São Paulo, 3 de junho de 1863)
Essa indisposição do Inspetor Geral não se fundamentava, portanto, em um posicionamento contra uma instituição de ensino particular, visto que o próprio Dr. Diogo de Mendonça Pinto era defensor da privatização do ensino, conforme suas prórpias palavras. A indisposição estava inserida em um contexto de desconfiança e rejeição ao catolicismo romanizado, identificado ao jesuitismo e de preocupações quanto ao crescimento do número de propriedades imobiliárias concentradas em mãos de ordens religiosas estrangeiras.
Essa atitude de afastamento em relação ao poder público continuou, com certeza, até as primeiras décadas do século XX. Nenhum documento encontrado permite supor que tenha existido qualquer aproximação entre eles até 1911, 1912 e 1913. Nesses anos, conforme consta dos relatórios, as Irmãs receberam do governo de São Paulo as seguintes subvenções anuais:
1911 - 1912 Total 22:000$000
(Anuário do Ensino do Estado de São Paulo 1912-1913)
1913 -1914 Total 25:000$000
(Anuário do Ensino do Estado de São Paulo 1913-1914)
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Ofício. De D. Antônio Joaquim de Mello ao Inspetor Geral da Instrução Pública Diogo de Mendonça Pinto, em 19 de setembro de 1856. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios da Instrução Pública - Itú. Ordem 5062, Lata 41.
Ofício. De D. Antônio Joaquim de Mello ao Inspetor Geral da Instrução Pública Diogo de Mendonça Pinto, em 11 de abril de 1859. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios da Instrução Pública de Itú. Ordem 5062, Lata 41.
Ofício. De D. Sebastião Pinto do Rego de 25 de junho de 1863. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios da Instrução Pública de Itú. Ordem 5062, Lata 41.
Ofício. Do Inspetor de Itú, Francisco Xavier Paes de Barros. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios da Instrução Pública de Itú. Ordem 5062, Lata 41.
Ofício. Do Inspetor Geral da Instrução de Pública de São Paulo de 03 de julho de 1863. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios da Instrução Pública de Itú. Ordem 5062, Lata 41.
Ofício. Do Inspetor Geral da Instrução Pública de São Paulo em 20 de junho de 1863. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios da Instrução Pública de Itu. Ordem 5062, Lata 41.
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* Licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente atua como titular do Departamento de História da UNESP. Publicou numerosos artigos e livros sobre a história, religião e educação no Brasil,
1 Este texto é a reescrita, revisada e ampliada de uma palestra proferida na Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, Estado de São Paulo.