1. Introdução
Considerando os desafios atuais de crises geradas em todas as dimensões da sociedade, a construção de uma sociedade sustentável é imperativa. No meio rural, isso implica a constituição e valorização de estratégias territoriais de desenvolvimento empregadas pela agricultura familiar1. Nesse sentido, destaca-se o papel da agroindústria familiar na produção de qualidade territorial que, na maioria das vezes, está associada a modos tradicionais de produção (artesanais), provenientes de sistemas sustentáveis de manejo (orgânicos, agroecológicos), de diferentes sistemas étnicos-culturais (quilombola, indígena, caboclo…), que contribuem para maior autonomia, incremento na renda e melhoria das condições de vida dos agricultores2.
Tais características convergem na perspectiva da transição agroecológica, processo gradual e multilinear de mudança, que ocorre ao longo do tempo, nas formas de manejo dos agroecossistemas. O propósito principal consiste na passagem de um modelo agroquímico de produção para estilos de agriculturas que incorporem princípios e tecnologias de base ecológica. Tal processo depende da intervenção humana, que não se limita na busca de uma maior racionalização econômico-produtiva, mas numa mudança nas atitudes e valores dos atores sociais em relação ao manejo e conservação dos recursos naturais3.
No estado de Santa Catarina, a Serra Catarinense apresenta um conjunto de organizações sociais que atuam na perspectiva agroecológica, com destaque para as organizações da sociedade civil Centro Vianei de Educação Popular, fundada em 1988, o núcleo da Rede Ecovida de Agroecologia, criado em 1998, com atuação na certificação participativa de produtos orgânicos, e a Associação de Agroturismo Acolhida na Colônia, constituída em 1999. Entre as organizações governamentais, o Consórcio Intermunicipal da Serra Catarinense (CISAMA) atua desde 2009 na implementação de serviços de inspeção sanitária ligados, sobretudo, às agroindústrias familiares da região. Em 2010, este consórcio criou a marca Sabor Serrano (MSS) como uma estratégia de valorização territorial dos produtos das agroindústrias regulamentadas pelo Serviços de Inspeção Municipal (SIM) e, a partir de 2020, pelo Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI-POA), ambos integrados ao Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (SUASA). Trata-se de um sistema de normas da formalização sanitária, nos três níveis de competência governamental (federal, estadual e municipal).
A regulamentação sanitária realizada de forma setorizada e fragmentada tende a excluir a pequena agroindústria familiar, principalmente as de base agroecológica e artesanal, em decorrência das suas especificidades, implicando impedimento ao acesso aos mercados formais de comercialização. O processo de regulamentação sanitária da pequena agroindústria familiar na região da Serra Catarinense é realizado pelo CISAMA, cuja origem está associada às políticas públicas do extinto Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), orientadas à criação de Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD). Essa iniciativa buscava estimular arranjos territoriais em regiões de baixo índice de desenvolvimento, com objetivo de promover a cooperação entre municípios, em prol da segurança alimentar e do desenvolvimento local. Mais tarde, essa política foi articulada com ações da então Secretaria de Desenvolvimento Territorial do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário4.
O presente artigo tem como objetivo analisar os principais critérios de concessão da marca territorial Sabor Serrano pelo Consórcio Intermunicipal da Serra Catarinense e a relação com a regulamentação da agroindústria familiar de base agroecológica. Este estudo foi desenvolvido no período de 2019-2020 e se inscreve no escopo de dois projetos de pesquisa, que adotam o enfoque da Cesta Bens e Serviços Territoriais executados na Serra Catarinense.
2. Metodologia
A unidade de observação empírica corresponde ao território de abrangência da Associação dos Municípios da Região Serrana (AMURES) e do CISAMA do estado de Santa Catarina, composto por 18 municípios. Dentre esses municípios, Lages se destaca por ter mais de 157 mil habitantes, seguido por São Joaquim com 27,1 mil e Otacílio Costa com 18,9 mil habitantes. Os demais possuem menos de 13 mil habitantes. Trata-se da região do estado com os menores índices socioeconômicos. A Figura 1, a seguir, apresenta a localização do território e os municípios em relação ao estado e ao país.
O procedimento metodológico adotado consistiu em pesquisa bibliográfica e documental, seguida por uma pesquisa exploratória no local de estudo, em agosto de 2019, mais especificamente no município-polo de Lages. Naquela oportunidade, por meio de um roteiro semiestruturado de questões, foram entrevistados o secretário-executivo do CISAMA e a responsável técnica das equipes de profissionais municipais encarregadas pelo SIM/SUASA perante as agroindústrias familiares dos municípios que participam do Consórcio. Essa pesquisa exploratória possibilitou uma análise preliminar do processo de criação da MSS e sua importância para as agroindústrias familiares da região. Na sequência, realizou-se seis entrevistas e contatos remotos com outros atores e instituições que atuam especificamente com o tema da agroecologia na região, como o Centro Vianei de Educação Popular, a Rede de Agroecologia Ecovida e a Associação Acolhida na Colônia.
A pesquisa contou ainda com a análise de dados secundários originários do banco de registro e controle de impressão e emissão dos rótulos da MSS para cada agroindústria familiar atendida pelo CISAMA. A partir desses dados e informações foi possível identificar a existência ou não de agroindústrias de base agroecológicas dentro do grupo de agroindústrias regulamentadas pelo CISAMA e usuárias da MSS, bem como obter uma visão geral da distribuição e classificação dos produtos (vegetal e animal) dessas agroindústrias entre os 18 municípios que compõem o território da Serra Catarinense.
2.1 Transparência dos dados
Dados disponíveis: o conjunto de dados que suporta os resultados deste estudo encontra-se disponível na dissertação de mestrado que serviu de referência para sua elaboração6.
3. Resultados e discussões
A MSS atende um conjunto de 70 agroindústrias, e uma diversidade de 702 produtos, distribuídas em 14 dos 18 municípios que compõem o território da Serra Catarinense. Os principais critérios da regulamentação e da concessão da MSS estão associados à infraestrutura administrativa, preservação e combate à fraude, inocuidade e qualidade sanitária dos produtos e de controle ambiental. A utilização da marca é opcional para as agroindústrias regulamentadas, mas, para as que quiserem usar, é obrigatório que seja regulamentada pelo sistema de inspeção e vigilância sanitária.
Entre os produtos, verificou-se a referência nos seus rótulos de denominações como artesanais, coloniais e orgânicos, sendo que a maioria pertence a categoria dos panificados (48%). O queijo artesanal serrano, o mel de melato da bracatinga (Mimosa scabrella) e o pinhão apresentam as características para serem considerados ativos territoriais específicos na região7. A Figura 2, a seguir, apresenta a utilização da MSS em três diferentes produtos, sendo dois associados ao SIM (queijo serrano e mel), por serem produtos de origem animal, e outro (pinhão) sem esse selo de inspeção sanitária, por ser um produto de origem vegetal.
O queijo artesanal serrano é considerado um dos produtos com maior tipicidade da Serra Catarinense por possuir sabor, qualidade e textura influenciada pelo ambiente, clima, vegetação, raças rústicas, solo e tradição, ligada ao saber-fazer do agricultor serrano que remonta ao período do tropeirismo do século XVIII. Ou seja, representa um produto com forte identidade territorial e relevância histórica, social, cultural e econômica da agricultura familiar serrana8. O seu processo de fabricação é totalmente artesanal, produzido em pequenas quantidades, a partir de leite cru, ordenhado de vacas de raças cruzadas de corte, criadas de forma extensiva e alimentadas com pasto nativo9. Entre as 70 agroindústrias usuárias da marca, oito trabalham com queijo artesanal serrano, cinco localizadas no município de Lages e três em Urubici, Capão Alto e São Joaquim.
Outro produto singular da Serra Catarinense que utiliza a MSS é o mel de melato de bracatinga. Esse tipo de mel é produzido nas regiões mais altas de Santa Catarina e está associado à árvore de bracatinga que, ao ser infestada pelo inseto conhecido como cochonilha (Tachardiella sp.), expele uma secreção açucarada, a qual é transformada em mel durante a estação de inverno pela ação de abelhas melíferas (Apis melífera). Esse mel apresenta características peculiares, com destaque de ser menos adocicado e mais escuro do que o mel floral, além de possuir maior quantidade de minerais e de vitamina C, que agem como antioxidante e anti-inflamatório10. Entre as agroindústrias que utilizam a MSS foram identificadas uma agroindústria familiar que trabalha com o mel de melato de bracatinga e quatro que processam o mel floral ou mel comum.
Outro produto típico da região é o pinhão. Das 58 agroindústrias de produtos de origem vegetal, 16 (33%) processam pinhão, com destaque para o município Correia Pinto, com nove agroindústrias, e São Joaquim e Lages com, respectivamente, três e duas agroindústrias. Segundo o coordenador do Centro Vianei de Educação Popular, o pinhão é um dos produtos típicos da região, por estar intimamente relacionado com as estratégias agroalimentares de agricultores familiares e de povos e comunidades tradicionais, uso e conservação dos sistemas florestais, manutenção das paisagens naturais e de bens culturais imateriais associados à agrobiodiversidade. Os municípios de Painel, São Joaquim e Bom Jardim da Serra são os maiores produtores. A maior parte dessa produção provém de áreas de regeneração da floresta de araucária11.
A floresta de araucária sofreu intensa pressão durante o ciclo de exploração da madeira, o que fez entrar na lista de espécies ameaçadas de extinção12. Em Santa Catarina, a floresta de araucária cobria 42,5% do estado e hoje resta algo em torno de 1% a 5% da área original, sendo que a maior parte está localizada em áreas de povos e comunidades tradicionais, como áreas indígenas, comunidades quilombolas e, principalmente, de agricultores familiares13. Destaca-se a atuação do Centro Vianei de Educação Popular junto a agricultores associados à Cooperativa Ecológica de Agricultores, Artesãos e Consumidores da Região Serrana (ECOSERRA) com o propósito de promover a conservação das araucárias em sistema agroflorestal e o extrativismo sustentável do pinhão12.
O pinhão, o queijo serrano, o mel de melato bracatinga e outros produtos identificados como orgânicos e artesanais usuários da MSS apresentam forte associação com a perspectiva da agroecologia, uma vez que suas práticas de manejo e formas organizacionais contribuem direta ou indiretamente para a conservação e recuperação dos ecossistemas naturais, maior autonomia, incremento na renda e melhoria das condições de vida dos agricultores. Neste estudo considera-se a agroecologia como um campo de conhecimentos, de natureza multidisciplinar, que pretende contribuir na construção de estilos de agricultura de base ecológica e na elaboração de estratégias sustentáveis de desenvolvimento rural, numa perspectiva multidimensional de longo prazo14.
Embora essas iniciativas sejam beneficiadas pela MSS, observou-se que os serviços de inspeção e vigilância sanitária, coordenados pelo CISAMA, são realizados de forma fragmentada e setorizada, com pouca articulação com segmentos ligados à agroecologia na região5.
A existência de agroindústrias familiares de base agroecológica que fazem uso da MSS não é reconhecida como tal, a exemplo da produção de leite e queijo a base de pasto e da produção do pinhão em sistemas agroflorestais. Esse panorama poderia mudar se o processo de regulamentação sanitária das agroindústrias familiares fosse realizado de forma conjunta com outras normas e processos que reconhecem os produtos agroecológicos ou artesanais15. Ou seja, um processo interinstitucional e intersetorial associado à vigilância sanitária de forma a evitar gastos desnecessários em procedimentos diferentes para obter o reconhecimento da especificidade e qualidade dos produtos agroecológicos.
Além da falta de atuação conjunta entre os órgãos responsáveis pela certificação da qualidade e especificidade dos produtos agroalimentares das agroindústrias familiares, em especial as que processam produtos da agrobiodiversidade, as exigências sanitárias estão levando a produção de alimentos tradicionais, artesanais e de base familiar a adotar procedimentos que aproximam esses produtos da industrialização convencional e da artificialização, dissociando-os de práticas socioculturais inerentes ao modo de produção que historicamente caracterizam esses produtos15. Com isso, o atual modelo de inspeção e vigilância sanitária ainda está distante da diversidade e das realidades da produção artesanal familiar16.
O processo de regulamentação sanitária da agroindústria familiar poderia se dar em conjunto com a certificação orgânica e/ou do recém-criado selo ARTE (para produtos artesanais de origem animal), já que todos esses processos são coordenados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). De forma sintética, a certificação de produtos orgânicos é o procedimento pelo qual uma certificadora, devidamente credenciada pelo MAPA, assegura que determinado produto, processo ou serviço obedece às normas e práticas da produção orgânica brasileira, conforme a Lei 10.831/2003. O selo ARTE é um certificado de identidade e qualidade, que possibilita o comércio nacional de produtos alimentícios elaborados de forma artesanal, sob a coordenação do MAPA, instituído pela Lei 13.680/2018.
Não obstante a falta de uma sinergia e cooperação entres os atores públicos, privados e associativos na constituição de um sistema de regularização e certificação conjunto, para atender as especificidades da agroindústria familiar de base agroecológica, a MSS vem desempenhando um importante papel no desenvolvimento rural na região da Serra Catarinense, principalmente na regularização sanitária das agroindústrias familiares, diferenciação e agregação de valor dos produtos alimentares nos mercados formais de comercialização e criação de um vínculo territorial desses produtos. O uso de marcas e sinais coletivos, entre outras estratégias adotadas pelas agroindústrias familiares, dá-se a partir da constituição de redes sociais de influência regional e local, que buscam acesso aos mercados formais e a agregação de valor aos produtos de qualidade diferenciados e com alguma singularidade territorial17.
Com a nova instrução normativa18 expedida pelo MAPA, o CISAMA, além de deter a competência pelo SIM na região, passou a reconhecer a equivalência e adesão ao SISBI-POA do SUASA. Tal normativa foi pensada para atender as especificidades da agroindústria familiar, que muito se diferencia dos grandes complexos agroindustriais pelas suas relações sociais, econômicas e ambientais estabelecidas no território onde estão inseridas.
Até o momento, somente a Cooperativa de Criadores de Frango Caipira Salto dos Marianos (COOPERSALTO), localizada no município de São José do Cerrito, obteve a equivalência do SIM ao SISBI-POA. A COOPERSALTO é uma cooperativa que envolve 12 famílias e se dedica à produção de frango caipira, cuja qualidade diferenciada decorre do sistema produtivo extensivo. A criação dos frangos se dá nas unidades familiares, porém a gestão e a operação do abatedouro são efetuadas de forma cooperada19.
A utilização da MSS está mais concentrada nos municípios de Correia Pinto e Urubici, com respectivamente 16 e 11 agroindústrias familiares, não estando presente nos municípios de Urupema, Ponte Alta, Painel e Campo Belo do Sul. Segundo a médica veterinária responsável técnica pelo serviço de inspeção sanitária do CISAMA, a inexistência de agroindústrias usuárias da marca em cinco municípios se deve ao fato de alguns municípios da região ainda não terem aderido aos serviços de inspeção sanitária, mas também ao fato de algumas agroindústrias regulamentadas por esse serviço utilizarem marcas próprias. A Figura 3 apresenta as principais categorias de produtos processados pelas 70 agroindústrias familiares na Serra Catarinense.
Os produtos usuários da MSS foram classificados em quatro principais grupos: origem animal (leite, mel, embutidos), origem vegetal (frutas e hortaliças em geral), panificados (roscas e pães) e sorvetes. A categoria com maior expressividade de produção é a de panificados (46%), seguida por produtos de origem vegetal (28%), origem animal (24%) e sorvete (2%).
A adesão ao serviço de inspeção sanitária pelos municípios é voluntária, mas ele precisa possuir uma equipe de profissionais especializados, que atuem junto à secretaria municipal de agricultura e de forma compartilhada com a equipe do CISAMA.
4. Conclusões
A MSS exerce uma importante função no desenvolvimento territorial da Serra Catarinense, pois é fruto de uma organização de mais de uma década ligada à regulamentação e qualificação territorial das agroindústrias familiares de pequeno porte. Os principais critérios adotados pelo CISAMA para a concessão da MSS é a regulamentação sanitária das agroindústrias familiares. Essa regulamentação está associada a adequações na infraestrutura administrativa, preservação e combate à fraude, inocuidade e qualidade sanitária dos produtos e de controle ambiental.
As 70 agroindústrias registradas pelos serviços de inspeção e vigilância sanitária da MSS estão presentes em 14 dos 18 municípios da região, com uma maior concentração nos municípios Correia Pinto, Urubici e Lages. Entre os 702 produtos que utilizam a marca, muitos incorporam recursos específicos do território, a exemplo do queijo artesanal serrano, pinhão, mel de melato de bracatinga e diversos outros produtos artesanais, integrais e orgânicos. No entanto, as normas sanitárias ainda são aplicadas de forma setorizada e dissociadas de um processo mais amplo que busque a criação de uma reputação conjunta de produtos e serviços de qualidade territorial de base agroecológica.
Essa constatação revela a necessidade de novas ações coletivas que busquem viabilizar nesse processo o reconhecimento das práticas agroecológicas e artesanais empreendidas por essas agroindústrias, além de criar legislações adequadas a essas práticas, uma vez que a maior parte dessas agroindústrias reúne elementos que facilitam um processo de transição agroecológica. Ressalta-se, portanto, a importância da realização de futuros estudos que contemplem as seguintes questões: quais são as características socioeconômicas das agroindústrias que fazem uso da MSS e por que a utilizam? Quais as principais críticas e sugestões para a melhoria da gestão da marca? Por que certas agroindústrias optam por não utilizar a marca ou, depois de um tempo de utilização, criam suas próprias marcas e deixam de utilizar a marca coletiva? Quais os principais canais de comercialização dos produtos que utilizam a marca?
A experiência da MSS reúne várias características que convergem com a perspectiva da proposta do processo de transição agroecológica, como os inerentes à produção do queijo artesanal serrano, a extração de produtos da agrobiodiversidade, como o pinhão, a produção do mel de melato da bracatinga, entre outras. Embora a maioria das agroindústrias familiares que utiliza a MSS não processe produtos orgânicos, sua natureza e forma de organização social condizem com essa noção, reunindo condições para adotar um processo de transição agroecológica enquanto estratégia complementar de valorização dos seus produtos nos mercados.