1. Introdução
Além de denunciar os impactos sociais, econômicos e ecológicos produzidos pela expansão do regime alimentar corporativo e financeiro1)(2, nas duas últimas décadas, os movimentos sociais campesinos também têm mostrado uma crescente preocupação com a construção de novos mercados alimentares. Na América Latina, esse ativismo político incorpora às estratégias econômicas os valores da agroecologia, do buen vivir, e da soberania e segurança alimentar e nutricional3)(4)(5.
Incorporando este conjunto de valores, a ação política força esses mercados a operar sob preceitos diferentes daqueles que orientam o pensamento econômico dominante e, em função disso, chamam a atenção de vários estudiosos. Atualmente, embora várias pesquisas já tenham se debruçado sobre iniciativas específicas de comercialização, ainda faltam estudos que permitam compreender esse fenômeno desde uma perspectiva histórica e comparada, o que pode jogar luz para os fatores estruturais que viabilizam ou bloqueiam tais iniciativas.
Com vistas a contribuir com essa reflexão, este artigo propõe uma análise institucional comparada6 da construção dos mercados das agriculturas familiares e camponesas selecionados no Brasil e no Chile. Essa análise é construída de tal modo que, além de olhar para a configuração específica de cada circuito de comercialização, procura-se compreender como eles refletem trajetórias institucionais mais amplas.
2. Materiais e métodos
A pesquisa iniciou a partir da realidade brasileira, onde optou-se por focalizar as experiências econômicas desenvolvidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Essa escolha está associada tanto à relevância política e econômica desse movimento quanto ao fato dele ter incorporado de maneira mais evidente os valores da agroecologia e soberania alimentar nos seus discursos.
No Chile não foi possível identificar uma organização de movimento social cujas experiências de construção de mercado fossem equivalentes àquelas desenvolvidas pelo MST. Ao longo da pesquisa ficou evidente que, em função da trajetória institucional chilena7)(8, a criação de novos mercados para as agriculturas familiares e camponesas (AFC) contava com o forte protagonismo do Estado e, em particular, do Instituto Nacional de Desarrollo Agropecuario (INDAP).
Para caracterização dos mercados, a pesquisa seguiu a tipologia sugerida por Schneider9 para classificar e comparar os mercados da agricultura familiar a partir das seguintes variáveis: tipo de agricultor familiar; lócus e/ou alcance espacial; natureza das trocas/modelos de negócios; e formas de regulação. Foram identificadas experiências associadas a quatro tipos de mercados: i) de proximidade; ii) locais e territoriais; iii) convencionais; iv) públicos ou institucionais.
Os dados foram coletados entre março de 2016 e dezembro de 2018 por meio de observação direta e participante, de registros audiovisuais e em caderno de campo, pela participação em eventos técnicos, bem como pela aplicação de 55 entrevistas semiestruturadas e não estruturadas, distribuídas da seguinte forma: 14 com acadêmicos; 12 com agentes de mercado; 14 com técnicos de agências governamentais e organizações camponesas; e 15 com representantes das agriculturas familiares e camponesas. No total, foram realizadas 28 entrevistas no Brasil e 27 entrevistas no Chile.
3. Resultados
Os mercados alimentares selecionados no Brasil e no Chile estão listados na Tabela 1, os quais serão analisados a seguir, a partir dos atores-chaves, dispositivos institucionais e aspectos organizacionais.
3.1. Mercados de proximidade
Os mercados de proximidade são assentados em relações de trocas interpessoais, onde a confiança e a reciprocidade são dispositivos institucionais que se destacam mais que a busca pela maximização dos resultados econômicos privados9. No caso brasileiro, os mercados de proximidade são formados pelos circuitos representados pelas feiras e as organizações de consumidores. No caso chileno, estes mercados são representados apenas pelas feiras.
Enquanto a feira ecológica chilena ocorre em um centro de convivência cultural, ambiental e esportiva, a feira ecológica brasileira ocorre em um shopping center. Sobre os atores-chave, ambas as experiências contaram com a iniciativa privada para se constituírem e se amparam na participação ativa dos consumidores. A diferença é que, no caso brasileiro, os agricultores assentados já tinham um grau de organização interno mais avançado. O Estado participa de maneira indireta nessas experiências, na medida em que diversas políticas públicas possibilitam as condições de produção e comercialização. É importante destacar que, dentre os mercados alimentares analisados no caso chileno, a feira ecológica de La Reina foi a única que não foi uma decorrência de uma ação direta do INDAP.
Sobre os principais dispositivos institucionais, no caso chileno, a feira ecológica se constituiu em uma associação, que possui um regimento interno com os direitos e deveres dos associados, que devem estar enquadrados no Sistema Nacional de Certificação de Produtos Orgânicos Agrícolas. No caso brasileiro, por sua vez, a feira dos orgânicos e coloniais deve se submeter à política corporativa do Shopping Iguatemi, bem como às definições do Grupo Gestor de Hortas e Frutas da Região Metropolitana de Porto Alegre, que é um coletivo dos assentados da reforma agrária do Rio Grande do Sul. Vale destacar também o selo de alimentos limpos desenvolvidos pela Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos em áreas de Reforma Agrária (COPTEC) para evidenciar a não utilização de agrotóxicos.
Por fim, do ponto de vista organizacional, os mercados de proximidade exigem pouca infraestrutura física, os quais, grosso modo, são representados por kits de feiras, que, dentre outros equipamentos, incluem barracas desmontáveis, balanças, uniformes, caixas plásticas, além de veículo para o transporte dos alimentos e dos agricultores-feirantes. Em última instância, o capital mobilizado para a operacionalização das atividades é baixo. Basicamente, as duas se utilizam dos mesmos recursos estruturais para uma banca de feira ecológica, assim como almejam alcançar os mesmos resultados: a eliminação dos atravessadores na relação produtor-consumidor.
3.2. Mercados locais e territoriais
Os mercados locais e territoriais representam uma espécie de transição entre os mercados de proximidade e os convencionais, na medida em que mantêm dispositivos institucionais baseados na confiança e na reciprocidade, os quais coexistem com a dinâmica econômica regida pela lei da oferta e demanda que valoriza o sistema de preços e a concorrência9. No caso do MST, estes mercados referem-se aos pontos varejistas próprios (Armazéns do Campo), à participação em eventos e ao e-commerce desenvolvido pelos grupos de agricultores. No caso chileno, referem-se aos grandes eventos da Expo Mundo Rural, às Tiendas Mundo Rural e ao e-commerce (CampoClick).
A Loja da Reforma Agrária de Porto Alegre e a Tienda Mundo Rural nas estações de metrô de Santiago, por se localizarem em pontos comerciais com um fluxo significativo de pessoas, atraem perfis heterogêneos de consumidores. Alguns têm poder aquisitivo relativamente alto e seguem uma lógica individualista de consumo. Mas também há consumidores que se identificam com distintas bandeiras políticas, como a reforma agrária e agroecologia no caso brasileiro ou a valorização da AFC no caso chileno, e procuram o estabelecimento por questões ideológicas, representando práticas de consumo politizado.
Ambos os pontos varejistas mobilizam os discursos da alimentação saudável, a valorização da agricultura familiar e camponesa e as produções orgânicas e agroecológicas. No entanto, há diferenças importantes nos modelos de negócios desenvolvidos. No caso chileno, há uma preocupação central em se desenvolver uma marca da AFC chilena que favoreça os circuitos curtos de comercialização, aproximando os consumidores dos atributos de qualidade dos alimentos camponeses, representado pelo selo Manos Campesinas do INDAP. Por outro lado, no caso brasileiro, a principal motivação da loja da reforma agrária foi estabelecer um canal permanente de diálogo com a sociedade e escoar a produção dos assentamentos da região para o consumo de alimentos saudáveis pela população.
Do ponto de vista organizacional, os mercados locais e territoriais representam uma complexificação em relação aos mercados de proximidade. Diferentemente de uma banca semanal de feira, um ponto varejista implica um grau de complexidade significativamente maior. Desde os gastos com aluguel do ponto físico, manutenção mensal, alvarás e impostos, passando pela contratação e treinamento de funcionários, exigência de assessorias contábeis e gerenciais, relacionamento com fornecedores até o relacionamento externo com os clientes. Ou seja, um ponto varejista requer uma racionalidade gerencial - com valores baseados na eficiência e maximização de resultados econômicos - para garantir a viabilidade econômica que se tenciona permanentemente com a lógica das agriculturas familiares e camponesas1)(10.
Nos casos da Expo Mundo Rural (Chile) e da Feira da Reforma Agrária (Brasil), a natureza das trocas e modelos de negócios é um híbrido entre interpessoal e concorrencial. Por um lado, nota-se práticas de consumo politizado que valorizam uma lógica cívica de mercados enraizados, destacando valores como confiança, reciprocidade e cooperação. Por outro, simultaneamente, uma porcentagem significativa do consumo está atrelada a uma lógica estética, na qual os valores estão associados ao hedonismo e individualismo da tomada de decisão11. Em última instância, estes representam os segmentos mais exclusivos e elitizados do regime alimentar corporativo, os quais têm sido alvo dos conglomerados da agricultura orgânica.
3.3. Mercados convencionais
A terceira tipologia de mercados da agricultura familiar refere-se aos mercados convencionais, os quais se amparam nos pressupostos do mainstream da teoria econômica, onde o móvel do sistema é o lucro por meio da produção e comercialização de mercadorias pela livre iniciativa dos agentes econômicos9. Nestes mercados, os dispositivos institucionais são os preços e a concorrência, regulados por complexos contratos de representação e direitos de propriedade. Os agricultores familiares e camponeses que se inserem nesta modalidade de mercado convencional, via de regra, estão sob alto grau de vulnerabilidade em face das assimetrias de poder entre os agentes econômicos.
Tanto no caso brasileiro do MST quanto no caso chileno do INDAP, este grupo é formado pelas vendas nos supermercados, minimercados, pontos varejistas, agroindústrias e exportação. As cooperativas que abastecem os mercados convencionais são a COOPAN no caso brasileiro e a COOPEUMO no caso chileno. Há uma diferença significativa do tempo de existência entre as cooperativas. A experiência chilena possui 50 anos, por conta de ser oriunda das estratégias da reforma agrária do governo de Eduardo Frei Montalva8. Isso implicou um importante processo de resistência às perseguições do regime militar, que não aceitava as organizações coletivas no campo com receio da possibilidade de organização dos camponeses e por serem contrárias aos valores neoliberais impostos. Por outro lado, a COOPAN é uma experiência que data do período democrático brasileiro, com aproximadamente 25 anos de existência, e é fruto da luta do MST pela conquista da terra e organização cooperada da produção.
Apesar de ambas as cooperativas atuarem com beneficiários da reforma agrária, há uma diferença importante na sua forma de atuação. A COOPAN é uma cooperativa de produção, agroindustrialização e comercialização da produção de um assentamento de reforma agrária. Por sua vez, a COOPEUMO é uma cooperativa de prestação de serviços aos agricultores familiares campesinos da região de Peumo, centro-sul do Chile. Os atores-chaves de ambas as experiências são o Estado e os beneficiários da reforma agrária. Ou seja, o Estado possui um papel central de apoio no processo de construção e manutenção das cooperativas.
Sobre os dispositivos institucionais, a experiência da COOPEUMO das ameixas para exportação aponta que a cooperativa desenvolve os padrões de qualidade para a ameixa natural e desidratada, os formatos de transporte e armazenagem, os critérios de rastreabilidade e estabelece sua marca. Já na experiência brasileira do arroz orgânico, um dos dispositivos institucionais ocorre pela certificação que se dá de duas formas: i) via uma entidade de inspetoria externa, garantindo a certificação por auditoria; ii) via um Organismo Participativo de Avaliação de Conformidade (OPAC) vinculado à COCEARGS (Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul), garantindo a certificação participativa. Ainda assim, vale ressaltar que as estratégias de produção dos assentamentos da reforma agrária do Rio Grande do Sul se inserem no complexo modelo de organização do MST, o qual possui suas diretrizes determinadas pelo Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente.
Os aspectos organizacionais de agroindústrias de médio e grande porte exigem uma outra maneira dos agricultores se organizarem. Além da gestão das unidades agropecuárias, é necessário a gestão dos negócios agroindustriais. Isso significa uma estruturação interna dos principais setores empresariais - operacional, pessoas, finanças, marketing, estratégia empresarial - e uma interface crescente com diferentes partes interessadas, como fornecedores, clientes, bancos etc.12.
3.4. Mercados institucionais
A última modalidade de mercados da agricultura familiar são os mercados públicos e institucionais que abastecem os equipamentos públicos de saúde, educação e segurança. Tais mercados são espaços de trocas mediados por uma instituição com interesse público, podendo ser o Estado, alguma organização internacional e/ou organização pública não governamental9. São mercados com alto grau de regulamentação e controle formal, que atuam nas dimensões da redistribuição e centralidade propostas por Polanyi13. Seus dispositivos institucionais requerem mecanismos de governança abertos e democráticos, pois são o resultado de efetivas construções sociais e políticas. Via de regra, expressam-se pelas políticas públicas criadas e/ou adaptadas para atender demandas societárias ou como uma modalidade de comércio justo.
No caso brasileiro do MST, os mercados institucionais expressam o principal objetivo conforme os discursos de suas lideranças, especialmente pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), os quais tiveram uma queda abrupta após a consumação do processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016. Juntamente aos mercados públicos, o MST exerce uma modalidade de exportação “política” mediada pela Via Campesina e FAO, por exemplo. Ou seja, são vendas em função de relações solidárias e ideológicas e, portanto, não se caracterizam como um mercado convencional.
No caso chileno sobre mercados públicos e institucionais, estão desenvolvendo um Programa de Alimentação Escolar (PAE), em que agricultores beneficiários do INDAP possam abastecer a Junta Nacional de Auxilio Escolar y Becas (JUNAEB) com pelo menos 15% da produção. Vale destacar que a temática das compras públicas ainda é muito recente no país, data de 2017. Além das compras públicas, o INDAP também dá suporte a experiências de fair trade, conforme apresentado na experiência da Vinícola Lautaro. Nesta tipologia de mercado, os modelos de negócios são intermediados por processos licitatórios e as formas de regulação se dão mediante leis e regras que visam corrigir as imperfeições dos mercados, especialmente pela busca de uma remuneração mais justa aos pequenos agricultores, como no caso do fair trade.
As duas cooperativas têm início muito próximo, ocorrido no final dos anos 1990, sendo a experiência chilena com a produção de uvas e posterior transformação em vinhos e a experiência brasileira com a produção de arroz orgânico e posterior beneficiamento. Por se tratar de cooperativas de médio e grande porte, assim como nos mercados convencionais, os aspectos organizacionais são semelhantes12.
Outra semelhança importante é que ambas as experiências são oriundas de assentados da reforma agrária, que receberam apoio estatal significativo para estruturar-se organizacionalmente para fomentar a produção agropecuária e buscar a agregação de valor. A diferença central nessa experiência está na presença de um terceiro ator-chave no caso chileno, representado pela OXFAM, a qual vai inserir a Sociedade Vinícola Sagrada Família no movimento do Fair Trade. A partir disso, o caso chileno vai se envolver em um mercado de qualidades específicas e com um grupo exclusivo de consumidores europeus, centralmente localizados na Bélgica. Neste caso, a organização de movimento social que irá fazer a mediação com a sociedade vinícola será a Coordinadora Latinoamericana y del Caribe de Pequeños Productores y Trabajadores de Comercio Justo (CLAC), que é uma rede latino-americana e caribenha que aglutina e representa as organizações de pequenos agricultores e associações de produtores e trabalhadores sob o sistema Fair Trade International.
4. Discussão
A interpretação institucionalista compreende os mercados como campos de disputas nos quais os movimentos sociais podem assumir papel protagonista14)(15. Foi isso que identificamos no caso brasileiro. Com a experiência adquirida ao longo de seus 35 anos de existência, conseguiu organizar suas produções agropecuárias e agroindustriais nos assentamentos de reforma agrária por meio da constituição de associações e cooperativas, o que gerou uma demanda concreta de organização mais qualificada de seus processos comerciais.
De outro modo, no caso chileno, o protagonismo na construção de mercados alimentares é desempenhado pelo próprio Estado, via INDAP, e não pelas organizações das agriculturas familiares e camponesas. O paradoxo do protagonismo estatal em um país marcadamente neoliberal se dá em função da trajetória institucional chilena após a ditadura militar. Vale relembrar que a implantação de um estado terrorista acarretou a destruição do tecido social chileno e, portanto, na capacidade de ação dos movimentos sociais, dentre os quais aqueles que reúnem os camponeses8. Além disso, o regime militar foi substituído por um modelo ultraliberal que consolidou valores liberais individualistas na sociedade chilena7)(8. Desse modo, diferentemente da realidade brasileira em que o MST assumiu o protagonismo dos seus mercados alimentares com uma interação próxima ao Estado, no caso chileno, as organizações das agriculturas familiares e camponesas vieram a reboque do INDAP, apesar de possuírem experiências pontuais, especialmente relacionadas aos mercados de proximidade.
Quando se comparam os mercados alimentares selecionados no Brasil e no Chile, observa-se uma maior similaridade entre as feiras ecológicas, dado que os alimentos in natura e/ou minimamente processados são os primeiros produtos de qualquer agricultor. Ainda assim, denota-se a menor presença de produtos agroindustrializados no Chile. Já no ponto varejista, o caso chileno apresenta uma significativa dependência da agência governamental INDAP para o funcionamento das Tiendas Mundo Rural. Em relação à agroindústria, novamente se observa a dependência de um agente externo (OXFAM-Bélgica) que conseguiu fazer da vinícola uma das principais experiências de sucesso da AFC chilena em parceria com o INDAP.
Por sua vez, os casos brasileiros de feira, ponto varejista e agroindústria, apesar de possuírem importantes aportes estatais para a constituição dos empreendimentos, apresentam um maior protagonismo das organizações dos assentados da reforma agrária ligadas ao MST e que coordenam a criação e o funcionamento dessas experiências econômicas. Nesse sentido, vale destacar a postura ambígua do MST em face dos mercados. São notórios os discursos de suas principais lideranças contra o capitalismo e a relação, direta ou indireta, ao mercado como a fonte de todos os males da atual sociedade. De outro modo, pela necessidade de escoar as produções agropecuárias dos assentamentos, como no caso relatado do arroz Terra Livre, uma parcela dos dirigentes do movimento - a maioria inseridos no Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente - vislumbram os mercados como um mecanismo de distribuição que abastece a classe trabalhadora com alimentos saudáveis, produzidos agroecologicamente, de forma cooperativa e com lastro social da reforma agrária3. Em outras palavras, apesar do discurso antimercado, o MST realiza todas as modalidades de mercados sugeridas por Schneider9 para a agricultura familiar. Ainda assim, suas lideranças são enfáticas em afirmarem a centralidade do mercado institucional originado pelas políticas estatais em garantir o escoamento da produção, tendo em vista o abastecimento de equipamentos públicos de saúde, educação, segurança etc. Entretanto, diante da trajetória recente de ruptura institucional do Brasil e a drástica diminuição de políticas públicas para a agricultura familiar camponesa16, a necessidade de se diversificar os canais de comercialização dos produtos da reforma agrária para além dos mercados institucionais tornou-se uma estratégia de sobrevivência.
5. Conclusões
A pesquisa constatou coexistência de experiências econômicas inseridas em diferentes tipos de mercados das agriculturas familiares e camponesas no Brasil e no Chile: mercados de proximidade; mercados locais e territoriais; mercados convencionais; e mercados públicos e institucionais. Isso implica um conflito permanente entre diferentes lógicas sociais e econômicas. O desafio que tem se apresentado de maneira cada vez mais relevante está em articular as estratégias político-econômicas das organizações camponesas, de modo que coexistam e se complementem, tendo em vista a contraposição ao crescente controle exercido pelas grandes corporações, possibilitando a expansão de um contramovimento aos processos de desenraizamento dos mercados.
Os principais resultados deste estudo apontam para o papel-chave das organizações camponesas como empreendedores institucionais. Esses atores têm demonstrado uma preocupação com a interdependência entre a economia e as outras dimensões da vida que fortalecem a transição para sistemas alimentares sustentáveis. Tal evidência caminha ao encontro das perspectivas do movimento agroecológico. Assim, para estes novos agentes econômicos coletivos, o eixo da competitividade empresarial e da maximização dos resultados individuais dão lugar à busca da viabilidade multidimensional (social, econômica, ambiental, tecnológica e cultural), a qual também se articula com os princípios políticos dos movimentos sociais que organizam os atores desafiantes ao regime alimentar corporativo.
Novos e melhores mercados podem nascer desse novo tipo de ativismo político. Há uma agenda de pesquisa a ser explorada nesse campo, sobretudo tendo em vista as transformações recentes que não foram incorporadas nesse estudo. No Brasil, o desmonte das políticas públicas tem forçado os movimentos agrários a construir estratégias mais autônomas de mercado. No Chile, a vitória eleitoral de Gabriel Boric gerou a expectativa de um diálogo mais efetivo do Estado com os movimentos sociais. Futuros estudos poderão abordar o efeito dessas mudanças institucionais.