Introdução
Neste artigo procuro apresentar o estado da arte acerca do debate teórico, antropológico e sociológico, sobre as relações entre esporte, mais especificamente o futebol, e religião1.
Primeiramente, procuro demonstrar que as diferentes modalidades em que foi explorada esta relação podem se resumir dentro de duas grandes perspectivas teóricas: as que sugerem uma cisão radical entre esporte e religião (Guttmann, 1978) e teses que, pelo contrário, analisam as interações entre esporte e religião (Barba, 2007; Brohm, 1976, Bromberger, 1999; DaMatta, 2014; Jungblut, 1994; Rial, 2013; Sterchele & Molle, 2011; Toledo, 2001; Petrognani, 2016, 2019, 2025), em particular dentro de diferentes perspectivas teórica mais específicas: o esporte (futebol) como “novo ópio do povo” (Brohm, 1976), isto é, a aproximação marxista (1848); o futebol como instrumento produtor de sacralidade (Coles, 1975; Ionescu & Labridy, 2008; Turpin, 1999), isto é, uma perspectiva de cunho durkheimiana (1912); e modalidades de observação do fenômeno esportivo (futebolístico) chamado de “panritualismo religioso” (Bromberger, 1999), preponderante na década de 1990/2000, sobretudo no âmbito antropológico, procurando estabelecer relações e analogias simbólicas entre futebol e religiões (Barba, 2007). O objetivo deste artigo, além de mapear o estado da arte, é avançar, de forma crítica, neste debate, propondo, mais especificamente, um olhar sobre o caso do futebol brasileiro. Neste sentido há uma bibliografia que tratou, especificamente, das relações entre futebol brasileiro e o campo evangélico (Jungblut, 1994; Petrognani, 2016, 2019, 2025; Rial, 2013), sendo esta vertente religiosa a mais visível e, portanto, etnograficamente alcançável, dentro do universo futebolístico2.
A “religião invisível”: a aproximação sociológica weberiana
Nas sociedades pretéritas as competições esportivas tinham uma finalidade religiosa. Faziam parte de grandes cerimônias para agradecer e celebrar os deuses. De acordo com Guttmann (1978): “se corria para que chovesse, por apaziguar os deuses ou para salvar nossas almas3” (p. 70) e o vencedor, o eleito pelos deuses, tornava-se um herói, por sua vez honrado como uma divindade.
Segundo o historiador francês da antiguidade Thuillier4 (2012) é preciso relativizar a afirmação segundo a qual as competições esportivas na antiguidade tinham um sentido estritamente transcendental, sobretudo no que diz respeito à antiguidade grega e romana. Thuillier, pelo contrário, sustenta que as finalidades profanas como as apostas, o business, ou simplesmente o lazer e, para quem participava, o gosto pela competição e vitória, eram as motivações principais das competições esportivas.
Resumindo, segundo o historiador francês não haveria uma ruptura radical entre práticas esportivas na antiguidade, permeadas de religiosidade, e competições esportivas modernas, caracterizadas pela ausência de religião. Nada teria mudado: os jogos de futebol de hoje corresponderiam às corridas de carros dos antigos romanos:
O esporte na antiga Roma tinha todas as caraterísticas do esporte espetáculo contemporâneo. Podemos comparar as corridas de carros ao futebol de hoje pois elas despertavam um entusiasmo planetário. O império Romano estendia-se da Lusitânia (atual Portugal) à Ásia Menor (atual Turquia), e da Inglaterra ao Norte da África, ou seja, por grande parte do mundo habitado. Este esporte certamente contribuiu para difundir a civilização de Roma na maioria das províncias. (…) Estávamos já na época do esporte de massa (Thuillier, 2012)
Porém, seria a ausência da finalidade religiosa, entre outras5, a marca do nascimento do esporte moderno, apontando uma cisão radical com as práticas esportiva da antiguidade e das sociedades tradicionais.
Segundo Guttmann (1978), o esporte moderno6, nasce no momento em que se desengancha da instituição religiosa: trata-se da secularização, definida por Berger (1971) como “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são libertados da dominação de instituições e símbolos religiosos” (p. 107).
O processo de secularização das sociedades ocidentais, de um ponto de vista histórico, nasce entorno do XVI e XVII século, quando filósofos, como F. Bacon (1561-1626) (“Religio praecipuum humanae societatis vinculum”), percebem que a época moderna precisava se desvincular dos pressupostos confessionais para se desenvolver de um ponto de vista cientifico e socioeconômico.
Max Weber (2008) demonstrou, porém, o laço estreito entre o protestantismo e o nascimento do capitalismo na Inglaterra do século XVIII. De fato, a ética protestante estava intimamente relacionada com o “espírito de racionalização” imprescindível pelo desenvolvimento da sociedade:
Como se sabe, segundo esse paradigma interpretativo a objetivação da religião como uma esfera diferenciada da vida social é fruto de um movimento histórico inaugurado pela modernidade e exponencialmente estimulado pelo ascetismo protestante. Para Weber, as religiões éticas, caracterizadas pela sua concepção abstrata da salvação, teriam sido responsáveis pela racionalização da imagem de um mundo sem Deus e pela projeção da experiência mística para o além (Montero, 2006, p. 47).
Alinhado com a tese de Weber, num texto clássico da sociologia do esporte, From ritual to record, Allen Guttmann (1978) traça um paralelo entre os processos de secularização e racionalização e o desenvolvimento dos esportes competitivos modernos, nos quais o agon teria se separado dos objetivos e referências transcendentais para se tornar um fim em si.
Depois que os deuses desapareceram do Monte Olimpo ou do Paraíso de Dante, não podemos mais correr para apaziguá-los ou salvar as nossas almas, mas podemos estabelecer um novo recorde. É uma forma exclusivamente moderna de imortalidade (Sterchele & Molle, 2011, p. 11).
Um dos traços distintivos no nascimento do esporte moderno seria, portanto, a progressiva emancipação das práticas esportivas dos contextos próprios da religiosidade devocional e a sua sucessiva tendência à racionalização. Dito de outro modo, na sociedade, assim como no esporte, a religião tornava-se “invisível”.
A “religião esportiva”: a aproximação marxista
A religião, dizia Marx, é o “ópio do povo”, a “felicidade ilusória do povo” ou, ainda, o “suspiro da criatura oprimida” (Marx & Engels, 1999). No manifesto do Partido Comunista, Marx repetirá que “as leis, a moral, a religião, são prejuízos burgueses atrás dos quais se escondem igualmente interesses burgueses” (Marx & Engels, 1999, p. 101). A religião, portanto, era vista numa lógica de dominação.
O sociólogo francês Jean-Marie Brohm, fundador e diretor da revista Quel corps? (1976), elaborou, com os seus colaboradores, uma teoria radical do esporte competitivo definido como “nova religião”, “novo ópio do povo”, dentro do modelo marxista da lógica da dominação: o esporte seria o panem et circenses das classes subalternas, o instrumento que permitiria às classes dominantes de instaurar e manter a ordem (Brohm, 1976).
A “religião esportiva”, sempre segundo Brohm, levaria os homens a perder a própria humanidade, forçando-os, na busca da performance, a se sujeitar a práticas destrutivas e alienantes para a própria saúde mental (Brohm, 1976).
Neste sentido, a propósito de seu trabalho fundador Sociologie politique du sport (1976), numa linguagem intencionalmente apocalíptica, escreveu:
O princípio da performance física, a corrida para ultrapassar os recordes, a procura da perfeição, da competitividade e da eficiência levaram a prática esportiva a extremos preocupantes. A medicalização excessiva, a preparação biológica sofisticada, a dopagem cientificamente assistida, o treino intensivo, a tecnologia das capacidades físicas (…) transformaram o esporte de alto nível numa fábrica de monstros e robôs (…) (Brohm, 1976, p. 243).
Portanto, na perspectiva de uma sociologia crítica do esporte, o sociólogo e filosofo francês Jean-Marie Brohm, de formação marxista, queria demonstrar que o esporte é uma forma de religião, (“o esporte é a única e verdadeira religião universal laica de massa” (Brohm, 1976, p. 243)), um novo “ópio do povo”, capaz de manipular as consciências populares e de afastar da luta de classe.
O “panritualismo religioso” e as analogias simbólicas: a aproximação antropológica
A orientação antropológica, a partir da década de 1980, concentrou-se nas analogias entre esporte e religião, procurando esclarecer se e como o esporte pode ser considerado, ou não, um tipo de religião ou uma quase religião (Coles, 1975).
Muitos autores (Barba, 2007; Bromberger, 1999; DaMatta, 2014) sublinham as numerosas afinidades fenomenológicas que reúnem os dois âmbitos, até mesmo a sua quase total analogia. Tais afinidades compreendem, por exemplo, a existência de espaços e lugares dedicados a reuniões coletivas (Barba, 2007; DaMatta, 2014), os calendários que separam os eventos do tempo sagrado daquele do tempo ordinário, os rituais pré-liminares, liminares e pós-liminares, os heróis e os santos, a capacidade de mobilizar fortes emoções coletivas permitindo a experimentação de momentos extraordinários, transcendendo, temporariamente, os confins entre o “eu” e o “mundo” (Ionescu & Labridy, 2008).
Apesar das evidentes afinidades, outros estudiosos afirmam que os dois âmbitos possuem também diferenças fundamentais. Por exemplo, a orientação da religião ao sobrenatural e ao transcendental, duas categorias ausentes no esporte (Bromberger, 1999; Turpin, 1999).
Focando a atenção no debate sobre as analogias e diferenças existentes entre o futebol e a religião, o antropólogo francês C. Bromberger, que estudou o “fenômeno” futebolístico nos anos de 1990, tornando-se uma referência incontornável para quem quisesse explorar este tema na perspectiva antropológica, põe em duvida a “ênfase” de tomar o jogo de futebol como um ritual “religioso”:
Devemos confessar que hesitamos e relutamos em percorrer este caminho que representa a última brecha para examinar os acontecimentos sociais os mais diferentes: reuniões de indivíduos (encontros esportivos, show de música rock, manifestações políticas) práticas da vida cotidiana pouco codificadas ou programadas (gestos de trabalho, recepções, conferências), ou comportamentos transgressivos nos quais se manifesta o “sagrado” em seu estado “puro” (Bromberger, 1999, p. 230).
E se faz uma pergunta:
Pode haver a tentação de comparar a partida de futebol a um ritual. Mas é uma abordagem útil, que permite de isolar as caraterísticas essenciais do espetáculo esportivo, ou de um simples jogo metafórico que atrapalha, em vez de esclarecer, a análise do fenômeno? (p. 229).
De fato, no capítulo 18 - “As dimensões rituais da partida de futebol” (Bromberger, 1999, p. 227), encontramos várias analogias entre “jogo de futebol” e “ritual religioso”. Alguns exemplos:
“Para os torcedores mais fervorosos o gramado de um estádio de futebol possui todas as caraterísticas de uma terra santa” (p. 236); “a divisão do público dentro do estádio recorda a distribuição dos grupos sociais em ocasião das grandes cerimônias religiosas (…) as competições seguem um calendário regular e cíclico” (p. 237).
Mais especificamente, os jogadores de futebol, antes de uma partida, operam um conjunto de práticas e crenças propiciatórias: “colocar uma camisa que dê sorte, escolher uma chuteira com o máximo cuidado, não se barbear para conservar a energia viril (…)” (pp. 245-257).
Frequentes, também, são comportamentos tomados da religião católica oficial ou popular:
Em Marselha, por exemplo, antes de uma partida importante, o time local realiza regularmente seu rito propiciatório indo em peregrinação a Notre-Dame de la Garde (…) Em contextos sul-americanos e sobretudo africanos, também os mágicos participam da empreitada para a captação mágica do destino (Bromberger, 1999, pp. 248-249).
Existem, portanto, uma série de aspectos e de fatos convergentes que “parecem dissipar quaisquer dúvidas sobre a natureza ritual da partida de futebol” (Bromberger, 1999, p. 257).
Encontramos analogias de forma (“uma estrutura espacial, ritmos temporais, formas específicas de agrupamento”p. 257); de funcionamento (“um cenário programado, a instauração de uma anti-estrutura que atenua as hierarquias ordinárias” p. 257); de comportamento (“um fervor emocional que se expressa através de atitudes estereotipadas, a paixão, as crenças” p. 257); e de afinidades simbólicas (“nós” e “os outros”, a vida e a morte, o bem e o mal, a justiça e a injustiça”) (Bromberger, 1999, p. 257).
Podemos, igualmente, perceber como o futebol lida bem com outra característica dominante do rito, ou seja, a sua plasticidade, a capacidade de ser polissêmico, de se adaptar às mudanças sociais.
Mais detalhadamente, uma análise interessante de aproximar “futebol” e “religião” foi desenvolvida pelo antropólogo italiano Bruno Barba. Em “Un antropologo nel pallone” (2007), tentou comparar um grupo de candomblé - “religião afro-brasileira nascida da união entre o catolicismo e os cultos africanos dos escravos” (Barba, 2007, p. 62) - e um time de futebol7.
Segundo o antropólogo italiano, as principais analogias encontradas seriam:
O “terreno”: seria o lugar físico onde os jogadores se preparam e, também, o “terreiro”, o espaço onde o grupo de candomblé desenvolve os próprios rituais (Barba, 2007)
A importância das imagens: podemos observar, diz Barba (2007), a importância, nos centros de formação dos times profissionais, das imagens de vitórias ou dos principais jogadores que fizeram a “história” do clube, assim como os terreiros de candomblé são sempre decorados com as imagens dos orixás e dos fundadores da casa do culto. Segundo Barba (2007), haveria, tanto no time quanto no grupo de candomblé, um forte sentido de “família”: “celebram-se os ancestrais assim como veneram-se as antigas glórias do futebol” (p. 62).
Um lugar “secreto”: um time de futebol e o terreiro de candomblé possuem espaços que os “estranhos” não podem “visitar”: “a sala dos troféus de um time de futebol corresponde à sala dos orixás do terreiro, aonde são conservados os altares exclusivos das divindades” (p. 62).
Sempre no jogo das analogias, o presidente de um time de futebol é comparável à figura do pai ou mãe de santo. De fato, para o antropólogo italiano, eles parecem ter as mesmas características: “carisma, experiência, capacidade de introspecção psicológica, decisão e coragem perante as dificuldades e disponibilidade financeira” (p. 64).
Por fim, no jogo das analogias, encontramos a “hierarquia”: “cada grupo religioso, como cada time de futebol, é constituído em maneira piramidal” (Barba, 2007, p. 66), a noção de “tempo” (“no candomblé o tempo é marcado por um calendário de festas que celebram os orixás (…) assim como o jogo de futebol é o ritual semanal” p. 68) e a noção de “sacrifício” (“o sacrifício permite a vida no candomblé (…) também os técnicos de futebol pedem para “doar o sangue” p. 68).
Seja como for, o que precede permite a indagação se a aproximação e as analogias simbólicas entre “rito”, “futebol”, “religião” seriam, como coloca Bromberger (1999) o reflexo de um “panritualismo enlouquecido que enxerga o sagrado em cada situação aonde não governe uma rigorosa lógica prática ou racional” (p. 230), ou se, pelo contrário, como sugere, ironicamente, Augé (1982) “talvez o Ocidente esteja à frente de uma religião e não perceba isso” (p. 8).
O futebol “é sagrado”: a escola durkhiamana
Segundo Olivier Bobineau (2011), a partir da década de 1980, “uma revolução antropológica afeta o individuo” (p. 1). A conjunção, naquela década, de três crises inéditas - econômicas, político-ideológica e religiosa, “formará novas gerações de indivíduos muito diferentes das anteriores (…). Nesse período o indivíduo torna-se hipermoderno” (p.1).
A socióloga Aubert (2004) propõe quatro características/mutações antropológicas próprias do individu hypermoderne:
Para entender o que seriam e como funcionam os indivíduos hipermodernos, precisamos partir de um certo número de elementos (…). Primeiro elemento: o advento de uma nova relação com o tempo marcada por uma aceleração contínua. Segundo elemento: o advento de uma nova relação com os outros marcada pelo efêmero. Terceiro elemento: o advento de uma nova relação consigo mesmo marcada pela superação de si, pela intensidade, pelo excesso de si. Quarto elemento: a visibilidade: como a preocupação com a visibilidade de si prevalece sobre a noção de interioridade (…) (Aubert, 2004, p. 18).
É a “visibilidade de si”, segundo Aubert (2004), a grande característica do indivíduo hipermoderno, tanto no esporte (na busca e no culto da performance, na superação dos próprios limites) como na religião (o “pentecostalismo emocional”).
Esta característica da visibilité de soi está relacionada com a mutação da relação que o homem estabelece com os próprios limites (Queval, 2014). Uma mutação que começou a se realizar com o desenvolvimento da ciência (século XVII) que levou o homem ocidental a pensar que qualquer coisa é perfectível, até mesmo o próprio corpo:
Assim como no domínio filosófico afirma-se o sujeito cartesiano (…) conquistador de um mundo infinito, na consideração do corpo afirma-se uma espécie de auto-invenção de si, de apropriação da perfectibilidade corporal, entrando logo em ressonância com a ideia de progresso” (Queval, 2004, p. 278).
Ao superar um recorde, o esportista não busca só a visibilidade pessoal, mas também quer confirmar a sua grandiosidade. Na superação de seus limites, o homem alcança o absoluto, como escreve Michel Bouet (1968), em “Signification du sport”:
A procura da melhoria perpétua e a vontade de rejeitar sempre os limites alcançados, o significado do desempenho não se esgota, não entanto, numa vã aspiração (…) porque a ação que a produz é uma ação plenamente realizada (…) pois o sujeito expressa toda a sua força. A procura da performance desenrola-se como uma manifestação intensa da vida (…) leva ao absoluto no ato na qual ela se exprime (Bouet, 1968, p. 40).
D. Bodin e S. Héas comentam sobre a busca da performance como “a procura da vertigem, da superação dos limites de si, dos limites dos outros, para alcançar uma espécie de eternidade” (Bodin & Héas, 2002). Na realização da performance, o esportista experimenta uma emoção intensa semelhante a uma emoção religiosa: “estou além de mim, além da realidade, estou no futuro. Eu tenho um tipo de força que me aproxima de Deus” (A. Senna, 1994).
É nesta linha de pesquisa que se inserem trabalhos da escola durkheimiana (1912), que veem no esporte o meio de realização de uma “nova” experiência religiosa e sagrada (Coles, 1975; Ionescu & Labridy, 2008).
Coles (1975) tentou mostrar como a análise durkheimiana das atitudes e das práticas religiosas poderia se aplicar à realidade social do futebol. A reunião de milhares de indivíduos experimentando os mesmos sentimentos e expressando-os através do ritmo e do canto “parecia-lhe criar as condições para uma transformação da psique individual, para uma percepção sensível do sagrado análoga daquela que Durkheim evoca em relação aos ritos expiatórios australianos” (p. 7).
No artigo de Ionescu e Labridy (2008), a busca obsessiva pela performance esportiva é lida como a máxima expressão de um “novo” sagrado. Contrariamente ao que se poderia pensar, a modernidade não teria cancelado o sagrado, mas o teria aproximado do homem (Ionescu & Labridy, 2008).
Segundo Turpin (1999), a ambivalência de rejeição e integração do sagrado é o indicador de que a sociedade moderna, fundada na racionalidade, não conseguiu eliminar a sua dimensão religiosa.
Para este sociólogo francês, o homem era, é, e permanece, um “animal religieux”.
A “religião visível”: o futebol evangélico no Brasil
O futebol brasileiro8 sintetiza bem a análise desenvolvida sobre as relações e imbricações entre futebol e religião.
Com efeito, diversos estudos demostraram que a visibilidade religiosa no âmbito futebolístico está relacionada, empiricamente, ao campo evangélico pentecostal e neopentecostal9.
Este fenômeno “futebolístico-evangélico” é a consequência lógica do avanço evangélico, mais especificamente pentecostal e neopentecostal, nos espaços públicos brasileiro (Montero, 2006; Pierucci, 2012; Sanchis, 1997).
De fato, a mais “hegemônica” das “religiões periféricas ou marginais” bem se aproveitou do processo de diferenciação entre as esferas do político e do religioso. Laicizando-se, o Brasil, de um ponto de vista religioso, se pluralizava (Pierucci, 2012).
Resumindo, enquanto o Catolicismo perdia a sua hegemonia (jurídica) retraindo-se do espaço social, outras denominações religiosas entravam na disputa para ampliar a dimensão religiosa do espaço público (Montero, 2006; Pierucci, 2012).
Sem entrar em detalhes, não custa lembrar que no Brasil o processo de modernização, ou seja de diferenciação e emancipação das esferas políticas, econômicas e científica em relação à religiosa, não produziu, como irreversível consequência, um enfraquecimento da religião como força social e sua “invisibilização” na esfera pública.
Nesta perspectiva, Sanchis (1997) pontuou que as religiões dos brasileiros estão cada vez mais visíveis, e, longe de se tornar questões (exclusivamente) ligadas aos “afetos dos corações”, partilham, competindo, um espaço público heterogêneo e efervescente.
Em outras palavras, o espaço público se configura como um território atento às liberdades religiosas, corroborando a tese de que o fundamento da separação Igreja/Estado (o Estado brasileiro é laico desde a Constituição de 1891) repousa na construção de uma sociedade civil na qual as pessoas de diferentes religiões e crenças podem conviver (idealmente10) pacificamente.
Neste cenário religioso, destacou-se, pela sua visibilidade, crescimento numérico, simbólico, político e econômico, o segmento evangélico pentecostal e neopentecostal.
Mais especificamente, no que diz respeito ao âmbito futebolístico, os trabalhos de Jungblut (1994) e Rial (2013) analisam o nexo entre religião e futebol a partir da visibilidade que os atletas evangélicos (Atletas de Cristo11) adquiriram a partir da década de 1980 e que coincide com o “aumento meteórico das igrejas evangélicas no Brasil” (Rial, 2013).
A visibilidade evangélica, mas não exclusivamente, no futebol é expressa através dos gestos em campo de agradecimento a Deus, de inscrições de palavras sagradas nas camisetas (Deus é minha força, Deus é fiel, Obrigado a Jesus, Eu pertenço a Jesus), referências a Deus e a Jesus Cristo em entrevistas, depoimentos e testemunhos. Segundo a antropóloga Rial (2013), esses gestos simbólicos “promovem crenças religiosas em escala global”, permitindo visibilidade da fé evangélica.
Em minha tese de doutorado (Petrognani, 2016), tenho mostrado etnograficamente a visibilidade, em termos numéricos, dos jogadores evangélicos nas categorias de base do Sport Club Internacional, de Porto Alegre. Os dados a esse respeito são irrefutáveis: dos 100 atletas que responderam à questão “religião”: 56 declararam-se católicos, 34 evangélicos, 8 declararam não ter uma religião, 1 declarou ser seguidor da Umbanda, 1 declarou pertencer ao espiritismo.
Os dados futebolísticos refletem, também, o andamento estatístico nacional: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2012 12), 60% dos brasileiros se declararam católicos, 22% evangélicos, 8% sem religião, 5% de outras religiões, 0,31% declararam serem adeptos das religiões de matriz afro-brasileiras13.
É possível afirmar, portanto, tendo em consideração o fenômeno sociológico evangélico na sua complexidade, que também no âmbito futebolístico, a “religião visível14”, organizada e estruturada15, é a evangélica.
Considerações finais
Procurei neste texto avançar e abrir um espaço para o debate e a reflexão sobre um tema ainda pouco pesquisado nas ciências sociais: as relações entre futebol e religião. Ou seja, tal como afirmam Sterchele & Molle (2011), as ciências sociais têm avançado pouco no debate e nas pesquisas sobre as relações entre religião e esporte e vice-versa. Como vimos, podemos resumir que a maioria dos estudos consistiu na interrogação se o esporte poderia ser considerado ou não uma religião ou um “surrogate religion”, recuperando o título do ensaio de Coles (1975).
Sintetizando, podemos afirmar que ao longo do debate, do qual participaram renomados antropólogos como Barba (2007), Bromberger (1999), DaMatta (2014), concorda-se de que as analogias, embora presentes, não fariam de um esporte uma “religião”.
De fato, os anos 1980, se assim podemos dizer, retomando Bromberger (1999), é a década do “retorno do rito” e do “panritualismo”, que fez com que qualquer objeto social, inclusive o esportivo, fosse analisado nessa linha de pesquisa.
Não se trata de negar o caráter ritualístico de um jogo de futebol, assim como são evidentes as analogias entre esporte e religião. O que se produziu, porém, ao meu ver, foi um discurso que não avançou, ou seja, a sua interrogação limitou-se à procura de uma “religião” (universal?), produzindo poucas etnografias acerca deste objeto16.
Um segundo ponto concernente a esse objeto estava chamando a atenção dos antropólogos e sociólogos: trata-se do tema da secularização / de- secularização, enfim, do “desencantamento do mundo”.
Num contexto que “avançava”, aparentemente, na direção do “fim da religião”, ou seja, da sua desinstitucionalização enquanto diretriz guia da vida humana, sociólogos e antropólogos procuraram encontrar nos esportes, no futebol em particular, as novas “religiões seculares”.
Enfim, o fato das relações entre religião e futebol consistir num tema hoje pouco pesquisado, é também outro assunto de reflexão17. Neste particular, se no contexto europeu não tivemos avanços significativos, o mesmo não se pode dizer para o contexto brasileiro. Isto porque aqui, como vimos, tem chamado a atenção dos especialistas (Jungblut, 1994; Petrognani, 2016, 2019, 2025; Rial, 2013) sobretudo as relações entre futebol e campo evangélico.
Esta atenção, de um ponto de vista sociológico, é “plenamente justificada”: o Brasil destacou-se, nos últimos quarenta anos, devido ao crescimento evangélico no espaço público, com destaque, também no campo futebolístico. Afinal, foi no Brasil que nasceu, na década de 1980, o grupo evangélico Atletas de Cristo18, e sua visibilidade cresceu tanto que a antropóloga Rial (2013) afirmou existir uma “virada neopentecostal” no futebol brasileiro.