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Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía

versión impresa ISSN 2393-7068versión On-line ISSN 2393-6886

Rev. urug. Antropología y Etnografía vol.6 no.2 Montevideo  2021  Epub 01-Dic-2021

https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.961 

Reseñas

Reseña

1Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). COORDENADOR DA Rede Covid-19 Humanidades MCTI (UFRGS, FIOCRUZ, IBP-BRASIL PLURAL-UFSC, UNB, UNICAMP, UFRN E UNIDAVI). .jeansegata@ufrgs.br

2Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora da Rede Covid-19 Humanidades MCTI (UFRGS, Fiocruz, IBP-Brasil Plural-UFSC, UnB, Unicamp, ufrn e Unidavi). luisamuccillo@outlook.com

Blanchette, A. (, 2020. ), Porkopolis: American animality, standardized life and the Factory Farm, .. Londres:: Duke University Press,


Porkopolis (2020), livro do antropólogo canadense Alex Blanchette, é um exercício etnográfico e intelectual intenso. Ele intersecta interesses do campo das relações humano-animal com aqueles do trabalho e da neoliberalização da natureza ao analisar o complexo sistema de criação suína na indústria de “carne barata” nos Estados Unidos e o modo como ela imagina, verticalmente, dar conta dos ciclos de vida e de morte dos animais. A pesquisa etnográfica de Blanchette abre caminhos para compreender como a indústria suína produz conhecimentos e práticas de extração de valor dos corpos de humanos e de suínos através de uma redefinição da “animalidade industrial”. Ela cria novas intimidades e relações laborais multiespécie a partir da mensuração do porco estatístico - uma figura abstrata que concentra os ideais de padronização conjunta da espécie suína industrial e do trabalho humano dedicado a ela - com a multiplicidade das “expressões sociais” entre ambos, no cotidiano da produção de carne.

A pesquisa de Blanchette tem lugar em uma pequena cidade identificada por ele com o codinome de Dixon. Localizada entre as Grandes Planícies e o meio-oeste estadunidense, é lá que se estabelece uma planta da Dover Foods, uma das maiores corporações de suínos industriais do mundo. É neste lugar que o autor nos faz encontrar a Porkopolis: um intenso experimento industrial em plenos Estados Unidos, reconhecido como pós-industrial, e que atualiza o que teria sido a Chicago global dos meados do século xix. Mais do que apenas granjas de criação, abatedouros e plantas de processamento de carcaça que transformam os animais em carne para o consumo humano, a rede industrial de Dixon se estende até o limite da produção de commodities. Os ossos viram gelatina e cola; a gordura se converte em biodiesel e produtos de glicerina; órgãos variados viajam para plantas de produção de ração para pets ou para a indústria de fármacos; o sangue é convertido em plasma para alimentar filhotes de animais; as fezes são transformadas em biogás. Assim, a onipresença material-e-fantasmagórica do porco faz dele uma criatura definidora de mundos (world-defining): traços dos porcos industriais estão em todos os lugares e em lugar algum (Blanchette, 2020, p. 11, tradução nossa). As atividades industriais das fazendas de Dixon implicam humanos e porcos em processos laborais complexos e organizam a forma e a estética das paisagens visual, sonora, olfativa, mas também econômica, política e social da cidade. Dividido em cinco partes, sendo cada uma delas nomeada segundo alguma expressão da vida suína - “Boar”, “Sow”, “Hog”, “Carcass” e “Visceras” - Porkopolis coloca em relevo um emaranhado de sensibilidades e práticas humano-suínas que emergem a partir da indústria da carne, incluindo as hierarquias de exposição às contaminações, que atingem mais diretamente a mão de obra trabalhadora migrante latino-americana. Blanchette, assim, “coloca em relevo a atuação de um capitalismo racial que conduz migrantes a graus desproporcionais de contato poroso com substâncias potencialmente contaminantes. São processos silenciosos que intersectam e corporificam o capitalismo e o Antropoceno e suas hierarquias raciais, de classe e multiespécie” (Segata, Beck e Muccillo, 2020, p. 365).

A primeira parte do livro sintetiza, por meio da ideia do porco selvagem, “Boar”, o que seria o “lado de fora” da fazenda industrial: a desordem e a falta de padrão da natureza, que dificultam os processos industriais de ampla escala. Ao mesmo tempo, é um retrato fino de como os resíduos dessas corporações moldam emergentemente as ecologias locais e a vida social de quem habita seus entornos.

Alex Blanchette começa por descrever como os protocolos de biossegurança atuam no cotidiano das pessoas e em favor das corporações, performando uma ideia de natureza e segurança que garante a manutenção da vida suína em condições industriais. Para se ajustarem às linhas de produção da indústria da carne, estes porcos precisam obedecer rígidos padrões corporais, como o mesmo peso, a densidade óssea, a quantidade de gordura e músculos, e assim por diante. É como a produção da indústria automobilística - cada “robô” é programado para uma atuação milimétrica de solda ou rebite. Assim, cada componente do futuro veículo precisa passar pelas esteiras no tempo, no ângulo e com as dimensões certas, para um produção padrão. O mesmo acontece nas plantas frigoríficas: porcos desalinhados atrapalham o processo de produção em escala, razão pela qual a sua estandartização começa pelos genes. Os rebanhos são geneticamente alinhados, expostos às mesmas condições ambientais controladas nas granjas, com os mesmos compostos alimentares para a sua nutrição, a fim de se tornarem componentes que se ajustem perfeitamente às linhas industriais, mas também às preferências de quem consome seus corpos convertidos em carne. A engenharia genética, facilitada pelo lobby da biossegurança, introjeta o capitalismo de forma molecular nos corpos humanos e animais para que se convertam em colaboradores rentáveis (Segata, 2020). Mas todo este processo produz uma miríade de resíduos.

Porcos padrão são criaturas imunodeprimidas, tão logo, um risco econômico para a sua indústria. É que o processo de padrozinação genética expõe rebanhos inteiros a potenciais contaminações em massa, exigindo que altas doses de antibióticos sejam administradas para que a sua já curta vida dure até o tempo do abate e não sucumba antes disso a alguma doença. Mas o sistema digestório suíno não metaboliza integralmente esse complexo de medicamentos e suplementos, fazendo com que parte destes químicos seja eliminado em suas fezes e urina. O outro “lado de fora” da indústria se caracteriza por paisagens suínas constituídas por lagoas gigantes de dejetos, que se tornam um problema ambiental e de saúde coletiva: o sol forte faz a parte líquida desse estrume evaporar levando consigo as partículas dos químicos residuais, que depois atingem a população humana e animal, os solos e as plantas, por meio da chuva. Esses resíduos se instalam diretamente em seus corpos atravessando as fronteiras porosas da pele. A parte seca do estrume das lagoas vira poeira que voa com o vento e que se instala, por meio da respiração, nos pulmões dos trabalhadores e vizinhos de quem está “do lado de fora” dessas corporações (Blanchette, 2019; Segata, Beck e Muccillo, 2020). Assim, antes de entrarem para os “quadros de atenção” das agendas científicas, o ar pegajoso e de cheiro insuportável é experienciado pelos animais, pelos trabalhadores e pela comunidade. Um fazendeiro que vive nas proximidades dessas lagoas relata que suas relações sociais foram afetadas pelos ventos de dejetos que “grudam no corpo” e tornam insustentável convidar amigos e familiares para visitá-lo. Outro efeito da materialidade dessa atmosfera industrial são as Moscas de Dover, insetos que sofreram mutações com seus ciclos de vida alterados ao incorporarem aspectos do confinamento industrial, e que materializam a sujeira entrando nas casas, pousando nos alimentos, criando paisagens de asco e vergonha.

A biossegurança ainda expande suas faces: na lógica da integração vertical, ela se estende das fazendas e abatedouros até os ambientes domésticos. Através do monitoramento das folhas de pagamento, os empresários mapeiam as relações entre os funcionários e os lugares que eles frequentam, mantendo um controle sobre a circulação das pessoas e seus arranjos sociais. Do ponto de vista da biossegurança agrícola, o corpo dos trabalhadores é enquadrado como uma ameaça potencial à saúde por carregarem, nas suas orelhas, unhas e narinas, as partículas de saliva, sangue, fezes e sêmen de porcos que podem conter patógenos ou bactérias. Mas o que a investigação de Blanchette revela é algo ainda mais intrigante: o trabalho humano é enquadrado como uma ameaça aos porcos industriais. Isso constitui o inverso dos medos antropocêntricos clássicos da biossegurança, que enxergam os animais (exóticos e criados) como uma ameaça de transmissão zoonótica (Segata, 2020). Dessa forma, os porcos estão presentes em praticamente todos os aspectos da vida das pessoas, mesmo quando elas não estão nas fazendas. No limite, as pessoas estão formando laços de parentesco com os porcos que elas tocam (Blanchette, 2020, p. 49, tradução nossa). A experiência capitalista das fazendas industriais insere uma lógica para além do confinamento e da dominação animal, criando a necessidade nos gerentes de apreender a animalidade industrial, na medida em que ela define todos os aspectos da vida, incluindo os corpos dos trabalhadores. Nesse sentido, uma outra fantasia da “natureza neoliberalizada”, para usar uma expressão de Rob Wallace (2020), ganha lugar no desejo de incorporar a humanidade em mundos suínos padronizados. Se trata, antes, de uma maneira de ler e controlar territórios e populações através da espécie suína (Blanchette, 2020, p. 53, tradução nossa), do que de uma dominação unilateral da humanidade sobre os animais.

O rebanho (the herd) é uma figura que opera em pelo menos dois níveis: é a encarnação da racionalização do trabalho industrial, no sentido que transforma os milhares de porcos em uma unidade estatística e mensurável, e também um método de organização da hierarquia das fazendas. Trata-se, assim, de uma tecnologia social que produz a divisão do trabalho, de classe e de raça através dos corpos dos suínos. Por exemplo, aqueles que trabalham diretamente com o rebanho e em linhas mais primárias da produção, em contato direto com dejetos, vísceras, instrumentos cortantes e carcaças pesadas, quase sempre são pessoas negras ou imigrantes latinoamericanas. Por outro lado, o trabalho com bancos genéticos - com o “rebanho abstrato” da tecnociência - é conduzido por pessoas brancas. As cargas desiguais do capitalismo racial ganham terreno explícito na indústria de carne suína.

Na segunda parte, Sow, o autor argumenta que os trabalhadores incorporam as materialidades suínas ao ponto de perceberem a si mesmos como entrelaçados e constituídos pelos porcos. Como comenta uma interlocutora latina: “somos puercos”. Essa frase indica uma particularidade da experiência social nesses lugares, marcada pela carga histórica de desumanização e supremacia branca: está relacionada com a forma como o ‘outro’ animal há muito age como um recurso da política cultural colonial na diferenciação racial daqueles considerados menos que humanos (Blanchette, 2020, p. 83, tradução nossa). A etnografia nos sítios de inseminação artificial (ia) ilustram bem essas incorporações, além de introduzir novas políticas sexuais e divisões de gênero e trabalho.

Os sítios de inseminação são terrenos ideológicos-materiais onde se trabalha e performa ideias específicas de natureza. Por exemplo, a ideia de que o porco é uma “máquina com instintos”, que pode ser apreendida pelo trabalho repetitivo e rotinizado dos humanos, permite que o capitalismo industrial explore aspectos específicos da vida suína na medida em que simplifica a sua natureza. A questão é que a integração do sistema vertical não significa colocar os trabalhadores em contato com todas as dimensões da natureza suína, mas com apenas um aspecto dela: “as gaiolas de porcas” (gestation crates), gaiolas de metal que comportam as fêmeas prenhes cujo confinamento tende a estimular a supressão da maioria dos comportamentos instintivos em favor de ampliar a expressão de uma única forma de comportamento desejado - o instinto reprodutivo (Blanchette, 2020, p. 91, tradução nossa). Dessa forma, enquanto os gerentes atravessam o rebanho nas suas múltiplas naturezas e discutem maneiras de homogeneizá-lo, os trabalhadores se tornam cada vez mais especializados em apenas um tipo de trabalho e apenas um aspecto da natureza suína, confundindo-se como parte dele.

A terceira parte, intitulada Hog, concentra-se nos sítios de criação de recém nascidos, um espaço em que as políticas de cuidado e afeto tomam novas dimensões, assim como o trabalho da “nutrição” aparece cada vez mais marcado por divisões de gênero - as mulheres são responsáveis por cuidar dos filhotes. Nesse cuidado intenso desde a alimentação, castração até a vacinação, novas intimidades e práticas éticas surgem entre humanos e animais. E, novamente, elas são paradoxais: por um lado elas realizam a manutenção da exploração vital dos porcos e dos humanos em razão dos cuidados para o crescimento padrão e saudável do rebanho. Por outro, essas práticas constituem um risco para o sistema porque desafiam a ideia da homogeneização da espécie, na medida em que estão atentas para novas expressões da vida suína tensionadas pelos afetos singulares partilhados com humanos cuidadores.

Na quarta parte do livro, Carcass, Blanchette nos conduz das fazendas de criação para os frigoríficos e abatedouros. Nesta parte, o autor analisa como o corpo humano, principalmente de pessoas negras e migrantes, é moldado através do trabalho doloroso e repetitivo das “linhas de abate” (kill floor). É ali que se desmembra o corpo suíno para transformá-lo em cortes de carne e outros produtos que derivam desta indústria. Conforme o trabalho se torna especializado para lidar com determinada parte do porco, mais o trauma se manifesta localmente nos corpos humanos. Em outras palavras, humanos, porcos e capitalismo se fundem nas linhas de abate: trabalhadores humanos corporificam de uma só vez a anatomia comercial dos porcos, convertidos em carcaça, e o capitalismo industrial, por meio dos desejáveis movimentos repetitivos de suas linhas de produção. Mas a modelagem do corpo humano não se faz apenas através dessa manifestação de traumas. A inauguração de uma clínica de saúde para a comunidade da Dover Foods é mais uma maneira que o sistema integrado encontrou para explorar o trabalho humano através da animalidade suína - ou como define Blanchette, a extração o “novo dinheiro” humano-suíno. Ao realizar exames médicos que separam o corpo dos trabalhadores em grupos de tendões e músculos, a empresa combinava os pontos fortes destas fisicalidades com as tarefas nas linhas de abate e corte. Nas suas palavras, esse processo marca uma situação em que décadas de esforços para extrair mais valor dos corpos suínos estão agora voltando para refazer a forma como o corpo humano é organizado enquanto um espaço industrial de novo dinheiro (Blanchette, 2020, p. 181, tradução nossa).

Na quinta e última parte do livro, Visceras, Blanchette retoma o problema da presença fantasmagórica dos porcos no nosso cotidiano. Seguindo o “caminho do lixo” das empresas como a Dover Foods, o autor descobre que não existem traços visíveis fora das fazendas que indiquem a vida e morte de milhões de porcos, apenas as micro-presenças como antibióticos, amônia e metais pesados. Essa é a radicalidade da premissa de que absolutamente nenhuma parte do porco é desperdiçada e tudo é transformado em mercadoria: desde a carne, a gordura, os ossos, até as vísceras, o sangue e as fezes. Esses produtos não são apenas as caixinhas de carne ou o sabão em barra vendidas no supermercado. A espécie suína é absorvida integralmente na paisagem global. Talvez seja esse o aspecto do projeto industrial mais difícil de contornar: a maneira como a imagem do porco é dissolvida nas nossas rotinas ao mesmo tempo que nos coloca em contato constante com partículas de porcos.

Não se trata apenas de proteína animal: dos genes às vísceras, a onipresença suína se manifesta em toda parte - da chuva de resíduos às paisagens de mal cheiro; dos corpos de trabalhadores humanos e animais que compartilham sofrimento e precarização até a cola que segura as páginas do instigante livro que acabamos de apresentar.

Referências

Blanchette, A. (2019). Living waste and the labor of toxic health on American factory farms. Medical Anthropology Quarterly, 33(1), 80-100. [ Links ]

Segata, J. (2020). Covid-19, biossegurança e antropologia. Horizontes Antropológicos, 26(57), 275-313. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-71832020000200010Links ]

Segata, J., Beck, L., e Muccillo, L. (2020). A covid-19 e o capitalismo na carne. Tessituras. Revista de Antropologia e Arqueologia, 8(1) 354-393. https://doi.org/10.15210/tes.v8i1.19730Links ]

Wallace, R. (2020). Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante. [ Links ]

Nota: El texto corresponde por partes iguales a Jean Segata y Luísa Muccillo

Nota: El equipo ejecutivo editorial Andrea Quadrelli, Juan Scuro, Pilar Uriarte aprobó éste artículo

Recebido: 23 de Março de 2021; Aceito: 19 de Junho de 2021

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