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Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía

versión impresa ISSN 2393-7068versión On-line ISSN 2393-6886

Rev. urug. Antropología y Etnografía vol.6 no.2 Montevideo  2021  Epub 01-Dic-2021

https://doi.org/10.29112/ruae.v6.i2.1314 

Dossier

Introdução ao dossiê: Trabalho animal, trabalho humano

Introducción al dossier: Trabajo animal, trabajo humano

Dossier Introduction: Animal work, human work

Luisa Amador Fanaro1 
http://orcid.org/0000-0001-6249-5481

Daniel Vaz Lima2 
http://orcid.org/0000-0003-3162-8784

Marília Floôr Kosby3 
http://orcid.org/0000-0003-1037-5490

Felipe Ferreira Vander Velden4 
http://orcid.org/0000-0002-5684-1250

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos. Bolsista FAPESP (número do processo 2019/17736-6). luisafanaro@gmail.com

2 Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Pelotas. danielvazlima87@gmail.com

3 Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul floorkosby@gmail.com

4 Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos. felipevelden@yahoo.com.br


Ficavam em êxtase, ou transe, sobre a superfície doce; não levavam nada para o formigueiro, e sim pareciam consumir ali mesmo o açúcar. Curiosamente, em algumas formigas que passavam por ali, a bala não parecia despertar o menor interesse. Isso me levou a tentar outra experiência: no caminho feito por algumas formigas, que estavam trabalhando no recolhimento de algum tipo de vegetal, posicionei um pouco mais longe uma nova bala, assim como uma colherada de açúcar e um pedacinho de marmelada. Perguntei-me se seriam capazes de abandonar seu trabalho para se dedicar ao êxtase. E, que surpresa, descobri que, assim como nossa espécie humana, algumas sim, outras não. Mario Levrero, O Romance Luminoso

Animais trabalham. Às vezes, a inserção de certos seres não humanos no mundo do trabalho parece-nos evidente, como no caso de cavalos que puxam carroças, cães que tracionam trenós ou bois de arado. É menos evidente, no entanto, quando tratamos de cães da polícia ou dos bombeiros, de cavalos de corrida ou galos de briga, de animais no turismo ou na pecuária, como produtores de leite ou mesmo de carne e couro. E talvez nos escape completamente se olhamos para bichos-da-seda, para biorreatores, para animais de laboratório, de zoológico, no cinema e na tv, nos esportes, na atenção à saúde e em uma infinidade de outros contextos em que animais são postos a executar tarefas para ou com seus companheiros humanos - sejam eles seus donos, tutores, treinadores, mestres, patrões, capatazes ou parceiros de labuta. Seja como for, Vinciane Despret (2018) sabiamente observou que “a proposição de pensar que os animais trabalham não é fácil” (p. 169).

Um dos primeiros autores a se debruçar sobre a questão do trabalho animal foi Tim Ingold (1983), ao propor um diálogo com um dos aspectos fundantes do que viria a ser uma sociologia do trabalho, que era a célebre metáfora do arquiteto e da abelha proposta por Karl Marx. Para Marx, o que distinguia o mais incompetente dos arquitetos da melhor das abelhas operárias era que o primeiro construía o projeto na imaginação, antes de colocá-lo em prática. O trabalho, desse modo, seria uma condição exclusivamente humana, uma vez que realizava, no mundo das coisas, aquilo que provinha de um projeto previamente desenhado pela imaginação, no mundo das ideias. Os animais, por serem dotados tão somente de um comportamento programado e não direcionado por uma intenção consciente, portanto, não trabalhariam. Ingold, por sua vez, sustentou que a intencionalidade se dá na ação, e não anteriormente a ela: projeção e ação desenvolvem-se no ato mesmo do fazer, e não existe, a rigor, uma distinção entre, digamos, teoria e prática. Nesse sentido, já que interagem com os outros seres no ambiente por meio de um propósito consciente em suas ações, o autor argumenta que, sim, os animais trabalham. Não obstante, faltou a Ingold abordar o quanto o trabalho dos animais estava e está inserido nas relações capitalistas de produção, em alguns de seus aspectos fundamentais como a expropriação, a dominação e a alienação.

Guia esta proposta de dossiê a temática do trabalho animal, que, apesar de já constituir em objeto de debate relativamente avançado nas Ciências Sociais fora da América Latina - especialmente na França (Porcher, 2011, 2014, 2017; Porcher e Schmitt, 2012; Porcher e Nicod, 2019; Porcher e Estebanez, 2020), nos Estados Unidos (Haraway, 2003, 2008; Hribal, 2003, 2007) e no Canadá (Coulter, 2016; Blanchette, 2020) -, ainda reclama maior consideração em terras sul-americanas. A ideia deste dossiê surgiu justamente por conta dessa carência, que parece apontar para um não reconhecimento, nas Ciências Sociais latino-americanas, e especialmente na Antropologia, de que os animais também podem ser trabalhadores, adentrar o mundo do trabalho e mesmo, talvez, compor com a classe trabalhadora.1 À parte as discussões que convergem principalmente para o direito e a proteção animal, os estudos antropológicos e sociológicos a respeito das relações entre humanos e animais nos países latino-americanos, seja na etnologia, seja em contextos urbanos ou rurais, nada ou quase nada dizem sobre o trabalho que esses não humanos eventualmente executam, produzem, possam vir a produzir, ou lhes é extraído, ao lado de seus companheiros humanos, também trabalhadores, ou abaixo deles, no caso dos patrões, gerentes ou capatazes.

A partir de uma exaustiva sistematização dos trabalhos animais, François Sigaut (1983) buscou novos caminhos metodológicos, menos antropocêntricos, para pensar o problema da domesticação. Sua descrição de variados trabalhos animais (incluindo o trabalho que não é apenas motor), aponta para o fato de que o trabalho animal é tão diverso quanto o trabalho humano. Para o autor, se essa diversidade não for levada em conta, acabaremos por “mostrar o etnocentrismo mais banal para tratar todos esses usos (dos diversos produtos animais); que nos parecem estranhos como se fossem apenas curiosidades sem importância” (1983, p. 45). Para mais, reconhecer que o trabalho é diverso (cf. Vatin, 2019), mesmo o trabalho animal (cf. Sigaut, 1983, 2007), abre possibilidades para pensarmos as relações de trabalho entre humanos e animais como relações que vão além da produção, do mercado e da exploração2. Nas palavras de Jocelyne Porcher e Sophie Nicod (2019), “o conceito de trabalho não se refere apenas a relações de coerção, exploração e dominação, mesmo que as relações entre chefes e trabalhadores e entre humanos e animais sejam assimétricas” (p. 255).

Para Vinciane Despret (2018), uma das grandes dificuldades de se pensar sobre o trabalho animal é sua invisibilidade, “salvo nos lugares de enormes maus-tratos a humanos e animais”, como nos casos da produção industrial (p. 169, itálicos no original). O trabalho animal, além disso, só parece se tornar visível quando os animais se recusam, de alguma forma, a trabalhar corretamente - em outros termos, nos momentos em que resistem ou reagem. Quando, por outro lado, fazem exatamente o que devem fazer, seu trabalho se torna invisível. De acordo com Jocelyne Porcher e Tiphaine Schmitt (2012), “quando os animais não querem trabalhar, o trabalho não pode ser feito. (;…); Como no caso do trabalho humano, a colaboração dos animais no trabalho é visível quando não é obtida. Normalmente, seu trabalho é invisível” (p. 43). Curiosamente, então, a recusa em cooperar e o descumprimento de ordens é o que parece fazer emergir o trabalho dos animais, assim como sua agência. Todavia, o pleno funcionamento de qualquer trabalho que envolva humanos e animais depende, sempre, do esforço e da vontade coordenados de ambas as partes. O trabalho, portanto, só funciona porque os animais assim o quiseram, e “momentos sem conflito, então, não têm nada de natural, óbvio ou mecânico…” (Despret, 2018, p. 171).

As situações em que os animais contrariam os comandos daqueles humanos com quem trabalham - quando, principalmente, se recusam ou não demonstram interesse e desejo de trabalhar - podem, com imprecaução, ser pensadas meramente como respostas a uma ação anterior - uma reação. No entanto, como já notou Donna Haraway (2003, 2008), reagir é algo muito diferente de agir,3 e, nesse sentido, para mais de uma “ação de resistência”, é possível sugerir que essa recusa tem mais que ver com uma forma de negociação, como propôs Jason Hribal (2007), entre duas partes envolvidas e constituintes na e da mesma prática. Em muitos contextos, os animais, antes de mais nada, concordaram com trabalhar e conviver com seus companheiros humanos. Foi o que sugeriu Piero Leirner, em manuscrito não publicado:

“Tudo que precisamos para que bois estabeleçam essa incrível relação tautológica é fazê-lo concordar em ser um animal doméstico: participar desse ato ímpar de agir com(o) humano, dispendendo sua vida no trabalho. Mas não só: ele precisa também nos fazer concordar que passemos a dispender nossas energias nele, tornando-o, quiçá, o centro de nossas existencias” (Leirner, s. d.).

Nesse sentido, reunimos neste dossiê contribuições teórico-metodológicas e etnográficas que se preocuparam em refletir sobre o que é e o que pode ser o trabalho animal, e o trabalho com animais,4 em cenários latino-americanos. Em certos contextos, como partes de um mesmo sistema de produção, humanos e animais podem trabalhar, coabitar um mesmo espaço e viver juntos, o que, para Jocelyne Porcher (2014), “é uma justificativa fundamental do trabalho” (p. 4). Em outros, relações de trabalho multiespecíficas também podem ser sobre compartilhar sofrimento, frustração e cansaço, e podem sugerir que “a exploração de humanos e outros animais estão interconectadas” (Hribal, 2003, p. 450).5 É o que também observa Alex Blanchette (2020) em seu livro Porkopolis: American animality, standardized life and the Factory Farm, resenhado por Jean Segata e Luísa Muccillo neste dossiê. Outrossim, para além de abuso, exploração e controle, trabalhar com animais também envolve comprometimento de ambas as partes e uma negociação constante, às vezes difícil, plena de múltiplos desentendimentos, mas seguramente caracterizada pela mútua afetação.6

O texto de Javier Taks versa sobre as relações, no tambo,7 entre produtores de leite e vacas leiteiras na pecuária comercial no Uruguai e sua interação inter-agencial. O autor aponta para uma tensão entre os princípios de confiança e dominação nas relações entre humanos e animais naquele contexto. Se, por um lado, as vacas são percebidas pelos produtores - denominados de tamberos- como seres que se comprometem a realizar determinadas tarefas (como, por exemplo, ter a intenção de ejetar o leite) e a participar ativamente do trabalho, por outro, há uma tendência à objetivação desses animais - que, de acordo com o autor, varia a depender da escala de produção, que vai da familiar à industrial.8 Ele também demonstra, de maneira muito interessante, a existência de uma relação de homologia entre as relações tamberos/vacas e as relações patrão/trabalhadores assalariados ou entre membros da família. A partir de uma análise que leva em conta a experiência do trabalho como compartilhada por animais e humanos, o autor conclui que “a alienação do trabalho humano e não humano em relação a outros componentes do ambiente significa a perda de criatividade na transformação do mundo”.

Por sua vez, Sofía Ambrogi e Cecilia Argañaraz, a partir de uma abordagem bastante distinta e original, analisam os modos de ser e fazer bovinas na Argentina a partir de suas representações visuais - por parte de seus empregadores, produtores, consumidores, dentre outros atores humanos - na revista da Associação Argentina de Consórcios Regionais de Experimentação Agropecuária, no período de 1969 a 2021. Partindo da proposta semiótica material de John Law e Annemarie Mol (2008), e ao levarem em conta que tais representações “se relacionam com a produção e reprodução de visões de mundo e de modos de ser no mundo”, as autoras chamam nossa atenção para uma “proliferação polifônica dos modos de ser/fazer vaca”. Vacas, nesse sentido, são seres múltiplos, que “trabalham e são trabalhados, produzem e são produzidos”. Por meio de uma diversidade de imagens, nas quais as vacas aparecem sempre, ou quase sempre, em primeiro plano, Sofía Ambrogi e Cecilia Argañaraz pretendem desvelar as formas pelas quais esses animais, com o passar do tempo, criam e recriam relações, ora como operárias e intervencionadas, ora como geradoras de laços e produtoras de trabalho.

Como partes de um mesmo sistema de produção, humanos e animais trabalham, vivem juntos e, muitas vezes, compartilham sofrimento e exploração. Porcher (2011), por exemplo, faz uma excelente análise a respeito do sofrimento compartilhado por humanos e porcos na indústria suína. Neste dossiê, a contribuição de Ricardo Pereira de Oliveira diz respeito à controvérsia da tração animal e como ela pode envolver diferentes concepções sobre humanidade, animalidade e progresso. A partir de sua etnografia com carroceiros e cavalos em Belo Horizonte, o autor analisa duas tentativas de proibição da tração animal na cidade e a consequente criminalização dos carroceiros. Se, de um lado, o trabalho animal naquele contexto é julgado por ativistas da libertação animal como técnica, moral e economicamente injustificado, de outro é entendido, pelos carroceiros, como “um modo de viver e de se relacionar com os animais e com a cidade”. Longe do fim (cf. Mól, 2016), a controvérsia em torno do trabalho equino na tração pode ser muito interessante para pensarmos a respeito do próprio trabalho humano. Nas palavras de Ricardo, “os carroceiros repetiam que esse desmonte torna humanos e animais mais vulneráveis em decorrência da maior informalidade, e não avança na melhoria da qualidade de vida e trabalho de ambos”. Nesse sentido, devemos nos atentar, sobretudo quando estamos falando de bem-estar animal, para a potencial exploração e sofrimento daqueles humanos que também compõem a relação de trabalho - e, assim, uma avaliação moral do trabalho animal deve ser preferencialmente acompanhada também pela consideração do trabalho humano envolvido na mesma relação laboral, de modo a se evitar o risco de trocar uma desigualdade por outra.

Em outras circunstâncias, o trabalho animal pode vir a servir como justificativa para outras práticas, como a preservação da fauna silvestre - e pode, assim, desvelar ainda outras controvérsias. É o que nos revela a etnografia de Eveline Baptistella no Pantanal Norte, no estado de Mato Grosso, a respeito da atividade turística de observação da vida silvestre. Naquele contexto, o estímulo à permanência dos animais por mais tempo nos locais de observação, bem como a ceva - que, apesar de ter sido proibida, ainda persiste em alguns lugares -, são práticas recorrentes no turismo de observação de vida livre. A autora, assim, tenciona pensar esses animais como trabalhadores, na medida em que, para seus interlocutores humanos - funcionários de hotéis e pousadas que ofereciam essa atração -, os animais cooperam, laços entre humanos e animais são criados, e a relação de trabalho entre eles “tinha na ceva o pagamento justo por um serviço prestado ou uma forma de cuidado”. Não obstante, se a observação turística dos animais opera como uma “rede de proteção relativa”, ela também “camufla assimetrias numa relação que, apesar de calcada na liberdade, cria situações de vulnerabilidade para os animais não humanos”. Com efeito, Baptistella propõe que o atual modelo dessa atividade turística no Pantanal Norte seja considerado como transitório, mas que, seja como for, as relações de trabalho entre humanos e animais naquele contexto existem e estão em pleno processo de reconfiguração.

A reconfiguração de práticas e relações também é o mote do artigo de Edi Alves de Oliveira Neto. Ao partir metodologicamente da teoria das representações sociais (trs), o autor faz uma análise sociológica do trabalho animal e do trabalho com animais, realizado por policiais - chamados de cachorreiros- e seus cães no canil do Batalhão de Policiamento com Cães da Polícia Militar do Distrito Federal. Em seu texto, Oliveira Neto aponta para uma conexão entre as mudanças nas raças caninas utilizadas no trabalho e as transformações nas funções policiais e caninas, bem como para a emergência de ambiguidades em relação às representações da violência policial e das raças caninas. Em suas palavras, “O discurso da obsolescência de algumas raças e da prevalência de outras por questões de eficiência prática traz, no campo do não-dito, a própria obsolescência de formas de policiamento centradas na repressão e no uso da força, em oposição a uma atuação de contornos supostamente mais democráticos”.

Nesse sentido, o Rottweiler foi substituído pelo Pastor Belga de Malinois; as funções humano-caninas passaram da repressão de movimentos sociais à, por exemplo, fiscalização de ônibus em rodoviárias; e incluiu-se, nos treinamentos caninos, atividades de sociabilidade e de controle da agressividade. Para o autor, se, por um lado, “a atividade policial em geral tem se tornado mais violenta”, por outro, no policiamento com cães, vê-se o “surgimento de novas formas de interação polícia-sociedade, nas quais a violência mediada pelo cão é menos intensa, ou assim é representada pelos que participam da interação”.

Por fim, o artigo de Ivana Teixeira atenta para as percepções de risco humano e animal desenvolvidas por terapeutas humanos e não humanos em instituições que realizam zooterapias, ou terapias assistidas por animais (taa). Ao acompanhar sessões de zooterapia em Casas Geriátricas, Centros de Atenção Psicossocial (caps) e unidades hospitalares de psiquiatria, geriatria e pediatria, a autora elenca diferentes atenções, habilidades e processos agentivos voltados para a socialização e higienização dos cães, aves e coelhos envolvidos na atividade terapêutica, bem como para a percepção dos sinais de risco emitidos pelos animais. Noções de risco que perpassam ferimentos corporais, danos psicológicos, estresse e interrupção do processo terapêutico são descritas por Teixeira, e as ações de contenção e evitação desses riscos são analisadas a partir das obras de autores como Andrés Georges Haudricourt (1962) e Carole Ferret (2006; 2012), no sentido de apresentar as ações de modelação dos animais terapeutas. Em suas palavras, o controle do risco também “indica quando o animal se presta para trabalhar como terapeuta ou, ainda, se ele, por sua própria vontade, aceita o trabalho de terapeuta”. A autora propõe, assim, que as relações de trabalho entre humanos e animais no contexto da zooterapia dizem respeito, para além de coerção e exploração, à confiança e cooperação.

Com efeito, a proposta deste dossiê implicou em desenvolver as possibilidades de conexão entre os estudos sobre relações entre humanos e animais e aqueles dedicados ao trabalho e aos trabalhadores. Em que medida olhar os animais por meio do trabalho, e vice-versa, ajuda-nos a compreender a natureza das relações entre humanos e entre estes e os animais, assim como a própria categoria trabalho? Piero Leirner (s. d.) sugeriu que “o consumo da força de trabalho animal; (…); é tão produtivo quanto o da força de trabalho humana”. Além disso, para ele “os bois saíram da condição conhecida como a de ‘wild pets’ justamente porque empenharam como condição de sua domesticação o seu engajamento na forma de ;(…); produtor de suas próprias condições de produção”.

Muito do que refletimos sobre o trabalho animal nos serve, ou pode vir a nos servir, para pensarmos o próprio trabalho humano. Afinal, o quanto de sofrimento, comprometimento e negociação não haverá em todo trabalho, em toda exploração da força de trabalho, seja ela humana ou não humana? Qual a relação do trabalho com o ser: sua plena realização ou sua completa anulação? E como tal questão vincula-se à condição de sujeição ou de objetivação, ou de alguma combinação de ambos, que se coloca para os animais, mas, também, para os (trabalhadores) humanos? Nas palavras de Porcher (2014), “… o que chamamos de domesticação é acima de tudo o processo cooperativo de inserção de animais na sociedade humana através do trabalho, que envolve, como Marx escreveu, elementos de exploração e alienação, mas também e, mais particularmente, a perspectiva de emancipação” (p. 1).

Para além disso, refletir sobre as relações entre humanos e animais a partir do trabalho animal pode desvelar distintos “estados” e “devires” animais, bem como as ambiguidades que podem vir a surgir a partir dessas relações - que podem, por sua vez, tensionar natureza e cultura, doméstico e selvagem, urbano e rural, e uma diversidade de outros pares conceituais: “Ao reconhecer o nexo natureza-trabalho e o trabalho animal, somos encorajados a pensar em espécies inteiras e em animais individuais. Reconhecemos, mas ultrapassamos, fronteiras como “selvagem” e “domesticado” e “ambiente” versus “animais”, em favor de uma abordagem mais integrada. Ao usar o trabalho animal como um mecanismo conceitual, também complicamos outros binários como “urbano” e “rural”, na medida em que seres humanos e animais vivem, trabalham, se movem, são movidos e mortos por entre os espaços em uma dinâmica mais fluida” (Coulter, 2016, p. 12).

Assim sendo, consideramos que tais discussões podem vir a contribuir para o amadurecimento e o alargamento dos estudos sobre o trabalho animal nas Ciências Sociais latino-americanas, sobretudo na Antropologia, bem como para repensar as próprias teorias sobre o trabalho humano, de forma a torná-las, quiçá, menos antropocêntricas e mais abertas a distintas formas de objetivação do esforço despendido por múltiplos seres na construção de suas vidas e mundos. Esperamos também que este dossiê auxilie, de alguma forma, as reflexões sobre as condições de trabalho e de existência dos milhões de animais trabalhadores espalhados de norte a sul pelo planeta, e que reclamam, em muitos casos, sua plena consideração como partícipes das atividades produtivas e criativas por meio das quais se constroem mundos.

Referências

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1 Neste caso, talvez de forma indireta, por meio da reflexão popular que, em muitos momentos históricos, vinculou as condições de vida e de sofrimento dos trabalhadores humanos ao sofrimento dos animais, como nos casos estudados por Coral Lansbury (1985) e Nádia Farage (2011). Por outro lado, animais podem também, às vezes, ser percebidos pelos trabalhadores como seres antagônicos, vinculados aos patrões - como o famoso caso do massacre de gatos estudado por Robert Darnton (1996); de todo modo, é uma ética do trabalho - e de sua contrapartida, o ócio- que está sendo mobilizada por trabalhadores na percepção dos animais. Mais estudos sobre esta “expansão” multispecífica da ética do trabalho se fazem necessários.

2Ainda que as atividades cinegéticas entre os povos ameríndios não sejam, a rigor, definidas como trabalho em um sentido restrito, podemos pensar, por exemplo, nas ideias de ajuda e de companheirismo que os índios Karitiana, na Amazônia brasileira, mobilizam para explicar a relação entre caçadores humanos e cachorros de caça em atividade na floresta: diz-se que um cão de caça é “yota, meu companheiro, aquele que está andando junto comigo”, e que os cães “ajudam muito as pessoas” (Vander Velden, 2016, p. 31).

3Na esteira da discussão inaugurada, de forma mais ampla, por Marshall Sahlins (1997) em sua crítica ao tratamento histórico-antropológico da ideia de resistência como forma privilegiada de ação dos povos indígenas ou nativos em contextos coloniais.

4Muitas vezes, a fronteira entre o trabalho animal e o trabalho com animais é borrada, o que acontece, por exemplo, no caso dos cavalos de equoterapia, que são considerados coterapeutas junto com os terapeutas humanos (Pavão, 2015), dos cães que tracionam trenós na Terra do Fogo, na Argentina (Fanaro, 2020), que constituem uma equipe com os humanos que os conduzem, dos cães pastores no pampa brasileiro, que trabalham junto com seus companheiros humanos (Barreto, 2015) - assim como se diz, na mesma região, que a lida “é eu, a esposa e os cachorros” (Rieth et al., 2019), agregando esforços humanos e caninos na condução das atividades pecuárias - e em tantos outros contextos. No fim das contas, é o que Porcher, em seus trabalhos, parece sugerir: o trabalho animal e o trabalho com animais não se separam.

5Em uma interessante análise sobre as relações entre humanos - como peões, boiadeiros e zootecnistas - e gado de corte nas Fazendas Beira Alta, no Mato Grosso, no Brasil, Graciela Froehlich (2017), em diálogo com Jocelyne Porcher (2011), propõe que “trabalhar os animais” exige que se “trabalhe com eles” (p. 419), e que, nesse sentido, a implantação de medidas de bem-estar animal em tais espaços envolve processos de pacificação, por assim dizer, não apenas dos animais, mas também dos humanos. Em suas palavras, “a racionalidade que preside as avaliações de bem-estar interessa-se pelos agentes - tanto humanos quanto animais - em sua individualidade, produtividade e capacidade de geração de renda e lucratividade, ignorando o compartilhamento de vida e de condições de vida, em que o sofrimento apareceria como uma das dimensões possíveis. A equação que parece resultar disso tudo é a seguinte: trabalhadores estressados à animais estressados à carcaça em más condições à carne de baixa qualidade à queda na lucratividade” (p. 410). Ao que parece, pensar sobre as assimetrias entre humanos e animais no trabalho reclama que pensemos, também, nas assimetrias entre patrões e empregados, ou seja, nas assimetrias de classe. Seria possível, assim, sugerir que tais assimetrias são produtos de uma mesma matriz (a ordem social capitalista)?

6 Marília Floôr Kosby (2017), em sua etnografia com mulheres e vacas companheiras de trabalho, em estabelecimentos de pecuária familiar na região da fronteira pampiana entre Brasil e Uruguai, atenta para as alianças transespecíficas criadas nessa convivência laboral-afectiva a partir do compartilhamento de algumas opressões, como a violência reprodutiva e obstétrica.

7Em seu artigo, Taks traz a definição de tambo do Diccionario de la lengua española: um tambo é um “estabelecimento pecuário destinado à ordenha de vacas ou ovelhas e à venda, geralmente no atacado, de seu leite”. De acordo com o autor, “a sala de ordenha também é chamada de tambo. Assim, chamam-se tamberos aqueles que levam adiante o estabelecimento leiteiro, mas também, geralmente, aqueles que fazem a rotina da ordenha”.

8Em uma interessante reflexão, Jeremy Deturche (2017) observa que formas de dominação e controle dos animais não significam, necessariamente, sua objetivação, que talvez só seja plenamente alcançada nos sistemas industriais modernos de produção animal em larga escala. Teríamos, aí, um limite para o trabalho (com) animais, ao pensarmos o trabalho como relações intersubjetivas entre sujeitos humanos e não humanos em cooperação na busca por um determinado fim?

Nota: Éste artículo corresponde por partes iguales a Luisa Amador Fanaro, Daniel Vaz Lima, Marília Floôr Kosby y Felipe Ferreira Vander Velden.

Nota: El comité editorial ejecutivo Andrea Quadrelli, Juan Scuro, Pilar Uriarte aprobó éste artículo

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