Introdução
A despeito do maior acesso a saúde sexual e reprodutiva, percebeu-se que a taxa de fecundidade caiu de 3,92 para 2,90 em mulheres pobres nas últimas décadas, o que resultou na média de 1,7 filhos por mulher no Brasil. 1 Contudo, tal diminuição não reduziu a quantidade de abortos, especialmente entre mulheres mais vulneráveis, desvelando o registro oficial de 24,8 mil abortos no Sistema Único de Saúde (SUS), entre os anos de 2010 a 2019, em sua maioria na região Nordeste, e 721 mortes no Brasil entre os anos de 2009 e 2018 em consequência de complicações. 2
Parte desses dados deve-se às condições de vulnerabilidade sociocultural, econômica e política em que as mulheres se encontram envolvidas, à baixa qualidade assistencial, à ausência de processo empático e à falha na comunicação entre profissionais de saúde e usuárias, com destaque para as ações violentas perpetradas pela equipe de saúde, constituindo o fenômeno atual intitulado de violência obstétrica. Considerada como um problema mundial, a violência obstétrica pode ser definida como qualquer ato violento baseado no gênero que resulte em danos mentais, sexuais, patrimoniais ou físicos, ocasionando o sofrimento da mulher, através de ameaças, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer durante o pré-natal, parto, puerpério e em situações de abortamento. Este problema atinge mulheres de diferentes idades e pode ser caracterizado por negligência nos cuidados, violência física, verbal, psicológica e até sexual cometida por profissionais de saúde, no ciclo gravídico-puerperal e em situação de abortamento, sendo esta última o foco deste estudo. 3)
A violência contra a mulher é naturalizada socialmente, especialmente na área assistencial obstétrica, onde há um maior processo de desapropriação de seu corpo e supressão de sua autonomia em situações de abortamento induzido ou provocado. Uma das evidências são os tratamentos hostis e humilhantes às mulheres nesse processo. 4
As situações de violência obstétrica também são percebidas em nível internacional, haja vista o emprego do termo Abuse in healthcare para descrever a negligência, o abuso psicológico, verbal, físico e sexual cometido no espaço de cuidado à gestante, parturiente e puérpera. 5 Além disso, um estudo nórdico descreveu que aproximadamente 13 a 18 % das mulheres relataram sofrer práticas pertencentes à violência obstétrica. 6
Evidencia-se que, as mulheres em processo de abortamento sofrem maus tratos em instituições públicas e privadas de saúde com certa frequência, caracterizando um aumento exponencial da violência obstétrica com sequelas e morte, tendo a necessidade de intervenção com brevidade. 7,8) Pesquisas brasileiras revelam que 25 % das mulheres sofreram algum tipo de violência durante o trabalho de parto, parto, puerpério ou aborto, sendo alguns destes atos ou ações naturalizados pelas próprias mulheres, em decorrência da ausência de conhecimento adequado sobre o fenômeno. 9
Outro estudo apontou alto percentual de maternidades que realizam intervenções desnecessárias, caracterizadas por: 63,5 % de uso de cáteter venoso, 4,3 % de uso de drogas uterotônicas e 86,3 % de manutenção da posição de litotomia, práticas nitidamente enquadradas em violência obstétrica e que acontecem nos casos de abortamento. 10
No México, a violência obstétrica é discriminatória, pois os profissionais de saúde reprimem as práticas culturais das mulheres por meio de: negligência; ausência de privacidade durante os procedimentos; uso de tecnologias desnecessárias; abuso verbal e psicológico; e negação da autonomia feminina acerca da decisão e preferência sobre o seu corpo. 11
Nesse sentido, nota-se a premência por mudanças nas práticas assistenciais de saúde, de modo a respeitar as particularidades, as dores, as vulnerabilidades e subjetividades de cada mulher que vivencia o processo do abortamento, sem julgamentos e com foco na humanização e nas evidências científicas. 12) Justifica-se o estudo em tela na medida em que se propõe explorar um objeto de grande magnitude social, com elevadas taxas de mortalidade e complicações que afetam a qualidade de vida das mulheres, em especial, aquelas que abortam.
Diante do exposto, surgiu a seguinte indagação: Quais as práticas assistenciais de saúde desenvolvidas no processo de abortamento são tipificadas como violência obstétrica? Desse modo, definiu-se como objetivo: analisar as práticas assistenciais de saúde no processo do abortamento tipificadas como violência obstétrica. Sendo assim, a relevância social e científica da pesquisa centra-se na necessidade de maior compreensão e aprofundamento sobre o assunto, na melhoria das práticas assistenciais de saúde às mulheres em processo de abortamento e que estas sejam centradas na humanização, qualidade e protagonismo feminino.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo e descritivo, centrado no paradigma construtivista, que possui caráter dinâmico, manifestado através do desenvolvimento de conceitos, a partir de fatos e opiniões, possibilitando um formato que vai além de algo previsível e mensurável.13
O estudo foi realizado em um hospital público localizado no Brasil. Este serviço atende a população local e municípios vizinhos, oferecendo atendimento obstétrico e pediátrico. Dispõe de 105 leitos de internação, sendo 10 de Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN), 25 de Semi-intensiva, 5 no Centro de Parto Normal (CPN) Intra-hospitalar e conta com uma maternidade de referência na região.
As/os participantes do estudo foram as/os aprofissionais de saúde de nível médio e superior, escolhidas/os por amostra de conveniência, respeitando os seguintes critérios de inclusão: ser concursada/o ou contratada/o pela instituição, ter assistido mulheres em processo de abortamento. Os critérios de exclusão foram: estar em processo de adoecimento ou de licença do serviço por qualquer outro motivo. Ressalta-se que os pesquisadores não conheciam anteriormente ou possuíam vínculo com as/os participantes do estudo. Todas/os as/os participantes que assistiram mulheres em processo de abortamento foram convidadas/os e apenas 15 atendiam aos critérios de inclusão, constituindo a população elegível do estudo.
Após aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Santa Cruz, foi realizada uma reunião com o Coordenador de Educação Permanente e com a coordenadora de Enfermagem do hospital, no qual a pesquisadora responsável esclareceu juntamente com a sua equipe composta por dois bolsistas de iniciação científica devidamente capacitados para a coleta, um docente em saúde da mulher, uma mestranda em enfermagem e uma enfermeira assistencial sobre os objetivos da pesquisa e a forma em que a mesma seria realizada. Em seguida, todos foram apresentados à equipe do hospital, momento em que os mesmos puderam explicar novamente acerca da pesquisa, ocorrendo então, a primeira aproximação com as/os participantes.
Antes de começar a entrevista, o participante foi informado de forma pormenorizada sobre os objetivos da pesquisa, com apresentação e posterior assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), demonstrando a sua anuência em participar do estudo.
A coleta dos dados foi realizada de forma presencial, no mês de novembro de 2022, respeitando os protocolos vigentes da pandemia causada pelo COVID-19 e o interesse da/o participante, utilizando como instrumento um roteiro de entrevista semiestruturada, envolvendo perguntas abertas, tais como: “Você já presenciou alguma situação de maus tratos às mulheres em processo de abortamento feita por profissionais de saúde (grosseria, ameaça, gritos ou humilhações, piadas, comentários maldosos, risadas sem motivo)?”, “Quais os procedimentos que você costuma fazer ao assistir as mulheres em processo de abortamento?”, “Você já realizou ou viu alguém realizar uma intervenção desnecessária à mulher em processo de abortamento?”, gravadas em aparelho digital. A média das entrevistas foi de 20 minutos e o encerramento da coleta deu-se por saturação teórica dos dados.
Em seguida, todas as entrevistas foram transcritas para posterior leitura e análise pela técnica de conteúdo temática proposta por Bardin, através das fases de pré-análise: momento em que todas as entrevistas foram transcritas e lidas atentivamente; exploração do material: fase em que as entrevistas foram lidas em profundidade e codificadas; tratamento dos resultados e interpretação: etapa que envolve a categorização dos temas apresentados nos discursos dos participantes. 14
O estudo seguiu as Resoluções n.º 466/2012 e n.º 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que assegura os direitos e deveres de todas/os as/os participantes e dispõe sobre a relação pesquisador-participante. 15,16 Todas as/os participantes foram nomeadas/os por uma letra “E” seguida de número cardinal a fim de garantir o anonimato. Por fim, o material coletado e analisado será arquivado por um prazo de cinco anos, sendo excluídos após esse período.
Resultados e análise
Participaram da pesquisa 15 profissionais de saúde, por este número corresponder ao 100 % dos que assistiram mulheres em processo de abortamento, sendo 13 do sexo feminino e dois do sexo masculino, o intervalo de idade variou entre 26 e 50 anos. No que se refere a cor/etnia, sete se autodeclararam pardas, cinco pretas e três brancas. Quanto à religião, oito intitularam-se católicas, três evangélicas, uma protestante, uma espírita e dois não possuem religião.
Em relação ao perfil profissional, sete possuíam nível médio, todas técnicas de enfermagem, e oito nível superior, sendo seis enfermeiras/os, uma médica e uma nutricionista. Sobre o tempo de formação, variou de dois a 24 anos, sendo que o período de atuação no hospital transitou de seis meses a um ano. Após caracterização do perfil, passou-se a leitura atentiva dos depoimentos das participantes, codificação dos temas apresentados nos discursos com relação às questões de pesquisa e a definição de uma categoria. Esta categoria evidencia que as práticas assistenciais às mulheres que vivenciaram o processo do abortamento são carregadas de preconceitos e estigmas com juízo de valor por parte do profissional de saúde, desvalorizando queixas e causando desvalia às necessidades da usuária, como detalhada a seguir:
Preconceito, estigma e desvalia às mulheres no processo de abortamento: a demonstração da violência obstétrica
Nota-se que as práticas assistenciais de saúde caracterizadas como violência obstétrica são manifestadas ao manterem as mulheres em processo de abortamento no mesmo espaço que parturientes, recém-nascidos (RN) e gestantes, algo identificado abaixo:
Aqui eu não acho legal o local onde elas estão ficando. Porque está ficando aqui na enfermaria do canguru. Aonde a gente recebe RN. Então acho que não é o ideal. O lugar não é aqui (E11).
Acho que mulheres em processo de aborto não deveriam ficar junto com outras mulheres, no mesmo quarto. Uma coisa que eu mudaria aqui era isso (E9).
Eu acho que na verdade esse hospital, quem fez ele não tinha noção nenhuma do que é maternidade, tem muita coisa assim que precisava ser revista e o primeiro passo é que a paciente que está vítima de abortamento, não sei se ela induziu, se ela perdeu o sonho da vida dela, ela não deveria estar nem próxima de mulheres gestantes ou de crianças (E13).
Nesse hospital eu acho que poderia ter mais privacidade, elas ficam muitas vezes aqui na emergência, misturadas com mulheres que estão induzindo, que estão em trabalho de parto (...) muitas vezes elas ficam aí aguardando jejum para fazer curetagem, no meio de mulheres parindo, sendo que elas estão num momento de perda (E8).
Eu acho que tem que ter um quarto separado para elas. Porque elas só ficam separadas se estiver muito cheio aqui (E3).
Os relatos acima ressaltam a importância da infraestrutura hospitalar para um acolhimento satisfatório da mulher no processo do abortamento. A condição física dos locais onde as gestantes, parturientes, puérperas e mulheres em processo de abortamento são cuidadas, deve ser a melhor possível a fim de garantir o respeito aos seus direitos, algo que não se percebe no estudo.
Ademais, foi possível observar que as/os profissionais de saúde potencializam seus preconceitos, crenças, estigmas e opiniões das mais diversas, durante as suas práticas, constituindo violência obstétrica e ocasionando prejuízos às mulheres em processo de abortamento, como sinalizado a seguir:
Ah, você já tem seis filhos, então menos um não faz diferença, você tem seis, vai ficar com seis (E10).
Eu acho que em vez de conscientizar que ela possa fazer o que ela quiser com o corpo dela, conscientizar que um feto também é um ser vivente, que a partir do momento que ele fecundou, já começa a bater o coração, já começa a sentir (E4).
Independentemente da perspectiva pessoal e religiosa de qualquer profissional de saúde, existe uma clara violação aos direitos existenciais da mulher que vivencia o processo do abortamento, através de um comportamento que ultrapassa os limites da impessoalidade. Quando o profissional de saúde emite um juízo de valor acerca da realização do aborto de uma mulher, ele age imprudentemente no que tange aos valores individuais da usuária.
Associado a isso, evidencia-se que há uma diferença no tratamento às mulheres quando o aborto foi provocado. As ações do profissional de saúde apontam a mulher em processo de abortamento de forma ameaçadora, agressiva ou estigmatizante, conforme observado nas falas a seguir:
Vou de acordo ao que eu percebo na paciente, se eu percebo que ela está sentida, está chorosa, está triste, aí você se comove com a situação, dá até um conforto. Mas quando você vê que a paciente não tá nem aí, boa sorte! Só faço o que tem que fazer, que é dar os sinais vitais, medicação, olhar o sangramento, e pronto. Porque eu vi que não tem muito carinho, não houve esse sentimento em perder o bebê (E2).
Já presenciei por diversas vezes uns profissionais questionando: ah, fulana de tal, paciente está chorando ali, será que ela não tirou esse menino e está fazendo drama? Está fazendo teatro para a gente poder tratar ela melhor e ficar com pena dela? (E13).
Já presenciei de um médico, ele entrou na sala e falou que se ela continuasse gritando, que ele iria embora (E9).
A presunção subjetiva do profissional é o referencial para determinar o cuidado às mulheres em situação de abortamento. Novamente, há uma caracterização da violência obstétrica, visto que o cuidado se torna na prática uma arbitrariedade do profissional ao invés de um dever existente em uma relação dialética com o direito da mulher, livre de qualquer forma de discriminação.
Assim, torna-se fácil compreender que: se o dever se transforma em uma escolha, a mulher se torna dependente das vontades daquele/a encarregado/a de cuidá-la. Dessa forma, dá-se o poder para ameaçar e recusar-se a cumprir com a garantia da saúde, provocando danos irreversíveis, impossíveis de serem corrigidos pela lei.
Além disso, as mulheres em processo de abortamento são constantemente descredibilizadas, e não podem expressar seus sentimentos porque sua assistência tende a ser negligenciada, como verificado abaixo:
Às vezes eu vejo aqui pessoas que falam que está sentindo dor, a gente tem que se atentar se é só uma birrazinha (E14).
Discussão
Sabe-se que a violência obstétrica não é perpetrada por um único tipo de profissional de saúde, podendo ser cometida por qualquer profissional que esteja assistindo a mulher durante o processo do abortamento, dentre os quais médicos, enfermeiras, anestesistas, técnicos de enfermagem, recepcionistas, administradores e outros, como evidenciado nos resultados deste estudo. Nota-se que profissionais de nível médio, na maioria das vezes, definidos como recepcionistas e da saúde, a exemplo de técnicos de enfermagem, médicos, enfermeiros e nutricionistas foram as categorias profissionais encontradas perpetrando violência obstétrica no processo de abortamento. 17
Neste contexto, a forma como a mulher que vivencia o processo do abortamento é recebida no serviço, afetará no conforto e satisfação da mesma, que muitas vezes, não terá suas dúvidas esclarecidas, não será acolhida e respeitada, resultando na intensificação do sofrimento físico e psíquico. Ademais, situações relacionadas à infraestrutura inadequada das instituições prejudicam a assistência prestada às mulheres em processo de abortamento, com destaque ao compartilhamento do ambiente de internação com gestantes e parturientes com filhos vivos, o que tende a dificultar o enfrentamento e superação. Alocar mulheres que abortaram junto com gestantes, parturientes, puérperas e seus RNs é algo temerário e considerado violência obstétrica, visto que tal situação pode ocasionar quadros de depressão, trauma e até influenciar essas mulheres a não buscar o serviço de saúde. (18
Apesar de a violência obstétrica ser bastante recorrente no Brasil, ainda é um tema pouco conhecido e discutido, especialmente quando relacionado ao abortamento, tendo sido incorporado gradativamente ao processo de formação das/os profissionais da área de saúde nos últimos 5 a 10 anos, o que pode contribuir para a sua expansão. 17,18
Além disso, a violência obstétrica perpassa por vários níveis de complexidade, desde a atenção primária, secundária até a terciária, não mantendo-se restrita aos ambientes hospitalares. Este tipo de violência contra a mulher em processo de abortamento ocorre nos espaços públicos e privados de assistência, demandando intervenção imediata para sua mitigação. 19
Ressalta-se ainda que as práticas tipificadas como violência obstétrica representam uma grave violação dos direitos humanos e, portanto, devem ser compreendidas como um problema de saúde pública que atinge a cidadania e protagonismo das mulheres no processo de abortamento, demandando enfrentamento com celeridade. 20,22
Convém salientar que, a violência obstétrica é também um fenômeno social preocupante e acaba por ser majorada quando as mulheres vivenciam o abortamento, muitas vezes manifestada através de questionamentos desnecessários por parte da equipe de saúde, com tratamento focado puramente no procedimento, com repreensão e julgamentos, falta de apoio psicológico além das questões organizacionais e estruturais como falta de insumos ou leitos adequados e número de equipe desproporcional para prestar uma assistência mais adequada. 7
Verifica-se ainda práticas relacionadas à demora e/ou negação do atendimento às mulheres que abortaram com a intenção de descobrir as causas, se foi intencional ou não; além do mais, nota-se a presença de ameaças, intimidação, realização de procedimentos invasivos sem o consentimento da mulher, na maioria das vezes sem anestesia. 23
Pesquisa realizada em uma instituição de referência ao aborto evidenciou a presença de práticas de violência obstétrica institucional, psicológica, por princípios religiosos e por negligência; sendo a última intimamente relacionada a questões que envolvam valores individuais e julgamentos morais dos profissionais de saúde, sendo manifestados por atos de recriminação e desrespeito por parte dos mesmos. A utilização de valores pessoais na assistência contribui na naturalização de práticas discriminatórias e violentas. Desse modo, torna-se imprescindível trabalhar com as condições de vulnerabilidade das mulheres que estão em processo de abortamento, sendo necessário desconstruir valores morais e religiosos por parte dos profissionais de saúde, permitindo que estas usuárias possam ser assistidas com respeito e humanização. 24
Destaca-se que as práticas assistenciais às mulheres em processo de abortamento que tenham caráter altamente punitivo, sem considerar os desejos e as mazelas sociais, são altamente excludentes e inapropriadas. 25) Considerar a tipificação de abortamento provocado ou espontâneo para determinar o tipo de conduta assistencial é algo que deve ser coibido integralmente no cuidado a essas mulheres. Negar analgésico e anestésico durante a realização dos procedimentos e minimizar as queixas, é algo inadmissível na assistência à mulher em processo de abortamento. 26,27
Estudo feito com residentes em enfermagem obstétrica de uma instituição filantrópica aponta a presença de negligência, desrespeito, imposição de valores, julgamento moral, quebra de sigilo, invasão de privacidade e recusa no atendimento às mulheres em processo de abortamento, demonstrando a hierarquia e autoridade dos profissionais nas rotinas institucionais como forma de ameaça ao direito à vida, saúde, integridade física e psicológica. 26
Relatos de profissionais que atuam nas maternidades demonstram a dificuldade que os mesmos possuem em lidar com mulheres em processo de abortamento, por colocarem como prioridade os preconceitos, discriminação e punição na assistência prestada, demonstrando a necessidade de capacitação dos profissionais para lidar com tal problemática de forma respeitosa. 28
Por fim, ampliar o conhecimento das/os profissionais de saúde sobre formas de cuidado à mulher em processo de abortamento será fundamental para superar a violência obstétrica e permitir que a assistência seja realizada com base no acolhimento, resolutividade, respeito e imbuídos das melhores evidências científicas. 29,30 Para tanto, entende-se que as/os profissionais de saúde devem oferecer o cuidado livre de julgamentos às mulheres em abortamento, exercendo a abordagem empática, tornando o processo menos difícil e doloroso.
A limitação do estudo centra-se no recorte do objeto, o processo do abortamento, embora se saiba que a violência obstétrica abarca as mulheres durante o pré-natal, parto e puérperio. Além disso, o menor quantitativo de participantes dar-se por parte dos profissionais de saúde do local escolhido para o estudo não ter assistido mulheres durante o abortamento.
Conclusões
A investigação lançou luz sobre a existência de práticas classificadas como violência obstétrica, evidenciadas pelos depoimentos de profissionais de saúde. Dentre essas práticas, destaca-se a colocação da mulher em processo abortivo no mesmo espaço da gestante, da puérpera e do recém-nascido, o que resultou no tratamento exclusivo das usuárias que optaram pelo aborto provocado. Além disso, observou-se que essas práticas levam a uma assistência impregnada de crenças, preconceitos, estigmas, opiniões e julgamentos, sendo minimizadas as queixas apresentadas pelas mulheres acometidas.
Diante disso, fica evidente a necessidade urgente de uma intervenção mais sólida e efetiva por parte dos gestores e coordenadores dos serviços de saúde. É fundamental a implementação de políticas e protocolos claros para prevenir ocorrências de violência obstétrica no cotidiano de trabalho das equipes de saúde. Da mesma forma, é necessária uma maior conscientização e treinamento do pessoal médico para garantir um tratamento respeitoso, compassivo e imparcial para todas as usuárias, independentemente de suas decisões sobre a gravidez. A construção de um ambiente de cuidado seguro e empático é fundamental para garantir o bem-estar da mulher nesse processo.
A pesquisa contribui para a Ciência e Saúde das Mulheres, pois apresenta as práticas de violência obstétrica em mulheres que passam pelo processo do abortamento, permitindo que possamos atuar sobre os constructos sociais, culturais e biológicos do aborto entre os profissionais de saúde, melhorando a assistência prestada.