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Enfermería: Cuidados Humanizados
versión impresa ISSN 1688-8375versión On-line ISSN 2393-6606
Enfermería (Montevideo) vol.12 no.2 Montevideo 2023 Epub 01-Dic-2023
https://doi.org/10.22235/ech.v12i2.3755
Editorial
Viver dignamente, morrer reconhecido
1Universidad Católica del Uruguay, Uruguay, miguel.pastorino@ucu.edu.uy
Por muito tempo, o sofrimento e a morte ficaram presos ao âmbito médico, reduzidos a um fato biológico, esquecendo-se de outras dimensões da existência humana que dão sentido à vida, ao sofrimento e à morte. Morrer é algo mais do que um evento biológico, é um processo relacional junto a outros, é um fato biográfico, uma experiência profundamente humana para aqueles que sabem que vão morrer e para os mais próximos a eles. Cada vez mais, há um chamado a reexaminar a vida e a morte com maior profundidade, ampliando o horizonte cultural e espiritual a fim de abraçar a morte humanamente.
Um problema sociocultural é que a morte se tornou um tabu e, por ser um assunto proibido, é descartada o mais rápido possível para que não se pense muito em seu significado. Essa fuga cultural da morte a esquece e a desumaniza. 1
No entanto, existem aqueles que estão transformando progressivamente as relações entre o pessoal de saúde, os pacientes e as famílias, seja no caso de doenças crônicas ou de risco de morte: são as equipes de cuidados paliativos, que, mais do que uma especialidade, formam um novo paradigma na relação com os pacientes, o pessoal de saúde e as famílias. Uma nova perspectiva antropológica e ética que denuncia os reducionismos materialistas e mecanicistas que há muito tempo dominaram a abordagem das ciências da saúde.
Por trás de toda perspectiva ética, há uma visão antropológica, uma apreciação da vida, de como a dignidade inerente à condição humana é compreendida. Uma nova apreciação e aceitação de nossa vulnerabilidade e dependência, que é constitutiva de nós como seres humanos, desconstrói o mito moderno individualista do ser humano como um ser naturalmente autônomo e autossuficiente. A realidade e as evidências empíricas colocam em crise um modelo antropológico que se esquece do que nos torna o que somos: nossa condição de seres relacionais, interdependentes e vulneráveis, que precisam uns dos outros. O cuidado humaniza tanto a pessoa cuidada quanto o cuidador, e humaniza a sociedade como um todo.
A ética do cuidado
A dimensão ética dos cuidados paliativos está ligada a uma noção mais ampla de como tratamos uns aos outros, a uma interpretação mais profunda da dignidade humana. “Estão ligados à ideia ética do reconhecimento do outro em toda a sua amplitude”. 2 A mudança de mentalidade na visão do paciente a partir do reconhecimento de sua dignidade intrínseca implica que não é mais possível afirmar que “nada pode ser feito” quando ele não pode ser curado. Porque sempre se pode fazer algo pelo outro: cuidar, aliviar, acompanhar. Além disso, o reconhecimento do valor do outro como pessoa não depende de sua condição ou situação, nem mesmo da perda de sua autonomia. Morrer dignamente é morrer reconhecido, respeitado em sua dignidade de pessoa humana, o que nunca deixa de ser até a morte.
Reconhecer o outro implica aceitar que todos nós possuímos um valor que não pode diminuir, um valor que não muda; este valor de toda vida humana que chamamos dignidade. Respeitar a autonomia do outro é uma das formas de reconhecer sua dignidade, mas não é a única, nem a mais importante. Porque, mesmo que alguém peça, você não pode abandoná-lo ou prejudicá-lo, não pode violar sua dignidade. Caso alguém nos diga que é um fardo e que não merece ser cuidado, se nos importamos com ele, não deixaríamos de cuida-losempre e o faríamos sentir que não é um fardo, mas alguém valioso, único e irrepetível a quem queremos dedicar nosso tempo.
Nós nos vemos pela forma como os outros nos veem e, em uma sociedade em que predominam os valores de lucratividade, produtividade e eficicácia, uma condição que limita as possibilidades de vida é sentida como uma diminuição do valor da vida e faz com que as pessoas se desprezem, como se fossem um “fardo” para os outros.
Somente o olhar do outro, que reconhece, respeita e valoriza, pode restaurar a estima e o reconhecimento da dignidade. Somente o olhar capaz de aceitar a própria vulnerabilidade é capaz de abraçar o outro com compaixão.
A hipertrofia da autonomía
Na bioética, a importância do princípio da autonomia e o reconhecimento da liberdade do paciente se desenvolveram a partir do consentimento informado, das diretivas antecipadas e até mesmo do testamento vital, com leis que vêm consagrando os direitos do paciente em respeito à sua autonomia, em reconhecimento à sua dignidade. Isso gerou um progresso significativo com relação ao paternalismo médico que, em nome do princípio da beneficência, poderia subjugar a liberdade do paciente.
Atualmente, no entanto, a balança está se inclinando para o outro extremo, para uma hipertrofia da autonomia que transforma o profissional de saúde em um mero dispensador de serviços, enfraquece a aliança terapêutica e abandona o paciente “porque a decisão é dele”.
Hoje em dia, há uma supervalorização idealizada da autonomia individual e há uma tendência a pensar que, se alguém pede algo, devemos atender ao pedido sem fazer mais perguntas, porque a outra pessoa é a dona de sua decisão. Isso implica riscos, especialmente para pessoas vulneráveis que estão sofrendo muito e são cercadas por pressões sociais e emocionais, ou que se sentem um fardo para os outros. “Respeitar a decisão” pode ser uma forma sutil de abandono do paciente, se não houver um discernimento profundo do que está por trás do desejo de morrer ou de resistir a determinados cuidados.
Desde Platão até os dias de hoje, sabemos que nem todas as formas de agir são igualmente válidas do ponto de vista ético, que há ações que podemos julgar como louváveis ou condenáveis. Buscar a autonomia garante que eles serão livres para agir, mas não garante nada sobre a bondade de suas ações. O fato de as decisões serem livres não as torna simultaneamente boas, nem humanizadas, nem necessariamente desejáveis.
Dizer que uma decisão foi livre não diz nada sobre sua bondade: apenas que ela foi tomada livremente. Assim, o fundamento mais importante do discernimento ético é o respeito pela dignidade inerente de cada pessoa, que não é diminuída ou relativizada por sua situação, ou porque ela se sente subjetivamente indigna. O fato de alguém não se valorizar não o torna menos valioso. Pois se a dignidade é subjetiva, o respeito aos direitos humanos dependeria de como cada pessoa se sente ou se acredita que merece ser bem tratada ou não.
Ser mais dependente não nos torna menos humanos, nem menos dignos. Temos a experiência de que, quando alguém já perdeu sua autonomia física e psicológica, podemos amá-lo, respeitá-lo, valorizá-lo por sua dignidade como ser humano, esteja ele ciente ou não de nossos cuidados, porque ele é amável por si mesmo, não por seu estado ou qualidade de vida.
Ajudar a viver e morrer com sentido
Em uma sociedade em que nem sempre há tempo ou lugar para compaixão, nem para refletir sobre a morte, e sim para o rápido desaparecimento do que nos rouba uma vida agradável e autossuficiente, não é de surpreender que a “dignidade” seja confundida com “qualidade de vida” e que a felicidade seja reduzida a “bem-estar”.
Especialistas em direitos humanos da ONU expressaram alarme em 2021 com a tendência crescente de promulgar leis que permitem o acesso à morte medicamente assistida com base no fato de ter uma deficiência ou condições incapacitantes. 3
Nesse contexto niilista em que vivemos, o sofrimento também é evitado, como se não fizesse parte da vida. Nos últimos anos, surgiram mais analgésicos do que em toda a história da farmacologia. Atualmente, o limite para declarar o sofrimento “insuportável” é cada vez mais baixo e é uma realidade muito subjetiva. O que está faltando hoje são fontes de significado, valores e narrativas que deem sentido à existência e ao sofrimento inevitável. Pois, como disse Nietzsche na Genealogia da Moral, o pior sofrimento é aquele que não tem sentido. 4)
O psiquiatra e filósofo judeu Victor Frankl, que sobreviveu aos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e criou a Logoterapia, descobriu que a falta de sentido como “vazio existencial” é uma das principais causas da neurose. Sobre esse assunto, em um congresso internacional em 1971, ele declarou: “O médico é confrontado hoje com questões que não são de natureza médica, mas filosófica, e para as quais ele dificilmente está preparado. Os pacientes procuram os psiquiatras porque duvidam do significado de suas vidas ou se desesperam por não conseguir encontrá-lo”. E, sobre essa questão, ele cita o professor Farnsworth e diz: “A medicina hoje se depara com a tarefa de expandir seu papel. Em um período de crise como o que estamos vivendo agora, os médicos devem cultivar a filosofia. A grande doença de nosso tempo é a falta de objetivo, o tédio, a falta de sentido e a falta de propósito”. 5
Ao reler o texto de Frankl, lembrei-me e expressei minha gratidão por todo o bem que os profissionais de cuidados paliativos fazem à nossa sociedade, por toda vida humana tratada com respeito, aliviada de seu sofrimento, reconhecida em sua dignidade. Isso requer não apenas técnicos e especialistas em determinadas áreas do conhecimento, mas profissionais que ajudem a viver e a morrer com dignidade, ou seja, com sentido, em qualquer circunstância da vida. Em seus cuidados, essas pessoas nos lembram o que significa ser humano.
REFERÊNCIAS
1. Ariès, P. Morir en Occidente: desde la Edad Media hasta nuestros días. Buenos Aires: Adriana Hidalgo; 2012. [ Links ]
2. Fascioli, A. Los cuidados paliativos al final de la vida: expresión del reconocimiento del otro. Enfermería: Cuidados Humanizados. 2016;5(2):46-53. doi: 10.22235/ech.v5i2.1288 [ Links ]
3. United Nations. Disability is not a reason to sanction medically assisted dying - UN experts (Internet). Office of the High Commissioner for Human Rights; 2021 (citado 2023 nov 10). Disponible en Disponible en https://www.ohchr.org/en/press-releases/2021/01/disability-not-reason-sanction-medically-assisted-dying-un-experts?LangID=E&NewsID=26687 [ Links ]
4. Nietzsche, F. Genealogía de la moral (6ª reimp.). Madrid: Alianza; 2005. [ Links ]
5. Frankl, V. El hombre doliente. Barcelona: Herder; 2009. [ Links ]