Introdução
A resolubilidade da assistência em saúde é um conceito de fundamental importância, pois está associada à resolução final dos problemas trazidos pelos usuários ao serviço e à satisfação dos mesmos. (1) Desta forma, considera-se a resolubilidade uma resposta satisfatória que o serviço fornece ao usuário quando busca atendimento para alguma necessidade de saúde. Não se limita exclusivamente à cura de doenças, mas abarca também o alívio do sofrimento, promoção e manutenção da saúde. 1
Neste cenário, em que as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) figuram como principal causa de mortalidade no Brasil e importante problema de saúde pública 2 compete a enfermagem a tarefa de acolher as necessidades de saúde da população. 3
Dentre estas, estima-se que em 2017 o Diabetes Mellitus (DM) tenha acometido aproximadamente 12,5 milhões de brasileiros 4 e colocou o país em quarto lugar entre os 10 países com maior número de casos da doença, 5 e cujas complicações tardias podem ocasionar perda visual. 3
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), globalmente, pelo menos 2,2 bilhões de pessoas no mundo convivem com deficiência visual ou cegueira, sendo que um bilhão tem uma deficiência visual que poderia ter sido impedida ou resolvida. 6 No Brasil, em 2018, a estimativa era de 28 mil brasileiros cegos na idade entre 0 e 15 anos; 169 mil entre 15 e 49 anos e 66,3 mil acima dos 50 anos. As causas de deficiência visual são inúmeras e atreladas a região, estrato socioeconômico, sexo, idade, diabetes, dentre outras. 7
Uma ampla variedade de estratégias de promoção da saúde, prevenção da doença e tratamento tem sido disponibilizadas para atender as necessidades associadas às doenças oculares ao longo da vida. 6 Neste contexto, a assistência nos diferentes níveis de atenção à saúde visa proporcionar um cuidado individual e/ou coletivo com ênfase na integralidade e na resolubilidade do cuidado. 8
A Política Nacional de Atenção Oftalmológica, instituída pelo Ministério da Saúde do Brasil, instituiu há dez anos não somente ações e estratégias de prevenção e promoção da saúde ocular nos três níveis de atenção à saúde, mas também mostrou a necessidade de promoção do atendimento oftalmológico integral aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), com a estruturação de uma linha de cuidado prevista para perpassar todos os níveis da assistência, visando garantir a integralidade da atenção à saúde. 9,10
Todavia, a existência de portarias e pactuações no plano das políticas de saúde não garantem necessariamente, garante a existência de acesso universal e integral aos indivíduos com demandas oftalmológicas, em especial aos portadores de DM, uma vez que estes estão mais susceptíveis a doenças oculares, como a retinopatia diabética e o edema macular. 11
Assim, frente à magnitude dos atendimentos oftalmológicos realizados em Serviço de Atenção Secundária à Saúde, considera-se que uma das atribuições mais importantes da enfermagem seja sua participação na organização da atenção à saúde, planejada de forma que os serviços de saúde sejam capazes de responder às demandas da população. 9 Neste contexto, a enfermagem exerce um papel abrangente, com uma participação ativa no cuidado, na gestão do serviço e no exercício autônomo da profissão. 13,14
A despeito da relevância da temática, constatou-se na literatura uma escassez de estudos que avaliam a resolubilidade do cuidado oftalmológico nos serviços de atenção secundária à saúde. O foco de investigações recentes tem sido para ações de saúde ocular no âmbito escolar. 15
Diante do exposto, a proposta do estudo foi responder às seguintes questões norteadoras: Existe resolubilidade para o cuidado proposto pelos oftalmologistas em serviço de atenção secundária à saúde? Quais são as dificuldades enfrentadas pelos usuários para realizar esses cuidados? Como esses atendimentos podem ser melhorados?
Ao considerar a complexidade desse tema, pretende-se, a partir do ponto de vista adotado pelos usuários, dar visibilidades a questões pouco abordadas ou veladas e, deste modo, contribuir para a reorganização deste serviço.
Frente ao exposto, este estudo teve como objetivos conhecer os motivos que dificultam a resolubilidade do cuidado oftalmológico na atenção secundária de atenção à saúde, sob a perspectiva do usuário e identificar sugestões de melhoria para a mesma.
Métodos
Trata-se de estudo quali-quantitativo, realizado com pacientes atendidos no Centro Integrado de Saúde de um município do interior de São Paulo, Brasil, no período de abril a dezembro de 2016.
Todos os pacientes que receberam indicação de tratamento oftalmológico no período de novembro de 2013 a novembro de 2015, foram selecionados de um banco de dados e registros do serviço. Foram excluídos aqueles cujo contato telefônico para formalização do convite não foi possível devido à mudança de endereço ou de telefone, falecidos, que se encontravam duplicados no banco de dados, devido consultas repetidas e que não compareceram para realizar o procedimento.
Dos 241 pacientes que receberam indicação de tratamento oftalmológico no período selecionado para estudo, quatro faltaram ao procedimento agendado, sete faleceram e 22 houve insucesso no contato telefônico, totalizando 208 participantes de uma amostra não probabilística.
Inicialmente, foi realizado contato telefônico com os participantes, convidando-os para participar da pesquisa, e após concordância dos mesmos agendada entrevista no Centro Integrado de Saúde. Para tanto, utilizou-se um roteiro semiestruturado para as entrevistas, constituído por duas partes, sendo a primeira para caracterização sociodemográfica dos participantes e a segunda composta por duas questões, a saber: “Na sua opinião, o Sr(a) encontrou dificuldades em realizar o cuidado oftalmológico proposto? Se sim, quais?”; “Na sua percepção, qual a sugestão para a melhoria na realização do cuidado oftalmológico proposto?”
As entrevistas foram realizadas em momento único, individualmente, com vistas a garantir a privacidade do participante, em ambiente reservado neste serviço. O áudio foi gravado em sua totalidade no gravador de voz da pesquisadora, que teve o cuidado para não exercer nenhum tipo de influência na resposta do entrevistado, destruindo as gravações ao final do estudo. O tempo de duração das entrevistas foi em média 20 minutos.
A totalidade das entrevistas foi realizada por uma das pesquisadoras, aluna de programa de pós-graduação na ocasião e os participantes não tinham informações pessoais sobre a mesma.
Optou-se por atribuir a identificação dos depoimentos dos entrevistados pela letra “P” (entrevistado) seguida da numeração que lhes foi atribuída na transcrição das entrevistas.
Considerou-se ainda a resolubilidade a realização dos cuidados oftalmológicos propostos pelo oftalmologista do Centro Integrado de Saúde.
Após as entrevistas, as falas foram transcritas e iniciou-se a análise dos discursos obtidos, utilizando a estratégia metodológica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), fundamentada na teoria das representações sociais. 16
O DSC busca responder e conhecer os pensamentos, representações, crenças e valores de uma coletividade sobre um determinado tema, utilizando-se métodos científicos.17
Os passos metodológicos seguidos desde a obtenção das entrevistas até a síntese do DSC incluíram: (a) leitura do conjunto dos depoimentos coletados nas entrevistas; (b) leitura da resposta a cada pergunta em particular, marcando-se as expressões-chave selecionadas; (c) identificação das ideias centrais de cada resposta; (d) análise de todas as expressões chave e ideias centrais, agrupando as semelhanças em conjuntos homogêneos; (e) identificação e nomeação da ideia central, que será uma síntese das ideias centrais de cada discurso; (f) construção dos discursos do sujeito coletivo após a identificação das ideias centrais e expressões chave que denominaram os referidos discursos do sujeito coletivo. 17
Para garantir a qualidade e a transparência do estudo, adotou-se o uso do relatório de pesquisas qualitativas COREQ. 18
A pesquisa foi iniciada após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, sob parecer número 1.227.288 - CAAE 48082015.9.0000.5411, e realizada mediante a obtenção do Termo De Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por escrito dos participantes.
Results
No que diz respeito à caracterização dos 208 participantes, a idade variou entre 18 e 88 anos, com média de 63 anos, a maioria eram mulheres 126 (60,0 %), de cor branca 191 (92,0 %), que tinham um companheiro 157 (75,4 %) e possuíam ensino médio 133 (64,0 %). Dentre os participantes, apenas 63 (30 %) eram diabéticos.
A partir da análise da transcrição das entrevistas, foram identificadas as ideias centrais e as expressões-chave, e os discursos dos três temas emergiram das questões norteadoras. Os tópicos a seguir são apresentados com suas respectivas ideias centrais e DCS dos pacientes.
A partir da análise da transcrição das entrevistas, foram identificadas as ideias centrais, expressões-chave e organizados os discursos dos três temas que emergiram das questões norteadoras. A seguir, são apresentados os temas com as respectivas ideias centrais e o discurso do sujeito coletivo. Quadro 1.
No Quadro 2 está apresentado o segundo tema “Obstáculos para a realização do cuidado proposto na rede de atenção à saúde” com as respectivas ideias centrais e discurso do sujeito coletivo.
O Quadro 3 apresenta o segundo tema “Contribuições para a melhoria do cuidado oftalmológico” com as respectivas ideias centrais e discurso do sujeito coletivo.
Discussão
Os do estudo apontam que, a despeito do tempo de espera, a resolubilidade do cuidado oftalmológico foi alcançada para muitos participantes do estudo.
Por outro lado, também vem à baila a inexistência de um atendimento que priorize as necessidades emergentes dos usuários. Situação que dificulta o alcance de alguns objetivos básicos do sistema de saúde, como por exemplo, a continuidade dos cuidados, a resolução de problemas no nível adequado com equidade e eficiência, garantidos pelas políticas públicas de saúde ocular de nosso país.
Também traz à baila na fala dos participantes, a inexistência de critérios que priorizem o atendimento aos diabéticos no rastreamento de complicações crônicas. Corroborando a premissa de que os serviços estão atendendo uma demanda espontânea, de forma desarticulada e descontinuada. 19
Fato que compromete os portadores de Diabetes Mellitus (DM), cujos olhos devem ser examinados periodicamente, para a prevenção da cegueira. Fato que certamente denota um retrocesso no cuidado oftalmológico do SUS, que se apresenta multifacetado aos pacientes. De um lado a tão almejada resolubilidade e do outro os inúmeros obstáculos a serem obrigatoriamente vencidos, reforçando a reflexão de que o SUS ainda se apresenta centrado na doença e não na saúde.
O estudo também mostrou que apenas 30 % dos participantes que receberam indicação de cuidado oftalmológico eram diabéticos, apesar desta ser uma das doenças mais prevalentes do país. Fato que nos mostra o quanto este cuidado é ainda negligenciado pelas pessoas, a despeito de todas as suas complicações não somente oculares.
No que se refere aos osbstáculos para a realização do cuidado ocular, os achados evidenciam a dificuldade de comunicação que os pacientes têm com o serviço, tendo como único meio o telefone. Sabe-se que informar alguém do ponto de vista meramente técnico não significa esclarecer. Nesse sentido, sugere-se que a informação seja simples, aproximativa, compreensível e leal, ou seja, disposta dentro dos padrões de entendimento dos participantes.
Constatou-se ainda na fala dos participantes que, muitas vezes, as informações veiculadas nos meios de comunicação e ou disponibilizados pelo serviço são incorretas e imprecisas. É de supor que este problema ocorra em virtude de ser realizada por pessoas sem a devida capacitação técnica.
Para tanto, uma das proposições de melhoria, evidenciada nos discursos, foi de facilitar o acesso a consultas e exames, situação que depende dos meios efetivos de comunicação disponibilizados pelos serviços, devendo eles serem acessíveis à população.
Um estudo realizado numa cidade Escocesa mostrou que um simples instrumento de comunicação para assegurar a transferência segura da informação pode agilizar a informação compartilhada entre a equipe de serviços de atenção secundária e contribuir para redução de importantes atrasos. 20
Neste estudo, também foi mencionada pelos participantes a necessidade de melhoria de condições para avaliação médica. A falta de materiais e equipamentos desvelada nos discursos evidencia que a oftalmologia, diferentemente do que ocorre em outras especialidades médicas, requer um grande investimento dos gestores na aquisição de equipamentos. Contudo, o que se presencia é um serviço com pouca infraestrutura, desafiando cada vez mais os profissionais de saúde no que tange ao atendimento da população em situação de vulnerabilidade, que requer atendimento oftalmológico. 21
Logo, a realidade que se descortina na percepção dos usuários entrevistados neste estudo provoca inquietação frente a atual situação precária do cuidado oftalmológico no SUS, com equipamentos quebrados e ou mesmo déficit deles para realização de exames de maior complexidade. O cuidado oftalmológico no SUS representa um desafio enfrentado individualmente por cada um dos indivíduos que dependem do único recurso de que dispõem para produzir suas condições de existência: a saúde.
Este achado reforça a necessidade de se construir um modelo de atenção à saúde que garanta a estruturação dos serviços considerando a dignidade dos pacientes como cidadãos.22
Nesta perspectiva, a contratação de mais médicos sugerida pelos participantes do estudo, esta não é uma opinião consensual na literatura. O entendimento é de que não há falta de profissionais, mas falta de acesso adequado aos usuários do SUS. 23
Os dados coletados no estudo também evidenciaram que ser tratado no próprio município poderia contribuir para melhor resolubilidade do cuidado oftalmológico. Isto mostra que os pacientes são incorporados aos serviços para os quais foram referenciados, porém, não regulados aos pontos de origem, ou quando o são, esse retorno não é formalizado.24,25 Fato que nos incita a reflexão acerca da inexistência e/ou não efetividade, bem como o desconhecimento de um sistema de contrarreferência por parte dos usuários do SUS.
Assim, o cuidado em oftalmologia disponibilizado no SUS enfrenta um duplo desafio: garantir o atendimento integral aos usuários e, ao mesmo tempo, implantar redes de atenção à saúde que possam sanar as necessidades, uma vez que persistem as dificuldades de acesso e desigualdades. A literatura internacional sobre a prevenção da cegueira demonstra que na América Latina 60 % da população não tem acesso aos cuidados oculares, em decorrência da falta de política adequada e o desenvolvimento de projetos que criem melhores condições para a saúde ocular. 26
Por conseguinte, os programas voltados para a saúde ocular devem ter como base três pilares fundamentais: desenvolvimento de recursos humanos, de infraestrutura, bem como a integração dos cuidados oculares básicos aos cuidados primários de saúde.
O ponto central é de que forma poderia ser dada uma atenção individual e coletiva, integral e diferenciada para os usuários que apresentam problemas tão distintos. E como os gestores dos serviços de saúde devem promover a saúde ocular integral através do SUS, tal qual se apresenta hoje o sistema, com dificuldades de acesso, equidade, vínculo e de atendimento integral continuado e resolutivo para os usuários que procuram os serviços. 27
Neste âmbito, os enfermeiros têm a missão de estabelecer relações mais democráticas com os usuários e desenvolver propostas terapêuticas comprometidas com as diretrizes do SUS e com a Política Nacional de Atenção Oftalmológica, que primam pelo cuidado humanizado, com foco no indivíduo e em seus aspectos biopsicossociais. 14
Em suma, confere aos profissionais de saúde a difícil tarefa de implementar cuidados oculares centrados nas pessoas e integrados nos sistemas de saúde, e tornar o atendimento oftalmológico parte integrante da cobertura universal de saúde.
Por fim, reconhece-se que uma das limitações desta pesquisa está relacionada ao fato de ter sido realizado em um único centro e com características regionais. Outro fator a ser considerado, refere-se ao viés de memória, alusivo ao tempo transcorrido entre o atendimento no Centro integrado de Saúde e a realização das entrevistas pela pesquisadora. Além disso, a escassez de estudos sobre o tema na rede de atenção à saúde dificultou a comparação dos resultados, o que reforça a necessidade de outras pesquisas nesta área.
Conclusão
As dificuldades desveladas pelos usuários para a resolubilidade do cuidado oftalmológico na atenção secundária refletem a falta de organização desse serviço, que além de não priorizar os atendimentos também não se compromete com o devido encaminhamento e acompanhamento adequado.
Na análise dos discursos evidenciou-se também que a inexistência de classificação de risco para priorizar o atendimento é um fator que contribui não somente para a demora do atendimento, mas também para agravar potenciais complicações decorrentes do diabetes.
Além disso, os resultados também evidenciam que o município onde a pesquisa foi realizada não possui controle dos desfechos das solicitações de avaliação oftalmológica.
Por fim, espera-se que os resultados do estudo, impulsionado pela enfermagem, possam contribuir para reorganização do serviço por meio de uma atuação e abordagem coletiva dos gestores e serviços de saúde no combate ao agravamento e das condições de saúde ocular, que afetam diretamente a saúde e a vida da população.