Introdução
Com o desenvolvimento científico e tecnológico, a apropriação do conjunto de conhecimentos oriundos das ciências naturais, denominado de scientific literacy nos anos de 1950, passou a ser considerada importante e essencial para que os indivíduos possam compreender o mundo e suas inovações e, consequentemente, agir com maior consciência sobre o ambiente (Teixeira, 2013).
Nesse sentido, ao considerar a educação científica como precursora da cidadania, é dada a necessidade de (re)pensar e (re)avaliar as conexões desta com a formação inicial de professores visando possibilitar a vivência e a aquisição de maneiras de pensar que auxiliem a promover a alfabetização científica quando atuarem na educação básica. Torna-se imperativo a necessidade de criar uma cultura científica pública e que permita ao indivíduo empoderar-se do saber científico.
Por outro lado, os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) (2015), divulgados em novembro de 2016, indicam o quanto o ensino de ciências no Brasil está distante da alfabetização científica (AC). Naquele ano, 56,6 % dos estudantes avaliados pelo PISA encontravam-se no nível um de proficiência em ciências, em uma escala que vai de um a seis (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, OCDE, 2016). Ou seja, mais da metade dos estudantes apresentaram conhecimentos mínimos em ciências. Diante desse quadro, é inevitável pensar como a formação docente poderia modificá-lo.
No entanto, é importante reconhecer que a formação de professores é uma tarefa complexa. Ao mesmo tempo que precisa preparar o futuro professor para os aspectos conceituais, é importante desenvolver saberes pedagógicos e didáticos a fim de fornecer subsídios metodológicos para o licenciando. No caso das licenciaturas em Ciências Biológicas, Química e Física ou Ciências da Natureza, ainda seria de extrema valia que aspectos epistemológicos da ciência fossem aprofundados a fim de fornecer bases para efetivação de práticas voltadas à AC.
Nesse sentido, a questão que orienta esse trabalho é como um curso de Ciências da Natureza - Licenciatura possibilita a construção de referenciais para a AC? Para responder tal inquietude utilizou-se como quadro teórico de embasamento e discussão dos resultados o referencial acerca da AC proposto por Sasseron e Carvalho (2011a, 2011b) e a formação de professores. Assim, a primeira seção visa delinear aspectos relativos à AC. Num segundo momento, traz elementos acerca da formação de professores. Após, traça o percurso metodológico para coleta de dados, seguida da apresentação de resultados, sua discussão, considerações e perspectivas.
A alfabetização científica como objetivo de formação de professores de ciências naturais
A AC pode ser definida como a capacidade de analisar e avaliar situações, permitindo a tomada de decisões (Sasseron, 2015), ou como «o conjunto de conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem» (Chassot, 2003, p. 38).
Partindo dessas premissas, o espírito científico deve estar presente no âmbito docente para estimular a discussão e a análise conjunta, bem como as propostas de mudanças nos processos formativos. Assim sendo, quais são as necessidades formativas de um profissional para educação científica?
Na atual conjuntura, não faz sentido conceber a formação de professores com o único objetivo de transmitir conhecimentos e procedimentos. É necessário que as práticas de ensino desse docente contribuam para o desenvolvimento intelectual, o pensamento crítico e autônomo e a capacidade de mobilizar estratégias (Teixeira, 2013). Dessa forma, o docente em formação precisa ter contato com formas de pensamento e raciocínio, bem como a proposição e análise de estratégias para fomentar a AC.
Ao objetivar a AC nos cursos de formação de professores é necessário oferecer situações que proporcionem o acesso a essa forma de conhecimentos, o que é a ciência. Conforme Vilanova (2015), um dos caminhos para se atingir o pleno exercício da cidadania é apresentar meios para a população utilizar e questionar os conhecimentos da ciência ao tomar decisões pessoais e sociais. Educar em ciências é possibilitar aos indivíduos o contato com a cultura científica. Sasseron (2015, p. 56) indica a «cultura científica como o conjunto de ações e de comportamentos envolvidos na atividade de investigação e divulgação de um novo conhecimento sobre o mundo natural». Como reconhecer o desenvolvimento da alfabetização e cultura científica nos licenciandos?
Sasseron e Carvalho (2011a, 2011b, 2011c) defendem que a AC ocorre quando os indivíduos têm contato com os procedimentos típicos da ciência e propõem o termo indicadores de alfabetização científica. Estes são definidos como habilidades ou destrezas que são utilizadas para a resolução, discussão e divulgação de problemas nos diversos campos da ciência. Esses indicadores podem ser agrupados quanto ao tipo de ação que é adotada em relação aos dados.
Alguns destes indicadores estão associados ao trabalho para a obtenção de dados, é o caso do levantamento e do teste de hipóteses em relação a uma situação qualquer; há outros indicadores ligados ao trabalho com estes dados para a classificação, seriação e organização das informações obtidas; também são indicadores da AC: a construção de uma explicação, o uso de justificativa para fundamentar uma ideia e o estabelecimento de previsão sobre o que pode decorrer desta situação; por fim, outros indicadores estão ligados mais diretamente a dimensões epistemológicas da construção do conhecimento, é o caso do uso do raciocínio lógico e do raciocínio proporcional como formas de organizar as ideias que se estão a construir. (Sasseron e Carvalho, 2011a, p. 102)
De acordo com as pesquisadoras, estas são habilidades utilizadas durante o processo de resolução de problemas que podem indicar o nível de AC dos indivíduos. Apesar de não existir uma hierarquia ou ordem predeterminada na utilização desses indicadores, as pesquisadoras alertam que, em geral, primeiro se utilizam os indicadores para obter dados/informações, após empregam-se habilidades para trabalhar com esses dados, para então, elaborar uma explicação ou então, tomar uma decisão baseada em evidências.
Dessa forma, Machado e Sasseron (2012) descrevem as diferentes funções desempenhadas pelos indicadores no processo de desenvolvimento da AC conforme é possível visualizar no quadro 1.
Indicadores de AC | Funções |
Levantamento de hipóteses Teste de hipóteses | Indicadores relacionados com a obtenção de dados e delimitação de variáveis |
Classificação de informações Seriação de informações Organização de informações | Indicadores relacionados com os dados empíricos |
Explicação Justificativas Previsão | Indicadores de relação entre variáveis e informações |
Raciocínio lógico Raciocínio proporcional | Indicadores de apropriação de ideias em caráter científico |
Fonte: Machado e Sasseron (2012, p. 34).
O conhecimento desses indicadores e a sua utilização durante a preparação de aulas de ciências possibilitam aos docentes em formação a apropriação de habilidades típicas do saber científico, que por sua vez poderão instrumentalizar o futuro professor na prática de planejamentos. Ou seja, essas habilidades fornecem estratégias de planejamento que tenham como objetivo promover a atuação crítica, autônoma e cidadã nas mais diversas situações e contextos, inclusive de questões ambientais. Por outro lado, Sasseron e Carvalho (2011a) descrevem indicadores de AC como ações e habilidades que são mobilizadas pelos indivíduos durante a resolução de problemas ou na tomada de decisões, caracterizando a AC. Assim sendo, como efetivar uma AC?
Sasseron e Carvalho (2011b, p. 76) propõem três eixos fundamentais para a promoção da alfabetização científica na sala de aula: (1) «compreensão básica de termos, conhecimentos e conceitos científicos fundamentais»; (2) «compreensão da natureza das ciências e dos fatores éticos e políticos que circundam sua prática»; e (3) «entendimento das relações existentes entre ciência, tecnologia, sociedade e meio-ambiente».
Nesse sentido, para que o professor em formação consiga propor aulas que fomentem a AC de seu alunado, é importante que o mesmo tenha uma boa formação conceitual (eixo 1). No entanto, perceber a ciência como uma construção histórica, social, não-neutra nem um produto pronto e acabado, também é essencial a fim de não reproduzir uma imagem de ciência neutra (eixo 2). Por fim, um bom conhecimento acerca das relações ciência, tecnologia, sociedade e ambiente (CTSA) possibilita ao professor uma prática pedagógica vinculada a realidade na qual o aluno está inserido (eixo 3). Dessa forma, os cursos de formação inicial precisam propor espaços para fomentar a preparação do licenciando para dar conta dessa face do ensino de ciências.
A formação inicial de professores
Como já indicado, a formação inicial de docentes é uma tarefa complexa, uma vez que não basta o domínio conceitual. É necessário o fomento de conhecimentos pedagógicos, didáticos, de gestão entre outros. Conforme Silva e Oliveira (2009), a formação do professor é um processo contínuo, que não se inicia nem se conclui no curso de licenciatura. No entanto, é consenso de que é no curso de licenciatura que é possível proporcionar ações formativas para preparar o professorando na superação dos sensos pedagógicos comuns (Cachapuz, Gil-Pérez, Carvalho e Vilches, 2011), bem como, para uma prática reflexiva cuja finalidade é perceber a profissão docente como inacabada (Alarcão, 2011; Imbernón, 2010; Silva e Oliveira, 2009).
No entanto, conforme estudo de Silva e Oliveira (2009), predominam cursos de licenciatura alinhados a uma racionalidade técnica, ou seja, o enfoque da formação está no conceito específico. Não se trata de desmerecer o conhecimento conceitual, mas de alinhá-lo a conhecimentos pedagógicos e didáticos a fim de que ao propor atividades frente a turmas o professor possa de fato alcançar os objetivos do processo de ensino e de aprendizagem e da alfabetização científica.
Gatti (2010) afirma que os cursos de licenciatura precisam ser estruturados de modo a promover a profissionalização do professor, constituído por uma «base sólida de conhecimentos e formas de ação, (...) capacitado para construir soluções em sua ação, mobilizando seus recursos cognitivos e afetivos» (Gatti, 2010, p. 1360).
Ao articular conhecimentos específicos com conhecimentos específicos da educação, favorece ao professor novato a construção de relações entre estes, permitindo ao mesmo construir sua prática pedagógica baseada em referenciais.
Razuck e Rotta (2014) apontam para a necessidade de romper com a visão dicotômica de formação: a formação estrita em conhecimentos específicos («conteúdos») e a formação teórica estrita em pedagogia («formas e técnicas de ensinar») para que seja possível superar o modelo tradicional de formação de professores. A formação inicial precisa ser um espaço no qual ocorra a análise, investigação e interpretação dos resultados que se observam na escola e na prática docente, visando contribuir para a superação do senso comum pedagógico e se caminhe em direção ao ensino de ciência como uma forma de cultura científica e compromisso social (Cachapuz et al., 2011).
Quando a formação inicial é realizada sob a perspectiva de multiáreas, como é o caso das licenciaturas em Ciências da Natureza, é necessário que o olhar formativo se volte para a interdisciplinaridade. Ou seja, evitar que os fenômenos sejam abordados pela perspectiva de apenas uma das áreas, mas possibilitar a integração das disciplinas a fim de compreender, explicar ou agir sobre o fenômeno. Para Razuck e Rotta (2014), a formação inicial tem um papel importante na busca pelos nexos entre as disciplinas.
Diante do exposto acima, considera-se que os princípios do curso em análise propõem como norteadores na formação inicial a interdisciplinaridade a contextualização, autonomia intelectual e de estratégias, a interação entre pesquisa, ensino e extensão dentre outros. E qual a organização do curso e objetivos das componentes curriculares? Como elas se alinham ou não aos eixos da AC? Na próxima seção, descreveremos a análise realizada a fim de encaminhar os questionamentos que originaram este trabalho.
Percurso metodológico
Considerando que o projeto pedagógico do curso (PPC) de um curso superior representa a consolidação do perfil de egresso, a investigação das informações contidas no mesmo pode elucidar importantes reflexões sobre o processo formativo. Para tanto, torna-se necessário realizar uma análise documental, ou seja, mapear as questões e as hipóteses de afinidade para constituir um corpus de conhecimentos relevantes.
Este procedimento técnico-metodológico é alvo de nosso interesse, e neste artigo, partiu de uma problematização atrelada ao processo de educação científica. O tratamento metodológico da fonte investigada - PPC do Curso de Ciências da Natureza Licenciatura, na sua última versão, foi elaborado a partir das categorias sugeridas por Sasseron e Carvalho (2011a, 2011b), as quais apontam eixos e indicadores para o processo AC (figura 1).
A figura 1 revela as relações entre os três eixos fundamentais para promoção da AC e os indicadores apresentados por Sasseron e Carvalho (2011a, 2011b), sendo que o eixo 1 abrange os indicadores A, B, C, D, E, F e G. Os eixo 2 e 3 compreendem os indicadores D, E, F e G. Cabe destacar que a distribuição dos indicadores por eixos fundamentais é relativa às concepções dos autores desta pesquisa.
Salienta-se ainda que o curso é composto por 42 disciplinas obrigatórias, distribuídas em 10 semestres letivos, sendo 8 componentes para área de Física (F), 8 para Biologia (B), 8 para Química (Q) e 18 que contemplam a formação pedagógica e a inserção à pesquisa (P). Não há padronização quanto ao número de objetivos por componente, mas sim, uma distribuição homogênea nas Ciências da Natureza (tabela 2). Percebe-se que a relação objetivos/componentes curriculares não é díspar.
Área do conhecimento | CC por área | Total de objetivos por área | Relação objetivo/CC () |
Física (F) | 8 | 40 | 5 |
Química (Q) | 8 | 37 | 4,63 |
Biologia (B) | 8 | 35 | 4,38 |
Pedagógica (P) | 18 | 73 | 4,06 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Assim, realizou-se a leitura flutuante das ementas dos componentes curriculares, em seguida, os objetivos destes foram analisadas com a finalidade de verificar qual eixo da AC era atendido. Esses dados foram organizados em planilhas, nas quais indicaram-se as componentes curriculares, a área de conhecimento da componente, o semestre de alocação e a frequência de objetivos em cada eixo. A partir destas, foi possível realizar a análise qualitativa, de dados numéricos e estatística descritiva.
Apresentação dos resultados e discussão
Inicialmente, convém destacar que o objetivo geral do curso Ciências da Natureza - Licenciatura é a formação de professores numa perspectiva interdisciplinar que leve à pesquisa e à reflexão ética da prática frente a sociedade e a natureza. Ao destacar como objetivos específicos a formação de profissionais com conhecimentos gerais e avançados, capazes de produzir e divulgar conhecimentos, observa-se um alinhamento ao eixo 1 da AC.
Ao apontar o conhecimento dos métodos da ciência como quesito do pensamento crítico e autônomo, demonstra preocupação com o segundo eixo da AC. E o terceiro eixo da AC é constatado na preocupação em preparar os professores para questões de desenvolvimento sustentável, tecnológico e social problematizados e contextualizados a partir da realidade próxima.
Considerando que o curso se alinha com a perspectiva da AC, procedeu-se a análise dos objetivos por componente curricular a fim de obter um panorama geral. Os resultados apresentam-se na sequência.
A análise realizada em relação aos eixos da AC (Sasseron e Carvalho, 2011a, 2011b) presentes nos objetivos dos componentes curriculares demonstra a prevalência de aspectos relativos a (1) «compreensão básica de termos, conhecimentos e conceitos científicos fundamentais» para as componentes pedagógicas (figura 2). Isso pode estar relacionado com a preocupação dos cursos superiores, neste caso Ciências da Natureza - Licenciatura, em apresentar os conceitos, os métodos e o letramento científico de forma a preparar o egresso para sua atuação profissional - a docência. Nesta perspectiva, como deve ser o processo de formação do professor para a AC?
Também é possível observar que os objetivos poderiam ser atrelados a mais de um eixo o que pode ser um demonstrativo de que os eixos da AC não são fomentados individualmente, mas de uma forma integrada dentro do componente e transversalmente pelos diferentes componentes. Isso dá indícios da preocupação do curso em efetivar a plena formação do professorado para atender os princípios da AC, além de propiciar uma formação visando uma visão global de ciência. Como exemplo, pode-se mencionar o componente curricular intitulado «Análise numérica», pertencente a área de Física, que em seu segundo objetivo expressa: «Compreender o conceito de função (eixo 1), associando-o a exemplos da vida cotidiana» (eixo 3). Considera-se uma característica importante, a fim de não fragmentar a construção do conhecimento.
Ao observar as características por área do conhecimento, neste trabalho divididas em F, Q, B e P, demonstra-se o número de componentes curriculares do curso que atendem uma relação entre os eixos de AC, conforme a categorização prévia dos objetivos (figura 3). Revela-se a predominância dos objetivos destinados aos eixos 1 e 3, sendo a única categoria que agrega objetivos de todas as áreas do conhecimento: P (sete), Q (três), F (cinco) e B (dois). Já nos eixos 1, 2 e 3, percebe-se a ausência da Q, tendo a predominância da P (três), seguidas da B (duas) e Q (duas). Os eixos 1 e 2 apresentaram as áreas de B, F e P na mesma proporção (um). De forma semelhante aos eixos 1, 2 e 3, a Q não teve nenhuma representatividade.
De acordo com Carvalho e Gil-Pérez (2011), a preparação de um professor necessita de um currículo fundamentado e de meios para aplicação prática, ou seja, o «saber» e o «saber fazer». Os autores afirmam ainda que para a formação de um professor é indispensável ter conhecimentos e destrezas a fim de proporcionar uma visão ampla e complexa da atividade docente. «Uma formação deve propor um processo que confira ao docente, conhecimentos, habilidades e atitudes para criar profissionais reflexivos e/ou investigadores» (Imbernón, 2010, p. 41). Dessa forma, percebe-se a clara preocupação do curso analisado em fornecer uma forte base conceitual para o licenciando.
No entanto, os novos paradigmas das atividades científicas e tecnológicas resultantes da revolução nanotecnológica e da interdisciplinaridade (Santos e Valeiras, 2014) indicam a necessidade de que os conceitos fundamentais sejam estudados e apreendidos numa lógica interdisciplinar. Nesse sentido, parece-nos que a proposta de cursos de Ciências da Natureza - Licenciatura sejam os mais adequados para a formação de professores de ciências. Além disso, condiz com as palavras de Hachiya, Passos, Kirsch, Marques e Pereira (2018, p. 21) quando afirmam que é necessário debater o tema interdisciplinar «tanto no que se refere à organização estruturante dos currículos, quanto em sua utilização e divulgação na formação de educadores, assim como suas relações com as situações de aprendizagem».
Dessa forma, é possível afirmar que a organização dos cursos com abordagens interdisciplinares, como Ciências da Natureza - Licenciatura, é uma forma de quebrar essa visão fragmentada da realidade. Ao dar ênfase a química, física e biologia como estruturadores do curso, permite-se a compreensão dos fenômenos a partir de diferentes perspectivas e métodos, o que enriquece a matriz conceitual do acadêmico. Ao considerar que a AC pretende que os indivíduos consigam compreender e explicar situações do cotidiano (Chassot, 2003), percebe-se a importância de um curso numa abordagem interdisciplinar.
Por outro lado, se considerarmos os objetivos relacionados ao eixo 2 de AC, percebe-se a subutilização de aspectos relativos à natureza da ciência como contributo na abordagem interdisciplinar. Do mesmo modo, tornar-se-ia possível através do curso superior atribuir a formação de profissionais através de um ensino transformador e crítico, baseado em problemas, contextos e interações das áreas do conhecimento, de modo a formar educandos com a pertença de valores, conhecimentos e hábitos harmônicos. Além disso, tais propostas estão respaldadas em documentações oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (Ministério da Educação, 1997, 1998), o Plano Nacional da Educação (Ministério de Educação, 2014) e as propostas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Segundo Bizzo (2012), é preciso estabelecer uma relação de intimidade na sala de aula, esta deve estar povoada de contextos significativos tanto para a ciência como para o aluno. A metodologia de ensino necessita dialogar com as áreas de conteúdo, bem como com as áreas dos ditos saberes pedagógicos. O que importa é estabelecer objetivos ligados a um problema concreto, o que requer mobilizar conhecimento, informação, conceitos, procedimentos, métodos, técnicas ou mesmo outras competências (habilidades), de maneira a enfrentá-lo sob uma perspectiva prática.
Dessa forma, o enredo da atividade docente precisa de um trabalho coletivo de inovação, pesquisa e formação permanente. Um professor precisa conhecer o conteúdo a ser ensinado, o que exige reconhecer e questionar o pensamento docente espontâneo; adquirir conhecimentos sobre o ensino de ciências para que seja possível exercer a criticidade ao ensino habitual (Carvalho e Gil-Pérez, 2011). Da mesma maneira, saber planejar, mediar e avaliar as atividades, além de interligar aspectos da ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, precisa fazer parte da formação inicial. Nesse sentido, a presença de objetivos relacionados ao eixo 3 no PPC analisado apontam para a preocupação com a questão, ainda que de maneira um pouco tímida.
Cabe salientar o papel relevante que as universidades podem exercer nesse cenário. Como centros geradores de conhecimento, essas instituições têm grande potencial para suscitar ações que promovam a interação dos futuros professores com os avanços científicos e tecnológicos mais recentes, possibilitando a instrumentação para efetuar a AC.
Nessa perspectiva, um curso superior de licenciatura pode representar o fortalecimento das interfaces entre universidade e escola, como uma oportunidade para que o discente possa apresentar sua criatividade, independência, caráter e para (re)significar a sua escolha profissional.
Do mesmo modo, ao discutirmos a docência, destacamos a necessidade de compreender a organização e o funcionamento do ensino, fenômeno complexo e em situação, suas funções sociais, suas implicações estruturais e do ensinar como prática social. Essa última, efetivada entre os sujeitos professor e aluno, em sala de aula, e que engloba tanto ação de ensinar, quanto de aprender (Pimenta, 2002; Slongo, Delizoicov e Rosset, 2010).
Considerações e perspectivas
A realização deste trabalho teve como objetivo observar como a AC está inserida em um curso de formação de professores em Ciências da Natureza - Licenciatura a partir da caracterização da AC por Sasseron e Carvalho (2011a, 2011b) em eixos. Dessa forma, é possível perceber evidências do curso para o desenvolvimento do eixo 1, relativo ao conhecimento conceitual das diferentes áreas que constituem o curso.
Ao direcionar uma organização curricular de curso superior para eixo 1, como os dados encontrados neste trabalho, demonstra-se a preocupação com a formação conceitual e conhecimento dos termos-chave necessários como base para o desenvolvimento do letramento científico do acadêmico. Acreditamos que tal apropriação e o domínio da linguagem usada na ciência possibilite a concretização dos eixos 2 e 3, e dessa forma, viabilize a interpretação da natureza da ciência e suas implicações na sociedade.
Apesar do eixo 2 apresentar um menor número de objetivos enunciados, consideramos que a promoção do eixo 1 (desenvolvimento conceitual) durante a formação acadêmica e profissional pode representar o caminho para a percepção da imagem da ciência como um processo mutável e não neutro. O eixo 3, ainda que timidamente, é mais visível do que o eixo 2 no PPC analisado. Mesmo assim, considera-se que o curso se encaminha para o desenvolvimento científico do egresso, já que a análise percebeu-se que muitos dos componentes curriculares se encaixam em mais de um eixo da AC. Este aspecto revela a preocupação do curso em uma formação inicial atenta às características da AC que perpassa apenas a formação conceitual e considera os demais eixos, mesmo que timidamente.
A fim de obter conclusões contundentes acerca da temática desenvolvida neste artigo, seria interessante acompanhar a efetivação das ementas nos planos de ensino. Considerando que o plano de ensino é a maneira de implementar o PPC, possivelmente a observação destes traria informações importantes acerca da almejada AC do egresso do curso.