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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.39 no.1 Montevideo jun. 2023  Epub 01-Jun-2023

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20230009 

In Memoriam

Maria Helena de Moura Neves (31 de janeiro de 1931- 17 de dezembro de 2022) In Memoriam

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul. elisa.battisti@ufrgs.br


Maria Helena de Moura Neves, Professora Emérita e Livre-Docente em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), docente da Graduação e da Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), professora aposentada voluntária da Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), faleceu em 17 de dezembro de 2022. Reconhecida por sua significativa contribuição aos estudos de grego e de gramática, especialmente a de usos do português, a linguista estava em plena atividade quando sequelas de um acidente vascular cerebral causaram seu passamento.

Maria Helena nasceu em 31 de janeiro de 1931 em Taiaçu, então distrito de Jaboticabal, município no interior do estado de São Paulo. Filha de pais professores, cursou a Escola Normal e iniciou a carreira docente aos 18 anos. Atuou como professora de Língua Portuguesa no ensino fundamental e médio em escolas da rede municipal de Araraquara, também no interior paulista, por cerca de 20 anos. A atuação docente nesse período trouxe-lhe convicções presentes em toda sua obra: de que, na escola, a reflexão sobre gramática deve ser realizada a partir da língua em uso, no exame de produções escritas diversas; de que os professores geralmente não se mostram capacitados para promover essa reflexão (Neves, 2020); de que irradiar os resultados das análises linguísticas às escolas poderia contribuir para tal capacitação (Sousa, 2013).

Quase à mesma época em que iniciou sua atuação docente, Maria Helena casou-se. Mãe de três filhos, ingressou no ensino superior apenas quando eles já estavam crescidos (Neves, 2020). Graduou-se em Letras-Português/Grego em 1970, na UNESP, e em Letras-Português/Alemão em 1974, na mesma instituição. Em seguida, também da UNESP, cursou duas Especializações, uma em Linguística, concluída em 1973, outra em Literatura e Civilização Grega, concluída em 1974.

De 1975 a 1978, dedicou-se ao Doutorado em Letras Clássicas na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese “A emergência da disciplina gramatical entre os gregos”, sob a orientação de José Cavalcanti de Souza.

Maria Helena iniciou a docência universitária em 1972 na UNESP, tendo ministrado, na Graduação em Letras, as disciplinas de Língua Grega, Literatura Grega, Prática de Ensino de Grego, Prática de Ensino de Linguística, Língua Portuguesa, e, na Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa, as disciplinas de Fundamentos de Linguística Teórica, O Texto: Coesão e Coerência, Estudos Gramaticais. Maria Helena aposentou-se em 1987, mas seguiu vinculada à UNESP como Professora colaboradora (1987-1998) e como Professora aposentada voluntária (1998 a 2022). Na UPM, atuou como professora de 2003 a 2022, ministrando disciplinas análogas às da UNESP.

As mais de 20 obras publicadas pela autora ao longo de sua carreira são o melhor testemunho de seus interesses de pesquisa e da excelência de sua reflexão. Importante destacar que boa parte dessas obras nasceu da interlocução com outros linguistas, realizada em grupos de pesquisa, como o Gramática de usos do português, do CNPq, do qual Maria Helena foi coordenadora, e em grupos de trabalho, como o GT Descrição do português, da ANPOLL, do qual ela foi Membro Honorário, a equipe Sintaxe I do projeto Gramática do português culto falado no Brasil (de Ataliba T. de Castilho), coordenada por ela, a Comissão de Planejamento e Assessoramento das Atividades de Pesquisa e de Publicação do Projeto 4 - "Gramática do português", da ALFAL, que Maria Helena integrou.

A tese de doutorado deu origem ao livro A vertente grega da gramática tradicional (1987), em que Maria Helena aborda o surgimento da gramática na Grécia, examinando as condições da instituição da disciplina e seu papel na consolidação da gramática ocidental. A concepção de que “a gramática é o software que permite que a gente produza linguagem” (Neves, 2020) liga-se a essa etapa fundadora do percurso acadêmico da autora, mas assenta-se em bases funcionalistas mais especificamente expostas no livro A gramática funcional (1997). Como a própria autora explica, abordagens funcionalistas de línguas naturais buscam esclarecer de que forma “se obtém a comunicação com essa língua (...) Ao lado da noção essencial de que a linguagem é um instrumento de comunicação, encontra-se nos funcionalistas um tratamento funcional da própria organização interna da linguagem” (Neves, 1997: 2). Nessa perspectiva, gramática é concebida tanto do ponto de vista cognitivo quanto cultural e a linguagem, reconhecida por seu “caráter não apenas funcional como também dinâmico” (Neves, 1997: 3).

A obra Gramática de usos do português (2000) descreve o funcionamento de diversos itens da língua portuguesa com base em seu uso efetivo, em um corpus de língua escrita. Na mesma linha, o livro Guia de uso do português. Confrontando regras e usos, publicado em 2003 e finalista do Prêmio Jabuti na Categoria Teoria e Crítica Literária em 2004, compara os usos linguísticos prescritos pela gramática normativa ao modo como a língua é efetivamente usada. Organizada a partir do exame de livros, jornais, revistas e peças teatrais, a obra revela formas e construções que, embora distintas daquela previstas pelas normas da gramática tradicional, são consagradas pelos usos contemporâneos da linguagem.

No livro Que gramática estudar na escola? Norma e uso na Língua Portuguesa, também de 2003, Maria Helena discute o tratamento escolar das atividades ligadas à gramática de língua materna, defendendo a ideia de que a gramática escolar “não apenas contemple uma taxonomia e um elenco de funções, mas que, legitimada pela sua relação com o uso efetivo da língua, dê conta dos usos correntes atuais” (Neves, 2006: 11), além das variantes linguísticas, entre as quais aquelas identificadas com a linguagem padrão.

Em 2006, publica-se o primeiro dos cinco volumes do Dicionário grego-português, obra que Maria Helena considerava um dos capítulos mais significativos de sua vida profissional, conforme Viana (2023). A elaboração da obra por uma equipe de doze colaboradores foi coordenada por Maria Helena e duas de suas colegas da UNESP, Daisi Malhadas, que fora sua professora de grego à época da Graduação em Letras, e Maria Celeste Consolin Dezotti. Publicados de 2006 a 2010, os cinco volumes contemplam cerca de 50 mil entradas, que são, conforme Brandão (2006), clara e sistematicamente organizadas. As definições são acompanhadas de exemplos, colhidos de vários autores. Nas entradas referentes a verbos, indica-se sua regência, nas entradas referentes a preposições, os sentidos espacial, temporal e relacional que elas possam apresentar. Antes dessa obra, professores e estudantes de grego tinham à disposição apenas o dicionário de Isidro Pereira (1951), obra com um limitado número de entradas, segundo Brandão (2006), o que levava os consulentes a complementar suas buscas em obras publicadas em francês ou inglês. Maria Helena conta (Neves, 2020) que a ideia inicial da obra era traduzir, para o português, o dicionário grego-francês de Bailly (1950), mas que os quase dez anos de trabalho da equipe resultaram em uma obra original.

Maria Helena era uma autoridade em estudos funcionalistas no Brasil e uma defensora do tratamento escolar mais científico das atividades de linguagem, particularmente das atividades ligadas à gramática de língua materna. Nesse sentido, e a respeito do desenvolvimento dos estudos da língua em uso no Brasil, Maria Helena vinha afirmando, conforme Sousa (2013), a necessidade de obter amostras representativas e organizá-las em bancos de dados, acessíveis aos pesquisadores. Além disso, Maria Helena acreditava que os resultados das análises linguísticas deveriam circular mais amplamente, de modo a dirigir “a atuação escolar no seu modo de ver e tratar as variações e as mudanças que nela (na língua) se registram, especialmente no que diz respeito à adoção de políticas linguísticas institucionais”. (Sousa, 2013: 24).

Talvez esteja nessa ideia de Maria Helena, da ligação necessária entre pesquisa e ensino de língua materna, um dos traços mais marcantes do pensamento da autora, que vem inspirando gerações de linguistas. Em sua carreira universitária, Maria Helena orientou as atividades de pesquisa de expressivo número de graduandos e pós-graduandos. De 1987 a 2022, ela concluiu 30 orientações de Doutorado, 47 orientações de Mestrado, 87 orientações de Especialização, 40 orientações de Iniciação Científica - uma bela contribuição à formação de recursos humanos em pesquisa e ensino no Brasil.

Em fevereiro de 2022, Maria Helena recebeu o prêmio Ester Sabino na categoria Sênior. Foi a primeira edição da premiação, criada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo para valorizar pesquisadoras que contribuem para o desenvolvimento científico.

Sou uma das várias linguistas brasileiras que não conviveu com Maria Helena, mas que a admiravam por terem aprendido com ela ouvindo-a em palestras e reuniões acadêmicas, lendo seus trabalhos. Os sentimentos de surpresa e perda que acompanharam a notícia de seu falecimento foram amenizados pelo reconhecimento de que Maria Helena seguirá conosco, em sua vasta e significativa produção. Pode ser que este necrológio, escrito por alguém que não trabalhava proximamente a ela e não pertencia a seu círculo de amigos, colegas e familiares, não expresse exatamente a grandeza de Maria Helena como professora e linguista. Mas mostra que suas ideias alcançam estudiosos de diferentes linhas e que, para todos nós, a obra de Maria Helena é e continuará sendo um dos alicerces da linguística.

Referências bibliográficas

Bailly, Anatole. 1950. Dictionnaire Grec-Français, Paris, Hachette. [ Links ]

Brandão, Jacyntho Lins. 2006. Resenha de D. Malhadas, M.C.C. Dezotti e M. H. Moura Neves (coord.), Dicionário grego-português, v. 1 (a-d), Classica (Brasil ), 19, 2: 300-301. [ Links ]

Isidro Pereira, S. J. 1951. Dicionário Grego-Português e Português-Grego, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa. [ Links ]

Neves, Maria Helena de M. 1997. A gramática funcional, São Paulo: Martins Fontes, 1997. [ Links ]

Neves, Maria Helena de M. 2006. Que gramática estudar na escola? Norma e uso na Língua Portuguesa, São Paulo, Contexto. [ Links ]

Neves, Maria Helena de M. 2020. Língua em Função. Comunicação oral no Conversas da Hora, 03 nov. 2020. (em linha) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_O9CW7fSmDkLinks ]

Sousa, Gisele Cássia de. 2013. Entrevista com Maria Helena de Moura Neves: panorama e perspectivas dos estudos sobre língua em uso no Brasil, Cadernos de Letras da UFF, 23, 47: 17-27. (em linha) Disponível em: https://doi.org/10.22409/cadletrasuff.2013n47a312Links ]

Viana, Diego. 2023. A linguista da língua como ela é. Pesquisa - FAPESP. (em linha) Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/a-linguista-da-lingua-como-ela-e/Links ]

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