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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.36 no.2 Montevideo  2020  Epub 09-Nov-2020

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20200019 

Reseñas

Reseña

MÔNICA MAGALHÃES CAVALCANTE1 
http://orcid.org/0000-0002-5561-3993

1Universidade Federal do Ceará monicamc02@gmail.com.br

PAVEAU, MARIE-ANNE. 2017. L’Analyse du discours numérique. Dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 400 ppp. ISBN: 978-2-7056-9321-3.


Engana-se o leitor desavisado que supõe ser esta mais uma compilação de termos que alicerçam as análises do discurso. Mais do que um dicionário, esta obra distribui em verbetes uma proposta de quebra de paradigmas, a começar pela proposição de um contínuo internalismo / externalismo nos estudos da linguagem.

No prefácio da versão da obra traduzida para o português, enaltecemos o caráter revolucionário deste dicionário, que tem a ousadia de propor, no seio dos estudos da análise do discurso, a tese de que a linguística deve ultrapassar as abordagens logocentradas e deixar de focalizar exclusivamente os observáveis linguageiros. Em outras palavras, a linguística deve tomar como observáveis os elementos compósitos (humano e não humano).

Inspirada em Gibson (1979), Paveau adota a noção de affordances como possibilidades de ação a partir da percepção das funcionalidades de um objeto e de um ambiente. Gibson deu significado próprio a esse substantivo, ao argumentar que, ao perceberem superfícies, objetos e animais, os sujeitos os relacionam às possibilidades de interação social com eles.

Mas, ainda que recorra a perspectivas diferentes de cognição, não é propósito da autora desenvolver um estudo das representações da mente. Mesmo quando se alinha a Maturana (2014), ao defender um ponto de vista ecológico das atividades humanas, e ao compartilhar a ideia de que as representações cognitivas não se encontram encapsuladas na mente, mas distribuídas no ambiente, Paveau se volta não para uma biologia cognitiva, mas para uma ecologia do discurso. Conforme comentamos no Prefácio da tradução para o português (de Lourenço e Baronas, a sair):

O dicionário está arranjado em 32 verbetes, todos relacionados, como num cálculo argumentativo, para defender a ideia de que língua e usos discursivos se integram num verdadeiro compósito, e de que os recursos linguageiros só devem ser examinados em seus ambientes de produção.

O sumário dispõe os seguintes verbetes, além da Introdução: Algoritmo, Análise do discurso digital, Ampliação, Comentário, Comunicação mediada por computador, Compósito, Corpus digital nativo, Cor, Ciberviolência discursiva, Deslinearização, Dualismo digital, Ecologia do discurso, Escrita digital, Enunciador digital, Ambiente, Ética do discurso digital, Extimidade, Hashtag, Hipertexto, Imprevisibilidade, Integridade Contextual, Leis do discurso digital, Memória tecnodiscursiva, Produso, Pseudonimato, Relacionalidade, Tecnodiscurso citado, Tecnogênero de discurso, Tecnografismo, Tecnologia discursiva, Tuíte.

Marie-Anne Paveau atua na Universidade de Paris 13, Sorbonne, como professora de Ciências da Linguagem, onde desenvolve pesquisas sobre a teoria do discurso, mas numa abordagem transdisciplinar, que envolve filosofia, ciências sociais e estudos da internet. É sobretudo no diálogo entre essas diferentes vertentes teóricas que Paveau funda sua análise do discurso digital, pela qual considera os usos linguageiros como um compósito heterogêneo sociocultural, histórico, emocional, mas também material e tecnológico.

Em uma resenha deste dicionário, Maingueneau destaca que a obra não expande o campo da análise do discurso, mas pontua “a especificidade dos novos objetos que fizeram emergir o desenvolvimento da Web”. Observa Maingueneau que Paveau poderia ter elaborado um livro em que problematizasse sua tese de forma progressiva. Mas não o fez. De maneira didática e simples, porém precisa e bem fundamentada, ela oferece ao leitor de qualquer nível superior uma obra para consulta, em formato de dicionário, com uma soberba introdução de dez páginas, em que avalia o trabalho como “uma resposta a essa necessidade de inventar novos conceitos, ferramentas e limites para explicar o funcionamento dos discursos nativos da Internet a partir de uma perspectiva qualitativa e ecológica”. E é mesmo isto que mais confere originalidade à obra: esse arrojo de inventar um conjunto de definições comentadas sobre processos de discursivização da língua num ambiente tecnológico.

O tecnológico não é aqui reduzido a um mero suporte material para as mídias digitais, mas um componente estrutural dos usos tecnolinguageiros. Daí o conceito de tecnodiscurso como a realização em contexto digital da tecnolinguagem. Como dissemos no prefácio da tradução para o português, Paveau sugere que a designação ambiente talvez seja mais apropriada, ou mais condizente, do que contexto, usualmente empregado nos estudos logocêntricos:

Adotando, assim, a noção deambiente como alternativa crítica à de contexto (tomado, em análise do discurso, como condições de produção ou de exteriores do discurso), Marie-Anne Paveau inscreve sua proposta numa perspectiva pós-dualista, pela qual nada pode ser pensado numa dicotomia entre objetividade e subjetividade, mas, sim, numcontinuum. Assim, ao passo que os dados de tela possam parecer apenas objetivos e técnicos, os dados baseados nos usuários da máquina são inteiramente afetados pelas subjetividades dos “internautas-escritores”. Perpassa todo o dicionário a reivindicação de uma análise ecológica do discurso digital, que poderia pôr em causa a estabilidade de vários outros conceitos, como o de enunciação, de texto, de gênero, de referência dêitica, de heterogeneidade enunciativa, para mencionar apenas alguns, aqui convidados à revisitação.

Marie-Anne Paveau assume o termo discurso digital nativo ao se referir aos usos tecnolinguageiros que já se originam do próprio ambiente digital on-line, como nas práticas que se verificam, por exemplo, no Instagram.

São denominadas, portanto, de “nativas” as produções elaboradas on-line, em “espaços de escrita” (mas multissemióticos) e com as ferramentas oferecidas pela Internet.

Assim, longe de se organizarem por um modo composicional dominantemente descritivo e explicativo, como sói acontecer, os verbetes deste dicionário se organizam em torno de pontos de vista que deságuam todos numa grande tese: a de que as práticas digitais cotidianas, em todos os domínios da vida em sociedade, modificam nossos gestos de leitura e de escritura, além de alterarem nossas relações sociais.

A consequência de adotar tal pressuposto é mostrar como ficam desestabilizados alguns conceitos para os quais a participação da máquina não estava prevista, como nas análises dos contextos linguageiros pré-digitais. Alguns questionamentos que se elevam dos verbetes (mais discutidos do que expostos) são principalmente, a nosso ver, os que tangem aos limites dos textos e das interações no tecnodiscurso. Mas inúmeros outros desafios se apresentam, dentre os quais ressaltamos os seguintes:

  • - o quadro enunciativo, tradicionalmente polarizado nos papéis de locutor e de interlocutor, passa a se complexificar na exata medida em que também se complexifica a participação das máquinas e de seus programadores nesses circuitos comunicativos (“este é um desenvolvimento sem precedentes na história da linguagem que as ciências da linguagem devem compreender” - sentencia a autora);

  • - os discursos (usos) digitais nativos fazem aflorar aspectos constitutivos das interações ali envolvidas que foram pouco ou nada contemplados nas análises logocêntricas, como o design das páginas, a semiose das cores, as imagens, os sons, as postagens anteriores, os comentários e sobretudo os links hipertextuais - como tratar adequadamente desses elementos compósitos, que hibridizam homem e máquina na linguagem?;

  • - como tratar também, na linguística, o fato de que as ferramentas digitais deixam rastros das identidades e das práticas discursivas e sociais dos internautas?;

  • - como lidar socialmente com o pseudoanonimato e com a ciberviolência das redes sociais, em que um locutor ao mesmo tempo se esconde e se identifica num pseudônimo?;

  • - como ampliar os cruzamentos intertextuais num ambiente em que as memórias discursivas se tornam acessíveis ao infinito?;

  • - como negligenciar o fato de que as ferramentas digitais impõem alguns modos de interação e de diálogo entre textos? É necessário considerar também que o internauta escolhe, a cada momento, seu modo particular de selecionar os caminhos pelos quais quer navegar. Paveau fala em “idiodigitabilidade”, em respeito às idiossincrasias do indivíduo;

  • - como desconsiderar os efeitos da redocumentação (ou redocumentarização) de inúmeros arquivos e de segmentos deles em novos textos, de tal maneira que a origem da autoria às vezes se perde?;

  • - como construir um corpus de análise de discurso em um campo em que as afirmações são inúmeras, interconectadas, subjetivas e compostas? Pergunta-se Paveau na Introdução desta obra: “Como passar dos corpora tradicionais da análise do discurso, dos documentos impressos ou das gravações estabilizadas e objetivas para os corpora subjetivos, abertos e em evolução? Como evitar a tentação do corpus logocêntrico e a aplicação de teorias pré-digitais, mobilizando o corpus de teorias e métodos da ciência da linguagem? As respostas a essas perguntas exigem um conhecimento profundo dos universos discursivos digitais e o desenvolvimento de métodos para respeitar a ecologia da web”.

A verdade é que as análises linguísticas do texto e do discurso terão que dar conta, no ambiente digital, de um duplo compósito nos gêneros nativos da Internet: o técnico e o linguageiro; o verbal e o multissemiótico iconicizado. A combinação sintática na superfície dos textos ganhou impensáveis arranjos, a tirar pelos segmentos clicáveis, que podem não corresponder a somente uma palavra, além do fato de essas “tecnopalavras” exigirem um gesto, e uma iniciativa, de apertar nos links, deslinearizando a tradicional orientação de leitura.

Talvez os verbetes mais representativos das noções propostas no dicionário sejam, por isso, o “tecnografismo” e o “hipertexto” (que deveria ser mais adequadamente chamado de processo de “hipertextualidade”). É a hipertextualidade dos links que leva a autora a falar de compósito, característica à qual ela dedica um verbete inteiro. Os links abrem imprevisíveis possibilidades de navegação, daí por que um dos verbetes do dicionário se chama imprevisibilidade. Como afirma Paveau, no verbete intitulado relacionalidade, a relação material do tecnodiscurso se manifesta em muitos níveis:

  • - na relação com outros tecnodiscursos em decorrência da estrutura hipertextual da web;

  • - na relação com os aparelhos em decorrência da natureza compósita dos tecnodiscursos, literalmente coproduzidos na máquina;

  • - na relação com os escritores e os (escri)leitores, que passa pela subjetividade da configuração das interfaces da escritura e da leitura, e que torna os tecnodiscursos ideodigitais, isto é, dependentes do ponto de vista único do internauta.

Assim, o locutor precisa ser redimensionado como um usuário do tecnodiscurso, com experiências e interesses individuais de navegação. Paveau sugere que ele deveria ser mais adequadamente chamado de “escrileitor”, pelo modo subjetivo como põe em interface a escrita e a leitura de elementos multissemióticos.

A autora concorda com Adam (2019), quando afirma que o texto, mais do que nunca, precisa ser pensado em redes de texto, porque, no ambiente digital, o texto não apenas se exibe, mas se faz texto durante a navegação - o texto se torna não um produto acabado, mas um faire-text.

Mas ser considerado em uma rede de textos em uma dada superfície cotextual não significa, para os estudos textuais, romper inteiramente com seus limites e advogar em favor da noção de aumento do texto, como leva a crer o verbete ampliação.

Essa coesão, ou articulação entre as partes de um todo macrossemântico em contexto já tinha sido alentada, há bastante tempo, por Halliday e Hasan, como se pode ler a seguir:

“O conceito de TEXTURA é inteiramente apropriado para expressar a propriedade de `ser um texto´. Um texto tem textura, e isso é o que o distingue de algo que não é texto [...]. A textura é provida pela RELAÇÃO coesiva.” (Halliday e Hasan 1976: 2)1.

“Um texto é melhor pensado, não absolutamente como uma unidade gramatical, mas sim como uma unidade de tipo diferente: uma unidade semântica. A unidade que ele tem é uma unidade de sentido em contexto, uma textura que expressa o fato de que ela se relaciona como um todo ao ambiente em que é colocada.” (Halliday e Hasan 1976: 293)2.

O posicionamento linguístico-textual, em certa medida, entra em confronto com a noção de “aumento” do texto, presente no dicionário, como se, no ambiente digital, fossem arrebentadas todas as fronteiras entre os textos. A alegação da autora é que tudo o que se publicita nas plataformas da web 2.0 (que é constitutivamente “conversacional”) pode se expandir, como os tuítes, os comentários, os compartilhamentos, as reblogagens e os retuítes, assim como pode ganhar circulação descontrolada. A isso nos opusemos, todavia, no prefácio da tradução, a sair:

Sim, desde já, textos a serem observados no plural, textos sempre relacionáveis a outros, classificáveis como tecnogêneros, por reiterarem práticas discursivas e sociais tipificadas. Os tecnogêneros precisam ser analisados pela contínua relacionalidade com outros, que, por vezes, se agrupam em hipergêneros dentro de uma mesma interação.

Segundo Paveau, os processos de compartilhamento de dados e de disseminação viral dos textos on-line requerem modos bem diferentes de produção e de circulação dos enunciados em contexto. Os textos hipertextuais não organizam sua materialidade cotextual do mesmo jeito que o fazem os textos da oralidade e os da escrita pré-digital, porque são pensados para uma exibição não linear, possibilitada pelos links e pela relacionalidade imprevisível. Além dessas características, ressalta a autora que os textos digitais nativos “se inscrevem, no sentido material do termo, num universo que nada esquece e que é percorrido por ferramentas de busca e de redocumentação: eles são, portanto, investigáveis, ou seja, localizáveis e coletáveis para eventuais menções, utilizações, repetições etc.”

O interesse nos modos de interação digital já despontava nas pesquisas em linguística textual no início dos anos 2000. Marcuschi (2001) se referia à hipertextualidade como “uma forma de estruturação textual que faz do leitor simultaneamente coautor do texto final.

O hipertexto se caracteriza, pois, como um processo de escritura/ leitura eletrônica multilinearizado, multisequencial e indeterminado, realizado em um novo espaço de escrita”.

Koch (2002) reservou um capítulo especial ao processo de hipertextualidade, em que sintetiza alguns dos traços que Xavier (2002) descreveu para o fenômeno: a não linearidade, a volatilidade, a espacialidade topográfica, a fragmentariedade, a multissemiose, a interatividade, a iteratividade e a descentração.

Nas pesquisas de Marie-Anne Paveau, no entanto, esses traços, e muitos outros que a autora arrola, passam a ser redimensionados numa perspectiva pós-dualista, que toma como inseparáveis os aspectos técnicos e linguageiros das interações digitais. E esse pressuposto precisa ter consequências metodológicas efetivas nos estudos do texto e do discurso. É sobretudo aos pesquisadores e estudantes dessa área que esta obra se destina. Nesta era de pandemia, não há como não ser contaminado pela visão dos usos tecnolinguageiros. Consulta obrigatória.

1Tradução própria do original em inglês.

2Tradução própria do original em inglês.

Referências bibliográficas

Adam, Jean-Michel. 2019. La notion de texte. [em linha] Disponivel em: http://encyclogram.fr/notx/026/026_Notice.phpLinks ]

Gibson, James J. (1979). The ecological approach to visual perception. Boston, Houghton-Mifflin Company. [ Links ]

Halliday, M.A.K. e R. Hasan. 1976. Cohesion in English, London, Longman. [ Links ]

Koch, Ingedore. 2002. Desvendando os segredos do texto, São Paulo, Cortez. [ Links ]

Marcuschi, Luiz Antônio. 2001. O hipertexto como um novo espaço de escrita em sala de aula, em Linguagem & Ensino, 4, 1: 79-111, [em linha] Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/15529Links ]

Maturana, Humberto. 2014. Ontologia Da Realidade, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. [ Links ]

Xavier, Antônio C. 2002. O hipertexto na sociedade de informação - uma abordagem linguística. Tese de Doutorado. Campinas, Unicamp. Inédito [ Links ]

Nota de aceptación:

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