1. Introdução
Este artigo tem como foco de análise a correlação linguístico-cognitiva entre dois fenômenos, o Discurso Reportado Fictivo, como subtipo de Interação Fictiva (IF), e o Discurso Reportado (DR) propriamente dito, entendendo-os como manifestações gradientes de um modelo cognitivo de subsistemas divergentes e alternados de um mesmo objeto; no caso, o discurso. Essa postulação se fundamenta na Teoria da Fictividade (Talmy 2000), segundo a qual o sujeito cognitivo é dotado de um padrão interno de representações discrepantes de um mesmo objeto, sendo uma delas, a fictiva, conceptualmente avaliada como menos verídica2 ou menos genuína; e a outra, a factiva, como mais verídica ou mais genuína. Postula-se que, gerido pelo gestaltismo das representações, o conceptualizador seja capaz de lidar, então, com o conflito cognitivo, interacionalmente equacionável, manifestado por IF e DR, díade esta cuja alternância se dá pela via metailocutiva.
O pólo factivo é já tradicionalmente conhecido como Discurso Reportado, que, de acordo com Bakhtin (2006: 147), “é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”. Ainda nem tão explorada, mas muito presente no uso, é sua contraparte menos verídica: o Discurso Reportado em Interação Fictiva, expressão esta cunhada por Pascual (2002) e entendida por ela como uso do Frame de Conversa para modelar a cognição, o discurso e a gramática. “Assim, em essência, a Interação Fictiva envolve a apresentação do que parece ser (parte de) uma conversa, com o propósito de introduzir, definir ou referir o que não é habitualmente uma conversa” (Pascual e Sandler 2016: 4)3.
Para estruturar o discurso, tanto quanto a IF, entende-se que o DR também usa o Frame de Conversa, o qual, para Pascual e Sandler (2016: 4), relaciona-se a um domínio cognitivo de experiência em conversa que molda a forma como conceptualizamos o mundo físico e social, os processos de pensamento e, como resultado, estrutura o discurso e a gramática.
Em outros termos, o Frame de Conversa pode ser compreendido como um entrincheirado Modelo Cognitivo Idealizado4 de experiências linguístico-interacionais de conversa, que fornecem inputs de forma e conteúdo para IF e DR.
2. Convergências teóricas
Outros fundamentos deste trabalho reúnem linhagens distintas de pesquisa, porém compatíveis pela perspectiva do discurso.
Dos pressupostos cognitivistas, são requeridas noções em torno da Teoria dos Espaços Mentais (Fauconnier 1994, 1997) e da Gramática Cognitiva (Langacker 2008); no plano discursivo, mencionam-se aspectos acerca do padrão discursivo “Problema-Solução” (Hoey 2001); já no domínio da fala espontânea, recorre-se à Teoria da Língua em Ato - L-AcT (Cresti 2000; Moneglia e Raso 2014; Moneglia 2011; Raso e Mello 2012).
Segundo Fauconnier (1994), os construtores de espaço mental (CEM) são marcas linguísticas que sinalizam a abertura de constructos mentais, permitindo a conexão pragmática entre domínios epistêmicos diferentes e a descrição da relação entre elemento e contraparte, seja em termos de imagem, crença, hipótese, tempo, drama ou volição. Criam um novo espaço mental ou se referem a um já apresentado, podendo ser expressos gramaticalmente por combinações sujeito-verbo (“Carlos acredita...”, “Ana espera...”, etc.). Assim, o espaço mental aberto para a expressão de fictividade é, neste trabalho, referenciado como Espaço Mental Fictivo (EMF).
Embora Pascual e Sandler (2016) defendam que a Interação Fictiva não pertence a cenários hipotéticos e contrafactuais, há algo que a aproxima deles. A contrafactualidade manifesta-se em construções condicionais como “Se eu fosse rico, eu compraria uma mansão”, em que o enunciador não é rico e, portanto, não comprará uma mansão. Por outro lado, as ocorrências de Discurso Direto Fictivo podem ser entendidas não necessariamente como negação de fatos, mas como não fato, visto não serem genuínas quanto à sua factividade, e sendo, na verdade, a favor dela, no sentido de almejá-la.
De acordo com Meireles (2003), o papel da contrafactualidade, tradicionalmente concebido, constitui-se de postulações acerca de mudanças no mundo para que se observem possíveis consequências. Mas, para ela, as contrafactuais revelam que a argumentação é estruturada de modo a focalizar áreas de interesse dentro do discurso. Trata-se de um recurso por meio do qual o autor postula um contrafacto para evidenciar um aspecto sob discussão ou crítica. Nesse sentido, a IF apresenta algo que não necessariamente foi ou será dito, mas que se quer factivo, atuando também como um meio de alto teor argumentativo.
Considera-se ainda que, nos casos analisados de Interação Fictiva, não há contrafactualidade, mas pró-factualidade5, em que o enunciador enuncia, de modo fictivo, algo que sente ou almeja ser factual. Esses casos remetem a espaços mentais passados, expressando algo já sentido ou pensado, e também a espaços futuros, relativos a algo a ser executado, como planejamentos. Ambas as situações são pró-factuais, como construções mentais de “realidades” psicológicas, não factuais. Então, Discurso Reportado em IF e Discurso Reportado canônico são tomados aqui como pró-factuais e factuais, respectivamente.
Como será verificado, esse entendimento se relaciona ao padrão discursivo “Problema-Solução” (Hoey 2001), segundo o qual uma situação é seguida de um problema que requer solução, avaliada posteriormente. O exemplo construído por Hoey (2001: 123) evidencia tal padrão em que (1) é uma situação prévia opcional, a qual fornece contexto para o padrão, (2) se configura como problema ou situação que requer resposta, (3) como resposta ao problema e (4) como resultado ou avaliação:
(1) Certa vez, eu era professor de língua inglesa.
(2) Um dia, alguns estudantes vieram até mim incapazes de escrever seus nomes.
(3) Ensinei a eles a análise de texto.
(4) Agora, todos escrevem romances.
Neste trabalho, a investigação do referido padrão se dá na modalidade falada, a partir de dados linguísticos reais. O desenvolvimento da análise requer, então, um modelo teórico que opere com constructos arregimentados segundo a natureza empírica da oralidade. Nesse sentido, cabe o detalhamento de alguns conceitos da L-AcT. Um de seus pontos cruciais são as definições de enunciado, ilocução e atitude.
Em linhas gerais, o enunciado, unidade de referência da fala, é definido como a menor sequência linguística dotada de autonomia pragmática e prosódica (Cresti 2000); a ilocução, como ação que produzimos sobre o interlocutor quando lhe dirigimos um enunciado, que corresponde a um ato de fala (Austin 1962); já a atitude é compreendida por Raso e Mello (2012) como a maneira pela qual uma ilocução é realizada (encorajadora, autoritária, etc.).
A L-AcT reconhece a prosódia como o elemento responsável por segmentar o continuum da fala em enunciados e em suas unidades internas. Os enunciados são limitados por quebras prosódicas de perfil terminal (//) (Crystal 1975), ao passo que quebras não terminais estabelecem unidades internas (/). A prosódia ainda assinala funções informacionais que uma unidade tonal pode assumir, sendo a principal delas a de veicular uma ilocução.
O inventário das funções informacionais (Cresti 2000, adaptado de Rocha 2016) pode ser assim resumido, tendo em vista interesses analíticos deste artigo em relação aos fragmentos em negrito dos exemplos e às anotações informacionais do minicorpus do C-ORAL-BRASIL, a ser descrito na seção metodológica:
1) Atuantes na construção do conteúdo semântico do enunciado, as unidades informacionais textuais mencionadas são:
- Comentário (COM): única, necessária e suficiente para que se constitua enunciado. Cumpre apenas um ato de fala;
- Tópico (TOP): âmbito de aplicação da força ilocucionária do COM. Não é interpretável em isolamento, visto representar a premissa semântica do conteúdo locutivo do COM;
- Parentético (PAR): unidade de valor metalinguístico, fornece instruções sobre como o texto deve ser interpretado. Seu escopo pode ser todo o enunciado ou uma parte dele;
- Introdutor Locutivo (INT): sinaliza que o espaço locutivo subsequente deve ser interpretado holisticamente. Na maioria das vezes, subsidia a unidade de COM, que porta metailocuções. Entonacionalmente, apresenta contraste necessário para a suspensão pragmática do enunciado, sinalizando que o que vem na sequência não deve ser interpretado como pertencente ao plano da enunciação atual, mas a coordenadas temporais, espaciais ou pessoais diferentes;
2) Unidades relacionadas aos limites do isomorfismo entre o padrão prosódico e o padrão informacional do enunciado:
- Escansão (SCA): o falante produz uma unidade informacional em duas ou mais unidades tonais;
- Comentário Ligado (COB): compreende uma Estrofe, entidade formada por uma sequência de unidades ilocucionárias ligadas por um sinal prosódico de continuidade;
- Comentários Múltiplos (CMM): sequência de dois Comentários que estabelece uma relação retoricamente padronizada de interpretação holística;
- Comentários Múltiplos Ligados (CMB): unidades situadas entre os Comentários Múltiplos (CMM) e os Comentários Ligados (COB).
Sob a ótica da Linguística Cognitiva, Langacker (2008) defende algo importante para o que se entende aqui como a autonomia prosódica relativa a agrupamentos de fala fictiva. O autor diz que a conversa apresenta uma dimensão específica de organização, os Frames Atencionais. Segundo ele, são partes do discurso, inicialmente identificadas por aspectos fonológicos, mas que também apresentam valor conceptual. Entendidos como sucessivas janelas de atenção, esses frames formam grupos entonacionais coesos, encadeados por traços prosódicos, carregados de conteúdo conceptual e envolvidos no planejamento e na produção do discurso.
3. Aspectos metodológicos
Para este trabalho, optou-se por um dos corpora vinculados ao Projeto C-ORAL-ROM (Cresti e Moneglia 2005): o C-ORAL-BRASIL I (Raso e Mello 2012). Como descreve Mello (2012), trata-se de um corpus informal de fala espontânea do Português Brasileiro, de diatopia mineira, oriundo principalmente da região metropolitana de Belo Horizonte. De arquitetura balanceada, emblematiza três tipologias da fala, monólogos, diálogos e conversações, em contextos públicos e privados, apresentando cerca de 1.500 palavras por texto. Contém 139 textos gravados, apresentados por meio de arquivo de som, em formato wav, além de ter transcrição em formato rtf, segmentada em unidades tonais, e arquivo de alinhamento texto-som em formato xml. Cada um dos textos traz também os metadados, com suas versões txt e xml etiquetadas morfossintaticamente.
A partir desses 139 textos, coligiu-se um minicorpus, informacionalmente etiquetado, com vistas a estudos de estrutura informacional e das ilocuções. Essa seleção apresenta 20 textos, sendo 6 conversações, 7 diálogos e 7 monólogos, feita de modo a fazer jus à variação diafásica e diastrática.
Para este artigo, selecionaram-se apenas dois dos 20 textos, cuja caracterização remete a conversações (mais de dois participantes) do tipo familiar/privada: os arquivos bfamcv01 e bfamcv02. De acordo com notação do C-ORAL-BRASIL (Raso e Mello 2012), o sufixo “_r”, anotado em certas unidades informacionais, diz respeito àquelas que contribuem para instâncias de Discurso Reportado. Nessas unidades, entende-se que o falante reproduz, parcial ou completamente, um ou mais enunciados proferidos por ele mesmo ou por outra pessoa em situação comunicativa diferente. No entanto, como este trabalho postula que a IF não diz respeito à reprodução de enunciados próprios ou de terceiros, mesmo que parcial ou completa, sugere-se a opção pela notação (_rf ou simplesmente _f) para as unidades que a compõem.
Independentemente da extensão enunciativa de IF e DR e da distância entre suas unidades informacionais no turno dialógico bem como na troca de turnos entre os participantes, os limites formais e conceptuais, que demarcam Discurso Reportado em IF e Discurso Reportado canônico, são tidos, em geral, como sendo o prefácio dicendi somado à porção anexa de discurso, fictiva ou factiva. Em termos informacionais, consideram-se introdutores ilocutivos (e dimensões prosódicas) juntamente com os comentários “reportados”. Isso tem respaldo no entendimento de que o construtor de espaço mental e a informação adicionada a ele formam um todo construcional interdependente. Um sem o outro comprometeria a natureza metailocutiva, haja vista que esta aciona coordenadas espaço-temporais distintas da cena corrente.
4. Interação Fictiva e Discurso Reportado em fala espontânea do PB
Esta seção apresenta a análise de três excertos extraídos de dois dos arquivos do minicorpus do C-ORAL-BRASIL I, em que se inserem casos de IF e DR. O primeiro arquivo é o bfamcv01, que, sob o título Soccer championship (Campeonato de futebol), registra uma conversa entre quatro colegas, LEO, GIL, LUI e EVN, estudantes de graduação do sexo masculino oriundos de Belo Horizonte (MG), com idade variando entre 18 e 25 anos. Ocorrida em 31/05/2009, na casa de um dos participantes, na capital mineira, a situação comunicativa refere-se a um encontro entre jovens que haviam organizado um campeonato de futebol. Todos eles estão equipados com microfone de lapela, e não há participação do pesquisador. O tópico da conversa são os aspectos positivos e negativos do campeonato realizado, além dos planos para o próximo.
4.1. IF no bfamcv01
Excerto A:
*LEO: [35] como o Chub fala / es vão pegar os caras que / tipo / tavam reclamando / e tal / es vão pegar / es vão pegar tentar fazer um negócio desse / e eu aposto que cê vai ver os caras que já conhecem a gente há mais tempo / tipo José [/1] Zé Mourinho / falando assim / não / o / campeonato d’ ocês é bem melhor //$ [36] eu nũ +$ [37] tipo / eu [/1] eu acredito / tipo / cem por cento / nisso //$
*EVN: [38] uhn //$
Não é por acaso que o enunciado [35], do excerto A, faz parte de um único turno dialógico de cerca de 22 segundos, relativamente grande para uma conversa entre quatro pessoas. Pode-se afirmar que existe, nesse momento, uma inclinação monológica circunstancial, afeita a contextos subjetivistas, como se o participante pensasse alto (Pascual 2014). Isso parece criar condições discursivas para o surgimento do primeiro caso de Discurso Reportado em Interação Fictiva de toda a gravação (destacado em negrito), por meio do qual o participante LEO lança mão do Frame de Conversa para modelar fictivamente o discurso, fazendo valer o padrão discursivo problema-solução. Em A, LEO usa a IF a fim propor uma solução para o dilema que os participantes da conversa vivenciam: o fato de um possível grupo dissidente realizar um campeonato com os times comumente convidados.
A solução apontada por LEO diz respeito a um desagravo moral à situação-problema, que simula uma fala genérica de pessoas conhecidas, do time chamado Zé Mourinho, “campeonato d’ ocês é bem melhor //=COM_r=”, anotada no minicorpus, como Comentário Reportado. Ou seja, sendo a competição organizada pelos participantes da interação bem melhor, não haveria motivo para preocupações. Note que esse argumento fictivo de autoridade, criado por LEO, recorre a terceiros para que ele mesmo possa, pragmaticamente, elogiar o próprio grupo. Então, configura-se um caso em que a ilocução diretiva de Discurso Reportado6, fictivamente empregada, funcionaria como outra: uma metailocução rito de elogio.
A armação cognitiva envolvida na situação comunicativa, com suas implicações imediatistas e emergentes, bem como o poder de circunscrição da pragmática, em consonância com intencionalidades localmente inferíveis, como essa acerca do enunciado autoelogiativo de LEO, contribuem decisivamente para a seguinte postulação: quem “reporta” fictiva ou mesmo factivamente a voz atribuída a outro é também autor dessa voz, fingindo consciente ou inconscientemente que não é, sendo7.
Assim, a “reportação” discursiva, como metailocução, deve ser considerada uma ilocução por si só. Nesse sentido, a categoria Discurso Reportado deveria ser enquadrada não apenas como ilocução diretiva, mas como o uso do Frame de Conversa capaz de abrigar ilocuções de macroclasses ilocucionárias distintas, que podem ser lidas factiva ou fictivamente. A diretividade do Discurso Reportado, que almeja transformações no estado de coisas e nas concepções sobre ele, pode se realizar, então, por meio de ilocuções abrigadas pelas classes representativa, expressiva, recusa e rito (como a de LEO).
Tendo em vista o inequívoco recurso à reiteração propiciada por metailocuções de Discurso Reportado, independentemente do efeito perlocucionário, se alguém “reporta” uma reivindicação, metarepresentativamente reivindica. Se “reporta” um pedido, metadiretivamente pede. Se “reporta” um insulto, metaexpressivamente insulta, e assim por diante. Se “reporta” um elogio, por exemplo, metaritualisticamente elogia, como sugere o caso de LEO, ao “reportar” a fala de conhecidos do time Zé Mourinho.
Essa discussão certamente pode provocar controvérsias em relação à problemática do Discurso Reportado genuíno. Se por um lado, o autor da “reportação” é, em grande parte das vezes, subfocalizado; por outro, a factividade do discurso reportado sempre remete ao que “realmente” foi dito ou escrito. Se o próprio DR pode ser concebido como algo construído, fingido e não precisamente reportado, a IF de LEO, como instância de uso do Frame de Conversa para modelar o pensamento discursivo, é ainda mais construída, mais fingida, pois atinge dimensões de simulação de espaços mentais de apelo pró-factual.
A simulação do argumento de autoridade (de conhecidos do time Zé Mourinho) não se configura exatamente como uma ilocução canônica de Discurso Reportado, mas como instância fictiva do Frame de Conversa. Isso se deve ao fato de que não há a reportação de um discurso segundo o Frame de Comunicação Discursiva, mas a simulação pró-factual de um cenário em que conhecidos do time Zé Mourinho supostamente falariam, mas não necessariamente falaram ou falarão “o campeonato d’ ocês é bem melhor”. Nessa perspectiva, a solução interacional emerge como um não fato pró-factual, por meio da qual autoridades estariam defendendo a superioridade do grupo em relação a possíveis dissidências.
Por outro lado, a estruturação informacional do excerto A apresenta altíssimo grau de complexidade no que diz respeito ao Discurso Reportado em IF. LEO inicia o enunciado [35] com um INT de caráter conformativo, cujo verbo “fala” se encontra no presente do indicativo, sinalizando aspecto de habitualidade. Nesse momento, há o encaixe da ilocução “es vão pegar os caras que/”, uma unidade informacional interrompida (-i) e enquadrada no minicorpus como i-COB, integrante de uma sequência de unidades ilocucionárias agrupadas por um sinal prosódico de continuidade.
Esse i-COB e os demais representam Comentários Ligados (“tavam reclamando /=COB= e tal /=COB= es vão pegar /=COB= es vão pegar tentar fazer um negócio desse /=COB= e eu aposto que cê vai ver os caras que já conhecem a gente há mais tempo /=COB=”), constituindo a elaboração falada de um pensamento em concomitância à construção do texto oral metailocutivo e não sendo correspondentes a um único ato de fala ou a atos de fala padronizados.
Nesse caso, a sequência de COBs tem força ilocutiva de citação parafrástica, dentro da macroclasse ilocucionária representativa, e atitude serena. Isso com exceção do último COB, que apresenta uma ilocução de Suposição, também dentro da macroclasse ilocucionária representativa, e atitude de leve descontração.
O desfecho do enunciado [35], destacado em negrito, dá-se em forma de IF, distribuída respectiva, informacional e sintaticamente desta maneira:
(i) Comentário Ligado (COB), que traz o sujeito “caras” (“e eu aposto que cê vai ver os caras que já conhecem a gente há mais tempo”);
(ii) Escanção (SCA), com função de angulador e sujeito (“tipo José”);
(iii) Parentético (PAR), com função cópia de sujeito (“Zé Mourinho”);
(iv) Introdutor Locutivo (INT), com função predicadora mais adjunção de modo (“falando assim”);
(v) Comentário Múltiplo Ligado Reportado (CMB_r), com função de complemento oracional (“não”);
(vi) Escanção (SCA), com função de determinante (“o”);
(vii) Comentário Reportado (COM_r), com função de complemento oracional (“campeonato d’ ocês é bem melhor”) e responsável por atribuir força ilocutiva de IF ao enunciado, via Frame de Conversa, encaixando-se na macroclasse ilocucionária expressiva e de atitude descontraída.
Observa-se que a sintaxe do discurso direto canônico (sujeito + verbo dicendi + complemento oracional), de inclinações grafocêntricas, não se aplica pari passu à sintaxe da fala observada na construção de Discurso Reportado Fictivo do enunciado [35]. As categorias de análise comumente aplicadas à escrita não são as mesmas que aquelas aplicadas à fala, cuja sintaxe remete a unidades informacionais, segundo a L-AcT. Apesar disso, os limites conceptuais da IF de [35] ainda podem ser entendidos como circunscritos a “e eu aposto que cê vai ver os caras que já conhecem a gente há mais tempo / tipo José [/1] Zé Mourinho / falando assim / não / o / campeonato d’ ocês é bem melhor //$”. Isso não se dá necessariamente pela influência grafocêntrica, mas pela armação cognitiva que se opera nessa construção.
Há um espaço mental de IF aberto pelo CEM “e eu aposto que cê vai ver os caras que já conhecem a gente há mais tempo / tipo José [/1] Zé Mourinho / falando assim”, que informacionalmente aciona domínios pró-factuais de fala construída por meio do enquadre de aposta e do verbo no futuro (“vai ver”), vinculados a um típico verbo dicendi do Português Brasileiro (“falando”). Note que enquadre de aposta já se configura como uma asserção fictiva (Pascual 2014), cujo propósito comunicativo não é o de efetivamente apostar, mas o de convidar o endereçado a fazer uma inferência sobre o estado emocional e a posição do enunciador em relação a um aspecto particular ou a um elemento mais amplo do discurso.
Excerto B:
*GIL: [62] sabe que que eu penso / velho //$ [63] <eu nũ sei> que cês acham //$
*EVN: [64] <não> //$
*GIL: [65] da gente / pra alguns setores da organização / chamar o pessoal / dos outro times //$
*LUI: [66] mas a <gente tenta> fazer reunião / galera nũ <comparece> //$
*GIL: [67] <por exemplo> +$ [68] <não não> / <mas> assim //$
*EVN: [69] <é / porra> //$
*GIL: [70] agora / que deu pau / &d +$ [71] que eu acho que deu muito pau / nessa taça //$
*EVN: [72] é //$
*GIL: [73] a gente virar assim / olha //$ [74] nós estamos nesse &mom +$ [75] assim / alguns meses antes da taça começar //$ [76] nós estamos nesse momento / &he / &fa [/1] &he / procurando [/1] &he / &he / no [/1] no processo / de procurar / &he / &he / &he / quadra / olhar os melhores lugares //$ [77] cês querem participar //$ [78] cês querem olhar com a gente / cês querem sugerir um lugar / <qualquer> coisa desse tipo //$
*EVN: [79] <é> //$
A delimitação do excerto B tem a ver com uma das mais emblemáticas instâncias de Discurso Reportado em IF de toda a conversa, protagonizada pelo participante GIL, que toma o turno no enunciado [62] a fim de propor uma solução geral para a discussão, via instância fictiva do Frame de Conversa. E essa tomada em [62] tem início com uma pergunta, que pode ser interpretada como fictiva, cujo valor semântico é desbotado em detrimento de sua importância pragmática; afinal, ninguém saberia o que GIL pensa. Então, por que ele pergunta? Trata-se de uma pergunta retórica, que não requer resposta.
Esse enquadre fictivo prenuncia um agrupamento de instâncias de Discurso Reportado em IF produzido por GIL, que vai do enunciado [73] ao [78] (destacado em negrito), logo após ele mesmo propor uma reunião geral com todos os times. Essa proposição é apresentada como a parte do padrão interacional-discursivo problema-solução; no caso, uma proposta de solução. O desenho dessa proposição é modelado pelo Frame de Conversa, o qual atua como organizador do discurso ensaiado, supostamente a ser acionado no contexto da reunião futura.
De [73] a [78], GIL mantém um turno dialógico durante cerca de 22 segundos, o que é pragmaticamente relevante, já que está com a palavra para fazer sua proposta moldada pelo Discurso Reportado em IF. O início do enunciado [73] é marcado informacionalmente por um INT “a gente virar assim”, que engloba deiticamente todos os participantes da cena corrente, por meio da locução pronominal “a gente”, na cena projetada; o verbo “virar”, adjungido por “assim”, faz as vezes de verbo dicendi, no futuro do subjuntivo, abrindo espaço mental pró-factual para a adição de um discurso fictivo. A princípio, pode-se conceber esse construtor de espaço mental como um dispositivo que inaugura espaço futuro, como se GIL produzisse um discurso ainda a ser reportado, não já reportado.
Por outro lado, como se trata de uma introdução locutiva com vistas a introduzir uma fala fictiva, o que interessa pragmaticamente, na situação em curso, não é exatamente a forma e o conteúdo verdadeiros do que será produzido na reunião futura, mas a estruturação do discurso ou pensamento de GIL, via Frame de Conversa, na situação do aqui-e-agora, como um ensaio discursivo; isso para convencimento dos outros participantes da cena em curso, de que uma reunião dessa forma modelada é uma saída para uma boa organização de campeonato.
O registro da quebra prosódica não terminal (/), que marca continuidade, entre o INT e o COM_r “olha”, indicia apoio melódico para a abertura do EMF, já sintática e semanticamente estabelecida pela composição canônica entre sujeito e verbo de elocução como CEM. O complemento oracional ou discursivo, o COM_r “olha”, finalizado com quebra terminal de encerramento de enunciado, configura-se como uma metailocução que veicula Pedido de Ação (dentro da macroclasse ilocucionária diretiva, segundo a L-AcT).
Ou seja, “olha” atua como pedido de atenção, dentro do espaço mental pró-factual estabelecido ou dentro da cena simulada de reunião. Já se consideramos essa metailocução como ilocução dentro da cena corrente, é possível postularmos um ato de fala expressivo de encorajamento, vinculado ao propósito argumentativo de convencer os colegas a promover um encontro futuro entre integrantes dos times.
Com o espaço mental aberto pelo INT “a gente virar assim”, informações são adicionadas a ele, como o COM_r “olha” e o enunciado interrompido [74], que melodicamente tenderia a se configurar, caso não tivesse sofrido interrupção, como um COB, ligado a comentários por um sinal prosódico de continuidade. No entanto, observa-se outro tipo de continuidade melódica entre o COM_r “olha” e o EMP “nós estamos nesse &mom +”. Mesmo pertencendo a enunciados distintos, [73] e [74], formam um grupo coeso de Frames Atencionais.
Já o cancelamento da unidade tonal de [74] não diz respeito a uma mera falha de execução do enunciado, mas indica uma interrupção voluntária que cognitivamente fomenta a criação de um espaço mental alternativo, via INT “assim” (CEM), no início de [75], para adicionar a informação temporal (“alguns meses antes da taça começar”) ao CEM já aberto (“a gente virar assim”). Essa interrupção tem a ver com a sinalização de GIL de que a expressão “nesse momento” não diz respeito à situação comunicativa em curso. Assim, o enunciado [75] desfaz a ambiguidade temporal de [74], reiterando o tempo futuro de [73].
A rigor, são três CEMs sequenciais: (i) “a gente virar assim”; (ii) “assim”; (iii) “alguns meses antes da taça começar”. O primeiro e o último abrem espaço mental compatíveis com espaço base e para as falas fictivas, e o segundo abre espaço mental específico para o próprio construtor de espaço “alguns meses antes da taça começar”. Perceptualmente, observa-se também uma continuidade melódica entre (i) e (iii), sendo que há outro padrão de continuidade melódica entre “olha //=COM_r=$ nós estamos nesse &mom +=EMP=$”, dos enunciados [73] e [74), e o enunciado [76]. Desse modo, o INT “assim”, de caráter instrutivo, constrói um espaço alternativo intervalado no enunciado [78], ao longo turno de GIL.
Esse intervalo não é suficiente para bloquear a interpretação holística do agrupamento (Frame Atencional) de falas fictivas de [73], [74], [76], [77] e [78], em função da abertura de espaço locutivo estabelecida pelo INT “a gente virar assim”, que ecoa para além da unidade imediatamente subsequente. Embora as unidades informacionais que compõem esse agrupamento fictivo sejam portadoras de atos ilocutivos únicos, segmentadas prosodicamente, o referido agrupamento transcende a unicidade “ilha” dos componentes informacionais, relacionando-os prosódica e pragmaticamente em torno da IF pelo fator melódico que as une.
O enunciado [76] de GIL, “nós estamos nesse momento / &he / &fa [/1] &he / procurando [/1] &he / &he / no [/1] no processo / de procurar / &he / &he / &he / quadra / olhar os melhores lugares //$”, dentro do domínio pró-factual de IF, simula mimeticamente os procedimentos discursivos que o participante sinaliza pretender adotar na reunião preparatória para o próximo campeonato.
Assim, com apoio da dêixis de pessoal “nós”, que agrega todos os envolvidos para a nova competição, GIL adiciona enunciados fictivos de modo a projetar os participantes da cena corrente no espaço mental, inspirando efeitos de identificação imediata nos ouvintes e angariando adesão; e assim, convencê-los de que a solução apresentada, pela via da IF, é consistente.
4.2. DR no bfamcv02
Parte integrante do minicorpus do C-ORAL-BRASIL informal, o arquivo bfamcv02, intitulado “Casamento em família”, documenta o encontro entre as participantes RUT (mulher, graduada, entre 41 e 60 anos, professora aposentada, de Belo Horizonte/MG), TER (mulher, não graduada, entre 41 e 60 anos, dona de casa, de Belo Horizonte/MG) e JAE (mulher, graduada, mais de 60 anos, professora aposentada, de Belo Horizonte/MG). Ocorrida em 07/03/2008 na sala de jantar da casa de uma das participantes, em Belo Horizonte/MG, a situação envolve uma conversa entre três irmãs durante um lanche da tarde, sendo registrada por gravador com microfone omnidirecional não oculto e sem a presença de pesquisador. O tópico são questões relacionadas ao casamento da filha de TER, Dani, com Anderson, como pajem, dama, presentes e família.
Excerto C:
*TER: [94] (hein)8 aqui //$ [95] a mãe +$ [96] não / ea tá falando do [/1] dos [/1] dos presente //$ [97] escuta só //$ [98] a Dani //$ [99] a Dani //$ [100] a Dani falou assim / ô mãe //$ [101] o' //$ [102] a mãe da Fafica / vai dar / o fogão //$ [103] o tio do Anderson / <vai> dear +$
*JAE: [104] <geladeira> //$
*TER: [105] não / a geladeira já tá comprada //$ [106] que a Fafica &de [/1] já / comprou //$ [107] já tá lá na casa dela //$
*RUT: [108] do lado da Dani nũ tem ninguém rico / né //$
*TER: [109] escuta //$ [110] do +$ [111] não / lado des também nũ é rico não //$ [112] mas é controlado //$ [113] igual o nosso //$ [114] a +$ [115] do lado [/2] hhh do lado +$ [116] o Zé Carlos vai dar a televisão //$ [117] o outro tio do Anderson vai dar a máquina de lavar //$ [118] Brastemp //$ [119] o outro vai dar [/2] vai dar / <microondas> //$
*RUT: [120] <geladeira> //$
*JAE: [121] não / <geladeira a Fafica já deu> //$
*TER: [122] <geladeira é a Fafica> //$
*RUT: [123] ah / tá / a <Fafica> //$
*TER: [124] <já> [/1] já deu //$ [125] já &t [/1] até comprou //$ [126] já tá lá //$
*RUT: [127] uhn //$
*TER: [128] e / aí / ela tá assim / mãe / só falta só o sofá //$ [129] <aí eu> falei assim então <hhh / os> [/1] os +$
*RUT: [130] <Nossa> //$
*JAE: [131] <ocê vai dar> //$
*TER: [132] não //$ [133] o sofá vão vez / que ea às vezes a Rute distribui com ela / Tonita / <Ção> +$
*RUT: [134] <a família> toda //$
*TER: [135] a família toda / e dá um sofá <hhh> //$
Entre [94] e [103], no excerto C, TER se apropria de um turno, de 17 segundos, para “reportar” a filha. Em uma conversa entre três participantes, esse número passa a ser significativo, pois há certa inclinação monológica dentro de um ambiente predominantemente conversacional.
Assim, a mãe da noiva parece reivindicar tempo de turno para prosseguir com a construção de um macro-ato de fala9 (Van Dijk 2000), superordenado à boa parte de suas ilocuções. No caso, trata-se de um macro-ato de fala diretivo de insinuação de pedido de compra do sofá por parte daqueles que são relacionados à família de Dani e não à de Anderson; lembrando que RUT e JAE são tias de Dani e estão presentes na situação comunicativa corrente. A atitude de TER se consolida de forma divertida e risonha na veiculação mais explícita desse macro-ato de fala nos enunciados [128], [129], [133] e [135].
O percurso de TER até chegar ao macro-ato de fala diretivo de insinuação de pedido tem como gatilho uma sequência grande de tentativas para ela conseguir, de forma, mais consistente, “reportar” a filha, o que só ocorre de fato a partir do turno encabeçado pelo enunciado [94]. Para tanto, faz recurso à metailocução de discurso direto, endossando a hipótese: quem “reporta” fictiva ou factivamente a voz atribuída a outro é também autor dessa voz, fingindo consciente ou inconscientemente que não é, sendo. Isso sustentaria o corolário de que a mãe estaria, de algum modo, pedindo (talvez, inconscientemente) o sofá pela filha.
Conceptualmente, os limites do Discurso Reportado de TER podem ser estabelecidos como sendo estes, conforme o turno dialógico que vai de [94] a [103]: “[98] a Dani //=COM=$ [99] a Dani //=COM=$ [100] a Dani falou assim /=INT= ô mãe //=COM_r=$ [101] o' //=COM_r=$ [102] a mãe da Fafica /=TOP_r= vai dar /=SCA= o fogão //=COM_r=$ [103] o tio do Anderson /=TOP_r= <vai> dear +=EMP=$”. Nele, as unidades informacionais COM [98], COM [99] e INT [100] compõem do construtor de espaço mental para discurso direto.
O INT de [100] consolida o disparo do gatilho para o espaço mental, emoldurado em perspectivação conceptual factiva pelos enquadres existenciais do referente Dani e do verbo “falou” codificando verbalização efetiva, adjungido por “assim”. O COM_r “ô mãe” é a primeira informação já no domínio do espaço mental de discurso direto, veiculando uma metailocução diretiva de Discurso Reportado com chamamento funcional10. Na sequência de unidades informacionais dentro do domínio do espaço mental de discurso direto, TER começa a listar presenteadores e respectivos presentes, da parte do noivo. Isso até que seja sobreposta por JAE, em [104], fazendo com que TER cancele sua participação no acréscimo de informações ao espaço mental aberto.
Demonstrando que o acréscimo de informação ao espaço mental aberto não é exclusividade de quem abre o espaço mental, JAE, por sua vez, enuncia, sobrepostamente à TER: “geladeira”. Isso demonstra engajamento atencional por parte de JAE e que a construção discursiva na fala é também um todo sociointeracional.
Assim, com uma ilocução representativa de correção, os enunciados [105] a [107], de TER, reparam a informação de JAE sobre a geladeira, já fora dos limites do discurso direto de [98] a [103].
Ocorre que esses limites, na verdade, são temporariamente suspensos entre os enunciados [104] e [113], em que se discute a compra da geladeira por Fafica e que os parentes de Dani não são ricos ou são controlados, como os de Anderson. Assim, com base em percepções prosódicas, relacionadas a um padrão melódico contínuo de listagem, em [102] e [103], e no elemento evidencial veiculado por TER que “reporta” a filha entre [98] e [103], verifica-se que TER dá sequência à lista de presenteadores e presentes, da parte do noivo, mais adiante, entre [114] a [119].
Por se configurarem informações adicionais ao espaço mental de discurso reportado, anteriormente aberto, todas as unidades de comentário entre [114] e [119] poderiam ser anotadas, no minicorpus, como COM_r, em função de serem consideradas um acréscimo remoto de informação ao espaço mental aberto pelo construtor de espaço mental de discurso direto, de TER em: “[98] a Dani // [99] a Dani // [100] a Dani falou assim”. Isso também revela que a conceptualização do discurso reportado, na fala, pode ser construída entre turnos dialógicos distintos, independentemente de sequências imediatas de enunciados. Então, o frame atencional desse primeiro exemplo de discurso direto engloba os enunciados de [98] a [103], bem como os de [114] a [119].
Encerrada a segunda listagem de presenteadores e presentes, é a vez de RUT, em [120], retomar o tópico “geladeira”, que novamente é esclarecido como sendo presente já dado por Fafica. Logo após essa sequência de novo esclarecimento, o mais relevante são os turnos de TER, [128], [129], [133] e [135], que somados, veiculam explicitamente o macro-ato de fala diretivo de insinuação de pedido. Notem que a informação de que só falta o sofá, como presente de casamento, é metailocutivamente construída por TER em [128], em nova instância de discurso direto. Então, a essa informação é reservada a tarefa de apresentar o problema ou a situação que requer resposta, o que remete ao padrão interacional-discursivo problema-solução.
Isso é simbolicamente muito relevante, pois o Frame de Conversa em discurso direto está sendo acionado na situação comunicativa em análise para mitigar, supõe-se, o comprometimento da mãe com a insinuação de pedido. Assim, as palavras de TER são conceptualmente atribuídas à Dani, como se a mãe não estivesse “filtrando” a fala que diz reportar da filha. Como há uma forte inclinação de que esses enunciados “reportados” sejam concebidos, pelas demais participantes da situação comunicativa corrente, como insinuação de pedido ou mesmo pedido, tendo em vista TER estar diante de pessoas vinculadas à família que, parece, ainda não prometeram presentes, o sujeito que “reporta”, no caso TER, é desvelado.
Talvez por perceber isso, a própria TER inicie [129] com uma modalizante autocitação de atitude divertida e risonha, mas com o propósito de afirmar que não é ela mesma que pretende dar o sofá, mas que Rute, Tonita e outros familiares de Dani poderiam se cotizar para comprá-lo. Novamente, remete-se ao padrão interacional-discursivo, que, nesse momento, está focado na fase do problema.
No entanto, a atitude divertida e risonha de TER é crescente, culminando em uma gargalhada ao final de [135], que reforça o abrandamento da insinuação de pedido.
Cabe ainda destacar outros aspectos da autocitação de TER, em [129], [133] e [135]. Estes dois últimos enunciados são conceptualmente escopados pelo construtor de espaço mental INT, de [129], “<aí eu> falei assim então <hhh”. Assim, as unidades informacionais COB “o sofá vão vez”, CMB “que ea às vezes a Rute distribui com ela”, CMB “Tonita”, COB “Ção”, todas de [133], bem como CMM “a família toda” e CMM “e dá um sofá <hhh>”, ambas de [135], mereceriam receber a adição da etiqueta “_r” (discurso reportado), no minicorpus. A divisão em turnos dialógicos distintos, anotada com “*”, não representa rompimento do elo conceptual entre os enunciados “reportados”. Faz-se valer a noção de que eles não são ilhados, visto que se vinculam uns aos outros na adição de informação ao construtor de espaço mental em INT, o que é prosodicamente marcada.
5. Comparação conclusiva
Em geral, a computação do número de casos de Discurso Reportado em IF e Discurso Reportado canônico no contraste total entre os dois arquivos apresentou os seguintes resultados: foram encontradas treze ocorrências de Discurso Reportado em IF e quatro de Discurso Reportado canônico, no bfamcv01; e zero de Discurso Reportado em IF e nove de Discurso Reportado canônico no bfamcv02. No conjunto, são treze instâncias de Discurso Reportado em IF e também treze de Discurso Reportado canônico. A pergunta primordial desta seção final diz respeito a: por que razão não foram encontrados casos de Discurso Reportado em IF no arquivo bfamcv02, já que ele também pertence à mesma classe informal, familiar/privada e conversacional, do arquivo bfamcv01?
Há uma distinção entre bfamcv01 e bfamcv02 relacionada à necessidade de tomada de decisão. Enquanto no primeiro, os conflitos, mitigados por atitudes divertidas, emergem por conta da necessidade de se decidirem explicitamente os rumos do próximo campeonato a ser organizado, em perspectiva pró-factual, os conflitos que emergem no segundo, com base em situações factuais e também mitigados por atitudes similares, são menos explícitos, não havendo uma obrigação posta para se definir quem é que presenteará o casal com o sofá. Mesmo sendo considerados informais, é como se o primeiro encontro tivesse sido pautado e o segundo, não. Assim, o nível de informalidade é mais alto no segundo do que no primeiro.
Entretanto, o plano argumentativo é mais expressivo no arquivo bfamcv01 do que no bfamcv02, em termos de explicitação. O primeiro apresenta casos de Discurso Reportado em IF propositivos de decisões conscientes, que são tomadas ao fim da conversa. Já o segundo, de natureza subliminar, relaciona-se a uma insinuação de pedido que não dá certo no momento, embora haja sucessivas tentativas sutis. Isso pode estar relacionado às fases do padrão interacional-discursivo (Hoey 2001), que Discurso Reportado em IF e Discurso Reportado canônico parecem representar.
Enquanto as instâncias de Discurso Reportado em IF atuam na fase de solução, as de Discurso Reportado canônico, predominantemente, relacionam-se à fase problema. Levando-se também em conta que os casos de DR do arquivo bfamcv01 também instanciam problema, reforça-se a distinção discursiva com os casos em IF. O Discurso Reportado em IF revela-se como uma estratégia comunicativa pró-factual de solução por se amparar no Frame de Conversa para simular cenários em que se apresentam propostas e viabilidades mediante problemas expostos discursivamente; ao passo que o Discurso Reportado canônico, como estratégia comunicativa factiva de apresentação de problema também via Frame de Conversa, subfocaliza o enunciador que “reporta” em detrimento daquele que está sendo “reportado”, fazendo com que o comprometimento com a fala “reportada” do enunciador que “reporta” seja abrandado.
Os exemplos analisados neste artigo ilustram bem a disposição de que Discurso Reportado em IF e Discurso Reportado canônico são afeitos a instanciar o padrão discursivo “Problema-Solução” (Hoey 2001), respectivamente. No caso selecionado de bfamcv02, a participante TER, mãe da noiva, ao se dirigir às duas irmãs, lança mão de sucessivas metailocuções factivas para construir um macro-ato de fala de (insinuação de) pedido, diretamente vinculado ao problema de que os noivos, à época, não tinham quem os presenteasse com o sofá. Já nos dois casos de bfamcv01, os participantes LEO e GIL se apoiam em versões fictivas de discurso direto para apresentar soluções subjetivas e objetivas para o que se debate. LEO usa o Discurso Reportado em IF a fim de fazer um elogio para desagravo moral do grupo de organizadores do campeonato de futebol, do qual também participa; enquanto GIL modela um Discurso Reportado em IF para propor os novos procedimentos a serem adotados na organização da nova competição.
Similarmente, esse tipo de constatação vale também para os demais casos de Discurso Reportado em IF e Discurso Reportado canônico observados nos arquivos bfamcv01 e bfamcv02, o que pode ser verificado no corpus publicado por Raso e Mello (2012). A princípio, pode-se pensar que se trata de um coincidente pareamento forma-função circunscrito a esses dois arquivos, porém cabe mencionar que a escolha deles para análise foi aleatória e que não há como descartar essa pista robusta no projeto analítico de se investigarem os demais arquivos do minicorpus do C-ORAL-BRASIL (Raso e Mello 2012).