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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.35 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20190026 

Artículos

Enunciados humoristicos infantis em foco: Implicações pragmaticas, cognitivas e sociais1

Children’s humoristic utterances in focus:Pragmatic, cognitive and social implications

1Universidade Estadual Paulista-FCLAr, del.re@unesp.br

2Université Paul Valéry-Montpellier 3, christelle.dodane@gmail.com

3Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3, aliyah.morgenstern@gmail.com


Resumo:

Para entender como as crianças aprendem a reconhecer e usar o humor em discurso, optamos por estudar suas produções linguageiras em duas línguas e culturas diferentes: uma criança monolíngue falante do francês e outra do português do Brasil, ambas registradas em vídeo, uma vez ao mês, em um estudo longitudinal cujos dados foram analisados, para este artigo entre 24 e 42 meses. Os resultados da análise linguística multimodal de nossos dados nos permitiram descrever os caminhos das duas crianças desde as primeiras trocas de divertimento partilhado, iniciado pelo adulto, até suas próprias produções de humor bem-sucedido no diálogo. Os diferentes parâmetros exigidos para o humor são encontrados a partir dos 2;4 anos de idade. Nosso estudo demonstra que a produção de humor infantil está intimamente ligada à contribuição da família e ao desenvolvimento multimodal e meta-cognitivo multimodal das crianças. Não observamos diferenças relevantes entre as duas crianças no nível macrocultural, mas identificamos algumas diferenças interindividuais.

Palavras-chave: humor; criança; pragmática; cognitiva; social

Abstract:

In order to understand how children learn to recognize and use humor in their speech, we have chosen to study their linguistic production in two different languages and cultures: a French-speaking monolingual child and a Brazilian Portuguese-speaking child, video-recorded once a month in a longitudinal study, whose data were analyzed for this article between 24 and 42 months. The results of the multimodal linguistic coding of our data enabled us to describe the paths the two children followed to get from first instances of shared amusement initiated by the adult to their own verbal production of successful humor in dialogue. The different parameters required for humor are set from the age of 2;4 years old. Our study demonstrates that the production of children’s humor is closely linked to the family input and to children’s multimodal linguistic and meta-cognitive development. We did not observe important differences between the two children at the macro-cultural level, but there were some inter-individual differences.

Keywords: humor; child; pragmatic; cognitive; social

1. Introdução

Se a entrada da criança na línguagem), de um modo geral, ainda envolve muitos mistérios, o processo que se refere à sua entrada no discurso humorístico é talvez um dos mais intrigantes, dada a conjunção de elementos que o compõem: a produção verbal, os gestos, o olhar, o movimento corporal, os aspectos prosódicos, etcetera. Considerando essa multimodalidade2 e o fato de se tratar de um trabalho em desenvolvimento, para este artigo, nosso foco recairá sobre a produção verbal de duas crianças Gus e Ana 24-42 meses), com alguns comentários pontuais a respeito dos gestos, olhar e da entonação. Sob esse ponto de vista, é importante ressaltar que o humor na linguagem da criança é um fenômeno ainda pouco explorado, sobretudo no Brasil, por essa razão há algum tempo ele vem recebendo, de nossa parte, uma atenção especial Del Ré 2011, Del Ré e Morgenstern 2010, Del Ré et al. 2014b, entre outros). Trata-se de uma busca que se iniciou em uma pesquisa de doutorado, concluída em 2003 e que se transformou em livro em 2011. A partir de então, uma colaboração entre o Brasil NALingua-CNPq) e a França COLAJE)3, com dados longitudinais de duas crianças, uma brasileira e uma francesa Gus e Ana, 24-42 meses), trouxe novas informações à discussão do tema. O presente artigo dá, portanto, prosseguimento ao desenvolvimento desse tema e à procura pela gênese do humor na criança, partindo da hipótese de uma aparição precoce na produção linguageira infantil.

E apesar de alguns passos já terem sido dados no sentido de se cercar esse tema, os resultados -nossos, dentro de uma perspectiva dialógico-discursiva, e de outras pesquisas, realizadas a partir de outras perspectivas teóricas- apontam para a necessidade de mais investigações. Portanto, a fim de contribuir para o desenvolvimento do tema, trazemos aqui os resultados mais recentes de uma pesquisa que envolve os corpora acima descritos.

Dando continuidade à exploração de um percurso que vai da diversão partilhada à produção de enunciados humorísticos, a partir de uma espécie de “lista de ingredientes necessários” para a composição do humor infantil Del Ré et al. 2014b, 2015, 2017), propomos para este artigo um refinamento dessa “lista”, pela impressão de um “olhar mais bakhtiniano” à análise dos dados das crianças em questão e trazendo à discussão elementos que envolvem os aspectos pragmáticos, cognitivos e sociais.

Deve-se dizer que a abordagem dialógico-discursiva que serve de base para o presente estudo busca fazer dialogar alguns trabalhos de Bakhtin e do Círculo Bakhtin 1988, 1997, 1999, Del Ré et al. 2014a) com outros que se preocuparam de alguma forma com a fala da criança -já que as questões que envolvem tal fala não eram uma preocupação do Círculo- tais como Vygostky 2005, 2007), Bruner 2004a, 2004b), Salazar-Orvig 1999, 2010) e François 1993, 1994, 2004, 2006).

De um modo geral, o interesse pelo humor como objeto de estudos linguísticos parece ter crescido nas últimas três décadas. Podemos citar entre eles os trabalhos de Raskin 1985), Possenti 1998), no que se refere especificamente à piada; e de Peppicello e Green 1984), Todorov 1980), Marini 1999), no que diz respeito à adivinha. Como objeto da aquisição da linguagem, Elliot 1982) reconheceu no riso que acompanha o dito engraçado da criança um índice metodológico interessante a ser explorado, mas de fato nem o riso4 nem o humor foram suficientemente pesquisados. Talvez a escassez de trabalhos se deva à própria dificuldade em se delimitar as fronteiras do humor, de um modo geral, o que torna a tarefa de se tratar do tema em crianças ainda mais complicada.

2. O humor infantil

A exploração do tema humorístico adulto não é novidade. No Brasil, no âmbito da linguística, Possenti 1991, 2010, entre outros) e Travaglia 1989, 1990) são os grandes representantes.

Sobre o humor na criança, de um modo geral, a maior parte dos estudos partem de uma perspectiva psicológica Aimard 1988, Bariaud 1983, Carrausse e Carrausse 2009, Feuerhahn 1993, Garitte 2005, Hoicka 2014, Hoicka e Akhtar 2012, MacGhee 1979,) ou psicanalítica Freud 1905) 1969), e apenas no Brasil encontramos um trabalho na área de Aquisição, um artigo de Figueira 2001).

Apesar de a maior parte desses trabalhos terem um ponto de partida diferente -o da Psicologia ou da Psicanálise- eles nos chamam a atenção para questões linguageiras presentes desde cedo na fala da criança, entre eles o humor escatológico a partir de 2 ou 3 anos de idade), a incongruência, que inicialmente ela percebe no mundo e que aos poucos vai fazendo parte de sua linguagem e aparece sob a forma de jogos sonoros, jogos de palavras.

Humour is both cognitive and social in nature. Producing it involves creating incongruity e.g., McGhee 1979, Shultz 1976), which requires a cognitive understanding of norms and how those norms can be violated e.g., putting a cup on one’s head, and calling a cup a ‘dog’, violate action and language norms, respectively). Humour is also social in nature. Jokes are intended for an audience e.g., (Hoicka e Gattis 2008) and need to be shared. Thus humour may be a good index of socio-cognitive development, as a successful joker must use their understanding of incongruity in social interaction e.g., (Hoicka e Gattis 2008, Hoicka e Akhtar 2012: 586).

Alguns desses estudos também parecem se preocupar com a emergência desse humor, mas no caso do trabalho de Aimard 1988), por exemplo, trata-se de bebês de alguns meses de idade e, nos de Bariaud, de crianças acima de 7 anos.

Figueira 2001), a partir da análise da produção de uma criança de 2 anos, nos confronta com a possibilidade de estarmos lidando, na maior parte das vezes, com produções anedóticas e não verdadeiramente humorísticas, já que nelas a criança é indiferente ao efeito da inovação, i.e., não teve a intenção de fazer o outro rir.

Posteriormente, em 2011, Hoicka e Akhtar, assumindo que as crianças entendem intenções desde bem cedo, tentam examinar as habilidades de 106 falantes de inglês, de 30 a 36 meses de idade, para produzir piadas, distinguir entre intenções humorísticas e sinceras e distinguir entre falantes de inglês e estrangeiros. Com esses objetivos, os pesquisadores conduziram duas tarefas experimentais, uma tarefa de “dar” e outra de “nomear”. As crianças eram mais propensas a oferecer o objeto errado durante a tarefa em que ela deveria “dar” e a produzir um rótulo incorreto durante a tarefa de nomeação nas condições humorísticas. Tais resultados parecem revelar que as crianças são sensíveis a intenções humorísticas em relação a intenções sinceras; e ao inglês, comparando com outras línguas estrangeiras. Além disso, elas são capazes de criar novas piadas.

Centrando-nos sobre algumas questões levantadas por esses autores, incluindo a ideia de intencionalidade sugerida por Figueira mas não desenvolvida) e da possibilidade de início precoce de humor, que também envolve o humor escatológico, foram propostos Del Ré 2011) diferentes tipos de humor produzidos por crianças entre 4 e 6 anos: os jogos de sons e de palavras, as zombarias, as produções “anômalas”, entre outros. Foi possível constatar nesse estudo que, ao contrário do que é proposto por Bariaud 1983), aos 4 anos já se encontram produções que levam em consideração o contexto, a conivência/presumido entre os interlocutores, um querer-fazer, enfim, um conjunto de elementos desencadeados por diferentes condutas linguageiras explicação, jogos de linguagem, etc.), que tornam a situação divertida, engraçada.

Esses resultados nos levaram a buscar o que aconteceria antes dos 4 anos, nos dados de duas crianças, uma brasileira Gus) e uma francesa Ana), entre 24 e 42 meses. Partindo desssas pesquisas, realizamos alguns estudos longitudinais Del Ré e Morgenstern 2010, Del Ré et al. 2015) a partir dos quais mostramos que parâmetros específicos são obrigatórios para a compreensão e a produção de humor em crianças pequenas: as marcas de divertimento por parte do interlocutor, o movimento discursivo, a conivência, a incongruência, a atenção conjunta e a intencionalidade Del Ré et al. 2015: 123).

Além dos dados revelarem a precocidade dessas produções aos 24 meses, em Gus, 3 anos em Ana), também nos apontaram para uma espécie de caminho que vai da diversão partilhada ao humor Del Ré et al. 2010, 2015) e é esse percurso que mostraremos a seguir, nas duas crianças, a partir de uma revisão desses parâmetros, procurando trazer uma discussão ainda inicial a respeito do papel do desenvolvimento linguístico e do aspecto cultural que pode envolver tais produções.

3. A conivência, a irrupção, o projeto de dizer

Mas para expor esse caminho, é necessário antes esclarecer alguns elementos que são fundamentais e que envolvem o outro, o discurso do outro: a conivência, a irrupção, o projeto de dizer.

Em se tratando de situações humorísticas que se dão no âmbito do diálogo e que dependem do encadeamento dos enunciados, dos movimentos discursivos, os interactantes têm um papel fundamental nesse processo. Deve haver entre eles uma cumplicidade, que permite ou não a continuação da comunicação. Em se tratando de situações de comunicação entre pais-crianças, é possível observar que os pais são capazes de dar explicação para muitos eventos não verbalizados no discurso, graças à conivência que há entre eles Salazar-Orvig 2003), os saberes partilhados, implícitos que são construídos na relação que se estabelece entre eles desde que a criança nasce. Trata-se da maneira como a conivência implica os interactantes para que eles fiquem sintonizados na mesma situação conversacional e que compartilhem da mesma intenção comunicacional Del Ré 2002, Del Ré et al. 2014b).

É nesse espírito de cumplicidade que, durante as trocas dialógicas, movimentos de convergência e divergência vão se constituindo Salazar-Orvig 1999) e podem se manifestar verbalmente ou por sinais como um sorriso, um riso, um olhar.

Para observar o funcionamento dos diálogos que envolvem a interação entre criança-adulto e criança-criança, é preciso atentar para a dinâmica que os constrói através dos encadeamentos, isto é, das relações entre dois ou mais enunciados diferentes separados por intervalos de tempo. Esses encadeamentos ressaltam não apenas a ligação explícita que existe entre os discursos convergência, continuidade), mas também o implícito compartilhado, a diferença entre eles, e, sobretudo, aquilo que é objeto de divergência, descontinuidade, desacordo e conflito.

É no âmbito desses movimentos, das circulações discursivas Bakhtin 1988) que François 1993) identifica alguns tipos de deslocamentos que podem ser encontrados em textos, diálogos, narrativas, etc. Há o que ele chama de irrupções, que são os deslocamentos que se associam ao que acaba de ser dito, ao acaso, e que, portanto, não foi pré-programado por exemplo, uma metáfora, uma brincadeira, uma piada); há também a ruptura, deslocamento em que não se identifica a ligação com o seu precedente ex. deslocamentos temáticos); e há, finalmente, a desnivelação, que são todas as trocas de tipos de discurso, mais especificamente, deslocamentos de gênero e mundo.

A ruptura ou a incongruência também pode estar ligada igualmente à ideia do estranho, do inesperado ou da anormalidade) e da surpresa, entre outros, mas, sobretudo, ela ocasiona uma divergência em oposição à convergência) ou uma irrupção no encadeamento discursivo.

Para compreendermos melhor seu processo, imaginemos uma determinada situação que gera no sujeito algumas expectativas, advindas de sua experiência de mundo, e de repente essas expectativas não se confirmam, são violadas, e aí está instalada a incongruência. O resultado é a irrupção no discurso, o efeito é de surpresa e a manifestação se dá através de um comportamento emocional, que podem ser um riso ou um sorriso.

Essa incongruência corresponde ao que Emelina 1996) chamou de anomalia. Segundo ela, só pode haver cômico onde houver anomalia não-normal) no que se refere ao uso, ao comportamento esperado e previsível em determinadas circunstâncias, com determinadas pessoas, em função de seus hábitos morais e mentais. Assim, para podermos rir é preciso manter uma distância em relação ao alvo do riso, é preciso que a mudança de mundo em que vivemos seja tomada à distância, não “aberrante” em si, mas considerada como tal. Se o adulto ri com a criança e vice-versa, temos uma situação de humor compartilhado, sintonizados na mesma intenção comunicacional.

Difícil tratar da intenção5, muito mais desafiador tentar apreendê-la, defini-la, comprová-la. De um ponto de vista dialógico-discursivo, pode-se dizer que a intenção discursiva do discurso ou a vontade discursiva do locutor dão a forma do enunciado, se moldam e se adaptam ao gênero escolhido.

Diversos estudos têm demonstrado o papel da interação e da atuação efetiva da criança, enquanto parceira no diálogo, para a aquisição da linguagem Vygotsky 2005, 2007, Bruner 2004a, Tomasello 2003), considerando, nesse sentido, que a criança adquire não apenas as formas da língua, mas é inserida, paulatinamente, em um projeto de dizer.

Nesse sentido, o “projeto do dizer” passa pelo gênero discursivo que mais se adapte às necessidades comunicativas do falante, em sua relação com o tema e a situação discursiva. Falar em “projetos de dizer” é falar em um “querer dizer” por parte do locutor que o leva a fazer escolhas, escolhas estas que também irão determinar a formatação textual Bakhtin 1997).

Este princípio, o querer-dizer do locutor, pode ser a base para a emergência de um processo de “preferencialidade”, início mesmo de um processo de construção da subjetividade. O estilo individual, entendido como fruto do trabalho de escolhas do sujeito na linguagem, teria sua gênese no “querer dizer” do locutor, elemento motivador de um “projeto de dizer” que, em termos concretos, resultaria em um texto Vidon 2005, s/p.).

Esse querer-dizer que leva o sujeito a fazer escolhas só pode ser identificado no caso dos dados das crianças aqui estudadas, por meio de pistas que elas dão e/ou deixam em seu discurso: algo que elas dizem, um sorriso, um riso, um olhar, um gesto que será interpretado por seu interlocutor. É este outro que atribui, finalmente, uma intenção ao discurso da criança e a partir disso dá continuidade ao diálogo.

Nesse sentido, devemos frisar que o intuito discursivo ou o querer-dizer do autor/locutor vai determinar o enunciado e apenas depois disso é que esse discurso poderá se adaptar e se ajustar ao gênero escolhido.

Dessa forma, parece-nos imprescindível considerar a relação dialógica estabelecida por Bakhtin e o Círculo, o que nos faz olhar para os dados levando em conta o contexto, a cultura e os sujeitos envolvidos. Só assim podemos pensar na esfera do humor para avaliar os gêneros que dela surgem: as piadas, os trocadilhos, entre outros.

4. Questões metodológicas

Como vimos acima, embora alguns trabalhos afirmem que o surgimento do humor na criança não é possível antes da idade de 4 anos, nós -e alguns autores com trabalhos recentes ex. Hoicka 2016)- acreditamos que isso aconteça mais cedo. Do nosso ponto de vista, essa entrada precoce no humor se dá a partir da combinação de ingredientes que não surgem em uma determinada idade, nem necessariamente em uma certa ordem, mas que, desde o nascimento, por meio da fala dos pais dirigida a ela, vai passar a fazer parte da linguagem da criança. Por essa razão, fizemos um novo recorte e buscamos traçar seu desenvolvimento, neste trabalho, entre as idades de 24 e 42 meses.

À procura das raízes do humor e seu funcionamento em crianças, pretendemos observar de que forma ele vai aos poucos tomando lugar no discurso e quais as características que o compõem. Este é um estudo qualitativo, que procura explicar os fatos linguísticos únicos, singulares.

Para tanto, foram analisados ​​dados de duas crianças monolíngues, uma criança brasileira Gus) e uma criança francesa Ana), filmadas em suas casas por uma hora, uma vez por mês, em situação de interação natural com os pais. Esses dados pertencem a bancos de dados diferentes: o primeiro pertence ao grupo NALingua/CNPq Del Ré et al. 2016) e o segundo ao grupo COLAJE/França Morgenstern 2009, Morgenstern e Parisse 2012). Os vídeos foram transcritos na íntegra, no formato CHAT, do programa CLAN, fornecido pela base de dados CHILDES, traduzido/adaptado do Francês para o Português Del Ré et al. 2012). De cada criança, foram selecionados vídeos e transcrições correspondentes às idades de 24, 30, 36 e 42 meses. De cada vídeo, selecionamos todas as sequências que vão desde a diversão compartilhada ao humor. Como a criança pode produzir enunciados que são divertidos para os adultos, mas que foram produzidos sem a intenção de fazer as pessoas rirem, contamos com marcas de divertimento rir, sorrir...) para identificar os enunciados a serem analisados, seja em adultos ou em crianças. No total, foram analisadas 209 sequências, 105 de Gus e 106 de Ana.

4.1. Gus

Gus é um menino brasileiro, filho único, nascido em 13 de janeiro de 2008, em uma família de classe média que vive em São Paulo. Seu desenvolvimento linguístico foi bastante rápido. Ele produziu suas primeiras combinações de palavras e jogos de sons aos 2 anos. Seu pai imita vários personagens e altera situações para criar incongruências, o que garante muitas situações de diversão compartilhada no corpus, além de fornecer um certo modelo de humor em casa. Graças à repetição de situações proporcionada pelo ambiente familiar, Gus aprenderá a criar seu próprio humor.

Os pais de Gus zombam dele e a criança também começa a zombar de seus familiares e colegas da escola, a partir de 3 anos. Gus frequentemente imita seu pai e pode produzir declarações irônicas, mesmo que nem sempre as compreenda completamente. Há uma grande cumplicidade entre pai e filho. O desenvolvimento do humor de Gus parece estar bastante ligado ao seu desenvolvimento linguístico. A partir dos 4 anos, domina o repertório fonológico do português e pode jogar com os sons e significados das palavras que produz. O tipo de humor usado passa a se diversificar e a ironia é produzida intencionalmente com cada vez mais frequência.

4.2. Ana

Ana é uma menina francesa nascida em 24 de julho de 2006, em uma família de classe média; mora em uma cidade a uma hora de Paris; tem dois irmãos mais velhos. Produz seus primeiros pronunciamentos de duas palavras aos 18 meses.

Aos 3 anos de idade, seu desenvolvimento de linguagem é bastante avançado: suas intenções comunicativas são essencialmente expressas através de meios verbais, seus enunciados se tornam mais complexos e ela começa a fazer narrativas completas sozinha. O humor é extremamente presente na família e desde muito cedo Ana é exposta a ele através de interações diárias com seus pais e irmãos, bem como os numerosos livros infantis e filmes aos quais ela é exposta com muita frequência. O humor usado pela mãe de Ana é muito diferente daquele usado pelo pai de Gus A mãe de Ana não faz tantos jogos de palavras, mas gosta muito de rir; retoma com bastante frequência as produções verbais da filha quando as acha divertidas, introduz variações em suas representações, provocando incongruências na situação ou na fala e as esclarece quando necessário. Muitas vezes, a mãe faz propostas incongruentes para induzir mudanças nas representações de sua filha e fazer com que ela perceba a discrepância em relação à norma.

5. Os ingredientes do humor

A partir do referencial teórico que serviu de base para este estudo e dos dados que analisamos, bem como do refinamento dos ingredientes propostos em Del Ré et al. 2015), estabelecemos quatro componentes do humor que nos permitiram analisar 209 amostras de nosso corpus: a incongruência, o recuo, a intenção/projeto de dizer e o saber-partilhado.

De acordo com Norrick 2006), o humor é um processo cognitivo-perceptual que desencadeia tomada de consciência da incongruência entre o real e a representação que se pode fazer dele. Esta incongruência é manifestação de um efeito de ruptura dentro de um script Kintsch e van Dijk 1978), com um súbito salto semântico entre dois espaços mentais radicalmente diferentes Coulson 2000), ou ainda de uma violação das relações de espaço de conversação, tal como definido, por exemplo, por Clark 1996). Assim, há de se considerar, na produção humorística verbal, a existência de uma discrepância entre o que é dito ou feito e o que isso pode significar em função do contexto, da situação, o interlocutor. É essa lacuna entre as expectativas dos co-enunciadores e o conteúdo expresso que pode causar uma emoção compartilhada através do riso, o sorriso que constituem choque emocional.

Para entender o humor é preciso, portanto, aprender a criar um recuo, uma distância em relação ao fato. Portanto, apesar de ser algo importante de se ensinar/aprender/adquirir, é algo que também parece requerer habilidades cognitivas especiais. Seu reconhecimento - assim com a intencionalidade - vai se manifestar na multimodalidade: a troca de olhares, gestos, etc. - Hoicka e Akhtar 2012) também se utilizam dessas marcas/pistas no discurso para interpretar a intencionalidade das crianças por eles pesquisadas. E, como na intencionalidade, será interpretada a partir do reconhecimento e da interpretação do interlocutor.

Nesse sentido, o recuo, a distância que a criança precisa criar em relação ao fato em si e ao fato linguístico, é um ingrediente que faz parte de um processo epilinguístico e acompanha seu desenvolvimento metalinguístico permitindo-lhe, por meio da reflexão pela própria linguagem, identificar as intenções dos outros, antecipar situações, e assim por diante. Uma vez que a criança consegue ter esse distanciamento, ela pode ter a intenção de divertir o outro o interlocutor) e a si mesmo. Mas tudo isso só será possível se o conhecimento permitir que o falante e seu interlocutor observem e compreendam as mesmas incongruências conhecimento compartilhado). Trata-se, pois, de um projeto de dizer, um querer-dizer interpretado enquanto tal pelo interlocutor, por meio de marcas: riso, olhar, gesto...

E para que tudo acima funcione, é necessário que haja uma conivência Salazar-Orvig 2003) entre os interlocutores, um ambiente propício para o humor e, no caso das crianças, para que essa cumplicidade seja instaurada, é necessário que a assimetria entre adultos e crianças seja de alguma forma neutralizada por um saber partilhado.

A fim de compreender melhor esse percurso, elaboramos uma forma esquemática que procura representar o que parece acontecer:

Figura 1: O percurso do humor 

Resumindo: uma ruptura é reconhecida enquanto tal pelo locutor; esse reconhecimento depende, de alguma forma, de um recuo, de um trabalho metacognitivo que permita ao locutor identificar que haveria um percurso “normal” para o discurso e que ele foi rompido. A partir daí deve haver por parte desse locutor um querer-partilhar projeto de dizer/intencionalidade) e a verbalização desse querer para o outro/interlocutor. Finalmente, ao verbalizar, se houver saber partilhado, os dois vão compreender e, no caso do adulto, eventualmente, rir. No caso da criança acreditamos que o riso como marca do humor parece ser importante durante o processo de aquisição da linguagem, desta forma ela parece estar sempre presente.

O riso/sorriso compartilhado, portanto, é um índice a partir do qual procuramos os enunciados a serem analisados. Em seguida, nos perguntamos se há ruptura no discurso? Ela é a mesma para o locutor e para o interlocutor, isto é, ambos reconhecem a mesma ruptura os dois riem da mesma coisa)? Há um participante que inicia a produção de enunciados humorísticos, a criança ou adulto? Também observamos e analisamos as produções que foram iniciadas por adultos, porque acreditamos que o seu enunciado, em geral, serve de referência para a criança).

Neste artigo, vamos nos concentrar apenas nos trechos mais relevantes para mostrar como as duas crianças percorreram esse caminho até o humor, chamando a atenção para questões que envolvem a multimodalidade, a interação, o contexto, o uso... A última parte desse percurso é justamente formada pela composição dos quatro ingredientes.

6. Quando o adulto ri das produções da criança humor não compartilhado)

Em ambos os corpora, as primeiras manifestações de humor se constituem por intervenções dos adultos. Cada adulto tem um senso de humor específico que servirá de modelo para futuras produções humorísticas da criança. O pai de Gus é muito engraçado, ele faz muitos trocadilhos com seu filho, sua esposa ou amigos. No exemplo 1), ele ensinou a seu filho que um de seus carrinhos se assemelhava ao ex-presidente brasileiro Sarney. Ele era conhecido, entre outras características físicas, por seu bigode.

Exemplo 1 

A incongruência neste episódio está justamente no fato de ser uma criança pequena, que, portanto, não tem esse conhecimento de mundo presidentes e suas características físicas) a dizer que o carrinho se parece com uma figura pública, e por isso, o pai e a observadora riem. Gus apenas sorri quando vê a reação de ambos, não reconhece a incongruência.

O carrinho de Gus também tem bigodes, como os de Sarney, daí a aproximação feita por seu pai metonímia). Nesse caso, é obviamente a influência da palavra do pai em relação ao discurso de seu filho já que a criança não tem qualquer conhecimento sobre os ex- presidentes do Brasil, e ainda menos sobre as críticas que estão subentendidas neste tipo de humor. Então, não identificamos um saber partilhado sobre o contexto cultural da comparação; mas o personagem já foi introduzido com os seus bigodes salientes) pelo pai em situações anteriores, o que permitiu construir uma certa forma de conhecimento compartilhado entre os participantes. Além disso, existe uma atmosfera propícia a este tipo produção humorística no diálogo, porque não há marcas de entretenimento ou intencionalidade por parte da criança. Devido à questão recorrente de seu pai, Gus provavelmente já notou o efeito que a sua resposta tinha em adultos. Podemos pensar que há aqui, por parte da criança, a intenção ?) de divertir o outro quando ele dá este tipo de resposta ele dá um sorriso); no entanto, persiste a dúvida sobre o conhecimento presumido/pressuposto que permitiria realmente compreender o alcance humorístico de sua resposta, o recuo que tornaria a comparação dos bigodes,e assim por diante. Assim, mesmo que a produção tenha partido de Gus, a iniciativa do humor veio de seu pai. Ele sabe que seu filho irá responder, porque ele próprio o ensinou a fazer essa relação -cômica-, de acordo com ele.

Nessa linha das produções infantis que os adultos acham engraçadas, encontramos enunciados que são produzidos pela criança, mas ao contrário do exemplo anterior, encontramos essas produções não são induzidas pelos que o cercam. Assim, no Exemplo 2), Ana 3;6) compara um banco com um esqui, o que faz rir sua mãe, que imediatamente imagina as consequências de esquiar com um banco sob cada pé e conclui que ela não iria muito rápido.

O humor não é percebido por Ana que continua suas atividades sem prestar atenção ao que sua mãe tinha acabado de dizer.

Exemplo 2 

O humor da mãe de Ana é muito diferente do humor do pai de Gus. Ela faz menos trocadilhos, mas gosta de rir e sempre coloca em evidência as produções da filha que ela acha engraçadas. Há uma forte cumplicidade entre elas, o que cria uma atmosfera propícia para rir. Em ambos os exemplos que acabamos de discutir, o humor adulto não é compreendido pela criança e só identificamos marcas de divertimento no adulto. O humor não é compartilhado. Seu conhecimento de mundo lhe permite associar a forma de um banco ao de um ski, mas, como no episódio acima, não pode se distanciar, recuar meta), por isso não reconhece a incongruência, não pode rir do comentário da mãe. Ela não compartilha do saber da mãe. As produções das duas crianças são apenas engraçadas para os adultos. Para as crianças, essas produções são muito elaboradas em termos de conhecimento do mundo. O que é produzido, do ponto de vista da criança, é ingênuo e aparece também em grande número em crianças mais velhas: entre 4 e 6 anos Del Ré 2011). Mas o importante é que situações de comunicação como essas lhe permitem deparar-se com questões que ela irá enfrentar: ela deve adquirir mais conhecimento de mundo, perceber a intenção do outro, atribuir ao outro o desejo de criar este tipo de situação humorística. É uma forma de humor involuntária, são os dados anédóticos que propôs Figueira 2001). Aqui está mais um exemplo:

Exemplo 3 

Estas produções, por iniciativa da criança não parecem ter a intenção de provocar o riso no outro -ao menos nada em seu discurso nos dá pistas sobre isso-. Aliás, como nos exemplos 1) e 2), não há marcas de divertimento da criança.

No Exemplo 3), Ana não sabe que a palavra "língua" é polissêmica, ela só conhece o órgão que lhe permite falar ou cantar. Ela ainda não tem conhecimentos metalinguísticos que lhe permitiriam compreender que há outras línguas diferentes da sua francês) e, por essa razão, não podemos falar de intenção e, portanto, de humor compartilhado.

7. No caminho de humor...

Vimos nesses três primeiros exemplos que as produções das crianças podem fazer os adultos rirem, mas sem intenção, sem querer. Mas com que idade se pode falar de humor intencional? E antes do surgimento do humor intencional, é possível identificar produções “pré-humorísticas” que marcam o caminho da criança em direção à sua aquisição?

É importante notar que não se trata de observar um caminho “evolutivo” no qual os elementos são adicionados progressivamente de acordo com a idade. Os ingredientes necessários para a instauração do humor não aparecem em uma ordem específica, uma vez que dependem dos interlocutores, das situações, de contexto, etc. São as diferentes possibilidades que o diálogo espontâneo irá proporcionar à criança que a levarão à produção de humor. Assim, alguns elementos podem aparecer em uma ordem diferente para cada criança, mas é a sua combinação a chave de um humor totalmente partilhado pelos interlocutores envolvidos no diálogo.

Como observamos na apresentação da nossa metodologia, nos baseamos nas marcas de divertimento rir, sorrir...) para identificar os enunciados analisáveis. Dentre estas sequências, identificamos as de riso entre adultos e crianças, que se baseiam em jogos sonoros ou no fato de nomear alguém incorretamente, de forma intencional. Aqui está um exemplo:

Exemplo 4 

Aqui, a situação é totalmente lúdica, há uma troca entre o pai e a criança que passa por um jogo sonoro no qual o adulto exagera a pronúncia da consoante vibrante no meio da palavra "carrão", usando uma entonação que dá um tom de brincadeira. Há um sorriso por parte do Gustavo a primeira vez que ele repete “carrão” turno 2). Gus retoma a brincadeira de seu pai, e vice-versa, em uma interação onde o que prevalece é a atmosfera lúdica, e a vontade de compartilhar. Assim, não há tal incongruência/ruptura no diálogo -e, portanto, não há recuo-, e a intenção -se é que existe por parte da criança- é fazer com que essa brincadeira dure o maior tempo possível, e não especificamente de fazer o outro rir. É simplesmente um divertimento a partir de um jogo sonoro em que os dois compartilham.

No próximo episódio, da mesma forma que no exemplo anterior, não parece haver por parte da criança a intenção de fazer rir seu pai, seu objetivo é simplesmente responder à pergunta do pai e lembrar o nome de seu carrinho:

Exemplo 5 

A situação acima se torna engraçada por acaso, simplesmente porque a criança, apesar de tentar várias vezes, não consegue se lembrar do nome do carro. Não parece ter havido a intenção de que isso acontecesse, a situação inesperada -para o pai- de a criança não se recordar de algo é que dá esse tom à situação. O pai tenta ajudar, muitas vezes, mas falha a cada tentativa. No fim do episódio, todo esse desenrolar culmina em riso de todos. Nesta sequência, podemos identificar, assim, uma incongruência que é reconhecida por todos e, com esse reconhecimento, um recuo que permite à própria criança sorrir/rir - e, um saber “quase” partilhado Gus conhece o nome, apenas não se recorda), mas não se pode dizer que houve um projeto de dizer/intencionalidade. O pai/outro aqui tem um papel importante no diálogo: primeiro no papel de quem tenta ajudar -mas não consegue-, na progressão do diálogo e, finalmente, mostrando que, apesar de tudo, pode-se rir de uma situação como essa em que pode haver uma tensão.

Nas próximas sequências, podemos encontrar todos os elementos combinados e, portanto, o humor compartilhado.

Exemplo 6 

No exemplo acima, aos 2;4 anos, o pai de Gus tenta fazer com que ele beba suco de laranja. Gus se recusa porque quer assistir ao filme Carros na televisão. Seu pai não cede e tenta negociar com seu filho: ele oferece colocar o filme para Gus enquanto a criança bebe seu suco.

Gus então produz um enunciado inesperado: “tá fazendo firula” que causa uma ruptura/incongruência no discurso. O enunciado produzido logo após a proposta do pai cabe perfeitamente daí o efeito de surpresa nos adultos. A produção não é criativa, pois a criança replica uma construção geralmente usada por adultos -embora o pai não se recorde -. Mas o fato de ele ter optado por usar essa construção em especial, naquele momento em particular, ilustra um certo nível de consciência metadiscursiva e cria uma discrepância no diálogo, que é propício à diversão compartilhada. Seu riso após usar a expressão nos dá indícios de que, em algum nível, ele está ciente de que seu comentário é divertido recuo e saber “quase” partilhado). O efeito é muito claro quando todos começam a rir com ele. O interessante é que, logo após esse enunciado, o pai esquece totalmente do suco de laranja e começa a fazer perguntas sobre o filme que está assistindo, e a criança consegue o que queria projeto de dizer/intenção de não beber).

No episódio a seguir, a observadora pergunta para a criança o que ela vai comer em seu aniversário, ela adora comer.

Exemplo 7 

É a incongruência da resposta da criança que gera causa a ruptura no discurso. Poderíamos levantar a questão, inicialmente, que por uma questão cultural, mais ampla ou apenas familiar, a pimenta poderia estar presente no cotidiano da criança como algo possível de ser pedido por ela, embora, pimenta não seja, em geral, algo que as crianças gostem muito de comer e, além disso, não é, tipicamente um alimento que combine muito com aniversários, no Brasil ou na França. Mas não é o caso de Ana. Ela não gosta. A criança, ao refletir, olhar para as mãos enquanto pensa na resposta e sorri segundos antes de enunciar “pimenta”, consegue realizar um recuo e instaura - intencionalmente - uma incongruência. Pois o que se esperaria era que Ana desse uma resposta previsível, como a maioria das crianças, e dissesse batatas fritas, bolo... A resposta da criança cria uma descontinuidade no diálogo e por isso provoca a surpresa e risos. Mas quando o adulto pede a confirmação da resposta da criança “pimenta?”), Ana responde muito rapidamente de forma negativa, o que implica que, é claro, ela não gosta de pimenta, foi apenas por diversão que ela disse isso.

Portanto, estamos na presença de um bom exemplo de humor partilhado em que todas as categorias estão presentes: a incongruência marcada pelo enunciado: “pimenta” de Ana; o recuo, no momento em que a criança pensa na resposta, olha para as mãos, sorri e em seguida dá a resposta; o querer-dizer/compartilhar, quando ela enuncia, sorri e é interpretada pelo interlocutor como sendo alguém que quis fazer-rir pois compreendeu e riu junto - ambas partilham o saber de que, nessa cultura, macro sociedade) e micro família), pimenta não é um alimento adequado para uma festa de aniversário.

Ainda com relação a este episódio é importante a informação contextual, dada pela observadora, de que ela fazia muitas questões para a criança e que essa resposta poderia ser uma forma de se desvencilhar, de certa forma, dessas perguntas. De qualquer forma estamos no campo da interpretação, não se pode saber exatamente por que Ana deu essa resposta. O importante -e é a partir disso que podemos analisar esse dado- é que o enunciado teve um efeito no outro, o outro se assusta e é essa reação de surpresa causada por Ana que a faz rir, ela espera essa reação do outro. A observadora é alguém conhecida de Ana, ela pode e se sente à vontade para brincar e rir com ela e isso parece ser uma condição para que o humor se produza Hoicka e Akhtar 2011).

8. Discussão e conclusão

Nossas análises das primeiras produções de diversão compartilhada e não compartilhada, com suas circunstâncias e características específicas, podem nos ajudar a entender a gênese do desenvolvimento do humor, com suas implicações cognitivas, pragmáticas e sociais.

Nesse sentido, a abordagem dialógico-discursiva nos auxiliou a identificar alguns momentos do percurso do humor infantil até a produção de situações de humor intencional. Procuramos mostrar que o humor intencional aparece muito mais cedo do que é normalmente apresentado na literatura a partir da 2;4 anos para Gus e 3 anos para Ana). Vimos também o surgimento de humor em crianças de diferentes línguas e culturas, o que levanta a questão de como o humor é praticado em cada uma dessas culturas. Pais brasileiros podem fazer mais trocadilhos que os pais franceses. Pais franceses podem ser mais sarcásticos. Mas os nossos dados não apontam para essas possíveis diferenças macro-culturais; parecem trazer à tona uma ligação entre o desenvolvimento da linguagem da criança e o humor. Talvez as muitas semelhanças humorísticas identificadas no processo inicial de aquisição da linguagem das duas crianças se justifiquem pelo fato de termos encontrado um percurso linguageiro com muito mais semelhanças do que diferenças nesse período. É necessário investigar. Além disso, o tipo de humor pode variar muito, dependendo do indivíduo. Resta-nos igualmente pesquisar mais sobre essa questão. E para tanto será necessário ampliar o corpus, trabalhar com um número maior de díades pai/mãe-filho, o que já estamos fazendo.

Acreditamos ter sido capazes de mostrar, no entanto -assim como o fizeram estudos recentes Hoicka 2016)- que nos dados das duas crianças, ancoradas em duas culturas diferentes, a partir de 2 anos já vemos combinarem-se os primeiros ingredientes para a construção do humor verbal. Há de se considerar igualmente que embora tenhamos feito um recorte privilegiando o humor linguístico, outros tipos de situações humorísticas fazem parte desse processo e desenvolvem-se em comunhão com essa forma de produzir humor, como os momentos de diversão partilhada entre os interlocutores, o cômico de situação, etcetera.

É na interação com o outro que o sujeito se constituirá enquanto tal e é dessa relação dialógica, do “jogo” linguístico que se estabelecerá entre eles, que surgirão as descontinuidades discursivas que resultam no humor. A partir desse olhar bakhtiniano que nos faz levar em conta o contexto, a cultura e os sujeitos envolvidos é que entendemos que o humor só tem seu efeito completado quando locutor e interlocutor compartilham a compreensão linguística que aparece no discurso.

É também nessa relação sujeito-sociedade-cultura que consideramos que o humor constitui-se em um gênero que vai permear diferentes discursos, em diversas situações de comunicações, em diversas línguas. Por essa razão, o humor pode ter suas especificidades culturais, o que muitas vezes dificulta sua compreensão. Assim, um dos desafios, a partir desses dados, é verificar se e de que forma essas diferenças poderiam aparecer nas interações.

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1 Este artigo retoma, modifica e atualiza os mais recentes trabalhos publicados pelas autoras (Del Ré et al. 2015 e Del Ré et al. 2017).

2Para mais informações, consultar Del Ré et al. 2017.

3De 2015 a 2018, a pesquisa sobre o tema ganhou novo fôlego com a aprovação do projeto “Rire, Humour et Acquisition du langage” - RiHA (Riso, humor e aquisição da linguagem), financiado por IDEX-Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 .

4Embora intuitivamente haja uma tendência natural em se falar de humor e riso de forma conjunta, é necessário tratar deles separadamente, em um primeiro momento, a fim de buscar as intersecções, em um momento posterior. Neste artigo não trataremos desta questão. Para mais informações, consultar Dodane et al. (2014).

5A ideia de intencionalidade é tratada aqui neste trabalho a partir das concepções de “projeto de dizer”, “querer-dizer”, “intenção discursiva”, concebidos na relação entre os interlocutores, algo que é interpretado pelo outro na relação dialógica -e não por nós, pesquisadores, que analisamos as falas das crianças- a partir de indícios que às vezes podemos ver nos vídeos analisados. Em muitas ocasiões, apenas o interlocutor viu e pode interpretar, nesse caso nos baseamos apenas na interpretação atribuída ou considerada pelo outro na relação dialógica.

6Este trabalho é resultado de uma pesquisa de doutorado defendida em 2003.

Nota de autoría: Porcentagens da participação das coautoras. Alessandra del Ré: 40%; Christelle Dodane: 30%; Aliyah Morgenstern: 30%

Recebido: 04 de Abril de 2018; Aceito: 12 de Janeiro de 2019

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