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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.35 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20190021 

Artículos

Riso e humor: seus efeitos . Na clínica de linguagem dos autismos

Laughter and humour: their effects. On autists’ language clinic

1Grupo de Pesquisa em Aquisição de Linguagem. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).silvana-perotino@uol.com.br


Resumo:

Neste trabalho, tratamos do tema do humor/riso nas falas produzidas por crianças pequenas que apresentam ou não o “reconhecimento” desse efeito -o de humor- em si mesmas e/ou no outro. Baseamo-nos em estudos realizados no campo da aquisição de linguagem na vertente interacionista, porque são eles que possibilitam uma reflexão sobre a singularidade da fala da criança e o processo de subjetivação na criança. Procuramos analisar episódios de diálogo entre a criança e o adulto/terapeuta envolvendo segmentações divergentes na fala da criança, cujo efeito é de humor no outro ou em si mesma.

Além disso, tecemos algumas considerações a respeito de quais seriam os traços da interação terapeuta e criança que permitem discernir diferenças entre a interpretação do clínico de linguagem e a do psicanalista, quando se trata da clínica dos autismos, considerando o fato de operarem com o conceito de sujeito do inconsciente.

Palavras-chave: autismo; humor; clínica de linguagem; fonoaudiologia; psicanálise

Abstract:

In this paper we address the topic of laughter/humour in young children’s speech, which may or may not recognize the humour effect, caused in others and/or themselves. The work parts from an interactionism perspective on language acquisition, which allows to reflecting about the singularity of children’s speech and on subjectivation process in the child. Excerpts of dialogue between a child and an adult/therapist have been analysed, where child’s diverging segmentations from expected ones produce humour effects on both, or either of them.

In addition, we consider which traits of therapist and child’s interaction would allow us to discern the differences between the language clinician’s interpretation and the psychoanalyst’s -one -when clinical work on autism is at issue-, taking into account that the concept of subject of unconsciousness is involved.

Key words: autism; humor; language clinic; speech therapist; psychoanalysis

1. Introdução

A experiência clínica com autistas fez com que buscássemos na aquisição de linguagem referências teóricas sobre o humor e o riso. A nossa questão foi se constituindo na medida em que observávamos que o humor estava presente em diversas situações de interação entre terapeuta e crianças com o diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA).

Seria possível considerar a ocorrência do humor peça chave nas mudanças de posição da criança na sua relação com a linguagem? Seria isto possível se o terapeuta da linguagem se vê compelido frequentemente a aderir aos denominados métodos clínicos científicos, majoritariamente inseridos na abordagem cognitivo-comportamental? Propomos este artigo como uma reflexão sobre a atuação clínica com os autistas tendo como norte abordagens teóricas que possam lidar com a singularidade das manifestações da criança, uma alternativa ao que tem sido usual no processo terapêutico fonoaudiológico dessas crianças.

Para a discussão do riso e do humor na clínica de linguagem, reportamo-nos a estudos realizados no campo da aquisição de linguagem na concepção interacionista, porque são eles que possibilitam indagar a respeito da singularidade da fala da criança e o seu processo de subjetivação.

Na primeira parte deste trabalho, procuramos expor postulados da teoria interacionista, seguindo o seu modus faciendi, ou seja, contrapondo-os aos princípios de outras teorias em aquisição de linguagem. Em seguida, trazemos algumas reflexões sobre a entrada da criança na linguagem. Nesse ponto, nos referimos à psicanálise naquilo em que ela se coaduna com o interacionismo e com a clínica de linguagem, focalizando, para tanto, episódios de diálogo entre a criança e o adulto que envolvem segmentações divergentes na fala da criança, cujo efeito é de humor no outro ou em si mesma. No caso de episódios dialógicos entre a terapeuta e duas crianças diagnosticadas com TEA, procuramos analisar ainda os efeitos do humor em termos de mudanças de posição da criança (e do investigador e terapeuta) na sua relação com a linguagem. Além disso, tecemos algumas hipóteses a respeito de quais traços ou marcas nos diálogos ocorridos entre a terapeuta e a criança autista permitiriam discernir as diferenças entre o clínico de linguagem e o psicanalista, considerando o fato de operarem com o conceito de sujeito do inconsciente.

1.1. Teorias em aquisição de linguagem e a clínica dos autismos

No debate ainda incipiente na clínica de linguagem a respeito do humor, em que está posta a questão da posição do clínico em relação à fala de seu paciente sob transferência, discute-se, de antemão, o tratamento dado à fala de crianças por estudiosos em aquisição de linguagem. O efeito da teoria interacionista na clínica de linguagem é, entre outros, o de afastamento de qualquer tipo de naturalização da criança, fato observado nas principais teorias em aquisição de linguagem. Ou a criança vem tomada ou como ativa no processo de apreensão da linguagem -um objeto de conhecimento parcelável-, postulado encontrado nas teorias desenvolvimentistas, ou, então, vem suposta como portadora de um dispositivo de linguagem (a Gramática Universal/GU), geneticamente determinado e inscrito no seu cérebro/mente -alicerce da teoria inatista chomskyana-, a ser deflagrado a partir do contato com estruturas linguísticas da língua falada no seu entorno. A grosso modo, podemos dizer que, nessas teorias, o fato de uma criança não se expressar verbalmente deve ser pensado em termos de problemas perceptuais e/ou cognitivos existentes, decorrentes de lesão cerebral ou de falhas no processamento de informações em uma ou mais áreas.

No caso da teoria inatista em aquisição de linguagem, é elucidativa uma passagem do texto de Pereira de Castro (2006), na qual a autora destaca o fato de os gerativistas não se furtarem de responder “as questões psicológicas, que estariam relacionadas à aquisição em tempo real”, mesmo recusando a fala da criança como uma empiria possível. Na abordagem gerativista, encontramos duas hipóteses para a aquisição da linguagem pela criança, a teoria da maturação e a da continuidade. Pereira de Castro esclarece que, para a última, a gramática da criança já seria, em todas as suas fases, uma gramática com todos os seus princípios ativados, “embora seus enunciados possam apresentar diferenças em relação aos do adulto por “problemas de processamento” ou “de desconhecimento de itens lexicais” (Pereira de Castro 2006: 2, grifos nossos).

Seria o caso de considerar o comportamento deficitário na linguagem da criança como aparente, pois haveria algo que “já está lá” no cérebro/mente da criança, em outros termos, existiria uma completude quando se pensa na sintaxe da língua. Como observa a autora, a partir de considerações presentes na formulação do interacionismo, introduzir aspectos psicológicos no modelo lógico de aquisição instantânea “ainda que respaldada pela suposição de que o chamado comportamento deficitário seria apenas aparente” (p. 2) interroga a teoria gerativa, já que seus estudiosos teriam de lidar com os chamados estados intermediários, ou seja, com a heterogeneidade da fala da criança, uma solução que enfraquece os seus próprios pressupostos teóricos.

Apesar de a concepção interacionista em aquisição de linguagem já ter sido explanada em inúmeros artigos (De Lemos 2002, Pereira de Castro e Figueira 2006, Lier-De Vitto e Carvalho 2008, entre outros), mencionamos a seguir alguns de seus postulados, ou seja, o esforço de teorização iniciado por Cláudia de Lemos1 no interior da linguística e, mais tarde, expandida para outras áreas do conhecimento.

Sob a influência de uma leitura original tanto da linguística saussuriana quanto da psicanálise lacaniana, as noções de língua, de linguagem e sua aquisição pela criança adquirem sob o ponto de vista da teoria interacionista um caráter provocativo, mesmo no interior dos estudos da linguagem/língua contemporâneos. Para Saussure, a língua tem uma ordem própria e não é função do sujeito falante, pois ele a registra passivamente; a língua é compreendida como um “objeto social forjado pelo simbólico”, ou ainda, “como herança cultural” (Pereira de Castro e Figueira 2006: 78).

Na abordagem interacionista, a noção de aquisição cede lugar ao termo captura: a criança é capturada pela linguagem e a mudança na “aquisição” passa a ser vista como ligada a diferentes “posições” ocupadas pela criança em uma estrutura. As denominadas três posições na estrutura, formuladas por De Lemos (2002) a partir da noção de captura e de mudança na aquisição da linguagem, envolvem i) a língua como funcionamento linguístico-discursivo, ii) o outro (mãe, ou outro adulto) como instância discursiva e iii) a própria criança.

A dominância de cada um destes três polos faz aparecer diferentes posições do sujeito: na primeira posição, há dominância da fala do outro, sendo frequentes as incorporações de fragmentos vindos desta fala; na segunda posição, há dominância da língua no seu funcionamento, emergindo toda classe de erros; na terceira posição, dominância da relação do sujeito com sua própria fala, manifestada nas retomadas e autocorreções (Pereira de Castro e Figueira 2006: 89).

De Lemos (2002: 63-64) argumenta ainda para o fato de ter escutado no erro da fala de crianças em seu diálogo com a mãe, como no caso de Adam, cuja expressão conhecida “a no boy with no watch”, reportada por Bellugi (1982, apud De Lemos 2002: 63), possibilitou-lhe levantar a hipótese de uma questão relativa à sexuação, à trajetória da criança pelo complexo de Édipo. Admite ainda que essa interpretação se torna possível graças ao seu contato com a psicanálise. Aliás, não deixa de ser um sinal dessa nova visada na hipótese acerca da aquisição da linguagem a denominação de “Para além das posições”, para a última seção do referido artigo, uma abertura, sem dúvida, às questões levantadas pela psicanálise. A criança não vem concebida como um organismo: ela é um corpo pulsional, “o que demanda interpretação, isto é corpo que articulado na e pela linguagem, se acha no regime da demanda e do desejo” (De Lemos 2002: 64).

Essa reformulação de princípios da teoria interacionista -dos seus primeiros trabalhos de 1981 até esse artigo de 2002, por exemplo- traz abertura para se pensar nos pontos em comum entre essa abordagem e -mais próximo do que nos interessa- os procedimentos adotados na clínica psicanalítica de crianças diagnosticadas com autismo.

No entanto, não podemos deixar de mencionar outras duas áreas do conhecimento voltadas para a discussão do autismo, a medicina e a fonoaudiologia. A primeira segue critérios encontrados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-5 (quinta edição) (Ministério da Saúde 2014), compreendendo o autismo como Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), e o classifica, de acordo com o grau de dependência e/ou necessidade de suporte, como leve, moderado ou severo. As áreas do desenvolvimento humano consideradas comprometidas no TEA são basicamente três: a comunicação social, o comportamento e a flexibilidade e sensibilidade sensorial (Ministério da Saúde 2014). Já na fonoaudiologia, os critérios do DSM-5 são utilizados e o processo terapêutico no TEA vem estruturado, em geral, a partir de concepções provenientes da linha cognitivo-comportamental, com a inclusão, nesses programas, de treinamento dos aspectos pragmáticos da linguagem (Gonçalves e Castro 2013).

Na clínica psicanalítica de inspiração lacaniana, é possível verificar que a problemática da etiologia dos autismos não está descartada. Leva-se em conta os avanços verificados nas pesquisas em genética, por exemplo, mas a constituição psíquica do sujeito é o aspecto central a ser considerado; ela não vem concebida como estando determinada pela “integridade neurofisiológica do organismo, pois é na sua dependência com relação ao campo simbólico e do imaginário materno que essa tarefa poderá ser realizada” (Leite 2005: 292).

A proposta de terapia psicanalítica de um sujeito autista (ou seja, nela é sempre suposto um sujeito) visa a estabelecer minimamente o laço social, não no sentido de adequação do sujeito à sociedade, mas de apaziguamento do sofrimento vivenciado por ele, com a possibilidade de que ele venha a realizar, de fato, um desejo autêntico.

Leite (2005), ao discutir o tema do processo de estruturação subjetiva, nos lembra a necessidade de se referir ao autismo no plural, “os autismos”, dadas as singularidades encontradas na clínica; no entanto, isso não deve se constituir como empecilho na busca pelo “o que responde estruturalmente pela riqueza clínica dos casos” (p. 290). Algumas situações são apontadas também pela autora como sendo de “objetificação de uma criança” (p. 291), produzindo uma retirada autística, como seria o caso de uma hospitalização longa, ou o impacto de uma doença genética ou induzida por um prognóstico ou diagnóstico médicos. Diversas ocorrências também podem produzir condutas autistas (um acidente neurológico grave...), mas a autora insiste que a clínica dos autismos evoca uma situação de “hospitalismo em domicílio, na qual o impossível olhar do Outro real (a mãe) produz uma falha na necessária constituição do sujeito no Outro” (Leite 2005: 291).

Dentre as hipóteses a respeito da causalidade dos autismos, destacamos a que, do ponto de vista psicanalítico, resume o fato de essas crianças mostrarem-se desde muito cedo pouco afetadas pelo contato com o outro. A criança autista é:

refratária à relação com o agente do Outro, ao não se abrir para a relação pulsional que a introduziria no campo da libido, ao não se deixar investir pelo representante do Outro (ou ao não ser investida por este) e, consequentemente, não se deixar tomar em um primeiro momento como objeto que suscitaria o gozo do outro, a criança autista fica fora da dialética da demanda e do desejo (Bernardino 2015: 506).

Nesse sentido, a hipótese interacionista em aquisição de linguagem também se coaduna com a perspectiva psicanalítica a respeito da estruturação subjetiva, pois o investimento libidinal do outro em relação à criança é fundamental para o surgimento tanto da linguagem quanto do próprio sujeito. Quando algo dessa ordem não ocorre, a língua que vem do outro não é transmitida, não há uma identificação inicial nem aos significantes, no sentido saussuriano, dessa língua, e nem ao outro que exerce a função materna, no sentido psicanalítico, e a consequência disso acaba sendo a da constituição de uma criança refratária ao Outro. Em outros termos, é necessário alguém que fale com/pelo/do bebê (campo da linguagem) e que ele (o bebê) esteja “investido imaginariamente em um certo lugar simbólico na estrutura psíquica da mãe” (Leite 2005: 292), uma forma de as palavras atingirem verdadeiramente esse corpo (campo do gozo).

Como pensar especificamente na terapêutica dos autismos na clínica de linguagem? Em que as propostas construídas pela clínica de linguagem podem diferir daquelas encontradas na psicanálise? Talvez não seja tanto o caso de buscar diferenças, mas de entender o mesmo movimento presente em ambas, o de se dirigir à criança supondo um sujeito e não apenas uma categoria clínica, como vem descrita pela psiquiatria e aceita, sem questionamentos ou surpresas, pela psicologia e pela fonoaudiologia.

Voltemos ao artigo de De Lemos (2002), em uma passagem da última seção, em que a autora faz referência ao trabalho de uma fonoaudióloga do grupo de pesquisa coordenado por Lier-De Vitto. No relato do atendimento de uma criança autista que apresentava fala ecolálica, foi possível à terapeuta escutar outra coisa além dos ecos da fala de um outro (da voz de locutor de anúncios da TV). No caso, havia a presença de “murmúrios e sussurros que apontam para o canto em que se aloja uma subjetividade abortada” (De Lemos 2002: 65).

Nesse ponto de nossa discussão, consideramos importante fazer um parêntese para tocar em um tema muito caro ao interacionismo, qual seja, a posição do investigador, mencionada indiretamente na citação do parágrafo anterior. Acreditamos em uma posição ética do interacionismo e da clínica de linguagem em relação à fala da criança -seu compromisso com ela-, já que nessas duas hipóteses não há um saber totalizante a respeito da criança. Ao contrário, atesta-se a surpresa, o impasse e o enigma do investigador ao escutar ou ler produções linguísticas produzidas pelas crianças. Sem descartar ou justificar os erros presentes na fala/escrita da criança em termos de desconhecimento ou de falta de saber sobre a língua por parte da criança, o investigador é fisgado pelo erro, o que o coloca (o investigador) na impossibilidade de prevê-lo.

Carvalho (2014, entre outros) preconiza que o erro deva ser compreendido como resistência, ou seja, na sua singularidade. Isto significa afastar-se de concepções teóricas do campo da aquisição da linguagem voltadas tanto para a descrição da fala da criança em termos de categorias da língua (descartando, aliás, aquelas que nelas não se encaixariam) como para a atribuição de funções da língua, ou usos sociais às produções infantis.

A palavra-chave na pesquisa acerca do erro é o “impasse” a que está submetido o investigador da área, quando ele toma para si a tarefa de escutar a fala da criança. Consideramos fundamental o emprego pela autora da expressão “escutar a fala da criança”, por remeter o investigador à situação de equivocidade estrutural da língua2. O investigador, guiado pelo ideal de cientificidade, se “esquece” do que foi preciso recalcar para ele se tornar um falante da língua.

Carvalho (2016) estende ainda a análise da noção de transgressão ou de singularidade para uma reflexão sobre a linearidade do significante. Na concepção da autora, o investigador não está fora da estrutura de polos constitutivos do processo de subjetivação. Nesse sentido, De Lemos (2007) também nos alerta, inspirada nos trabalhos de Carvalho, a respeito da posição do investigador da fala da criança em pesquisas psicolinguísticas. Nessa área, ele poderia se inclinar a descrever não a fala da criança, mas sua interpretação, ou o denominado “conhecimento linguístico” atualizado na sua interpretação. Já o investigador da perspectiva interacionista deixa-se afetar pela fala da criança por ela lhe fazer lembrar o que está recalcado, -no sentido freudiano- como os fragmentos de sons, a não linearidade do significante em termos de sua consecutividade temporal, a equivocidade estrutural da língua, entre outros aspectos. Enfim, trata-se da sensibilidade do investigador para aquilo que se constitui como necessário à criança recalcar/esquecer no processo de se tornar falante da língua materna ou, ainda, e mais importante, “para se alçar como ator da fala de que é produto” (De Lemos 2014: 962).

Na clínica de linguagem também encontramos o terapeuta na posição de impasse ao ser capturado por produções infantis que fazem resistência aos modelos teóricos advindos do campo da psiquiatria, como já apontamos. Nos modelos de diagnóstico psiquiátrico dos autismos, há um ideal de linguagem a ser alcançado, ou seja, muitas falas de crianças se apresentariam como deficitárias em relação a um conhecimento da língua suposto como adquirido, seja em termos comunicativos (função) seja em termos de categorias gramaticais (estrutura). Interessa, no caso, correlacionar o déficit com problemas perceptuais ou cognitivos por parte do sujeito, já que se concebe a linguagem como representação.

A aproximação entre o interacionismo em aquisição de linguagem e a clínica de linguagem é procedente, mesmo conscientes de que estamos falando de posições distintas de sujeito: em uma, trata-se do investigador em aquisição de linguagem e, no outro, do terapeuta. Além disso, trata-se de tempos diferentes relativos à escuta da fala da criança: em um caso, envolve a leitura atenta (ou flutuante) de transcrições de diálogos realizados anteriormente e, no outro, há interpretação da fala da criança no diálogo em andamento, ou seja, em ato. A interpretação na clínica vem compreendida como teoricamente orientada, ou seja, concebida como fruto de elaborações realizadas nos diferentes contextos de formação profissional/ acadêmica, como supervisões ou escrita de casos, para citar alguns. Lier-De Vitto (2004) também ressalta a importância de o clínico e o investigador de falas sintomáticas não perderem a capacidade de se surpreenderem diante da escuta dessas falas, indicando a escrita (não o estudo) de casos -em que há um distanciamento da cena clínica- como uma possível forma de se aproximar da fala sintomática, reconhecendo que nela “há sujeito e fala em sofrimento” (Lier-De Vitto 2004: 57).

Acreditamos que essa discussão a respeito da posição do investigador e do clínico fornecem inúmeras contribuições para a clínica dos autismos, dentre elas, a (re)leitura dos erros e/ou da fala sintomática. Esse caminho é possível desde que haja o compromisso com uma teorização da linguística sobre a linguagem e o reconhecimento de contribuições da psicanálise para se pensar a constituição do sujeito. Uma das consequências na adoção dessa perspectiva no acompanhamento de crianças autistas é a possibilidade de mudanças de posição do sujeito em uma estrutura, mesmo quando se trata de quadros tão severos em termos de estruturação subjetiva.

2. Segmentações divergentes e humor na fala da criança

Trazemos abaixo um episódio de diálogo (1) entre mãe e criança, recolhido em diário por uma pesquisadora em aquisição de linguagem.

Diálogo 1 

Nele encontramos uma ocorrência de segmentação divergente ou alternativa (Figueira 1995) produzida pela criança. Interessa-nos analisá-la tomando como ponto de partida o que Figueira nos faz saber acerca deste fenômeno na fala do sujeito de sua pesquisa (A.), cujo episódio segue adiante, transcrito na íntegra, como episódio (2).

Em diversos trabalhos, Figueira (1995, 1996, 2001, 2010, entre outros) discorre a respeito de dados da fala de crianças pequenas os quais apresentam o que ela denomina como segmentações inesperadas de palavras, provocadoras de estranhamento ou surpresa, de emoção ou, ainda, de riso no interlocutor da criança. Essas produções, do ponto de vista da criança, podem passar despercebidas ou, ainda, serem formuladas com o propósito de realizar um jogo com/sobre a linguagem, objetivando, por vezes, divertir o adulto ou a si mesma. Nesse último caso, é possível perceber que sua sede está no corpo da criança -ao rir daquilo que falou, por “saber” se tratar de uma saída à linguagem usual ou cotidiana (reaparecendo sob um outro prisma ou brilho)- constituindo-se assim como uma transgressão, cerne do que se entende da piada, do trocadilho e do chiste.

O exemplo de Figueira (1995) é alvo de diversas considerações, e nos remete ao efeito de humor produzido pela criança aos 5;3.16 de idade.

Diálogo 2 

Como nos lembra Figueira (1995), segmentos da fala de criança como esse reforçam a hipótese de De Lemos (1992, entre outros) a respeito da aquisição da linguagem como um processo que não se dá por acúmulo de conhecimento sobre a língua, passando por estágios na linguagem, vencidos sucessivamente pela criança, como supõe teorias desenvolvimentistas da área. O fato de a criança, depois de retomar sua fala -uma retomada quase autonímica (“Se x, então não é y”) nos termos de Authier-Revuz, citada por Figueira (2011a, entre outros)-, e modificá-la, diz respeito à captura da criança pela linguagem ou à relação da criança com a língua. Esse “reparo” feito pela criança, Ah, Dagmar! Não é Dagchão?, constitui-se como índice de um movimento produzido pela língua; a criança está submetida à língua, um processo de captura no qual ficam expostas as relações entre elementos latentes/presentes na cadeia da fala (Figueira 2011a).

As falas destacadas das duas crianças -L. e A.- têm em comum o fato de incidirem no nome próprio e de elas os segmentarem. No entanto, o efeito das duas produções é distinto para as próprias crianças: enquanto que A. ri da inovação realizada por ela (um chiste?), Dagmar? Não é Dagchão?, L. procura responder à interrogação feita pela mãe, complementando o enunciado, É Clê e ela usa as coisas, que poderia soar como um trocadilho ao seu interlocutor.

Tanto para a fala de A. -Dagmar? Não é Dagchão?- quanto para o enunciado de L. -É Clê e ela usa as coisas-, noções tributárias à Saussure, como unidade linguística, valor e relações sintagmáticas e associativas, podem ser alçadas na explicação dessas segmentações alternativas da palavra que dão força à definição de língua saussuriana como tendo uma ordem própria. A lembrança de uma passagem do texto saussuriano é bem-vinda nesse contexto: “uma palavra qualquer pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de uma maneira ou de outra” (Saussure (1916) 2006: 146).

No enunciado É Clê e ela usa as coisas é possível notar a oposição entre os elementos nesse agrupamento de signos. Tem-se uma segmentação alternativa, mas possível dentro da língua, um sintagma do tipo “SN + V + complemento”. Tanto em Dagmar/Dagchão quanto em Cleusa/É Clê e ela usa as coisas, verificamos a atuação dos dois eixos, sintagmático e associativo, simultaneamente, pesando sobre eles a delimitação das unidades, solidária ao de sistema da língua, e a identidade, para a qual entende-se que, mesmo mudando as condições de produção de um segmento (os diferentes atos de fala), ele continua sendo o mesmo (por oposição a outros com os quais se relaciona).

Neste ponto vale lembrar que, em sua reflexão, Figueira se atém a contrastar o episódio (2), de A, com outra ocorrência, na fala de crianças envolvendo nomes próprios. Assim é que no artigo a respeito de dados anedóticos na fala da criança, publicado em 2001, a autora retoma um episódio apresentado no artigo de 1995, o qual também se enquadra no que a autora denominou de segmentação alternativa. Ao perguntar sobre o gato com que brincara nas férias, cujo nome era Teobaldo, o menino, então com 3;6 anos, pergunta à tia sobre o Baldo, e repete depois: O Baldo. O meu Baldo, o teu Baldo, frente à insistência do Quem?, dito pela tia, que mostrava não entender de quem o menino falava.

Essa última fala do garoto, pronunciada por ele sem que houvesse de sua parte uma escuta para o efeito de trocadilho ou do cômico resultante, estaria indicando a sua submissão à língua: o nome Teobaldo funcionando como duas unidades (teu e Baldo), ao entrar na relação com meu e Baldo (Figueira 2001: 41).

Em trabalho posterior, Figueira (2010) volta ao dado, e à produção da criança, O Baldo. O meu Baldo, o teu Baldo, analisando-o à luz de postulados saussurianos, como a questão da delimitação de unidades. Como afirma Figueira (2010: 117), a criança está no jogo com a língua sem atribuir às palavras, de maneira unívoca, os cortes entre forma e sentido, o que acaba por provocar no interlocutor adulto o efeito de surpresa. É a homonímia que vem convocada como explicação para esse acontecimento.

Acompanhamos Figueira (2010: 118) quando afirma que “O que orienta o corte é o fato de a sequência Teobaldo, um nome próprio, permitir que nela seja encontrado um nome (Baldo, que não fica tão longe de Paulo, Saulo, etcétera), a se deixar preceder por teu, posição onde cabem: meu, seu, nosso...”.

Já a ocorrência de Dagmar na fala de A. -episódio (2)- chama atenção pelo fato de a criança estar em outra posição na estrutura, afinal ela ri do resultado de sua produção, como vem indicado por Figueira (2010: 119-120). Notamos uma mesma operação em ação: a homonímia. E, mais uma vez, a questão da unidade, como definida por Saussure (1916)2006), vem alçada, assim como a questão da singularidade, como bem destaca Figueira (2010: 120): “É por um movimento súbito que um segmento (mar) torna-se apto por um instante a se fazer comutar com chão, o primeiro destacado, na fala de A, como unidade”.

Quanto à segmentação do nome Cleusa por parte de L., devemos mencionar uma diferença em relação a outras duas ocorrências envolvendo nomes: há um deslocamento entre os elementos que compõem a palavra, mas sem alterar o número de sílabas. Na fala de L., a palavra dissílaba Cleusa se rearranja em termos de seus elementos internos: a sílaba tônica, formada por ditongo, Cleu, reduz-se para Clê, e à sílaba átona sa, acrescenta-se a vogal “u” no seu início, passando para usa. Importante chamar atenção para o fato de a mãe da criança ter pronunciado o nome Cleusa com ênfase e distinguindo três segmentos na sua articulação, como reportado. Na sequência, a criança ainda substitui o “u” por “ó”, resultando em Cleósa, o que é imediatamente corrigido pela mãe, ao insistir para o fato de o nome ser com “u”: Não, é com u. Cleusa. É possível dizer, então, que a criança faz essa segmentação inusitada -um estreitamento/alongamento nos elementos que compõe a sílaba-, É Clê e ela usa as coisas, sob o efeito de sua escuta da fala da mãe. Cabe ressaltar o funcionamento simbólico em jogo, a captura da criança pela linguagem, ao se considerar outros textos possivelmente já escutados pela criança, em que compareceram Cleópatra, Maricota etc. De qualquer modo, podemos inferir tratar-se da mesma operação em curso: a homonímia.

Na fala dessas crianças, a ocorrência de segmentações inesperadas de nomes próprios leva-nos a discussões pertinentes em relação à unidade linguística e, também, à singularidade da fala da criança, em que o erro comparece com seu caráter instantâneo, único e transgressor. Nessas falas, é possível reconhecer um sujeito distanciando-se do “espelhamento à fala da mãe”, já navegando sob os movimentos da língua e tendo uma outra escuta à fala que vem do Outro. Consideramos que não se trata de atribuir capacidades metalinguísticas à criança - analisando as palavras da língua-, mas de sua submissão ao jogo da linguagem sobre a própria linguagem.

3. O humor e riso na clínica de linguagem

Passemos, então, a discutir o humor na clínica de linguagem com crianças cujo diagnóstico neurológico enquadra-se no denominado “espectro autístico”.

Como indicado na seção anterior, o humor da criança ou o efeito de humor dessas falas no interlocutor adulto, ou mesmo efeito de surpresa diante das falas de crianças com as denominadas segmentações divergentes -muitas vezes provocando um efeito poético para o investigador- aparecem muito cedo e não tardiamente como vem indicado em muitas pesquisas na área de aquisição.

Os diálogos que se seguem são recortes de situações clínicas com duas crianças, uma de quatro e outra de sete anos, em acompanhamento fonoaudiológico semanal. Partimos da premissa de se tratar de um processo terapêutico com uma fonoaudióloga que se mostra sob os efeitos das falas sintomáticas sobre o seu corpo (teórico inclusive), tendo o objetivo de poder dizer algo a respeito dessas crianças que não se restrinja ao que está contido nos manuais de diagnósticos médicos. Nesse sentido, interessa a ela, como investigadora, discutir a respeito da posição subjetiva da criança na sua relação com a língua.

Comecemos por N., um menino de quatro anos. No primeiro contato, a criança entrou na sala de atendimento emitindo sons isolados lamuriosos, sem dirigir o olhar à terapeuta e jogando no chão os objetos que encontrava pela frente. Os apelos da mãe para que ele cessasse de fazer isso não surtiram efeito. A proposta de bater suas mãos no espelho, acompanhando os movimentos da terapeuta e da mãe, de acordo com o ritmo de uma canção, ´(“Lavar as mãos”, de Arnaldo Antunes), foram recebidos por ele com explosões ininterruptas de suas mãos sobre o espelho, para, em seguida, seguir o ritmo da canção, batendo-as no espelho somente quando a palavra “mão” era produzida, um espelhamento do gesto da terapeuta, mas sem que ele dirigisse o olhar para ela.

Uma variação de tempo foi introduzida pela terapeuta entre a produção do trecho mão, lava outra, lava uma... e mão, dita isoladamente. Esta fala “atrasada”, acompanhada pelo gesto de bater a mão no espelho e olhar para ele, surtiu o efeito de ele ficar esperando a concretização desse enunciado, um desfecho provocador de um sorriso de sua parte. Além disso, tanto a terapeuta quanto a mãe passaram a dizer o nome de N. e dirigir o olhar a ele no espelho quando era nomeado: Olha o N!, Cadê o N? Ele olhava no espelho para ver quem o nomeava, passando depois a virar seu rosto em direção a quem o havia nomeado.

Um outro jogo foi instaurado: ele procurava também uma das duas no espelho e, depois, a tocava quando a terapeuta ou a mãe diziam Cadê a terapeuta/a mamãe?, como parte da brincadeira realizada previamente entre a mãe/a terapeuta, a qual consistia em olhar no espelho e, depois, virar-se e tocar a pessoa nomeada.

Ele sorria todas as vezes em que cada episódio desses chegava ao seu final, ficando em júbilo tanto ao ser nomeado quanto ao constatar de onde vinha a voz dessa nomeação.

Muitos aspectos relativos à linguagem de N. poderiam ser analisados a partir do episódio aqui reportado, mas nos detemos em alguns deles com o objetivo de ressaltar questões relativas ao processo de subjetivação da criança.

O que nos parece mais evidente é o fato de uma troca simbólica entre a criança e o adulto ter se instaurado -ao contrário de movimentos incessantes dele pela sala-, e de ter ocorrido um intervalo entre o silêncio e o dizer, no ritmo próprio da linguagem em funcionamento (presença-ausência) e de a criança ter sido capturada por ele.

Além disso, é importante observar a contribuição desses episódios para a promoção de uma aproximação entre mãe-criança, no sentido de propiciar uma mudança no olhar da mãe em relação à criança. Havia um olhar desvitalizado da mãe em relação ao filho, mas, a partir do momento que a criança começou a olhar para ela e a manifestar uma reação de satisfação na situação da brincadeira no espelho, a mãe passou a se mostrar surpresa em relação às manifestações do filho. Consideramos esses episódios da clínica como marcante no que diz respeito à captura dessa criança pelos mecanismos da língua, já que, desse momento em diante, é possível falar em afetação em relação à fala do outro, como do espelhamento na entonação da terapeuta, da reprodução de segmentos ou mesmo palavras inteiras ditas por ela.

Os episódios reportados a seguir ocorreram depois de um ano do início do atendimento fonoaudiológico de N. Em uma das situações, a terapeuta narrava histórias por meio de livros ilustrados e ele folheava o livro imprimindo um ritmo muito mais acelerado àquele que estava sendo falado/lido por ela. Ele voltava-se para os números das páginas e os dizia em voz alta. Em outo momento, no jogo de parear números, ele os nomeava sem titubear, mas só fazia isso mediante o jogo de esconder-achar: todas as peças com os números escritos deveriam ficar viradas para baixo, e, assim, ele ia virando uma a uma, até formar um par. Recomeçava em seguida sem se preocupar, aparentemente, em guardar a posição em que determinado número se encontrava. Constituiu-se como um jogo solitário, pois ele não aceitava a participação da terapeuta. O papel a ela designado (e esperado por ele) era o de lhe dar os parabéns ao final de cada jogada/par formado, o que ela faz acompanhando sua fala com a batida de palmas e dos pés. Nesses momentos, ele olhava para a terapeuta e também sorria, ao ver desenrolar diante de si a comemoração da terapeuta.

O modo singular de N. habitar a linguagem deve ser compreendido levando em consideração o “peso” do Outro para essa criança. Nessa altura do processo terapêutico, a terapeuta seguia a estratégia de se voltar para a atividade que eles estavam realizando e isso significou dirigir seu olhar para aquilo estão fazendo, e não diretamente para ele5. Um acontecimento permite tanto pensar nos efeitos da linguagem do outro sobre essa criança quanto no inesperado para a terapeuta em relação ao que vem dessa criança. Na situação de ela pegar letras coloridas de dentro da caixa e nomear cada uma sem erro, a terapeuta passa a falar, além das letras, palavras que começam com a letra em foco. Para a letra “z”, por exemplo, começou a fazer o som do zunido da abelha (bzzzz) acompanhado do gesto de pousar os seus dedos polegar e indicador, em pinça, sobre o braço dele.

A criança retraía os braços e ria quando isso ocorria. Depois de algumas sessões, ao realizar a mesma atividade, a terapeuta disse “zebra”, quando N. retirou a letra “z” de dentro da caixa, momento em que a criança estendeu seu braço em direção à terapeuta, tocou levemente o rosto dela com a mão e, levando-o em sua direção, falou “bzzzz”.

Lembramos a passagem do texto de De Lemos (2002: 65) em que a autora destaca como primordial a capacidade de escuta da terapeuta de uma criança autista, já que, mesmo no contexto de produção de uma fala ecolálica, foi possível à terapeuta notar a presença de falas/sons que “escapavam” a essa fala, e se tornavam uma espécie de lugar onde se localizava uma subjetividade abortada. A situação de N. deve ser compreendida pensando nessa perspectiva, pois, mesmo na repetição de atividades e de gestos por parte da criança, há frestas indicando movimentos da criança na estrutura. Parece possível também inferir nos diálogos a afetação, ainda que de modo bem particular, de N. pela fala que vem do outro.

Em relação à D., um garoto de sete anos, destacamos alguns excertos com a finalidade de continuar a discussão sobre o aparecimento do humor e a sua natureza no contexto da clínica de linguagem com crianças autistas. Trata-se de um diálogo ocorrido um ano depois do primeiro contato com a terapeuta, no período em que D. passara a conviver, de fato, com o pai na mesma casa. D. estava desde um ano de idade sob a responsabilidade definitiva da avó paterna.

No início do acompanhamento, D. não se detinha nas atividades. No entanto, nas brincadeiras com bolas, peteca -para as quais mostrava uma grande desorganização motora- e nas lutas com espadas/lápis de cor, assim como nos jogos com dados (sabia somar a quantidade de dois dados), D. acompanhava a introdução por parte da terapeuta da marcação, pela linguagem, dos momentos de início-meio-fim das atividades, assim como o uso de expressões cabíveis a esses jogos. Como efeito sobre a criança, notamos que ela procurou disputar, vencer, deixar vencer, perder, a partir do desenvolvimento dessas marcações.

A sua fala era produzida com poucos movimentos articulatórios e, portanto, sem uma curva melódica variável e com muitas omissões e substituições de fonemas. Depois de um ano, o cenário já era outro: ele começou a desenhar as etapas dos jogos (as “casas” com os desafios para chegar a um castelo, por exemplo), a construir um cenário com objetos para realizar uma narrativa. Ele se mostrava mais receptivo às diferentes pessoas -profissionais e pacientes- da clínica, dirigindo-se a elas para conversar.

Vamos ao episódio: na sessão em que a terapeuta demonstrava para o pai e a criança a postura articulatória de língua e lábios para a produção do fonema “ch” na palavra chuchu, o pai volta-se para D. e diz: Seria bom se a gente comesse chuchu, hein?, sorrindo ao terminar o enunciado, gesto seguido imediatamente por D. Esse episódio é a confirmação de um traço presente no pai e no filho, comentado pela terapeuta com o pai e na presença da criança: o fato de ele (o pai) ter tiradas espirituosas e a terapeuta notar essa mesma característica em D.

Houve uma dose de intencionalidade por parte da terapeuta no planejamento das sessões que se seguiram a esse episódio, já que a terapeuta procurou ressaltar o humor, reforçando-o como um traço de identificação entre eles. Senão vejamos: a terapeuta começou a propor jogos de palavras, segmentando-as e finalizando com outras sílabas ou, então, procurava escrever palavras trocando as sílabas finais para dar origem a outras (de fogo para fofo, por exemplo). Nessas situações, ele ria muito. Em uma outra ocasião, comentando na presença da avó o fato de D. estar articulando alguns fonemas com maior precisão e clareza, a terapeuta solicita a ele para produzir “papai”, e ele, logo em seguida, diz “Papai Noel”, acompanhando a produção com um riso. Dando continuidade à proposta, a terapeuta lhe pede para repetir “pandeiro”, ao que ele retruca com o segmento “festa junina”, rindo logo depois. Podemos considerar que os termos ainda não estão articulados dentro de um enunciado, como ocorreu na fala do pai, mas estão associados, remetendo a cenas enunciativas em que essas palavras constituem um texto.

Essas últimas ocorrências indicam uma outra posição subjetiva da criança: D. realiza um ato performativo ao causar surpresa nas suas interlocutoras e, interessado em dar continuidade ao fato, associa palavras umas às outras buscando esse efeito. Pretendia, ao que tudo indica, fazer com que avó e terapeuta também rissem de suas combinações inusitadas entre palavras.

Os dois casos relatados têm pontos em comum quando se trata de refletir sobre a postura da terapeuta em relação às crianças autistas. Mesmo sem ser psicanalista, sua formação teórica no interacionismo e nas questões pertinentes à clínica de linguagem, permitiram a ela pensar o que causa um sujeito. Possibilitaram refletir sobre o processo de subjetivação da criança como sinônimo de captura da criança pela linguagem que vem do Outro, admitindo a ocorrência de mudanças de posição em uma estrutura (De Lemos 2001, entre outros). É possível e necessário supor um sujeito na criança autista e admitir que haja efeito da linguagem sobre o corpo da criança, sem desconsiderar, porém, a sabida refração à linguagem do outro. Nesse sentido, o humor e o riso, mesmo fugaz, constitui-se como resistência ao que soa como sendo, para essas crianças, um peso na/da palavra.

4. Considerações finais

Algumas observações a respeito da captura da criança pela linguagem podem ser levantadas, a partir do breve relato dos episódios dialógicos entre adulto-criança aqui reportados. Elas se situam nessa ampla indagação a respeito do vir a ser falante da língua materna (de uma ou mais de uma). As diferenças indicadas entre as falas de crianças trazidas na primeira parte do texto e na segunda são o registro de processos de subjetivação díspares: enquanto em uma situação encontramos crianças pequenas afetadas pela fala do outro e pela língua e no processo de separação do Outro (mesmo tendo em conta que não se trata de um percurso teleológico), no contexto das falas sintomáticas é possível fazer a hipótese de um histórico de relutâncias à fala que vem do Outro, considerando que o sofrimento/a angústia esteja aí implicado.

À terapeuta da clínica de linguagem interessa provocar mudanças nessas falas, colocá-las em movimento, permitir que elas não se cristalizem em signos imutáveis.

Para que seja possível a ocorrência da constituição de um sujeito capturado pela linguagem e com uma fala própria, o terapeuta arrisca-se na seara dos significantes, no terreno fluido das unidades linguísticas e, nesse sentido, o humor e o riso possibilitam a ruptura da/na palavra; na clínica dos autismos, essa operação mostra-se fundamental em razão do sofrimento dessas crianças em relação à palavra que vem do Outro.

Consideramos o humor e o riso como possibilidades no processo terapêutico de crianças autistas. Mesmo não tendo sido reportados relatos de terapia psicanalítica com crianças autistas no espaço exíguo deste trabalho, chamamos atenção para o fato de que os objetivos, tanto da clínica de linguagem como da psicanálise, serem assemelhados. As duas clínicas diferenciam-se, por exemplo, em termos da demanda dos pais dos autistas. Em relação à clínica de linguagem, poderíamos dizer que nela a presença do registro do imaginário, pensando nos três registros imbricados da vida psíquica -o real, o simbólico e o imaginário6- seria muito mais saliente em comparação ao que se observa na psicanalítica. Sabemos que essa temática merece sem dúvida uma reflexão muito mais aprofundada no âmbito dessas duas práticas, ficando, então, como uma questão a ser desenvolvida posteriormente.

Por fim, permitimo-nos uma licença poética no contexto de discussão a respeito dos autismos. Propomos a leitura de um poema de Paulo Leminski (Leminski 2013) por considerarmos que nele se aborda a relação do sujeito com o nome próprio e o processo de subjetivação em sua ligação inequívoca com o outro/com a linguagem.

Fig. 1 

O nome próprio da mulher do poeta, Alice, é posto em relação a outros nomes. Na operação de homofonia, outros enunciados e outros termos da língua são convocados: ali só, ali se; Se ali, ali se; visse, disse; dissesse; desce. Podemos constatar as aliterações presentes, pois os “li e si” alternam-se frequentemente, assim como as inversões aparecem inúmeras vezes, além das assonâncias, dada a repetição dos “is”. Vemos a operação de homofonia sustentando o poema. Há a nomeação e a tentativa de decifrar Alice: em frente ao espelho -viu e não disse- e do impossível de se dizer tudo a respeito de si -quanta palavra veio e não desce-. Àquilo que intrigou Saussure quando do seu estudo dos anagramas -a leitura do nome próprio do autor de um poema sendo possível de ser realizada por entre os versos do poema- e a sua indagação quanto ao fato de isso ter sido produzido intencionalmente ou não pelos escritores, parece ter resposta no poema de Leminski: de um nome próprio só o seu portador, na sua singularidade, pode saber ou ter a ilusão de sabê-lo.

A intencionalidade do sujeito fica em suspenso quando se trata do funcionamento da linguagem. O processo de subjetivação pela linguagem vem descrito e arranjado fugazmente nas palavras (e sua combinatória) do poema e nas imagens suscitadas por elas. Há, sem dúvida, um trabalho do poeta com a língua. O poema expõe a singularidade e a ampliação/ampliamento da noção de sujeito, que, mesmo só, afeta os outros e por eles se vê afetado, e que também não se diz/pode dizer como um todo.

Leminski nos lembra que o nome próprio para o poeta é fonte de um trabalho sobre a linguagem (ao mesmo tempo consciente e inconsciente), cujo ponto em comum com a fala da criança é esse (des)fazer do signo em significantes. São posições subjetivas bem distintas -a do poeta e a da criança-, mas não há como no caso do poeta, deixar de pensar que está em ação a lalangue, esse não todo da língua, e da qual a psicanálise, além da poética, faz notar sua forte presença, o seu retorno, como nas formações do inconsciente e nos sintomas de sujeitos da sua clínica.

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1 Lier-de Vitto e Carvalho (2008) consideraram como momento desencadeador da proposta interacionista o início do Projeto em Aquisição de Linguagem, fato ocorrido em 1976, o qual foi coordenado por De Lemos até o final dos anos 90, e, posteriormente, assumido por Maria Fausta Pereira de Castro e Rosa Attié Figueira.

2“... uma locução, quando trabalhada pelo equívoco, é ao mesmo tempo ela mesma e uma outra.” (Milner 2012: 17).

3 Danon-Boileau (2002), linguista e psicanalista francês, considera fundamental discutir a questão do olhar do outro sobre crianças autistas e psicóticas, sugerindo aos terapeutas voltarem-se para a atividade e não para a criança, o que, do nosso ponto de vista, também foi vital diante das razões já expostas.

4 Lacan (2007) define a estrutura psíquica humana como estando articulada em três registros, o Imaginário, o Simbólico e o Real. O Imaginário não pode ser entendido como algo referente à imaginação ou à criação, mas o que possibilita fazer unidade do que não é igual. O simbólico é a Ordem, a Lei, o discernível. O Real, por sua vez, não pode ser confundido com a realidade, mas é o que resiste a uma escrita. Nos seus últimos Seminários, esses três registros foram reconduzidos à figura do nó borromeano (topologia); eles se encontram enlaçados e a ruptura de um desses elos do nó implica a dissolução dos três e, por isso, segundo Milner (2006: 32), uma outra correspondência pode vir a ser estabelecida: a linguagem é imaginária, a língua é simbólica e a lalangue é real.

Nota de autoría: Silvana Perottino é a única responsável pela elaboração completa desta pesquisa

Recebido: 30 de Março de 2018; Aceito: 21 de Novembro de 2018

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