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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.35 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20190018 

Artículos

Jogos sonoros na fala infantil e mudanças na interpretação do outro

Sound games in child speaking and changes in the interpretation of others

Glória Maria Monteiro de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0003-0595-1764

1Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, gmmcarvalho@uol.com.br


Resumo:

Focalizamos, neste artigo, os jogos sonoros infantis, isto é, as aproximações/associações entre segmentos sonoros semelhantes, que dominam a fala da criança em um momento inicial de seu percurso linguístico. A partir do confronto com uma diversidade de formas pelas quais a criança joga com os sons dos significantes de sua língua materna, suspeitamos que haveria também uma variação na interpretação do outro, na dependência do contexto dialógico, o que configuraria a chamada flexibilidade pragmática da interpretação em aquisição de linguagem.

Nessa perspectiva, a análise de três episódios de diálogo entre uma criança e sua mãe deu indicações de que diferenças entre jogos sonoros infantis estariam relacionadas a diferenças entre as interpretações da mãe para esses jogos.

Palavras-chave: jogos sonoros; interpretação; flexibilidade pragmática; aquisição de linguagem

Abstract:

In this article, we focus on children's sound games, i.e., the approximations/associations among similar sound segments, which dominate child’s speech at an early point in their linguistic course. By comparing the various ways children play with the sounds of signifiers of their mother tongue, we have supposed that there would also be a variation in the interpretation of the other, depending on the dialogic context, which would configure the so-called pragmatic flexibility of interpretation in language acquisition.

From this perspective, the analysis of three episodes of dialogue between a child and her mother indicates that the differences in children’s sound-plays would be related to differences in mother's interpretations for these games.

Key words: sound games; interpretation; pragmatic flexibility; language acquisition

1. Introdução

Tentaremos, neste artigo, colocar em discussão a interpretação do outro para a fala da criança no início de seu percurso linguístico. Vale lembrar que a questão do lugar ocupado pelo outro, em aquisição de linguagem, possui raízes no campo da pragmática em que a atividade de interpretar as produções verbais infantis consiste em descobrir o sentido dessas produções, ou melhor, consiste em lhes atribuir intenção e sentido.

A partir de estudos transculturais, Ochs e Schieffelin (1995: 81, tradução nossa) afirmam que “Infantes e crianças pequenas, universalmente, produzem enunciados cujo sentido não é transparente para aqueles que estão presentes ...”. Acrescentam, então, que as pessoas presentes podem responder a esses enunciados por meio de três diferentes formas: ignorando-os, indicando à criança que o enunciado não está claro ou apresentando à criança uma reformulação do enunciado. Assim, de acordo com essa proposta, tanto os enunciados ambíguos, ininteligíveis das crianças, como as respostas a eles são universais, embora a escolha por um dos três tipos de resposta varie entre as comunidades, em virtude de diferenças nos contextos socioculturais.

Essa variação configura uma flexibilidade pragmática no que diz respeito à interpretação em aquisição de linguagem. Embora nos situemos em uma linha teórica diferente da abordagem pragmática, assumimos a proposta de que ocorreria essa flexibilidade, em momentos iniciais do percurso linguístico da criança, considerando um mesmo ambiente sociocultural.

As vocalizações infantis iniciais, também chamadas de jogos sonoros, jogos de ressonância ou jogos vocálicos, serão abordadas neste estudo, destacando-se o lugar fundamental ocupado pelo outro, a fim de que esses jogos se transformem propriamente em fala. Em outras palavras, será destacada a relação entre as vocalizações infantis iniciais e a fala do outro (a mãe) que procura lhes “atribuir sentido e intenção”, de acordo com a proposta de Claudia de Lemos (1992: XII)

2. Jogos sonoros na fala infantil

Houaiss e Villar (2001: 1685), definem jogo como atividade cuja natureza ou finalidade é recreativa; trata-se de diversão, entretenimento, atividade espontânea de crianças, brincadeira, estando essa atividade submetida a regras. No caso dos jogos sonoros aqui recortados, a regra consiste na semelhança sonora entre as palavras. Trata-se, portanto, de jogar com os sons da língua, associando/aproximando palavras de sons semelhantes.

Assumimos, neste trabalho, a proposta de autores na linha psicanalítica -como, por exemplo, Porge (2014) e Pommier (2007)- que realçam a importância da relação lúdica da criança com a língua, em momentos iniciais de sua constituição como falante. Em outras palavras, trata-se dos momentos em que, de forma dominante, a criança joga com os sons dos significantes de sua língua materna. Coerentemente com essa proposta, deparamo-nos, em trabalho anterior (Carvalho 2015, 2016) com uma diversidade de formas pelas quais a criança, insistentemente, joga com os sons da língua.

A esse respeito, os autores citados assumem também que, em um determinado momento, é preciso esquecer o som para se tornar falante ou, em outras palavras, é preciso que os sons se transformem em significantes. De acordo com Pommier (2007), essa transformação ocorre quando o prazer que a criança situa nos sons é transferido para a frase, para a cadeia de significantes. Nessa perspectiva, seria por meio da cadeia verbal que o esquecimento do som ocorreria.

Segundo Porge, os denominados jogos de vocalização abrangem os balbucios, os gorjeios, as lalações, o “motherese” ou o “parentese”, “em que a criança goza da matéria sonora para seu prazer” (2014: 120), possuindo esses jogos “importância capital para o desabrochar futuro do bebê”. Vale realçar que, para esse autor, os jogos não se restringem ao som, mas podem ser de vários tipos (psíquico, auditivo ou motor), podendo ocorrer simultaneamente e não precisam ser sempre uma repetição estrita.

Por sua vez, ao incluir, nos jogos de vocalização, a fala dirigida ao bebê: o “motherese” e o “parentese2, o autor indica, na fala do outro (tanto da mãe como de um outro adulto), uma escuta para os sons que constituem os jogos infantis iniciais, sendo, portanto, essa escuta de importância capital para o desabrochar futuro do bebê. Afirma, então, que “precisamente no motherese e no parentese observamos que há uma estrutura de fala em eco” (Porge 2014: 120), estrutura que realça, na concepção de espelhamento formulado por Claudia de Lemos (2002), a dimensão sonora do reflexo especular entre a fala infantil e a fala materna. De acordo com essa autora, em um momento inicial da aquisição de linguagem, criança e outro (a mãe) assumem a posição denominada espelhamento mútuo em que fragmentos de enunciados do outro aparecem nas produções verbais infantis, retornando na fala desse outro que insere as produções infantis fragmentadas em cadeias verbais, atribuindo-lhes, assim, forma e sentido.

Nessa perspectiva, a imprescindível função da escuta do outro para os sons da fala infantil é assumida também por Pommier, quando coloca que “de forma efetiva ou mental, a presença do outro atualiza os sons em significantes” (2007: 146, tradução e ênfase nossas).

O significante deve ser aqui entendido, com fundamento na concepção saussuriana, a partir da teoria do valor em que tanto o significante como o significado (as duas faces do signo linguístico) são concebidos do ponto de vista de uma diferença e não de uma positividade. Um significante, por exemplo, somente teria existência em sua relação de diferença, de negação, de oposição a outros significantes da língua concebida como sistema de valores. Assim, na cadeia verbal, os significantes se definem por sua posição de diferença em relação aos outros significantes dessa cadeia.

Com fundamento no que foi posto, relembremos, então, o objeto deste trabalho: a escuta do outro para a fala infantil, o que nos situa no âmbito da interpretação. É importante realçar que recortamos a escuta do outro (a mãe) para os sons da fala infantil, considerando essa escuta como atualização de sons em significantes, conforme a proposta de Pommier (2007) referida antes.

A partir desse recorte -e com o objetivo de trazer à tona essa dimensão de atualização de sons em significantes na escuta do outro-, formulamos a seguinte questão que nos servirá de eixo: que operação, envolvendo os sons, estaria suportando a interpretação/a escuta da mãe para a fala infantil?

Convém notar que, se nossa abordagem dos sons na fala inicial da criança se situa no âmbito da proposta psicanalítica, como consequência, devemos também recorrer a essa proposta para podermos abordar, coerentemente, a questão da interpretação.

A esse respeito, invocamos M. T. Lemos (2002) que destaca a posição lacaniana segundo a qual, em psicanálise, a interpretação do analista consiste em lançar um enigma ao analisando que tenta decifrá-lo. Para essa autora, no caso da interpretação em aquisição de linguagem, haveria uma inversão de posições, em relação ao setting analítico: seria, então, a criança que lançaria um enigma ao outro (à mãe) que procuraria decifrá-lo. Assumimos, neste estudo, que seriam intérpretes tanto a criança - cuja fala teria a estrutura de um enigma -, como o outro (a mãe e o investigador) que procura decifrar esse enigma.

A fim de trazer à cena essa estrutura de enigma, tomemos, como paradigma, o Mito da Esfinge. Lembremos, bem resumidamente, que se trata de um ser híbrido - com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia - que dirige aos habitantes de Tebas o seguinte enigma: “Que animal caminha com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à tarde?”. Aqueles que não conseguiam decifrá-lo, eram devorados pelo monstro (Decifra-me ou te devoro!). Muitos tebanos já haviam sido mortos, até que o jovem Édipo apresentou a solução: “O homem, pois ele engatinha quando pequeno, anda com as duas pernas quando é adulto e usa bengala na velhice”. Diante do deciframento do enigma, a Esfinge se suicida, lançando-se em um abismo.

Ao abordar esse enigma, Lacan (1992) afirma que se trata de um semi-dizer sustentado por um meio corpo. Coloca esse autor: “Creio que vocês veem o que aqui quer dizer a função do enigma - é um semi-dizer, como a Quimera faz aparecer um meio corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução”. (1992: 34). Seria, portanto, um dizer informe, indefinido, indiferenciado expresso por um corpo também informe indefinido indiferenciado. Esse caráter informe, equívoco, cifrado desapareceria por meio do deciframento.

Assim, o enigma comportaria em sua estrutura, relações entre cifra (ou ciframento) e deciframento, ou melhor, comportaria as duas operações: ciframento e deciframento que se manifestariam de diversas formas, sob diversos modos de relação.

Relembrando, então, nosso objetivo de abordar a interpretação do outro para os jogos sonoros infantis, retomemos a questão formulada antes, para abordá-la em seguida: como a operação de deciframento, envolvendo os sons da fala infantil, estaria suportando a escuta da mãe para essa fala?

3. Flexibilidade pragmática da interpretação para a fala infantil: uma ilustração

A fim de abordar, empiricamente, a questão formulada antes, recortamos três episódios que serão, aqui, mostrados apenas a título de ilustração, para deixar mais claro o entrelaçamento entre as duas operações referidas: ciframento e deciframento.

Não temos, portanto, a pretensão de abordá-los do ponto de vista de mudanças na fala infantil e, muito menos, daquilo que causa essas mudanças. Convém referir que esses episódios foram retirados do Banco de Dados do Projeto de Aquisição de Linguagem do IEL-UNICAMP e fazem parte de um corpus composto por transcrições de gravações semanais, em áudio, de diálogos entre mãe e criança (C=criança, M=mãe) (uma menina) com idade de um ano, dois meses e um dia, no início das gravações que se estenderam durante um ano nove meses e vinte e três dias

Episódio 1 

Nesse episódio, podemos dizer que o enigma da fala infantil é sustentado pela homofonia, por uma semelhança sonora, ou melhor, por uma operação homofônica na escuta da criança para a fala do outro (a mãe). Nessa perspectiva, o segmento nena foi produzido pelo outro (a mãe), como significante em uma cadeia: “Cadê a dona Nena? Onde tá a dona Nena? Hein?”.

Ao migrar da fala materna para a fala infantil, perdendo seu lugar na cadeia, o nena é, então, esvaziado de sentido, adquirindo valor homofônico. Por associação sonora, esse valor homofônico se estende a outras entidades sonoras3 produzidas pela criança -por ex: nena, ne, ana, da, ada, aua (depois de ter a mãe insistido na pergunta você quer água?)-, formando um jogo vocálico em que ocorrem diferenças. No entanto, tais diferenças, como se pode notar, subordinam-se a uma relação de semelhança sonora entre essas várias produções. Nesse caso, portanto, entidades sonoras são associadas de acordo com semelhanças entre sons.

Estamos nos referindo à operação de associação segundo a concepção de Saussure ((1919) 1995) 4. Relembremos que, para esse autor, as relações sintagmáticas e as relações associativas entre palavras constituem as duas leis de funcionamento da língua. No primeiro tipo, as palavras se combinam, seguindo o princípio da linearidade, ao formar cadeias verbais, na fala; no segundo tipo, as palavras se aproximam, na memória do falante, formando grupos de acordo com alguma relação comum entre elas, havendo tantos grupos associativos quantas forem essas relações. Ele se refere, então, a três grupos de palavras associadas de acordo com os seguintes critérios: a forma e o significado, apenas o significado, apenas a forma. Coloca o autor que o último se baseia em uma simples comunidade de imagens acústicas, aparecendo, em nota dos editores do Curso de linguística geral, o seguinte exemplo: “Os músicos produzem as notas e os perdulários as gastam5 (Saussure (1919) 1995: 146)6. Esse último caso se aproxima, então, às associações realizadas na fala infantil inicial em que as palavras são aproximadas levando em conta as semelhanças sonoras, estando, portanto, excluído o sentido. É importante, contudo, notar que, no caso do falante, é o critério de formação do grupo que exclui o sentido; no entanto, individualmente consideradas, cada palavra pertence à língua constituída, obedecendo a um padrão e, desse modo, possuindo sentido predeterminado. No caso da criança, a desestruturação da fala do outro - por meio da semelhança sonora - operada na escuta infantil, permite-nos falar de uma falta de sentido em cada uma das palavras (ou de partes de palavras) associadas.

Convocamos de C. de Lemos (2015) que se refere a essa desestruturação como uma operação da letra - que será explicitada mais adiante - em que ocorrem segmentações, junções, acréscimos e omissões de partes de palavras, operação que produz resultados inaceitáveis de acordo com os padrões linguísticos.

Recortaremos, a seguir, um fragmento de diálogo em que a relação entre enigma e deciframento do enigma difere dessa relação no episódio anterior.

Episódio 2 

No episódio (2), talvez já pudéssemos supor que aquilo que estamos chamando de entidades sonoras se combinaram formando a cadeia: “Eu vou no X”. No entanto, nesse fragmento de diálogo, destacou-se, na escuta do investigador, a produção infantil estranha jaculalero. Nessa produção -e também nas tentativas/hesitações anteriores da criança- teria havido, ao que parece, a interferência de sons de significantes escutados pela criança, embora não tenhamos podido identificar tais interferências no corpus de que dispomos.

Em outras palavras, segmentos sonoros de significantes, ao migrarem da fala do outro para a fala da criança, teriam dado lugar à formação estranha em relação à qual não se pode decidir, com segurança, sobre o sentido ou sentidos a lhes atribuir. Por sua vez, a mãe interpreta jaculalero como chocolateiro e a coloca na cadeia: “você vai no chocolateiro” que produz sentido, tendo o diálogo prosseguido em torno de chocolate. É importante notar também que, um pouco antes nessa mesma sessão de gravação, a criança produz, espontâneamente, chocolateiro e chocolate, conforme mostra o episódio que se segue:

Episódio 3 

Assim, ao decifrar a produção estranha jaculalero, a mãe a teria associado a chocolateiro, ao que tudo indica, por uma semelhança sonora; no entanto, como se pode notar, dessa associação teriam participado tanto a (suposta) cadeia “Eu vou no X”, como as produções infantis anteriores chocolateiro (“...; olha/chocolateru”) e chocolate (“cê tem chocolati aí). Os prováveis efeitos dessas produções infantis sobre a aproximação sonora entre jaculalero e chocolateiro, nessa relação dialógica, estariam apontando, então, para uma diferença, na interpretação materna, entre o episódio (2) e o episódio (1) do qual convém lembrar a nítida predominância da associação sonora na escuta da mãe para a fala infantil.

Nos dois episódios recortados, podemos dizer que a fala infantil cifra o significante - ou melhor, realiza, no significante da fala materna, uma operação de ciframento, na medida em que traz à tona a letra -no sentido lacaniano do termo- que constitui/suporta esse significante. Para Lacan (2003), a letra é aquilo que liga o simbólico (o significante) ao buraco, isto é, liga o significante ao real do furo, à falta de sentido. A letra, nessa perspectiva, possui a dimensão de equívoco homofônico que rompe, desfaz a estabilidade do sentido. Desse modo, o significante, ao sair da cadeia verbal materna, é esvaziado de sentido, deixando vir à luz sua dimensão de equivocidade homofônica, ou seja, sua dimensão de letra. Nessa perspectiva, a homofonia liga o simbólico ao real (liga o significante à falta de sentido), na medida em que fura o significante, desestabilizando-o. Por sua vez, ao desestabilizar o significante, ou a cadeia de significantes, coloca em questão a aparente estabilidade dos sentidos que dela advêm, isso é, traz à tona a desestabilização inerente ao significante ou, dizendo de outro modo, traz à tona a condição do significante de poder, em qualquer momento, por meio de seu potencial homofônico, desestabilizar um discurso.

No caso do deciframento, a escuta do outro para o equívoco homofônico da criança fez com que a mãe associasse homofônicamente -embora de formas diferentes nos episódios (1) e (2)-, a letra da fala infantil a um significante da língua constituída, isto é, fez com que ela transformasse a letra em um significante entre outros que se articulam, que se encadeiam por uma relação diferencial que produz o sentido. Em (1), essa associação homofônica pode ser indicada, por exemplo, quando, em virtude de uma semelhança sonora, a mãe transforma ada em água, na cadeia: “você quer água?” Por sua vez, em (2), podemos indicar uma associação homofônica - que se mostra, como foi dito, diferente da anterior -, quando a mãe escuta chocolateiro em jaculalero que é introduzido na cadeia: “Ah! [Você vai] no chocolateiro”.

É importante realçar que Figueira (2011) se confrontou com jogos sonoros que demandam a interpretação do outro, fornecendo indicações do funcionamento linguístico desses jogos, na fala de crianças com idades superiores às da criança cuja fala constitui os episódios deste artigo.

4. Considerações finais

Pretendemos, com os dois episódios analisados, destacar alguns aspectos da proposta assumida: a fala infantil, com sua estrutura de enigma, consistiria em uma cifra endereçada ao outro (a mãe) que procuraria decifrá-la. Teríamos, portanto uma relação entre cifra (ou ciframento) e deciframento que assumiria diferentes formas.

Pôde-se supor, então, que seria uma operação da letra que sustenta tanto o enigma, quanto o seu deciframento, mas os sustenta com uma inversão de movimento: do significante à letra, no enigma, e da letra ao significante (ou à cadeia de significantes), no deciframento da mãe para o enigma.

Podemos propor que, nos jogos sonoros infantis, a letra é revelada, enquanto que, na cadeia da fala materna, ela é apagada, ou melhor, é encoberta. Dizendo de outro modo, na escuta da mãe e do investigador para esses jogos, haveria um retorno da letra, o que provocaria, no caso da mãe, uma contínua recondução do apagamento/esquecimento da letra (expressão de Pommier 2004), por meio da formação de cadeias de significantes.

Com fundamento em Allouch (1995), podemos dizer ainda que o deciframento do enigma da fala infantil, ao passar pela letra lacaniana, consistiria em uma transliteração, isto é, uma transformação (inconsciente), na escuta da mãe, de um registro - o do equívoco homofônico - em outro registro - o do significante. Por sua vez, no caso do enigma da fala da criança, também se trataria de uma transliteração na direção inversa, ou melhor, uma transformação, na escuta da criança, do registro do significante no registro do equívoco homofônico.

Para finalizar, retomemos a questão da flexibilidade pragmática da interpretação em aquisição de linguagem formulada na Introdução deste artigo. Com fundamento no que foi discutido, podemos propor que, nos dois episódios analisados, a criança lança um enigma para o outro decifrar, havendo sido indicada uma diferença na interpretação materna, em função do contexto relacional em que se incluem os diferentes jogos sonoros produzidos pela criança. Dizendo de outro modo, propomos que a denominada operação da letra ocuparia um lugar fundamental na passagem do som ao significante; no entanto, essa operação ocorreria com diferenças em função das mudanças na relação entre a fala infantil e a fala da mãe, durante a constituição da criança como falante. Nessa perspectiva, convém relembrar que tentamos apenas dar uma indicação dessa flexibilidade, não tendo sido, portanto, nossa pretensão, conforme anunciado antes, considerar o lugar que essa flexibilidade ocupa na trajetória linguística da criança. Esse lugar fica, portanto, como uma questão relevante a ser investigada em estudos futuros. Assumimos, então, que dar continuidade à investigação da flexibilidade pragmática da interpretação do outro para os jogos sonoros infantis, focalizando não apenas os efeitos desses jogos sobre as diferenças na interpretação, mas também os efeitos de diferentes interpretações sobre a escuta da criança, lançaria um pouco de luz sobre mudanças que neles ocorreriam, ou melhor, sobre o percurso de atualização do som em significante, na fala infantil, durante a constituição do falante.

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2A fala dirigida ao bebê pela mãe foi traduzida como manhês, no português brasileiro. No caso do inglês parentese, trata-se da fala dirigida ao bebê pelo adulto cuidador ou pelo adulto em geral.

3Optamos por denominar as produções sonoras infantis pela expressão entidades sonoras, conforme usada por Pommier (2007).

4Vale notar que o quadro conceitual saussuriano fornece suporte à investigação de manifestações sonoras, na fala da criança, realizada por pesquisadores na linha inaugurada por Cláudia de Lemos.

5Em francês: Les musiciens produizent les sons et les grainitiers les vendent.

6Embora o exemplo e a nota não sejam atribuídos ao genebrino, mas sim aos editores do CLG, autores como Testenoire (no prelo) mostram que Saussure concebeu esse terceiro critério de formação de grupo associativo.

Nota de autoría: Glória Maria Monteiro de Carvalho é a única responsável pela elaboração completa desta pesquisa.

1Uma versão previa de este texto foi apresentada na XVIII ALFAL - 2017 e faz parte de Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq.

Recebido: 19 de Março de 2018; Aceito: 30 de Setembro de 2018

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