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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.35 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20190017 

Artículos

Significar para se instaurar na língua materna: vestígios da reflexão da criança na linguagem1

Signifying to establish oneself in the mother tongue: vestiges of child’s thinking in language

Carmem Luci da Costa Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-6036-5285

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, clcostasilva@hotmail.com


Resumo:

Este trabalho tem como objetivo responder à seguinte interrogação: como as propriedades de reconhecimento e de compreensão, envolvidas na relação entre língua e discurso, atuam para a integração entre forma e sentido no ato de aquisição da linguagem?

Para responder ao questionamento, são discutidos os desdobramentos da noção de significação em Benveniste (1995, 1989) para, após, serem analisados recortes de um fato de aquisição da linguagem de uma criança. A comunicação intersubjetiva envolve a significância do discurso, relacionada à capacidade de compreensão -fundamental na aquisição da linguagem para que a criança e o outro atribuam sentido e referência aos discursos-; e a significância do signo, vinculada à necessidade de reconhecimento pela criança e por seu interlocutor de formas instanciadas no discurso como pertencentes à língua ou como potencialidades para tal. Os recortes mostram que, ao lidar com o reconhecimento e a compreensão, a criança se situa como intérprete da língua-discurso.

Palavras-chave: aquisição da linguagem; enunciação; significação

Abstract:

This study aims to answer the following question: how do recognition and understanding properties, involved in the relationship between language and discourse, act towards the integration between form and meaning in the act of language acquisition?

In order to answer the question, the unfolding of the notion of signification in Benveniste (1995, 1989) is discussed, to then analyze excerpts of facts related to the language acquisition process of a child. Intersubjective communication involves the significance of discourse, related to the act of understanding - essential in language acquisition for the child and the other to attribute meaning and reference to their discourses; and the significance of the sign, associated with the need that the child and their interlocutor recognize the forms instantiated in the discourse as belonging to the language or as potentialities of such. The excerpts show that, in dealing with recognition and understanding, children situate themselves as interpreters of language-discourse. 

Keywords: acquisition; enunciation; signification

1.Introdução

Neste trabalho, tenho como objetivo, a partir de uma perspectiva enunciativa, responder à seguinte questão: como as propriedades de reconhecimento e de compreensão, envolvidas na relação entre língua e discurso, atuam para a integração entre forma e sentido no ato de aquisição da linguagem?

Os estudos em aquisição de linguagem, em sua constituição, apresentam dois compromissos (Silva 2009): o compromisso com o teórico (o ponto de vista interno da pesquisa) e o compromisso com o empírico (a fala da criança). A junção desses dois compromissos produz um saber (um objeto) para o campo aquisição de linguagem, que se coloca em relação de diferença com outros saberes desse campo, conforme formula M. T. Lemos (2002: 97):

É difícil falar da aquisição de linguagem de um modo “geral”, na medida em que esta área reúne hoje pesquisas muito diferentes entre si. Pode-se até perguntar, no estado atual de coisas, se seria legítimo supor que existe algo que seja realmente partilhado por todos os projetos. De qualquer modo, ao menos uma coisa pode-se afirmar: não é o objeto que é compartilhado. O objeto da pesquisa alinhada à gramática gerativa não pode ser o mesmo da construtivista, que por outro lado é diferente de uma orientação mais behaviorista, e assim por diante. Mas, reconhecida essa diferença (entre real e objeto), não é necessário supor que, por não haver um objeto partilhado, não haja mais nada em comum. Ao contrário, esse algo existe, é bastante simples e até bem sabido: é que todos têm um compromisso com a fala da criança.

É pela diferença que cada estudo se torna particular e, na particularidade, contribui com o campo aquisição de linguagem.

O ponto de vista teórico que tenho assumido para falar do empírico da aquisição de linguagem (a fala da criança) vincula-se à abordagem de linguagem de Émile Benveniste (1995, 1989)2, sendo a partir desse olhar que observo como criança e outro se modificam no ato da aquisição de linguagem. O presente estudo traz recortes de um fato de linguagem em que a criança se situa como intérprete da língua-discurso, fenômeno que revela o modo como se vale da enunciação para comentar a enunciação. A reflexão proposta no estudo ancora-se na ideia de uma antropologia da enunciação (Flores 2013, 2015) e na propriedade metalinguística presente na reflexão semiológica de Benveniste (1989), relacionada à sua abordagem enunciativa.

Ao flagrar, em um fato de linguagem de uma criança de dois anos e dez meses -acompanhada longitudinalmente dos onze meses aos três anos e meio de idade- os comentários que ela produz na busca de compreensão do modo como uma forma pode se integrar a determinado sentido em suas relações discursivas, deparo-me com o fato de que esses comentários parecem situar a criança diante de duas problemáticas: a de dar-se conta de sua condição humana de falante e a de lidar com a dupla significância da língua (como sistema de valores intralinguísticos e como discurso).

Para realizar a discussão proposta, apresento a reflexão benvenistiana sobre significação para, após, pensar sobre os movimentos da criança na língua-discurso em seu trabalho com/na língua e com/no discurso para integrar forma e sentido em suas enunciações. Por fim, concluo que as propriedades de compreensão e de reconhecimento possibilitam à criança analisar a língua via discurso do outro -o fato de o interlocutor mobilizar a língua de determinado modo- e promover modificações em seu modo de enunciar. Assim, ao lidar com o reconhecimento e a compreensão, a criança se situa como “intérprete” (Flores 2015) da língua-discurso.

2. A significação na língua-discurso: movimentos na passagem de locutor a sujeito

Este estudo busca explicar os modos de presença da criança na enunciação por meio da interdependência entre as ações de teorizar e de analisar. Nessa interdependência, busco responder, teórica e analiticamente, à pergunta do trabalho, refletindo sobre a significação nas dimensões da língua e do discurso na abordagem de linguagem de Benveniste (1995, 1989) com a exploração das relações entre forma e sentido nos domínios do signo e do discurso e com a discussão sobre a relação entre indivíduo e sociedade instanciada na comunicação intersubjetiva.

Como a significação tem desdobramentos em várias dimensões na obra de Benveniste, a abordagem da língua em emprego proposta neste estudo adota uma perspectiva de leitura da obra do linguista (Flores 2013), com a seleção de textos que envolvem a discussão sobre os seguintes aspectos: sobre a relação constitutiva homem-linguagem, sobre a integração entre os domínios do signo e do discurso, sobre os aspectos intersubjetivos da língua-discurso e sobre a discussão acerca da relação indivíduo-sociedade implicada na passagem de um domínio a outro.

A linguagem é, para Benveniste, o elo entre os homens, visto não haver relação natural, imediata e direta entre o homem e o mundo, nem entre o homem e o homem. Há um aparato simbólico para intermediar essa relação: a linguagem. Como sistema simbólico por excelência, a linguagem realiza-se em uma língua particular, inseparável de uma sociedade com sua cultura.

Essa capacidade simbólica está na base da significação como condição da integração humana à linguagem, pois, conforme o linguista, “Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a.” (Benveniste 1989: 285). Como consequência dessa formulação, a relação entre linguagem e homem é de interdependência (ou constitutiva), por não ser possível conceber o homem fora da linguagem e nem a linguagem independentemente do homem. Ou seja: a linguagem é definida no homem e o homem na linguagem. O pressuposto antropológico transversal a essa abordagem linguística de que o homem está na língua tem me encaminhado, a exemplo de Flores (2013), a considerar a abordagem benvenistiana como uma antropologia da enunciação, porque o homem enuncia, e, nessa condição, é difícil delimitar “onde começa a linguagem e como se delimita o homem”, problema com o qual Benveniste (1995: 67) fecha o texto “Comunicação animal e a linguagem humana”.

É na criança que emerge e se revela, de modo inusitado, essa condição constitutiva do humano de estar indissociavelmente ligado à linguagem: como a criança encara a sua condição humana de falante? Essa questão fica por ora suspensa para ser retomada mais adiante. Benveniste busca fundamentar o princípio de indissociabilidade homem-linguagem recorrendo à aquisição da linguagem, quando fala do nascimento da criança na língua de uma dada sociedade com a sua cultura: “Cada locutor fabrica a sua língua, como ele a fabrica? Esta é uma pergunta essencial, já que ela domina o problema da aquisição da linguagem.” (Benveniste 1989: 19). Esse problema é encarado pelo linguista como um fenômeno ligado à natureza humana: “A criança nasce em uma comunidade linguística ... o que ela aprende, na verdade, não é o exercício de uma faculdade “natural”, é o mundo do homem.”. (Benveniste 1989: 20,21). O autor complementa essa discussão antropológica acerca da relação homem-linguagem novamente recorrendo à aquisição da linguagem, ao refletir sobre o nascimento humano em uma língua:

E se digo que o homem não nasce na natureza, mas na cultura, é que toda criança e em todas as épocas, na pré-história a mais recuada como hoje, aprende necessariamente com a língua os rudimentos de uma cultura. Ne nhuma língua é separável de uma função cultural. Não há aparelho de expressão tal que se possa imaginar que um ser humano seja capaz de inventá-la sozinho. As histórias de língua inventada, es pontânea, fora de qualquer aprendizagem humana são fábulas. A linguagem tem sempre sido inculcada nas crianças pequenas, e sempre em relação ao que se tem chamado as realidades que são realidades definidas como elementos de cultura, necessariamente (Benveniste 1989: 24).

Essa passagem, presente em Problemas de Linguística Geral II, dialoga com a reflexão sobre homem-linguagem-cultura anteriormente apresentada pelo linguista em Problemas de Linguística Geral I, ao discutir a dimensão simbólica da linguagem e a sua relação com a língua e a sociedade, consideradas -tanto língua quanto sociedade- heranças, segundo reflexão apresentada no seguinte excerto:

O fato de existir semelhante sistema de símbolos ,a linguagem, revela-nos um dos dados essenciais, talvez o mais profundo, da condição humana: o de que não há relação natural, imediata e direta entre o homem e o mundo, nem entre o homem e o homem. É preciso haver um aparato intermediário, esse aparato simbólico, que tornou possíveis o pensamento e a linguagem. Fora da esfera biológica, a capacidade simbólica é a capacidade mais específica do ser humano.

Resta apenas tirar a conclusão dessas reflexões. Estabelecendo o homem na sua relação com a natureza ou na sua relação com o homem, pelo intermédio da linguagem, estabelecemos a sociedade. Isso não é coincidência histórica, mas encadeamento necessário. De fato, a linguagem se realiza sempre dentro de uma língua, de uma estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e particular. Língua e sociedade não se concebem uma sem a outra. Uma e outra são dadas. Mas também uma e outra são aprendidas pelo ser humano, que não lhes possui o conhecimento inato. A criança nasce (...) na sociedade dos homens (Benveniste 1995: 31, grifos do autor).

É nessa dimensão simbólica com a propriedade de significar da linguagem e, portanto das línguas que Benveniste situa a significação, atrelada às faculdades de reconhecimento dos signos de uma dada língua e de compreensão do discurso (Benveniste 1989: 66). Assim, o tema da significação - transversal às noções de linguagem, língua, enunciação e discurso - apresenta vários desdobramentos na obra de Benveniste (1995, 1989) e constitui diferentes relações de interdependência entre forma e sentido: 1) na distintividade (a que essa forma se opõe na relação com outra? Ser distintivo é ser significativo); 2) no reconhecimento (essa forma tem sentido no uso?) e 3) na compreensão da ideia global da frase/do discurso e do emprego da palavra na frase/no discurso (qual o sentido das formas sintagmatizadas nesse discurso?). As propriedades de distintividade e de reconhecimento estão vinculadas à relação forma-sentido no domínio semiótico (do signo). Já a compreensão é a propriedade que envolve a relação forma-sentido no domínio semântico (do discurso). Como sistema semiológico, a “língua é o único sistema em que a significação se articula assim em duas dimensões” (Benveniste 1989: 66)3.

É nesse jogo entre distintividade, reconhecimento e compreensão que a criança (dimensão antropológica) se situa como locutor (dimensão linguístico-enunciativa) para significar e comunicar com e para o outro.

Desse modo, ela faz a passagem para sujeito de/na linguagem -efeito da enunciação- nessa constante integração dos domínios semiótico (do signo) e semântico (do discurso), pois somente “o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo.” (Benveniste 1989: 229). No ato de enunciação, a língua torna-se discurso e o locutor, sujeito. Ocorre, assim, a inserção do discurso nas práticas humanas e a inclusão do indivíduo na sociedade.

Adotar essa visão de linguagem, em que as realizações humanas -individuais e coletivas- somente podem ter existência porque estão ligadas ao exercício do discurso, implica considerar que a relação que cada locutor instaura com o outro, com o mundo e com outros sistemas simbólicos da sociedade torna-se possível por meio da língua como interpretante de outros sistemas, da sociedade, de textos/obras e, inclusive, dela própria.

É na propriedade metalinguística que Benveniste situa essa condição da língua como interpretante, já que, por comportar simultaneamente a significância dos signos e a significância da enunciação, a língua pode criar um segundo nível de enunciação, “em que se torna possível sustentar propósitos significantes sobre a significância.” (Benveniste 1989: 66). Nesse contexto, em que está presente a propriedade metalinguística, o locutor, em sua passagem a sujeito, vale-se da língua no discurso para comentá-la também no discurso.

Esse discurso, que retoma outro, dobra-se, constituindo uma enunciação dupla. Tal relação de interpretância, de base discursiva, coloca em destaque o falante (Flores 2015: 91). Nessa perspectiva, Flores (2015) defende que o fato de o locutor poder falar da língua com a língua confere-lhe um estatuto muito singular:

ele é uma espécie de comentador do que ouve e mesmo do que diz. E não se trata de um comentário qualquer, mas de um recurso do qual o falante se vale para dizer algo que a língua fora da propriedade “meta” não permite (Flores 2015: 91).

O autor acredita ser esse comentário que o falante faz o que lhe permite ocupar uma posição que instancia um sentido para a materialidade significante da língua. O falante, ao falar da face significante da língua, torna-se, assim, um intérprete da enunciação. Esse movimento se situa em um segundo nível de enunciação, nas palavras de Benveniste, e está relacionado, segundo Flores (2015), à percepção.

Neste estudo, desloco a reflexão de Flores para o contexto da aquisição de linguagem, pois me interessa observar o movimento de significação realizado pela criança, quando esta se coloca como intérprete da língua-discurso do outro para se movimentar em sua própria língua-discurso, fenômeno de que passo a tratar no item seguinte.

3. A criança como intérprete da condição de falante

“Falamos com outros que falam, essa é a realidade humana” (Benveniste 1995: 65). Essa afirmação, enunciada por Benveniste no texto “Comunicação animal e linguagem humana”, presente na obra Problemas de Linguística Geral I, carrega o pressuposto antropológico transversal à sua abordagem linguística de que o homem está na língua, conforme discussão apresentada na parte anterior deste trabalho.

No fato de linguagem a seguir, retirado de Silva (2009), apresento recortes que registram o instante em que a criança se depara com a sua condição de falante4. Tal percepção ocorre por meio de um movimento metalinguístico -portanto, de reflexividade- que realiza na enunciação.

É importante destacar que a propriedade da reflexividade da língua presente nas manifestações da criança é contemplada há algum tempo; Rojas Nieto (2002) explora a questão no contexto de aquisição do espanhol mexicano; no Brasil, a temática é amplamente explorada nos estudos de aquisição do português como língua materna por Figueira (2003, 2004, 2005, 2011a, 2011b). A partir da perspectiva de Authier-Revuz e inserida na abordagem interacionista da aquisição de linguagem, proposta por De Lemos, Figueira argumenta que esse fenômeno, nas manifestações da criança, aponta para a mudança de posição do estado de infans ao estado do sujeito que fala e se ouve ao falar, sendo, assim, capaz de retomar seu enunciado, reformulá-lo e reconhecer a diferença entre a sua fala e a do outro.

Atrelados à reflexão de Benveniste, vale apontar ainda os estudos de Stumpf (2010, 2011), nos quais a autora, ao tratar da metalinguagem na aquisição da linguagem, também utiliza a noção de interpretância, presente no texto “Semiologia da língua”, para conceber que a metalinguagem é uma propriedade da língua que permite, no discurso, a criação de referência por meio de operações de retorno. A metalinguagem, para a autora, nesse sentido, diz respeito a um segundo nível de enunciação voltado para um dizer anterior, que é tomado como referência para uma nova enunciação.

Stumpf, ao observar os dados de FRA -criança que faz parte do corpus de aquisição de Silva (2007)-, verifica que essa criança, em seu ato de aquisição, juntamente com o outro, realiza um constante retorno sobre a língua atualizada no discurso para ajustar a referência discursiva por meio de três operações: 1) dissociação da palavra do discurso do outro e integração ao seu para ajustar a relação forma/sentido a fim de estabelecer referência no discurso; 2) repetição do seu próprio dizer para enfatizar a sua referência discursiva e 3) insistência no próprio dizer, marcando a diferença de sentido entre a sua fala e a fala do outro.

Neste artigo, sou instigada a pensar como o retorno da criança ao discurso do outro pode levá-la a problematizar a sua condição humana de ser falante.

O fato de linguagem de FRA, criança acompanhada longitudinalmente dos onze meses aos três anos e quatro meses, é um convite para pensarmos sobre tal problemática.

Para tanto, serão realizados recortes desse fato de linguagem, retirado do livro A criança na linguagem: enunciação e aquisição (Silva 2009). Tal fato de linguagem é revisitado agora para respondermos à questão formulada neste estudo.

Quadro 1 

A surpresa da criança diante da possibilidade de uma bolsa falar, presente nos dois questionamentos (“é? e ela fala?”), revela o seu “gesto” reflexivo sobre a relação indissociável homem-linguagem e a dissociabilidade bolsa-objeto/linguagem, isto é, sobre a impossibilidade de um objeto inanimado ser dotado de fala. Que solução a criança procura para o problema de a “bolsa falar”?

Quadro 2 

Para um não humano falar, é preciso acionar um botãozinho.

É a criança se situando em sua condição de falante, ao colocar a linguagem no âmago da espécie humana, para buscar solucionar a problemática em que se insere na interlocução com o outro. A percepção do dizer do outro suscita a dúvida em um movimento de retorno ao dito anterior para avançar e desdobrar, no fio do discurso, a questão da “bolsa que fala”, como vemos na sequência.

Quadro 3 

Esse episódio, em que a criança problematiza o fato de uma bolsa falar, emerge como um efeito de sua presença na enunciação e, portanto, na língua-discurso. Trata-se da condição de interpretante da língua e da condição do falante como intérprete/analista/comentador na e pela língua. Ao falar da língua por meio da língua inscrita no discurso, o falante situa-se em um segundo nível de enunciação, em que sustenta propósitos significantes sobre a significância (Benveniste 1989). Quando se situa nesse lugar, de comentar a língua por meio da língua, o locutor cria um segundo nível de enunciação, em que a percepção e a emissão parecem colocar em foco os avessos5 do ato enunciativo ligado ao aspecto vocal: o próprio discurso torna-se o lugar de comentário dele próprio e da língua nele atualizada, assim como também o discurso possibilita a criação de novos discursos.

Interessante destacar nesse recorte é a repetição da forma “quilia”, em que a criança supõe uma bolsa desejante. Essa forma verbal volta no final do recorte também repetidamente, não mais no passado, mas no presente. Essa repetibilidade de “querer” vinculado à bolsa mostra que o agenciamento de formas pela criança direciona o sentido, visto, na sintagmatização do discurso, a ação que essas formas exercem sobre outras, no diálogo entre bolsas, parece evocar um desejo da criança projetado na bolsa: o de ir para a casa da tia. Afinal, a bolsa está relacionada à FRA pela forma “ minha”: “não oviu a minha bosa ?”, diz FRA. Se a bolsa de CAR, conforme recorte enunciativo 1, está em relação a CAR também pela forma possessiva de primeira pessoa, se também manifesta sensações (“gostar”)e se também “diz” (“purque ela só gosta de ir lá pra minha casa a minha bolsa me dissi issu hoje”, conforme dizer de CAR), FRA, pelo retorno e percepção do dizer de CAR no fio do discurso, também agencia formas para colocar sua bolsa em relação a si e para mostrar que sua bolsa tem “querer”: “quilia ir pa tua casa e quilia ficá na tua casa”, diz FRA. Se a bolsa de CAR acompanha CAR, então, FRA, ao enunciar que sua bolsa “quer” ir para casa de CAR, traz a implicação de que ela (FRA) também terá que ir para casa de CAR.

Parece-me que FRA, no jogo de formas sintagmatizadas, traz o desejo dela em conjunção com o da bolsa, para a qual concede voz e “querer”, também para falar de “si”. Por isso, FRA insere no discurso um convite da bolsa de CAR (“tu qué i pa minha casa bosa?”) à sua bolsa, acionando esse “querer” em sua bolsa. É o diálogo entre bolsas em uma comunicação intersubjetiva que ocorre no interior de outra comunicação intersubjetiva, a que envolve FRA e CAR. Esse mecanismo em que a enunciação de desdobra em duas realiza-se na produção do discurso, envolvendo o que Benveniste (1989: 229) nomeia como “intencionado”, a atualização linguística de um querer dizer que emerge no fio do discurso e, parece, nesse caso, direcionar, argumentativamente, os sentidos para a busca de adesão do outro. É essa adesão que FRA parece suscitar de CAR.

A condição metalinguística está relacionada à dupla significância da língua - no domínio do signo e no do discurso -, com as suas respectivas propriedades de reconhecimento e compreensão, necessárias, conforme Benveniste (1989), ao nosso nascimento em uma língua materna, inseparável da cultura de uma sociedade. É porque a criança está na língua que essas relações de significação comparecem em seus movimentos de retorno na enunciação.

Entrar nessas diferentes relações de significação requer dar relevo à propriedade metalinguística da própria língua, na qual a criança está imersa.

Por isso, torna-se afetada pelo seu funcionamento, produzindo, na enunciação, comentários sobre as formas atualizadas no discurso. Esses comentários deixam vestígios de sua dupla posição na linguagem enquanto falante, o de quem escuta e o de quem produz discurso. Por meio da interdependência dos atos de emissão e de percepção, instaura-se, assim, em um lugar enunciativo, que a torna locutor e co-locutor. Estar nessa dupla posição lhe permite instanciar um saber sobre a língua e o discurso nas relações interlocutivas.

4. A criança como intérprete na/da língua-discurso: movimentos de significância

Como a criança chega ao mundo de falantes, depara-se com os universos da língua e do discurso, engendrados a cada ato de enunciação. Ao considerar a língua como domínio semiótico e a língua como domínio semântico -ambos considerados na forma e no sentido-, Benveniste (1989) prevê a língua enquanto relação de signos no universo intralinguístico e a língua enquanto atividade discursiva. Considerar o domínio da língua em ação implica conceber referência à situação de discurso e à atitude do locutor. No domínio semiótico, um signo tem como critério o reconhecimento por aqueles que usam a língua. Por essa razão, o linguista defende o seguinte princípio discriminador: “tudo que é de domínio semiótico tem por critério necessário e suficiente que se possa identificá-lo no interior e no uso da língua” (Benveniste 1989: 227). Já no domínio semântico, que resulta da atividade do locutor que coloca a língua em ação, Benveniste considera o sentido global da frase como a sua ideia e o sentido da palavra como o seu emprego.

Cada um dos domínios apresenta distinta função: no domínio semiótico, significar no interior da língua; no domínio semântico, comunicar no discurso. São as propriedades de reconhecimento (tem sentido na língua?) e de compreensão (qual o sentido no discurso?) que consideramos estar engendradas nos retornos que FRA opera sobre o discurso, visto não compreender o fenômeno de uma bolsa dizer algo, fato que a encaminha a retornar sobre a forma “disse” de CAR para formular o questionamento: “e ela fala?”. Nesse “estranhamento”, a criança parece não reconhecer, no semantismo de “dizer”, um sujeito sintático não animado, uma bolsa. Por isso, aposta no “botãozinho”, mas, diante da negativa do interlocutor de existência de botãozinho, FRA resolve seguir as pistas do discurso e também dar voz à bolsa: “a tua bolsa falava qué i no meu cólu”. Como seu interlocutor, que está na posição de um suposto saber sobre a língua, concede fala à bolsa em seu enunciado, a criança, por estar na enunciação com esse outro, retorna sobre os dizeres que emergem no fio do discurso para tomá-los como objeto de reflexão, tornando-se intérprete da língua em discurso para mudar seu lugar de falante ao também dar voz à bolsa.

Ao se deparar com a bolsa falante em ato, a criança também encontra o poder fundador da linguagem, “que instaura uma realidade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que ainda não existe, traz de volta o que desapareceu” (Benveniste 1995: 27).

Para um não humano falar, é preciso passar pela fala de um humano. Para o humano dar voz ao não humano, é também preciso lhe conceder a propriedade de diálogo, “a vocação para praticar (...) o intercâmbio de palavras” (Hagège 1985: 10). Essa é a discussão que Benveniste (1995) estabelece no texto “Comunicação animal e linguagem humana”, ao dizer que as abelhas não produzem mensagem a partir de outra mensagem e que, portanto, não conhecem a condição de diálogo, que é constitutiva da linguagem humana.

Tal condição de diálogo a criança concede às bolsas: “ah mais a tua bosa também qué cólu ela a tua bosa diz assim pa tu/ pa minha: tu qué i pa minha casa bosa? A tua bosa dizia assim quandu eu tava aqui na minha casa”. A análise operada em ato permite à criança, na significância do discurso, não somente compreender que a bolsa pode falar, como também produzir um diálogo entre as bolsas. Com isso, FRA atualiza um segundo nível de enunciação em uma espécie de metassemântica, que se se realiza sobre a semântica da enunciação, com a criação de uma nova realidade de discurso no interior de seu discurso.

No episódio em questão, ganha saliência justamente o fato de que, para tentar a compreensão do sentido do discurso -algo da ordem da singularidade-, a criança procura o reconhecimento do sentido das formas no domínio semiótico (na língua) e, ao não reconhecer (ou “estranhar”) o semantismo na sintagmatização das formas “bolsa” e “dizer” no enunciado do interlocutor (“a minha bolsa me dissi”), realiza, na enunciação, avanços e recuos no fio discursivo em um constante questionamento ao interlocutor para atualizar em seu discurso outros verbos de dizer em sintagmatização com bolsa: “ a tua bosa a tua bosa falava qué ir no meu cólu”; “e ela gritandu assim AI = grita”. Dessa maneira, questiona e reformula o dizer do outro, assumindo o fato de que, em seu discurso, uma bolsa também pode falar e gritar.

Essa sintagmatização de palavras no discurso de FRA se produziu a partir da sintagmatização presente no discurso do outro (“a minha bolsa me dissi”), pois as formas atualizadas no discurso agem umas sobre as outras e “retém senão uma pequena parte do valor que tem enquanto signo” (Benveniste 1989: 234). Que outros valores as palavras carregam na produção de sentidos no discurso? Para responder a esse questionamento, recorro a ideia de Benveniste de “valores culturais impressos na língua”. Essa língua não seria somente intralinguística, mas uma língua-discurso, que carrega os valores de uma sociedade em uma relação semiológica de interpretância, conforme formulação defendida em “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”: a língua contém a sociedade. Esse “faz de conta” da criança, que insere um outro nível de enunciação, com bolsas falantes, mostra a sua inscrição no sistema simbólico de valores culturais de sua sociedade. Para algo/alguém não humano falar, é necessário usar botões, por isso, a criança endereça uma interrogação (“Ondi péta o botãozinho?”). Esse discurso carrega os “rudimentos” de uma cultura tecnológica impressos em sua língua. Nesse sentido, suscita uma resposta do outro, via função de interrogação, para poder continuar a referir no fio do discurso e estabelecer a comunicação intersubjetiva por meio de uma realidade discursiva que toma o enunciar como possibilidade para criar um mundo imaginário.

É pela busca de compreensão do sentido do discurso que a frase se torna analisável pelo locutor. O início da análise linguística se dá na frase e no exercício de discurso, formulação defendida por Benveniste em “Os níveis da análise linguística”: é “no discurso atualizado em frases que a língua se forma e configura.” (Benveniste 1995: 140). Para que a língua possa ser comentada por quem a utiliza, precisa deixar o universo do semiótico (do signo) para significar a situação enunciativa, certo “mundo” relativo a eu-tu-aqui-agora que se revela no discurso. É pela enunciação que o universo do signo se torna analisável pela criança, a partir de sua percepção, ao evocar um suposto “estranhamento” acerca do reconhecimento do sentido das formas que emergem nesse discurso. Esse suposto “estranhamento” parece funcionar como um convite à análise linguística, em que, pelo discurso e na relação com o outro, a criança produz um saber sobre a língua em uma sintaxe que se semantiza no diálogo enunciativo.

As formas enunciativas do locutor-criança atestam um saber sobre a língua que está em mutabilidade, no entanto essa mutabilidade inclui a ordem da língua e a singularidade da enunciação, o que permite os ajustes na integração forma-sentido na relação interlocutiva. Trata-se do efeito da enunciação do outro sobre a da criança e do efeito da enunciação da criança sobre a do outro, em que a língua comparece tecendo relações e provocando inquietações nos interlocutores.

5. Conclusão

Ao falar da língua com a própria língua, nas enunciações, a criança mostra sua condição de comentador, analista e intérprete do que ouve. E estar nesse lugar de quem diz e escuta provoca novas mudanças na relação da criança com a língua, em função do “desejo de dizer que habita qualquer falante” (Hagège 1985: 259) como possibilidade de reinvenção constante de sua língua-discurso.

O mistério ligado ao poder fundador da linguagem tem no processo de instauração da criança em uma língua um lugar privilegiado, porque revelador da entrada da criança no mundo de falantes da sociedade onde vive com sua cultura. Este trabalho talvez ilustre, ainda embrionariamente, a ideia contida em uma antropologia da enunciação “por mostrar como a cultura está constitutivamente presente na linguagem humana” (Silva e Flores 2015: 147, 148). A FRA, criança comentada/analisada, neste estudo parece dar um testemunho disso. Entretanto, dessa história temos apenas “vestígios” a partir de alguns registros de situações de interlocução da criança, que revelam apenas um recorte desse processo. Como pesquisadora de aquisição, situo-me em um lugar de impossibilidade de acessar essa história em sua completude, visto esse falante, a criança, ser comentado desde um ponto de vista teórico.

Esse saber, ainda que incompleto, torna-se possível por eu estar também imersa na língua com seu poder interpretante, fato que me torna intérprete da língua-discurso da criança em suas relações enunciativas com outro(s).

Referências bibliográficas

Benveniste, Émile. 1995. Problemas de lingüística geral I, Campinas, SP, Pontes. [ Links ]

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1O termo “vestígio” tem inspiração na reflexão do historiador Carlo Ginzburg (1989), que defende o método de pesquisa interpretativo a partir de indícios considerados reveladores à análise.

2As referências às obras de Benveniste (1995, 1989) correspondem, respectivamente, às edições das traduções brasileiras utilizadas neste estudo: Problemas de Linguística Geral I, publicado originalmente em 1966, e Problemas de Linguística Geral II, publicado originalmente em 1974.

3Na abordagem de linguagem de Benveniste (1989, 1995), a frase e a palavra estão no domínio da língua em emprego, por isso, vinculadas ao universo do discurso; diferentemente, o signo está relacionado ao sistema intralinguístico, à língua.

4Vale mencionar que traremos apenas um fato de linguagem de FRA, criança observada longitudinalmente dos onze meses aos três anos e quatro meses, por meio de filmagens (Silva 2007, 2009), justamente por flagrarmos nesse fato enunciativo o instante em que a criança se depara com a sua condição de falante e com o poder da linguagem que “instaura uma realidade imaginária, anima as coisas inertes...” (Benveniste 1995: 27). Esse fato de linguagem é analisado por meio de recortes enunciativos.

5O termo avesso remete à reflexão tributada a Benveniste (2014: 173) na obra Últimas aulas no Collège de France (1968-1969). No contexto dessa reflexão, o linguista estabelece uma relação de homologia entre falar e ouvir/escrever e ler, possibilitando que se trate da interdependência enunciativa entre essas “operações complementares tão estreita e necessariamente associadas que uma é como o avesso da outra”.

Nota de autoría: Carmem Luci da Costa Silva é a única responsável pela elaboração completa desta pesquisa.

Recebido: 20 de Março de 2018; Aceito: 30 de Outubro de 2018

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