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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.35 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20190014 

Artículos

Falas fora de tempo e fora de lugar:Relações conflituosas da criança com a língua materna

Children’s speech out of time and place:On conflictual relationships in the mother tongue

Maria Francisca Lier-DeVitto1 
http://orcid.org/0000-0003-3587-1431

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil f.lier@uol.com.br


Resumo:

Este trabalho discute a problemática da interpretação de enunciados insólitos, de que decorre sua notável inadequação pragmática. O diálogo clínico, locus de deslocamentos do sintoma, é impulsionado pelo encontro tenso entre cadeias faladas conflitantes e pelas posições díspares entre terapeuta e paciente. Frente a falas insistentemente desarranjadas, um clínico vê-se pressionado pela questão do sujeito. Foucault (1980) é pontual: no domínio da clínica, “a articulação fantástica entre saber e sofrimento” é inevitável: a escuta é desafiada pela difícil relação do sujeito com sua fala e com sua condição de falante. O fundo teórico assumido afasta o diálogo como relação dual, intersubjetiva - la langue é terceiro nesta relação. Neste trabalho, de natureza teórica, a discussão é desenvolvida à luz do estruturalismo europeu e assume a hipótese do inconsciente (Freud 1900(1970)), no que diz respeito ao sujeito.

Palavras-chave: falas patológicas; interpretação na clínica; sujeito e linguagem; relação criança-língua materna

Abstract:

This paper discusses the interpretation of symptomatic speech, characterized by a remarkable and perplexing grammatical organization from which its pragmatic inadequacy is derived. The clinical dialogue, locus of symptom displacements, is driven by the hard encounter among conflicting speech chains and the unequal positions between therapist and patient. Faced with insistently disordered speech chains, clinician finds himself pressed by questions on subjectivity. Foucault (1980) is punctual: in the domain of the clinic, "the fantastic articulation between knowledge and suffering" is unavoidable: listening is challenged by subject’s difficult relationship with his speech and his conditions of speaker.

The theoretical background here assumed does not see dialogue as dyadic - la langue is a third element in this relation. In this work, of a theoretical nature, the discussion is developed under the light of European Structuralism assuming, with respect to the subject, the hypothesis of the unconscious (Freud 1900 (1970)).

Key words: pathological speech; clinical speech interpretation; subject-speaker and language. Child-language relation

1.Situando a discussão

A Linguística Científica1 tem raízes no estabelecimento da bifurcação entre língua e fala e na conseqüente eleição da primeira como seu objeto -a “língua-linguística”, como diz Hjelmslev 1948-1980. Para Saussure, que enuncia o primeiro objeto universal da linguagem, la langue, a Linguística “propriamente dita” tem como meta “conhecer o organismo linguístico interno” (Saussure 1916). Fica estabelecida, desse modo, a oposição interno/externo à língua (la langue): “externo” sendo tudo o que esteja na esfera da parole, a face sensível da linguagem, domínio da manifestação sob qualquer modalidade (oral, escrita, sinais); esfera, esta, que está ligada, portanto, ao uso da linguagem.

A Linguística Interna, da Língua, recebe o título de ciência da linguagem, aquela que se atém “à gramática do jogo” (Saussure 1916, 1980). A Linguística Externa, da parole, fica relegada ao espaço do assistemático, do individual/social, do uso da linguagem e à cosideração de fatores externos que podem afetá-lo. Vale sublinhar que a noção de ordem própria/interna da língua está na origem dos dois projetos de Linguística Científica, a saber, tanto no projeto estruturalista representado pela obra de Saussure, quanto no projeto gerativista, representado pelo programa de Chomsky.

A bifurcação da Linguística em dois braços distintos e com tarefas distintas, sugerida por Saussure, foi tacitamente aceita pelos pesquisadores. De um lado, há aqueles que acompanham o ideal de ciência de Saussure e Chomsky, voltam-se para a língua e, de outro, há outros ligados a questões deixadas à margem da ciência da linguagem.

Neste rol estão todos aqueles interessados na significação, na mudança, na aquisição, nas desordens na fala: enfim, quem se interroga sobre a fala/discurso (e o falante). Importa dizer que, na proliferação de estudos e pesquisas sobre a linguagem em uso, têm sido invocados outros camopos como a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia, mas, neles, a ordem própria da língua (la langue) é ignorada. Instaura-se, aí, uma interdisciplinaridade implícita ou explícita e a aplicação ou referência persistente à gramática tradicional, pré-científica.

A inexistência de diálogo teórico entre a Lingüística da Língua e a abordagem da Fala tem consequências; uma delas é que, nos estudos sobre a língua, a fala perde espessura enquanto ocorrência de um falante no tempo e no espaço, e adquire o caráter de exemplaridade e lugar de refutabilidade de regras: aqui, apagam-se o falante e o particular de sua fala já que exemplos e contra-exemplos têm a função de confirmar/infirmar uma hipótese sobre propriedades da língua, a elas se referindo e não ao falante. Também, nos investimentos na fala/discurso/enunciado, perde-se de vista a língua, como disse. Ocorre que a projeção de gramáticas de línguas particulares sobre a fala, gera “higienização” (De Lemos 1982). Uma gramática, sendo resultado de um processo de regularização (de corpora), só pode, em sua aplicação, levar ao apagamento do irregular que emerge na fala.

Neste artigo, a abordagem adotada e discutida2 dá reconhecimento à ordem própria da língua e sua incidência necessária na fala. Nisso reside sua originalidade radical. Falas sintomáticas são “irregulares, insólitas” e, muitas vezes, “ininteligíveis”, mas, afirmo, não ignoram as leis da linguagem (Lier-DeVitto e Arantes 1998, 2006). Tal proposta parte de discussões sobre a Linguística como ciência e a língua como objeto da Linguística, desenvolvidas por Milner (1978, 1989, 2002), que são inspiradas nas reflexões lacanianas sobre a ciência e o sujeito da ciência. Parte, acima de tudo, da proposta de De Lemos (1992, 2002, 2005) sobre a aquisição da linguagem em que o erro é dado de eleição (Figueira 1996) e a mudança é pensada como efeito de deslocamentos da criança numa estrutura -e não como um desenvolvimento gradual e progressivo referíveis a apropriações cognitivas de propriedades da linguagem (De Lemos 1982 e outros).

No Interacionismo “interação” adquire um sentido particular: é triádica e não dual, um vez que la langue joga ali seu papel equivocizante, na operação cega de montagem e desmontagem de segmentos (Lier-DeVitto 1998, De Lemos 1992). O outro é “instância do funcionamento da língua” (De Lemos 1992), ou seja, é “falante” (não mero parceiro social). A criança é um corpo que se faz sujeito a partir de sua captura3 pelo funcionamento da língua. Note-se que, sob tal perspectiva não se supõe à criança seja um saber prévio, seja suficiencia perceptual ou cognitiva que governem seu acesso à linguagem.

Toma-se, assim, distância tanto do indivíduo da espécie (do inatismo) e do sujeito epistêmico/psicológico diante da linguagem como seu objeto. Adota-se a hipótese do inconsciente (Freud 1900 1970).

Brevemente, o Interacionismo teve como ponto de partida o reconhecimento do retorno, nos enunciados da criança, de fragmentos da fala de seu interlocutor. Retirou-se daí a consequência teórica da impossibilidade de atribuir aos fragmentos, que se apresentam na fala da criança, o estatuto de instanciação de um conhecimento sobre a língua. Impossibilidade sustentada, também pelos erros, interpretados como resultado de cruzamentos da fala do outro nos enunciados da criança. Os erros marcam tanto um distanciamento em relação à fala do outro, quanto à própria fala e a impossibilidade da criança de reconhecer a diferença entre a sua fala e a fala de seu interlocutor adulto; “disso decorre que esta proposta teórica põe em xeque, ao mesmo tempo, a percepção (da) e o conhecimento sobre a língua” (Lier-DeVitto e Andrade 2011). Sustenta-se, assim, que a criança é capturada pela língua (já que ela não pode apropriar-se daquilo que a determina)4. As mudanças de posição do sujeito na estrutura implicam o funcionamento da língua, já que elas são apreendidas como efeitos dos processos metafóricos e metonímicos (De Lemos 1992, Jakobson 2010). São eles que regem a relação dos enunciados da criança com o enunciado do outro (na primeira posição), as relações entre enunciados (na segunda posição) e as relações entre fala e escuta na criança (na terceira posição).

O Interacionismo teve desdobramentos substanciais que ultrapassaram o domínio da aquisição da linguagem. Isso porque inclui uma teoria sobre a linguagem (que articula língua e fala) e sobre o sujeito. Por esta razão, novas empirias puderam ser abrangidas uma vez que a relação criança-língua/fala foi lida como relação sujeito-língua/fala. A teorização desenvolvida criou a possibilidade de investigar a natureza da relação de um falante com a língua, a possibilidade de indagar sobre a posição singular de um sujeito nessa estrutura.

Esta foi a direção teórica que tomei para abordar a problemática colocada por outra empiria - aquela que tem estatuto clínico e é recolhida em consultórios fonoaudiológicos: a “fala patológica”, mas não para retê-la em seu estatuto de dado bruto, de coisa-em-si, auto-evidente. O ponto era não homogeneizar o sintoma na categoria “erro” (Lier-DeVitto e Fonseca 2001), mas respeitar e manter sua particularidade interrogante, não redutível a questões contextuais ou interacionais, em sentido estrito.

A clínica foi, neste particular, imperativa. Sim, porque o irregular em falas sintomáticas é indiferente ao contexto, é inflexível, importante, ele escapa à intenção do falante. Falas sintomáticas são uma prisão, elas “não passam a outra coisa” (Allouch 1995, Lier-DeVitto e Arantes 1998), não são maleáveis ao outro, nem às circunstâncias. O falante nada pode fazer para modificar sua fala, para torná-la outra, mais flexível, melhor. Ele não pode reformulá-la para ajustá-la à situação ou ao diálogo. Ora, tais acontecimentos permite que duvidemos do poder da percepção (o falante escuta sua fala destroçada) e da intenção (não há recurso cognitivo que promova mudança nesta “fala em sofrimento”), como disse Fonseca (1995). Abre-se, frente a isso, a possibilidade de refletir a equivocidade da língua, sobre o funcionamento da língua e sua alteridade radical relativamente ao falante, que está na base da não-coincidência entre língua e fala-falante -questão incontornável para uma teoria de linguagem interrogada pela fala (Lier-DeVitto e Fonseca 2012). Como, frente ao sintoma fala, sustentar que o falante seja identificado a um sujeito epistêmico? (Andrade 2003). Bem, ao retirar o falante da posição de sujeito-em-controle da linguagem, pode-se incorporar uma reflexão alinhada à Linguística Científica, admitindo, contudo, que ela foi construída sem se ver obrigada a teorizar sobre o falante; um caminho impraticável para uma teorização que tenha compromisso com la parole - caso do Interacionismo e da Clínica de Linguagem. Enfrentar o erro e o sintoma na fala assume, nesses campos, um caráter essencial e premente e, por consequência, o falante (Lier-DeVitto e Andrade 2011).

2. Falas sintomáticas: inflexibilidade pragmática

A interpretação de falas sintomáticas de crianças é mobilizada, de forma pungente, pela insistência de construções anômalas e inesperadas, que abalam tanto a concatenação da cadeia, quanto diluem ou destroem o que se concebe como “flexibilidade pragmática”. A título de exposição da natureza dessas falas, trago, abaixo, três segmentos de sessões clínicas (T. representa a terapeuta e Cr. a criança):

Quadro 1 

Quadro 2 

Nestes dois segmentos acima, ainda diferentes entre si, fica-se frente a uma manifestação sintomática que mescla construções sintaticamente bem formadas e composições desarranjadas em que a criança e sua fala afastam-se da relação com a fala do outro e se perdem numa trama significante em que pode apreender a suspenção da predominância da operação metonímica (que dá sustentação à articulação temporal da fala e à representação gramatical).

No segmento 1, apreende-se um jogo metafórico, que mobiliza substituições inesperadas em torno do segmento “minha mãe” (minha tia, mãe minha, amigo do meu irmão) e que abalam a posição da criança no diálogo. No segmento 2, a relação com a fala do outro tem uma relação que é, de início, problemática, tangencial. A resposta a “com quem?” chega indeterminada, meramente decorrente da incorporação alienada ao fragmento “com” que se articula a um “isso”, seguido por uma montagem ininteligível “caminharí” (quem sabe, uma aglutinação de algo como “com minha ir..?”). Depois dela, vem um enunciado bem construído que remonta a primeira pergunta da terapeuta, para, subitamente, em seguida, esta fala mergulhar na obscuridade de uma contiguidade sequencial entre fragmentos de difícil interpretação. Nos dois segmentos acima, o “furo” está na própria composição cadeia falada, que é índice da difícil relação da criança com a linguagem. Vejamos, então, o segmento abaixo:

Quadro 3 

Diferentemente dos dois primeiros segmentos, em que há sucessão articulada de tropeços em uma fala que não ganham corpo, e que frustra a expectativa do outro-falante, no segmento 3, os enunciados da menina de nove anos são bem formados, mas surpreendem e interrogam de modo mais forte a condição psíquica da criança: eles expõem uma relação estranha entre o falante e fala/discurso. Ponto importante é assinalar, neste momento, a inutilidade de uma descrição gramatical, categorial: ela não poderia servir de metro para a circunscrição do “patológico” no segmento 3.

Raros são os pesquisadores que têm se interessado pelas violações comunicativas/interacionais provocadas por desarranjos em manifestações linguísticas e aqueles poucos que procuram relacionar falas de crianças ao contexto de enunciação fracassam porque o essencial se perde nas análises: a relação complexa do sujeito com a linguagem.

Falas sintomáticas criam embaraços, ainda que sejam perfeitamente “corretas”. O normal-patológico não é oposição tocada pela ciência, ela é terceira em relação às polaridades correto-incorreto, certo-errado; possível-impossível (Lier-DeVitto 2001, Lier-DeVitto e Arantes 1998, Lier-DeVitto et al. 2007).

Convém, a este trabalho, indicar que, abordagens inspiradas na Pragmática, reconhecem que “formas linguísticas típicas” podem ser inadequadas do ponto vista pragmático e “formas atípicas” podem não violar regras pragmático-discursivas5. Esta situação revela a impossibilidade de demarcação positiva do sintoma na fala e tem deixado à mostra a insuficiência de aparatos descritivos tradicionais. Deve-se admitir que eles não foram idealizados para realizar a distinção entre normal e patológico. Mesmo assim, deve-se perguntar se houve algum lucro decorrente das tentativas de apreensão do sintoma a partir da projeção de instrumentais sobre dados de falas patológicas. Algum ganho se obtém, mas o qual? Obtém-se a localização de algo que fica do lado de fora, fica alojado do lado de fora das descrições (Lier-DeVitto 2006). Essas falas surpreendentes recebem um atestado de existência, mas de existência externa ao campo dos estudos linguísticos tradicionais.

Fato é que falas ditas patológicas são repetidamente faltosas, elípticas, truncadas, formadas por enunciados tortuosos, esgarçados, inconclusos. Elas perturbam a interpretação, ainda que se reconheça certa relação entre os termos que comparecem em contiguidade na cadeia. Essas falas podem ser, como mostrei no segmento 3, “bem formadas”, porém fugidias, estranhas, inaceitáveis do ponto de vista pragmático ou do sentido esperado. Tais características surpreendem o outro e introduzem a questão da singularidade, que nos remete à enigmática fonte subjetiva de tais articulações significantes. Essas falas surpreendentes de crianças soam “fora de tempo”, “fora lugar” e abalam o trânsito dialógico e interpretativo por aprofundarem a dissimetria entre falantes.

Falas sintomáticas impõem desconforto ao sujeito na língua materna, seja porque potencializam, de forma manifesta e explícita, um conflito persistente do falante com sua língua-mãe, seja porque o outro vê sua posição de intérprete interrogada. De fato, o diálogo, é profundamente afetado pelo efeito do acontecimento sintomático. Pode-se dizer que falas sintomáticas situam-se na margem fronteiriça entre “uma língua e uma não-língua” (Vorcaro 2000: 137) - o que produz impacto no outro e na interação. Impasse.

A saída desta situação tem levado estudiosos e clínicos a relacionar o sintoma na fala de crianças a variações no ritmo de desenvolvimento (Bates et al. 1997) e a delimitar o patológico em termos de defasagem inaceitável em relação ao desenvolvimento normal da linguagem. Contudo, como assinalou Arantes, limites acetáveis para as variações individuais não são definidos (Arantes 2007: 221), já que não se vai além de reconhecer que “a fala da criança está fora de tempo”.

3. Fora de tempo, fora de lugar: desafio à interpretação6

Neste texto, destaco um ponto teórico ao refletir sobre interação e comunicação, uma vez que, apesar da dificuldade que essas falas impõem à escuta do outro, elas não inviabilizam o diálogo clínico, nem uma interpretação. Afinal, elas são compostas por segmentos/fragmentos de uma língua materna. Sendo assim, parece-me ser viável levantar uma interrogação sobre aquilo que usualmente se tem entendido por comunicação e questionar, também, sua identificação com diálogo.

Benveniste afirma que reduzir a linguagem a comunicação deveria “nos encher de desconfiança, como toda noção simplista a respeito da linguagem” (Benveniste 1995: 285). Segundo ele, tal simplificação decorre da ideia de que linguagem é convenção. Sob esta ótica, acrescenta o autor, todo enunciado, que fugisse do “acordado, convencionado”, deveria ser logicamente ininterpretável. Nesta perspectiva, portanto, enunciados sintomáticos seriam barreiras à comunicação e à própria interação entre falantes. Benveniste, com Saussure, descarta tal redução da linguagem à função de comunicação porque ela obscurece, obtura o que, na linguagem, é essencial: sua natureza simbólica que permite, por exemplo, desligar comunicação de diálogo.

Levar em consideração a natureza simbólica da linguagem exige discernir entre função e funcionamento da linguagem, quer dizer, entre o Imaginário, que se liga às funções de representação na comunicação, e operações simbólicas, atreladas ao funcionamento da linguagem; operações, estas, que são fontes de equívocos e mal entendidos, como assinalaram Lier-DeVitto e Fonseca (2008). Esta distinção crucial é condição teórica para a retirada da linguagem da posição de acessório material do pensamento imaterial, sustentada pela tradição filosófica e psicológica da concepção de signo. Como assinalou Lahud (1977), atrelar linguagem e representação é reduzir a primeira a “instrumento de comunicação” -tal ligação remete à concepção tradicional de signo, com a qual o signo linguístico de Saussure rompe definitivamente.

Milner (2002: 29) é contundente a este respeito, ele diz: “o modelo saussuriano de signo linguístico é revolucionário”. Os termos significante e significado por meio dos quais Saussure reescreve o signo, implicam mudança conceitual profunda. Nesta reescrita, Saussure dilui a ideia de representação ao redizer a natureza da relação entre eles como sendo de associação entre esferas heterogêneas: associação, esta, que deve ser concebida, como um encontro contingente entre significante e significado e que dá suporte ao tema da arbitrariedade: “o papel característico da língua frente ao pensamento não é criar um meio fônico material para a expressão das ideias prontas” (Saussure 1916(1980: 131)). A língua não é nomenclatura, enfim. A metáfora da onda é especialmente apropriada para iluminar a diferença radical entre representação e associação, sublinha Milner:

Assim como uma onda nasce do encontro da água e do vento, uma entidade linguística só existe pelo encontro entre som e pensamento. Este encontro é o que Saussure denomina, na falta de algo melhor, de signo. Compreende-se, assim, quão afastado Saussure está do modelo clássico: o signo não representa nada; é apenas um ponto de contato entre fluxos (Milner 2002: 39) (ênfase minha).

Quanto à produção de sentido, Saussure oferece a teoria do valor: o sentido emana de relações entre elementos numa cadeia. Dessa forma, ele submete a significação às operações internas do sistema, e destaca, neste ponto, a predominância do jogo simbólico: signo e sentido emergem como efeitos desse funcionamento (De Lemos et al. 2004). A pergunta que interessa levantar neste ponto é: “o que responderia, então, pela comunicação?”, ou seja, pela transmissão de significados e intenções? A resposta de Saussure é desloca-la “para fora”, ou seja, para o espaço não discutido por ele da “cristalização social” (Saussure 1916( 1980: 21)). Trata-se de uma saída precária, como indicou Lahud (1977), porque Saussure remete a comunicação para um domínio externo a la langue -para a esfera de la parole. A ideia de comunicação ficou, assim, intocada, interrogada, no campo da Linguística da língua -foi questão deixada à parte como irrelevante, como menos importante.

O problema teórico da comunicação é retomado na Psicanálise. Lacan recolhe a lição de Saussure de que não há sinonímia e dilui a dicotomia língua e fala ao postular o conceito de Outro. Ele também revisita criticamente a polaridade estrutural sintagma/paradigma (metáfora/metonímia) e propõe, como operação estrutural, a homonímia como lei da articulação significante. Para ele, cadeia implica ato (parole), fica-se na dimensão única das relações em presença (Milner 2002: 159). Ele reforça, com isso, a noção de cadeia como espaço unidimensional.

Neste redirecionamento teórico da elaboração saussuriana, Lacan afirma que sem estruturação do significante, nenhuma transferência de sentido seria possível. O psicanalista atrela, portanto, a transferência de sentido à estruturação significante e reintroduz a “comunicação” no sistema. Lacan faz mais do que isso ao ligar transferência de sentido e imprevisibilidade porque, sujeito entre os significantes. Ora, considerar a “imprevisível articulação significante” é abordar a comunicação de modo diverso da “cristalização social” de Saussure. Desse modo, implicando a homonímia como lei que impulsiona a linearidade da cadeia, a comunicação só pode ser pensada como encontro contingente entre duas redes significantes (Zizek 1994).

Podemos, agora, nos aproximar da afirmação de Lacan de que “a comunicação é um equívoco bem-sucedido”.

Por que a comunicação seria “um equívoco” e por que seria “bem sucedido”? Porque não há possibilidade teórica e empírica de sustentar o argumento de que uma cadeia recubra o sentido de outra - a linearidade da cadeia falada supõe, logicamente, a não-coincidência, a disparidade, entre cadeias, já que uma cadeia é um ato de um sujeito. Desse modo, a relação entre cadeias é sempre tangencial e derivativa. Como poderia, então, a comunicação ser bem-sucedida? Recorro, mais uma vez, a Zizek: no encontro entre duas redes significantes há sempre, ao menos, um significante que desencadeia o trabalho interminável da interpretação. Portanto, ao caráter contingente da concatenação significante e do encontro entre duas redes liga-se à incontornável injunção à interpretação que suspende a ilusão de que a língua é “toda” e de que os falantes são “semelhantes”. Em outras palavras, o conceito tradicional de comunicação opera a partir da assunção de falantes como “semelhantes”, ou melhor, como dois pontos simétricos - como dois do mesmo. Segundo esse raciocínio, a língua não poderia ser pensada como “equívoca”, como operação simbólica, mas apenas como convenção. Tal posição, porém, carreia o encobrimento do que se passa na própria experiência da comunicação -o fato de que ela é sempre pontuada por ambiguidades, mal-entendidos, desacordos. Esses desencontros são o “incessante tecido de nossas conversações” (Milner 1978: 13).

4. A título de conclusão

Tomar a posição da diferença inexorável entre falantes significa colocar o diálogo como espaço da interpretação no lugar pacificado da comunicação. Falas sintomáticas aprofundam a diferença entre falantes, potencializam o conflito desse encontro contingente -tal é a realidade desse diálogo que fica tão prejudicado quanto à “transmissão de sentidos”. Mas, mesmo assim, ao menos um significante convoca a interpretação -a homonímia impulsiona o jogo interpretativo de uma fala sobre outra. Talvez se possa dizer, frente a diálogos embaraçosos, perturbados por falas sintomáticas, que eles sejam “bem-sucedidos” se e quando interpretação e transmissão de sentido (ou compreensão) não são confundidos. O “trabalho interminável da interpretação” demanda uma escuta para o andamento significante -é ela que viabiliza o diálogo e abre caminho para a mudança na clínica de linguagem.

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1 A “ciência moderna” emerge no século XVII, com Galileu, precursor da revolução na Física, erigida como modelo de ciência. Ela se distancia de procedimentos aristotélicos de ciência, apoiados na percepção (observação/classificação) e subsequente abstração (classificação e produção de regras locais). Galileu alia-se ao pensamento platônico, parte da postulação de um axioma universal que precede a montagem de proposições empíricas a serem testadas: o cientista “faz perguntas à natureza”, não se parte da “certeza” do que nela observa. Na Linguística, Chomsky é o exemplo de ciência galileana. Saussure deu início a esse caminho: propôs um “objeto universal”, la langue. Ver Milner (1989) sobre “ciência” e, certamente Koyré (1991).

2Refiro-me ao Grupo de Pesquisa do LAEL-CNPq, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e a pesquisadores da Universidade de Rosário, filiados à proposta desenvolvida no Brasil e introduzida, ali, por Liliana Bardone e Norma Desinano.

3Segundo Cláudia De Lemos (2002), o termo captura tem a função de abreviatura de processos de subjetivação por efeito da língua que (1) considerada sua anterioridade lógica relativamente ao sujeito, o precede e coloca a língua como causa de haver sujeito e que (2) considerada em seu funcionamento simbólico, não só o significa como lhe permite significar outra coisa, isto é, para além do que o significou.

4Da conjunção dos argumentos teóricos e empíricos apresentados, emergiu a proposta de que as mudanças, que qualificam a trajetória da criança de infans a sujeito-falante, são mudanças de posição relativamente à fala do outro, à língua e em relação à sua própria fala (De Lemos 1992, 2002). Foi em um segundo momento de reflexão que essa mudança foi definida como estrutural, no sentido em que não há superação de nenhuma das três posições, mas uma relação que se manifesta, na primeira posição, pela dominância da fala do outro (com a incorporação de fragmentos), na segunda posição, pela dominância do funcionamento da língua (com a presença de erros) e, na terceira posição, pela dominância da relação do sujeito com sua própria fala (com reformulações-autocorreções). É na terceira posição que a criança, enquanto sujeito falante, divide-se entre aquele que fala e aquele que escuta sua própria fala: ela é cindida entre a “instância subjetiva que fala” e a “instância subjetiva que escuta” (De Lemos 1992, Lier-DeVitto 1998).

5 Bates et al. 1997, e Fletcher e Ingram 1997, por exemplo, procuraram definir o sintoma linguístico a partir da detecção de ocorrências de “formas linguísticas atípicas” e, outros como Craig (1997), Brinton e Fujiki (1982), Curtiss e Tallal (1991) buscaram relacioná-lo a deficiências estritamente pragmáticas (insensibilidade contextual e interacional). Esses últimos observaram que produções sintomáticas podem conter “formas linguísticas típicas”, mas inadequadas do ponto de vista pragmático, i.e., típicas, mas que violam de regras pragmático-discursivas. Eles observaram, enfim, que formas atípicas são produzidas por crianças normais e típicas por crianças com falas sintomáticas. Todos admitiram a inconclusividade das análises. (1) É declaração de fracasso dessas pesquisas: a meta era identificar formas atípicas a sintoma. A presença dessas formas em falas de crianças “normais” derrota o objetivo almejado. (2) A expressão “atípicas” é insuficiente para operar a distinção entre “erro” de ‘sintoma”. Ela aloca ambos - “erro” e “sintoma” na categoria homogênea de “incorreto”. (3) A expressão “típicas” tem como referência uma sequência gramatical identificada na fala da criança. Seu oposto, a expressão “atípicas”, refere-se, ainda, à regra gramatical. Falas sintomáticas, embora tenham relação com a língua constituída, não são exceções ou contraexemplos à regra. Parece possível afirmar que as tentativas de abordar falas estranhas a partir de aparatos apoiados num raciocínio de tipo binário (verdadeiro/falso, certo/errado, válido/inválido, feliz/infeliz), não têm se mostrado eficazes para refletir e investigar as falas patológicas. Eles mostram, ao contrário, que as falas sintomáticas são resistentes à aplicação de instrumentais descritivos (Lier-DeVitto 2001).

6A discussão que segue foi desenvolvida, em parte, em artigo de 2008, em coautoria com Suzana Fonseca.

Nota de autoría: Maria Francisca Lier-DeVitto é a única responsável pela elaboração completa desta pesquisa

Recebido: 18 de Março de 2018; Aceito: 18 de Setembro de 2018

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