1. Introdução: formulando a reflexão
Entre 1940 e 1942, Roman Jakobson publicou, em forma de opúsculo, um conjunto de trabalhos conhecido sob o título Linguagem infantil, afasia e universais fonológicos, escrito originalmente entre 1939 e 1941 em alemão, durante seu exílio em Oslo e em Estocolmo.
Esse trabalho recebeu notoriedade em seu tempo, tanto pela originalidade das relações preconizadas -já em seu título- quanto pelas teses que formula. As posições assumidas por Jakobson com respeito, em especial, à aquisição da linguagem e à afasia -separadamente e/ou em relação- são polêmicas e nem sempre de fácil compreensão, se pensadas fora do contexto em que foram gestadas. Cabe lembrar, aqui, a título de exemplo, a tão debatida hipótese de inversão entre uma suposta ordem da aquisição da linguagem e a sua dissolução na afasia.
Como não se desconhece a polêmica em torno das teses de Jakobson, o interesse pontual aqui, ao lembrar esse trabalho, diz respeito ao fato de, nele, Jakobson apresentar o que viria a ser conhecido -posteriormente e a revelia de Jakobson, é importante dizer- como “hipótese da descontinuidade”. Vale retomar sinteticamente o raciocínio do autor.
O cerne da reflexão do linguista é que a criança, no balbucio, poderia produzir articulações estranhas a uma dada língua e até mesmo a um grupo de línguas: há “consoantes com uma grande variação de pontos de articulação, palatais, arredondadas, sibilantes, africadas, clics, vogais complexas, ditongos, etc.” (Jakobson 1972: 21). No entanto, a passagem da fase do balbucio (considerado pré-linguístico, por Jakobson) à fase em que realmente o som passa a ter um valor fonêmico (considerado linguístico, por Jakobson) é marcada por grande perda da habilidade de produzir sons.
A criança, então, deixaria de ser um poliglota, do ponto de vista articulatório, para começar a ser o falante de uma dada língua, ao menos do ponto de vista fonológico. A criança passaria, dessa maneira, a ter de reconhecer as oposições fonológicas e, mais adiante, as consequentes diferenciações que têm no significado das palavras, bem como passaria a ter a capacidade de guardá-las na memória para reproduzi-las. A partir disso, conforme Jakobson, encontra-se em formação um sistema fonêmico rigorosamente regulado por leis estruturais.
Nessa passagem da fase pré-linguística à linguística se verificaria, segundo alguns leitores de Jakobson, a dita descontinuidade. Não é objetivo aqui discutir a pertinência, ou não, em derivar do raciocínio do autor uma “hipótese da descontinuidade”. Quanto a isso, importa lembrar que há autores que retomam com muita propriedade o tema, argumentando a pertinência, ou não, dessa interpretação sobre a teoria de Jakobson (cf. Scarpa 2005, Silva 2007, e Brum-de-Paula e Ferreira-Gonçalves 2008).
O interesse, porém, em retomar, em linhas gerais, o trabalho de Jakobson deve-se a uma espécie de conclusão formulada, com base nessa descoberta de Jakobson, pelo ensaísta canadense Daniel Heller-Roazen. Segundo o ensaísta, é devido ao desaparecimento do balbucio que nascem uma língua e um falante. Em sua concepção, decorre do raciocínio de Jakobson que a criança, para se tornar um “falante nativo” de uma língua dada, precisa deixar de utilizar muitas das consoantes e vogais que emitia antes. Logo, seria natural que, ao abandonar os sons não pertencentes à língua que está adquirindo, a criança se esquecesse de como são produzidos. Nas palavras do autor:
Talvez o bebê deva esquecer a série infinita de sons que outrora produzia no “ápice do balbucio” para conseguir dominar o sistema finito de consoantes e vogais que caracteriza uma língua determinada. Talvez a perda de um arsenal fonético ilimitado seja o preço que a criança deve pagar para obter os documentos que concedem cidadania na comunidade de uma língua específica (Heller-Roazen 2010: 9).
O que Heller-Roazen destaca, assim, é que a passagem do balbucio às primeiras palavras -independentemente de ser vista, ou não, como descontinuidade- é marcada por uma necessária redução. Afinal, “quando a criança começa a falar uma língua única, ela obviamente não tem o que fazer com todas as consoantes e vogais que emitia antes” (Heller-Roazen 2010: 8).
A interpretação de Heller-Roazen -em um primeiro momento restrita ao sistema fonológico da língua- pode ser generalizada de forma a abranger os demais níveis da análise linguística. Em outras palavras, não é plausível que se admita que a passagem do balbucio ao sistema fonológico de uma língua se dê de maneira isolada, restrita à fonologia. Certamente, ela se faz acompanhar do sistema linguístico no qual as unidades fonológicas tenham sentido.
Essa conclusão encontra respaldo no princípio da dupla articulação das línguas no mundo (cf. Martinet 1978): sendo a primeira articulação a que segmenta as unidades em unidades significativas -“monemas” na terminologia de Martinet-, e a segunda articulação a que se constitui de unidades menores, os fonemas, limitados a cada língua específica, admite-se concluir que somente é possível existir segunda articulação relativamente à primeira.
Logo, a hipótese de uma necessária redução constatada entre o balbucio e a aquisição do sistema fonológico, formulada por Heller-Roazen, inclui o conjunto do sistema linguístico de uma língua e não apenas o fonológico.
Essa generalização permite considerar que a passagem do balbucio às oposições fonológicas pertencentes a um dado sistema linguístico evidencia que o que a criança adquire não é a linguagem per se, mas uma dada língua. Ao abrir mão de uma potencialidade aparentemente desmedida de articulação fônica para entrar no mundo específico de uma língua, a criança, ao atestar que o excesso articulatório do balbucio é inoperante em uma língua específica, coloca em evidência que a língua materna, antes de qualquer coisa, restringe, e isso não apenas na fonologia, mas em todos os níveis da língua.
Se se admite essa interpretação, não interessaria mais, desse ponto de vista, verificar o que “o tornar-se” falante de uma língua diz do como essas línguas são adquiridas ou aprendidas; não interessaria mais olhar para o uso produtivo de uma língua feito por uma criança na sua relação com alguma capacidade inata (seja a de formar associações entre estímulos, seja a de acionar um dispositivo gramatical inato, seja a de um processamento mental). O uso da língua pela criança deixaria de ser a evidência de uma capacidade. Em outras palavras, os dados de análise de uma dada língua não estariam, então, a serviço da explicação da capacidade da linguagem, uma vez que, desse ponto de vista, não se adquiriria linguagem, mas língua.
Importa considerar, no entanto, que a interpretação aqui apresentada -uma espécie de hipótese- não ignora que o estudo descritivo do dito “processo de aquisição de uma língua” permite relacionar língua e linguagem, ou faculdade de linguagem, de maneira complexa, para dar respostas, ao menos parciais, a questões importantes, tais como: a existência ou não de um período crítico para a aquisição; a relação entre produção e percepção; a existência ou não de hierarquia de componentes na aquisição, entre outros. Além disso, não ignora que a faculdade da linguagem pode ser entendida como um sistema complexo da mente/cérebro que permite a aquisição da língua cuja representação, em seu estágio inicial, poderia receber a forma de uma gramática universal, mas coloca o foco em outro ponto.
Considerado o raciocínio aqui exposto a partir da interpretação de Heller-Roazen acerca do trabalho de Jakobson, a questão da passagem da criança de infans a falante deixa de estar atrelada à discussão de aspectos geralmente abrigados em reflexões de caráter inatista, conexionista ou mesmo da relação pensamento/linguagem em geral e passaria a encontrar espaço em estudos de outra natureza, que incluíssem a diversidade das línguas.
2. Da diversidade das línguas ao mundo particular de uma língua
Para fundamentar melhor a interpretação feita acima, gostaria de retomar uma afirmação de George Steiner, presente no livro Depois de Babel. Diz ele:
Talvez não devamos considerar, nem do ponto de vista da forma nem do conteúdo, coerentes, susceptíveis de verificação ou de refutação, qualquer modelo de comportamento verbal ou qualquer teoria da génese e da aquisição da linguagem, que não reconheçam como decisiva a questão da multiplicidade e variedade assombrosas das línguas faladas no nosso planeta demasiado povoado (Steiner 2002: 78).
Chama a atenção nas considerações de Steiner um aparente paradoxo: o fenômeno da aquisição da linguagem, que evoca uma ideia de universalidade -já que é da condição do homem que venha a se tornar falante- não poderia ser seriamente abordado, segundo ele, se não se levasse em conta a diversidade das línguas -já que é “facultado” ao homem de qual língua se tornará falante-. Esse paradoxo -universalidade da aquisição versus diversidade das línguas- coloca em destaque, ainda, um terceiro elemento: o falante. É próprio ao homem que ele fale (universal) uma ou mais línguas (diversidade) à sua maneira (singularidade).
A partir disso, questiona-se: como tratar a aquisição da linguagem -um fenômeno universal- frente ao fato de que o homem adquire uma, ou mesmo mais de uma, das cerca de 6.000 línguas existentes no mundo? Essa indagação não é inédita na literatura especializada e admite muitas respostas. A mais célebre, sem dúvida, induz a certa visão unificadora, universalista, à moda de uma gramática universal. No entanto, o que o estudo de Jakobson atesta é que a dita língua materna impõe restrições ao falante que são próprias à sua própria configuração enquanto língua. Cada língua impõe restrições que são, na verdade, um mundo particular, ao qual o infante deve ter acesso para poder falá-la.
Para explicar melhor essa ideia de “mundo particular”, é importante retomar duas ideias de Benveniste, resumidamente apresentadas em uma entrevista dada em 1968. Diz ele:
E se digo que o homem não nasce na natureza, mas na cultura, é que toda criança e em todas as épocas, na pré-história a mais recuada como hoje, aprende necessariamente com a língua os rudimentos de uma cultura. ,..., o que a criança adquire, aprendendo, como se diz, a falar, é o mundo no qual ela vive na realidade, que a linguagem lhe dá e sobre o qual ela aprende a agir (Benveniste 1989: 23-24) ,grifos meus,.
É importante deter-se em alguns pontos da reflexão de Benveniste.
Para ele, a criança “aprende uma língua”, “aprende a falar” e, assim, “adquire ,..., o mundo no qual ela vive na realidade”. Benveniste desloca a questão da aquisição do âmbito da linguagem para o âmbito das línguas. Para Benveniste, a criança ao aprender a falar, adquire com a língua um mundo, uma cultura. Segundo ele a aquisição é, primeiramente, de um mundo e não de estruturas linguísticas. Benveniste não relaciona, portanto, a aquisição da língua nem a uma faculdade inata, nem a aspectos cognitivos, nem a aspectos mentais. Para o autor o que a criança adquire é o mundo, um mundo específico, via língua.
Pensar que há um “mundo” que se apresenta via língua é uma ideia muito próxima do que propõe Wilhelm von Humboldt, no início do século XIX, quando apresenta a noção de “visão de mundo”. Esse conceito da antropologia linguística humboldtiana é suficientemente complexo para não se deixar esgotar em poucas palavras. Porém, vale lembrar, ao menos, uma passagem do que coloca Humboldt, na Academia de Berlin, em seu discurso Sobre o estudo comparativo das línguas em relação com as diferentes épocas do desenvolvimento das línguas, de 29 de junho de 1820, citado aqui a partir da tradução de Denis Thouard para o francês:
,..., as línguas não são, propriamente falando, meios para apresentar uma verdade já conhecida, mas, ao contrário, para descobrir uma verdade antes desconhecida. Sua diversidade não é uma diversidade de sons e de signos, mas uma diversidade de visão de mundo (Humboldt ,1820, 2000: 101. A tradução em português e minha).
Assim, para Humboldt, cada língua teria uma maneira de organizar o mundo, de apreendê-lo, de representá-lo, o que o torna, nela, na língua, um mundo específico.
Sobre esse recurso que faço a Humboldt, cabem alguns esclarecimentos: é muito comum, na linguística geral, associar-se o pensamento de Humboldt ao que se convencionou chamar de “relativismo linguístico”, ligado à formulação da conhecida “hipótese Sapir-Whorf”. Embora entrar nessas discussões epistemológicas pormenorizadas possa desviar o foco do presente trabalho, é importante apenas ressaltar que, hoje em dia, é discutível, de um lado, a interpretação de que Humboldt teria dado origem a algum relativismo linguístico.
Contra isso se manifesta toda a literatura especializada sobre Humboldt da atualidade. Por exemplo, Meschonnic (1995), Trabant (1992), Chabrolle-Cerretini (2007), Thouard (2016). É bem verdade que parte das ideias de Humboldt serviu de inspiração não apenas aos trabalhos de Sapir e de Whorf como também para os estudos de muitos outros linguistas no mundo. Isso não implica forçar uma linha direta de influência a ponto de atribuir a Humboldt ideias que não são suas. Nenhum autor da contemporaneidade incorporou integralmente as ideias de Humboldt. Há, no máximo, referências (muitas vezes, esparsas) que, sem dúvida delineiam uma possibilidade de presença neohumboldtiana. Em outras palavras, admite-se que Humboldt pode estar contido na ideia geral do dito “relativismo linguístico”, mas isso não faz dele um relativista.
De outro lado, e de igual importância ao que foi dito antes, é fato que a história das ideias linguísticas já provou que Sapir e Whorf não formularam a dita “hipótese” que lhes é atribuída. Em Moura e Cambrussi (2018), há uma exposição clara sobre Sapir e Whorf, sua relação com o relativismo linguístico e com o determinismo linguístico. Os autores, ao ressalvarem a inexistência, propriamente dita, da formulação da “hipótese”, apresentam essa discussão em um contexto atual em que se encontram a crítica de Pinker (2002) no livro O instinto da linguagem e a polêmica em torno da língua pirahã trazida por Everett (2012).1
Assim, recorrer às ideias humboldtiana aqui não implica falar sobre o mundo, nem produzir um discurso interpretativo sobre o mundo; também não significa ter uma concepção de mundo. Quando Humboldt afirma que cada língua propõe uma visão de mundo, ele quer dizer que cada língua, entendida como um todo organizado em partes que precisa ser apreendido como energeia -uma atividade se fazendo-, é constituída por uma tomada particular do mundo. A análise que decorreria disso seria, simultaneamente, da estrutura, do organismo da língua, e do uso vivo do discurso, o caractere; uma análise global e analítica da língua, portanto.
Em termos de síntese, podemos dizer que este trabalho parte da fenomenologia da fala da criança -explícita nos estudos de Jakobson, em que a passagem do balbucio às primeiras oposições fonológicas atesta o que impõe de restrição ao falante a sua entrada em uma dada língua- , segue com a ideia antropológica de Benveniste segundo a qual a língua dá acesso a um mundo e considera com Humboldt que cada língua encerra/produz uma “visão de mundo”. O conjunto dessas considerações permite defender que falar uma língua dita materna decorre de uma operação que implica a instauração da criança como falante de um mundo. O infans, ao passar a falar uma dada língua, passa a existir em um mundo e a dar existência a esse mundo que é, por sua vez, atualizado de modo muito singular em cada enunciação. Enfim, nessa proposta, o que a criança adquire é a possibilidade de enunciar uma visão de mundo. Admitida essa perspectiva, o interesse do linguista estaria, em matéria de aquisição, mais concentrado na relação do homem com as línguas do que com a linguagem: logo, deixar-se-ia de considerar a passagem do infans à sua condição de falante como um fenômeno da linguagem para vê-lo como um fenômeno de língua (inclusive no plural) que implica o homem no seu dizer.
3. Exemplo de um esboço de análise
A seguir, exemplifica-se o que foi proposto acima com a etnografia da antropóloga Clarice Cohn (2000a e 2000b), feita a respeito da infância junto ao povo Xikrin, subgrupo Kayapó, de língua Jê, habitante do sudoeste do Pará, Brasil. Antes de passar a isso, é importante fazer alguma consideração metodológica acerca do papel dessa exemplificação -na sua configuração de dados de uma análise de base enunciativa- no presente trabalho.
3.1. Aspectos metodológicos gerais: o dado em estudos enunciativos
Numa divisão didática não relativa aos estudos enunciativos, mas à Neurolinguística, Coudry (1996) distingue três tipos de dados: (i) o dado-evidência, relacionado a uma quantificação que exemplifica uma teoria; (ii) o dado-exemplo, construído a partir de hipóteses prévias, a fim de corroborá-las; (iii) o dado-achado, não construído e com a finalidade de servir tanto para fins de exemplos, quanto para suscitar novas hipóteses e análises.
Desses três, apenas o dado-achado parece servir mais plenamente aos propósitos de um estudo enunciativo2, como o proposto no presente trabalho. Numa análise no âmbito da Linguística da Enunciação (cf. Flores et al, 2009), é do dado que emanam os indicativos de análise, o que parece convir à ideia de dado-achado. Assim como o mesmo enunciado pode ser gerado por inúmeras enunciações, únicas e irrepetíveis, o mesmo dado pode gerar inúmeras análises, também singulares, uma vez que sempre passarão pelo filtro de um sujeito. Ou seja, em Enunciação, não só o dado é singular, já que comporta a enunciação, mas também a própria análise é única e dependente do sujeito que a realiza. Dessa forma, em Enunciação, o dado não é jamais “dado”. Isso se dá porque uma observação, uma análise, nunca é teoricamente neutra, por já ser o início de uma descrição.
Se se pudesse realizar um ajuste terminológico na proposta de Coudry, tendo em vista o escopo da Enunciação, talvez o melhor termo para nomear o dado nos estudos enunciativos seja dado-determinante (cf. Nunes e Flores 2017). Isto é, um dado que determina o foco da análise e os rumos que ela tomará. Nesse sentido, o dado pode ser constituído por várias manifestações de linguagem: gravações, relatos, transcrições, comentários etc.
Segundo Dubois et al. (2006) para o verbete corpus, em seu Dicionário de Linguística:
Estabelece-se a gramática descritiva de uma língua a partir de um conjunto de enunciados: este é submetido à análise e constitui o corpus da pesquisa. É útil distinguir o corpus dos termos vizinhos que designam conjuntos de enunciados: o “universo” é o conjunto dos enunciados encerrados em uma dada circunstância, até que o pesquisador tenha decidido se esses enunciados entrarão na totalidade ou em parte na matéria de sua pesquisa. (…) A totalidade dos enunciados recolhidos é o universo. A partir do universo dos enunciados reunidos, por assim dizer, a granel, o linguista seleciona aqueles que vai submeter à análise (…). Só esses segmentos de enunciados é que serão submetidos à análise e que constituirão o corpus (Dubois et al. 2006: 158).
Em função da generalidade da definição proposta nessa obra lexicográfica, é possível traçar algumas considerações relevantes para o tratamento do dado em enunciação: (a) tal como é proposto, o objeto a servir como dado é o enunciado; (b) de acordo com o propósito teórico, o pesquisador pode selecionar os dados que julga relevantes para sua análise; (c) se a seleção por parte do pesquisador é realizada com vistas a encontrar dados que suportem uma hipótese prévia, há uma orientação teórica que regula os dados aprioristicamente, tornando-os válidos para a pesquisa ou não.
Nesse sentido, o dado, numa visão enunciativa, pode ser visto como um conjunto de fatos, aptos a serem analisados. É nesse sentido que se pode dizer, conforme Dubois et al. (2006), que o pesquisador “decide” que dados pertencerão a seu universo de análise, segundo suas intenções de estudo. O dado é apenas virtual antes da análise: o fato enunciativo, verdadeiro constituinte do dado, só emerge como dado uma vez que é tomado como objeto de observação.
O aporte teórico enunciativo aqui proposto considera, então, que o fato enunciativo seja a matéria linguageira em si que, submetida à observação do analista, é recortada e analisada. Esse recorte é a própria análise do fato enunciativo. Em linhas gerais, é esse tratamento que se dá, a seguir, ao relato etnográfico presente em Cohn (2000a e 2000b): ele, como um recorte de um determinado fato enunciativo, é tomado como uma ilustração da reflexão antes apresentada.
3.2. Comentários a propósito de um exemplo
Em uma clara referência à obra de Margaret Mead já no título, Crescendo como um Xikrin: uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os Kayapó-Xikrin do Bacajá, Cohn (2000b) elabora um minucioso estudo acerca do desenvolvimento infantil entre os Xikrin, com vistas a uma análise que busca ver como as crianças intervêm em seu próprio processo de desenvolvimento. O trabalho da antropóloga está ligado a uma perspectiva da antropologia contemporânea que busca ver a infância, a partir da concepção de Pessoa, não como um adulto em miniatura, mas como alguém com ativa participação na própria inserção social.
No relato constante no Anexo 1, é possível notar que, no universo linguístico em questão, as relações de interlocução são circundadas pelas participações quase ritualizadas dos adultos, o que instaura uma condição de fala bastante específica. Chama a atenção -e isso conforme a própria antropóloga- a ênfase dada à audição como um sentido importante para o desenvolvimento do conhecimento: “o que, para os Xikrin, define a singularidade da experiência infantil” (Cohn 2000b: 212), segundo Cohn, é “o desenvolvimento da faculdade de compreensão, ligada especialmente ao ouvido, o que torna a pessoa alguém que pode e deve compreender as normas sociais e atuar de modo correspondente a elas, capacitando-a, ainda, a dominar os conhecimentos tidos como relevantes, de um modo que exige sua participação ativa” (Cohn 2000b: 212).
Consideradas as características da relação interlocutiva com as crianças entre os Xikrin e todo o contexto que a cerca -sumariamente retomado a partir do trabalho de Cohn-, torna-se evidente que falar essa língua implica falar esse mundo. Considere-se a esse respeito o que diz a antropóloga, em trabalho anterior (cf. Anexo 2), sobre o período inicial da aquisição da língua pela criança Xikrin:
Os dados apresentados nos Anexos 1 e 2 são, enfim, ilustrativos da ideia de que, ao passar de infans a falante, a criança adquire, via língua, uma visão de mundo.
O lugar que a criança ocupa na organização enunciativa do povo Xikrin é determinante da compreensão que ela tem de si e do outro e de ambos em relação ao que a cerca.
Em uma análise sumária da etnografia de Cohn, do ponto de vista aqui proposto, é possível ver que não estão em jogo, nessas interações, universais da linguagem, mas universos das línguas. No caso do povo Xikrin, não há como não perceber, de um lado, a presença concomitante de gerações -pais e avós- que têm o papel de introduzir a criança no universo Xikrin (“conversações forjadas”, “orgulho em ser Okre” etc.); de outro lado, a sobreposição da sincronia com a diacronia (o falar dos avós que “não são simples fórmulas voltadas ao público infantil” e o aspecto kaben kokre da criança). Há diversas gerações em presença da criança, o que destaca o papel que uma certa visão do tempo assume na aquisição de uma língua.
A realidade das interações registradas pela antropóloga permite ver que a língua kayapó, falada pelos Xikrin, embora unificada no tronco Jê, traça do mundo um mapa diferente e isso se evidencia na construção de um lugar enunciativo de fala para a criança Xikrin. Nesse sentido, pode-se dizer que a aquisição de uma língua pelo homem continua agindo na vida toda desse homem, o que a torna extensível ao exercício todo da língua.
4. Considerações finais
Em termos de conclusões, este estudo permite fazer as seguintes considerações:
a)Ao partir da fenomenologia da fala da criança, com apoio nos estudos jakobsoniano acerca da passagem do balbucio à aquisição do sistema fonológico de uma língua (relidos pelo viés de Heller-Roazen), é possível considerar que a aquisição de uma língua impõe restrições ao falante, que são extensíveis ao conjunto da língua.
b)A abordagem benvenistiana, ao destacar a importância do “mundo” de uma língua na aquisição desta pela criança, encaminha uma reflexão de natureza antropológica acerca da língua.
c)Com apoio na concepção humboldtiana de “visão de mundo” propõe-se o deslocamento da ideia de aquisição de linguagem para aquisição de língua como forma de enfatizar que as restrições decorrentes da aquisição de uma língua específica é que determinam a condição de falante de uma língua considerada materna.
d)O exemplo apresentado a partir da etnografia de Cohn (2000a e 2000b) é ilustrativo da ideia de que adquirir uma língua é adquirir uma certa visão de mundo mesmo que existam fatos estruturais que se repitam em qualquer interação (estrutura enunciativa, transmissão geracional, relações entre adultos e crianças, etc.).
Enfim, o presente estudo intenta ter demonstrado, em linhas iniciais, o quanto o homem pode ser, estudado, na sua condição de falante, numa teoria antropológica da enunciação, na qual estaria em jogo o saber que advém desse homem pelo fato de ele enunciar. Esta proposta embrionária se coaduna com perspectivas que visam substituir a unificação universal do homem no geral -tão defendida pelas teorias dos universais da linguagem- pela unificação do homem no particular, na possibilidade de que venha enunciar no universo de uma língua.