1. Introdução1
O enfraquecimento ou apagamento de consoantes em coda é processo relativamente comum nas línguas do mundo e, particularmente, em línguas românicas. No caso do português brasileiro (PB) e do espanhol americano (EA)2, estão entre esses processos o apagamento de s no sintagma nominal (ex. PB, os meninos ~ os meninoØ; EA, los niños ~ loh niñoØ), a redução nasal em fim de palavra átono (ex. PB, eles caminham ~ eles caminhaØ; EA, ellos caminan ~ ellos caminaØ)3, e, afetando róticos em coda, debucalização, apagamento e ainda vocalização no caso especialmente do espanhol (ex. PB e EA, por(ɾ)que ~ po(h)que ~ poØque ~ po(j)que).
Como recorte analítico, neste texto, discutimos o apagamento de róticos em fim de palavra (AR) - fenômeno que atinge as duas línguas (ex. PB, amar ~ amaØ - colher ~ colheØ; EA, hablar ~ hablaØ, mujer ~ mujeØ). A razão para isso está na natureza da análise que propomos. Queremos focalizar processos fonológicos variáveis que estejam, em alguma medida, sujeitos a condicionamento morfológico, e, neste caso, a literatura tem diferenciado o fenômeno em questão no que respeita à sua aplicação em verbos e não verbos (Monaretto, 1997, 2002; Diáz-Campos e Ruiz-Sánchez, 2008; Lipski, 2011; Serra e Callou, 2013; Oushiro e Mendes, 2013; Callou et al., 2015; Reinnicke, 2015; De Bona, 2018; entre outros). Nossa intenção é problematizar a tese defendida em Schwindt (2015), segundo a qual fenômenos que envolvem algum tipo de condicionamento morfológico podem resultar no que se rotula como Outputs Convergentes: casos em que uma só forma de superfície corresponde a dois ou mais processos, cumulativos ou não, não detectáveis nesse nível.
O texto se organiza como segue. Na seção 2, propomos uma breve exposição sobre fenômenos de enfraquecimento, principalmente sobre o comportamento de róticos em coda nas duas línguas abordadas, de modo especial em PB e EA. O objetivo ali é tão somente desenhar o percurso que nos leva ao fenômeno que exploramos neste texto, AR. Também nessa seção definimos nosso entendimento sobre essa classe que tratamos pelo termo róticos, levando em conta sua possível forma subjacente e suas realizações alofônicas. Na seção 3, procuramos descrever o processo de apagamento de R em coda, especialmente em coda final, nas variedades estudadas. São muitos os estudos sobre o tema em PB seguindo a metodologia laboviana; em EA, ao contrário, os estudos são mais escassos e com menos detalhamento descritivo.
Fazemos o exercício de situar o fenômeno a partir de alguns estudos referenciais, mostrando suas particularidades em cada língua abordada. Na seção 4, recuperamos a tese de Outputs Convergentes e discutimos sua aplicação a AR nos sistemas em questão. A ideia é sustentar que AR é mais satisfatoriamente descrito, tanto em PB quanto em EA, se admitimos que dois processos distintos, um que interage com a morfologia e outro eminentemente fonético, operam na emergência de outputs que suportam esse fenômeno. De modo bastante ensaístico, propomos algumas restrições que podem responder pelo que entendemos como dois rankings ou duas gramáticas niveladas. Na seção 5, estão as considerações finais, que incluem perspectivas de investigação sobre o tópico.
2. O processo de enfraquecimento dos róticos no português e no espanhol
Nesta seção abordamos alguns fenômenos de lenição, mais especificamente em posição de final de palavra, dando destaque especial ao apagamento de róticos (AR) em dados do português e do espanhol. Além disso, procuramos conceituar a classe de sons que se convencionou chamar róticos e abordamos seus status nas duas línguas, problematizando sua forma subjacente, bem como suas possíveis realizações alofônicas.
Processos de enfraquecimento de consoantes em posição de coda são muito frequentes nas línguas do mundo. Um caso típico é o apagamento variável de consoantes oclusivas em final de palavra em inglês (ex. worked ~ workØ, played ~ playØ, nothing ~ nothinØ), descritos, entre outros, por Labov e Cohen (1967) e Guy (1980).
Em EA, por exemplo, um caso bastante conhecido é o do enfraquecimento e eventual apagamento de s em posição de coda silábica, como em los perros 'os cachorros', nos quais se verifica variavelmente pronúncia aspirada lo(h) perro(h) ou apagamento de um ou dos dois elementos do sintagma loØ perroØ (Penny, 2003)4. Além do enfraquecimento de s, merece alusão também o fenômeno de queda da consoante nasal em verbos (ex. hablan ~ hablaØ), descrito entre outros por Poplack (1980).
No que tange ao PB, exemplos típicos de enfraquecimento consonantal são a semivocalização de /l/ (ex. legal ~ lega(w)), estudada por Quednau (1994), Collischonn e Quednau (2009), entre outros, ou a redução da nasalidade em fim de palavra (ex. falaram ~ falar(ʊ)) - neste caso com apagamento da consoante nasal fonológica (Votre, 1978; Guy, 1981; Schwindt e Bopp da Silva, 2009; Chaves, 2017; entre outros). Como no espanhol, o PB está sujeito também à queda de s, sobretudo em fim de palavra (ex. os meninos ~ os meninoØ), como descreveram Scherre (1988) e Scherre e Naro (1998), entre outros. Tanto a redução da nasalidade quanto a queda de s representam importante desafio descritivo para os estudos de variação e mudança de som nas línguas em foco, por conta de esses fenômenos licenciarem a interpretação de processo de enfraquecimento fonético e de variação de concordância (verbal no primeiro caso, nominal no segundo).
Antes de tratarmos especificamente do fenômeno que tematiza este artigo, o apagamento variável dos róticos em final de palavra, presente em dados do PB e do EA, é preciso definir nosso entendimento acerca do que rotulamos aqui como róticos.
Segundo Ladefoged e Maddieson (1996) (2008), ao contrário da maior parte das classes fonéticas, róticos têm sua definição baseada mais na tradição ortográfica - o fato de serem grafados em grande parte das línguas de escrita greco-romana com a letra r ou sua contraparte grega rho - do que em propriedades fonéticas ou articulatórias. Do ponto de vista articulatório, a pronúncia mais prototípica desta classe é a vibrante produzida com a ponta ou a lâmina da língua. Esse som não raro se relaciona fonologicamente com tepes ou flepes, fricativas e aproximantes, que respondem pelos demais representantes fonéticos da classe. Isso significa que a classe não se define por determinado modo ou por determinado ponto de articulação. A Tabela 1 traz símbolos para algumas consoantes róticas.
A identificação dos róticos como uma classe tem sua principal evidência na fonologia. Esses sons em geral ocupam, nas diferentes línguas, posições muito características: estão entre os poucos elementos permitidos na segunda posição de encontros consonantais em onset (ex. port., prisão; esp., prisión; it., prigione) ou na primeira posição em encontros consonantais em posição de coda (port. e esp., pers.pectiva), isto é, tal como laterais e nasais, róticos são consoantes que, nesses encontros, tendem a ocorrer mais proximamente do núcleo da sílaba. Tal similaridade com vogais explica provavelmente por que róticos podem muitas vezes se tornar silábicos ou mesmo sofrer alongamentos - fenômenos tipicamente vocálicos.
No PB, a realização variável dos róticos é bastante diversa. Abarca o tepe (ɾ), a vibrante (r), as fricativas (x, ɣ, h, ɦ) e a reftroflexa (ɹ). No entanto, vale frisar que a escolha dos falantes pela realização de uma dessas formas é fortemente determinada pelo contexto ocupado pelo segmento na palavra.
Em posição de onset (ex. rabisco, carro), observa-se com maior frequência a produção de fricativas posteriores a partir da velar, ficando a vibrante restrita ao uso por bilíngues, em especial descendentes de italianos, e por alguns monolíngues mais velhos, neste caso muitas vezes associado a um prestígio de fala que mimetiza a escrita5. Já como segundo membro de grupos consonantais (ex. grato, preso), verifica-se quase categoricamente a realização de tepe. Por fim, é na posição de coda, seja medial (ex. perda) ou final (ex. amar, dor), que se verifica maior variação entre tepe, retroflexa, fricativa glotal e formas apagadas (Monaretto, 2009; Silveira, 2010; Serra e Callou, 2013; Oushiro e Mendes, 2013; Callou et al., 2015). Tais usos são em geral regionalizados, de modo que permitem rapidamente identificar a procedência do falante tão somente pelo rótico que produz em coda. Em espanhol padrão, conforme descreve Hualde et al. (2010), temos duas realizações comuns para os róticos: a vibrante múltipla (r) e o tepe (ɾ). Estão em contraste na posição de onset, sendo que apenas a primeira se realiza em início de palavra. Na coda, variam, com prevalência do tepe. A Tabela a seguir resume e exemplifica as possíveis realizações dos róticos em espanhol em diferentes contextos.
Da mesma forma que vem sendo relatado nos estudos sobre o fenômeno em variedades do PB, a posição de coda também têm sido apontada como contexto favorável à alternância de róticos em diversas variedades do espanhol, sendo o apagamento verificado, em maior escala, em variedades específicas, como se verá na seção seguinte, em que apresentamos uma revisão de estudos que abordaram o processo nesse contexto em PB e EA, foco de interesse deste estudo.
Um último aspecto a ser abordado ainda nesta seção diz respeito à forma subjacente dos róticos nas variedades que discutimos aqui. Uma das principais evidências em favor da ideia de que róticos se constituem como uma classe de sons é o fato de, trocando de posição silábica, permitirem alternância entre suas diferentes realizações, revelando a alofonia. O processo de metátese em erros de fala contribui para essa conclusão. É o caso de uma apresentadora brasileira de TV - usuária de variantes fricativas posteriores de róticos em coda, pronúncia comum ao dialeto carioca -, que ao dizer “agora vamos para o int(ɾ)evalo”, rapidamente corrigiu-se dizendo “para o inte(x)valo”.
Outro exemplo que ilustra a interpretação de róticos como classe é o de um famoso narrador esportivo brasileiro conhecido por usar vibrantes salientemente pronunciadas em nomes de jogadores, como (r)onaldinho ou (r)ivaldo, que, ao dizer o nome do jogador Juan (grafado pelos parâmetros da escrita hispânica), pronunciou, sob efeito de hipercorreção, (r)uan. Esses exemplos, em nosso entendimento, estão mostrando que essas variantes se encontram, em algum nível de nossa competência fonológica, associadas sob um mesmo guarda-chuva.
Há importante debate sobre a forma subjacente dos róticos tanto em português quanto em espanhol. Apesar de alternar com certa liberdade nas demais posições, em posição intervocálica os dois sistemas contam com uma oposição entre R-forte e fraco: port., caro vs. carro; esp., pero 'mas' vs. perro 'cachorro'. Câmara Jr. (1953) assumiu, num primeiro momento, que o fonema básico do português era o R-forte, que sofria abrandamento em contexto intervocálico. O autor reviu mais tarde esse posicionamento, admitindo a existência de dois fonemas. Lopez (1979) e Monaretto (1992, 1997) consideram, ao contrário, que o fonema básico é o R-fraco, e que a variante forte, de carro, é produto de geminação de duas variantes fracas, uma de coda e outra de onset. Ponto de vista semelhante é defendido por Harris (1983) para o espanhol. Outros autores, porém, entre eles Bonet e Mascaró (1997) e Hualde et al. (2010), fazendo uso de outros expedientes explicativos, admitem representações fonológicas distintas para esses dois róticos.
A definição de qual é mais básico, ou mesmo a caracterização de sua representação - se segmental ou autossegmental, se plenamente especificada ou não - é menos relevante aqui. Por outro lado, nossa análise depende de assumirmos ao menos que (i) há formas subjacentes que se mapeiam com formas de superfície para produção/emergência de róticos nos sistemas abordados (rejeitando a hipótese what you see is what you get, prevalente em abordagens baseadas no uso); (ii) essa forma subjacente, em posição de coda, é uma só, independentemente de sua realização fonética (ou mesmo de seu apagamento), tanto em PB quanto em EA.
Norteados por esses dois pressupostos, daqui em diante, por convenção, usaremos /R/ para nos referirmos a tal forma6.
3. O apagamento de róticos no espanhol e no português
Nesta seção, descrevemos elisão de /R/ em coda em variedades tanto do português quanto do espanhol, de modo preponderante do PB e do EA, com vistas especialmente ao debate sobre o fenômeno que afeta codas finais, que rotulamos como AR. Esbarramos em dificuldade para comparar os dois sistemas por uma via quantitativa, já que, como prenunciamos na introdução, a literatura sobre o fenômeno no português conta com maior detalhamento dessa natureza - por haver muitos estudos no escopo da Teoria da Variação e Mudança (TVM) - do que disponibiliza a literatura sobre o espanhol. Assumimos, então, em alguns pontos, tom qualitativo em nossa descrição, preocupados em oferecer um panorama não exaustivo, mas informativo o suficiente, sobre o fenômeno nas duas línguas.
Díaz-Campos e Ruiz-Sánchez (2008) estudaram o fenômeno de apagamento de /R/ em posição de final de palavra (ex: cantar ~ cantaØ, mujer ~ mujeØ) em duas variedades do espanhol historicamente relacionadas: a de Andaluzia (Espanha) e a da Venezuela (América Latina), dentro do quadro teórico da TVM. Os autores investigaram 62 inquéritos de fala, 36 de cada uma das comunidades. As variáveis controladas foram contexto fonético seguinte (obstruintes, soantes, vogais, pausa), categoria gramatical (formas verbais no infinitivo, conjunções, substantivos, advérbios, adjetivos, preposições), unidade morfêmica seguinte (clítico, não clítico), idade, sexo e nível sociocultural. Os resultados indicaram que o apagamento de /R/, nas duas variedades estudadas, foi influenciado praticamente pelos mesmos grupos de fatores: todos os contextos seguintes, à exceção das obstruintes, com destaque para contexto de pausa (contexto mais significativo); formas verbais no infinitivo7; alvos seguidos por unidades morfêmicas não clíticas. Em relação às variáveis extralinguísticas, entre venezuelanos, o apagamento mostrou-se mais significativo na fala de sujeitos de estratos sociais mais baixos; entre andaluzes, na fala de sujeitos sem curso superior.
Lipski (2011), ao descrever o comportamento das consoantes líquidas no espanhol, faz alusão ao apagamento de /R/ em coda final. Segundo o autor, as localidades em que o processo acontece com maior frequência, tanto em não verbos quanto em verbos, são Cuba, Panamá e Costa Caribenha da Colômbia.
Em relação às demais localidades da América Latina, apesar de não apresentar dados quantitativos, o autor afirma que AR é predominante em formas verbais (ir ~ iØ).
Por fim, no que diz respeito a variáveis extralinguísticas, Lipski identifica maior probabilidade de apagamento entre falantes da classe trabalhadora rural.
Beaton (2015), a partir da análise acústica das realizações de róticos do espanhol porto-riquenho, sugere inicialmente que o apagamento de /R/ em coda seria influenciado nessa variedade pela vogal /i/ precedente ao segmento-alvo. No entanto, em uma investigação mais acurada, observou que a maior parte dos dados que apresentava o contexto vocálico referido eram da forma verbal “ir” - o que a leva a concluir que o processo seja condicionado lexicalmente, mais do que motivado fonotaticamente. A Tabela 3 apresenta as realizações de /R/ no espanhol porto-riquenho encontradas no estudo de Beaton (2015), em que o apagamento da coda se apresenta em 7,2% dos casos.
Guy (2014), olhando para os fenômenos de apagamento consonantal no EA, tais como queda de /s/, /l/ e /n/ em posição de coda final, refere-se a AR como fenômeno característico principalmente da variedade caribenha do espanhol. O autor não menciona nenhuma restrição linguística a não ser uma tendência de evitação de coda silábica, identificada nas línguas de matriz africana em contato com essa variedade, fato que justificaria a maior aplicação do fenômeno. Já em relação a fatores extralinguísticos, destaca a maior incidência do processo em dados de fala informal e de trabalhadores rurais.
Cóstola (2017), da perspectiva da fonética acústica, estudou a produção dos róticos em posição de coda silábica em algumas variedades do espanhol, a saber, colombiana, cubana, peruana, argentina, mexicana e espanhola. A hipótese da autora era a de que haveria similaridade na produção dos róticos independentemente da variedade investigada. A metodologia empregada foi a leitura de uma canção folclórica bastante conhecida no universo hispânico, selecionada por apresentar róticos em posição de coda medial, de coda em final de palavra e de coda em final de sentença, - este último o contexto mais propício ao apagamento, segundo a autora. Sete informantes do sexo feminino, duas peruanas e uma de cada uma das demais variedades, executaram a leitura. O apagamento de /R/ foi constatado, de modo geral, em 13,5% dos dados. No que diz respeito ao índice de apagamento por indivíduo, as informantes que mais realizaram o processo foram a representante da variedade espanhola (34,2%) e a da variedade argentina (11,1%).
Em português, o processo de apagamento de róticos em coda silábica pode ser considerado fenômeno antigo na língua. Serra e Callou (2013) afirmam que já nas peças de Gil Vicente (século XVI) a ausência de /R/ era empregada para representar a fala de escravos, o que nos dá indícios de se tratar, à época, de traço linguístico saliente e estigmatizado. Segundo as autoras, o fenômeno expandiu-se no PB e, na atualidade, configuraria o “estágio final de um processo de enfraquecimento que leva à simplificação da estrutura silábica (...)” (Serra e Callou, 2013: 582).
Cardoso (1999), centrado na região Norte, analisou apagamento de /R/ em final palavra em dados de fala de quatro informantes de Belém do Pará. O índice geral de apagamento computado pelo autor foi de 49%. No estudo, seis entre as variáveis controladas mostraram-se relevantes: das extralinguísticas, informantes menos escolarizados, contextos de nível menos formal, estudantes (em oposição a professores) e sujeitos que avaliaram positivamente o apagamento; das linguísticas, verbos e nomes derivados (em oposição a nomes monomorfêmicos).
Brescancini e Monaretto (2008) apresentaram um panorama geral dos estudos realizados acerca do comportamento variável dos róticos na região Sul a partir do Projeto VARSUL (Variação Linguística na Região Sul do Brasil). Dentre as generalizações, no que se refere à variante apagada (ex. andar ~ andaØ, colher ~ colheØ), as autoras destacam que, nos estudos revisados (Monguilhott, 1997; Monaretto, 2002; Pimentel, 2003), os fatores que se mostraram favorecedores a AR foram classe morfológica (verbos favorecendo mais o apagamento do que não verbos), posição do /R/ na palavra (posição posvocálica final), contexto precedente (vogais, em especial, a vogal /e/) e contexto seguinte (fricativo).
Silveira (2010), também fazendo uso dos dados do Projeto VARSUL, analisou o processo de apagamento de /R/ em coda medial e final nas localidades de Blumenau e Lages, em Santa Catarina, e Londrina e Pato Branco, no Paraná. A taxa geral de apagamento foi de 30%, sendo 86% para verbos no infinitivo e 2% para não verbos.
Serra e Callou (2013), por seu turno, analisaram o comportamento dos róticos em posição de coda (apagamento vs. manutenção de /R/) na fala de estudantes universitários de três capitais representativas de regiões brasileiras: Salvador, região Nordeste, Rio de Janeiro, região Sudeste e Porto Alegre, região Sul. Os inquéritos de fala investigados foram provenientes de dois períodos, 1970 e 1990, do Projeto NURC (Norma Urbana Culta), configurando um estudo em tempo real, mais especificamente um estudo de painel. As autoras observaram duas tendências em relação ao processo nos dialetos investigados: posteriorização de /R/ decorrente da passagem da variante vibrante a uma fricativa com consequente apagamento ou passagem da variante vibrante à variante apagada sem necessário enfraquecimento prévio.
O estudo revelou que (i) há um comportamento diferenciado nas três localidades investigadas em ambas as amostras nas duas décadas estudadas, observou-se a mesma ordem decrescente de aplicação do apagamento: Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre; (ii) há sensibilidade à classe morfológica (verbos / não verbos) nas variedades carioca e gaúcha, tanto na década de 1970 quanto na década de 1990, apesar de se observar um aumento nos índices de apagamento de cerca de 40% em dados de não verbos no Rio de Janeiro na década de 1990; (iii) não há, desde a década de 1970, indícios robustos de sensibilidade à classe morfológica no dialeto de Salvador.
Com base nesses achados, as autoras defendem a existência de três regras de apagamento de /R/ em curso no PB: uma categórica, sensível à classe gramatical, representada no estudo pela variedade de Porto Alegre, na qual se verifica apagamento quase absoluto em final de verbos e poucos dados de apagamento em não verbos; outra, variável, representada pela variedade do Rio de Janeiro, em que o processo é verificado tanto em verbos quanto em não verbos; e uma terceira, por fim, representada pelo dialeto de Salvador, que, assim como se observou para Porto Alegre, configuraria processo categórico de apagamento, mas, diferentemente, revelando insensibilidade à classe morfológica, por apagar quase igualmente o /R/ final de verbos e não verbos.
Em vista do resultado encontrado para a cidade de Salvador, Callou et al., em estudo de 2015, revisitam o processo em dados das capitais do Nordeste, utilizando-se de dados do Projeto ALiB (Atlas Linguístico do Brasil). A região como um todo apresentou 94% de apagamento em verbos e 72% de apagamento em não verbos. Ao observar a sensibilidade à classe, as autoras identificaram três padrões distintos, conforme mostra a Tabela 4.
Como justificativa para essa diferença entre as capitais nordestinas, as autoras fazem menção à distribuição de escravos e de população branca livre no período colonial e imperial. Callou et al. (2015) sustentam, com base nisso, que, para os dialetos de Teresina e Aracaju (capitais com menores taxas de apagamento tanto para verbos quanto para não verbos), os baixos índices de apagamento se explicariam pelo menor contato de seus usuários com a fala de povos escravizados.
Considerando os estudos resenhados nesta seção, podemos afirmar que o processo de apagamento de /R/ em coda é mais frequente em PB do que em EA. Ocorre, contudo, nas duas línguas, de modo preponderante em final de palavra e em verbos.
No PB, esse apagamento, a que rotulamos por AR, é quase categórico em verbos. Nem em PB, menos ainda em EA, AR em não verbos supera a aplicação do processo em verbos.
4. Outputs convergentes e AR
A investigação de fenômenos fonológicos variáveis tem propiciado importantes elementos para o debate sobre modelagem gramatical em abordagens formais. A ideia de que o produto fonético produzido e percebido pelos indivíduos deve ser pareado com uma estrutura mais básica, de caráter mais abstrato e coletivo, fundamenta a teoria estruturalista saussuriana e a teoria gerativa.
Nesta seção, defendemos que AR, tanto em PB quanto em EA, está entre os processos que contribuem para sustentar a tese de que a substância fonética é produto de mapeamento input-output. Nosso principal argumento é o de que se trata de fenômeno que, embora se apresente com uma única face fonética (no caso, a palavra, ou output, com a variante apagada), faz referência a dois processos distintos, isto é, configura-se como um caso de Outputs Convergentes (OCs).
Para se fundamentar a hipótese de OCs (Schwindt, 2015) é preciso em primeiro lugar que se retome o pressuposto neogramático a respeito da mudança de som, a saber, o de que os sons mudam gradualmente e de que essa mudança não tem acesso a informação gramatical (Osthoff e Brugmann, (1878) 1967). Essa ideia perpassou os modelos formais de gramática do século XX, estando claramente refletida na oposição saussuriana língua vs. fala e chomskiana competência vs. performance. Mesmo a TVM, em sua proposição primeira (Labov, 1966, 1969, 1972), apesar de questionar a marginalidade da substância fônica no conhecimento gramatical, ao conceber a gradualidade na mudança do som, acabou por se desenhar no perfil das ideias neogramáticas.
A problematização, contudo, de que fenômenos fonológicos variáveis podiam estar sujeitos a algum tipo de motivação gramatical, em especial morfológica (Labov e Cohen, 1967; Guy, 1980; entre outros), bem como o avanço dos estudos sobre difusão lexical (Wang e Cheng, 1977; entre outros), foram redimensionando o entendimento da modelagem da mudança sonora em diferentes perspectivas. Textos como o de Labov (1981), que admite que a mudança pode se dar tanto pela via neogramática quanto por difusão lexical, ou o de Kiparsky (1988; 1995), que admite, no escopo da Fonologia Lexical, que processos variáveis podem se infiltrar no léxico (até então cem por cento preservado de alternantes não contrastivas), são bons representantes desse redimensionamento. A partir disso muitos modelos formais, fazendo uso de regras ou de restrições, numa perspectiva de léxico serialmente estratificado ou numa versão paralelista não modular, colocam a variação como um de seus principais desafios explicativos8.
Se é verdade que a fonologia variável pode acessar a morfologia, precisamos explicar a extensão dessa relação.
Estudos sobre variação sonora, mesmo que neogramaticamente projetados, comumente incluem em seus grupos de fatores variáveis independentes como localização morfológica do gatilho ou do alvo dos processos ou classe gramatical. Não se trata, porém, de hipótese trivial. Admitir que uma variação fonética, envolvendo uma assimilação, tem comportamento diferenciado se o alvo do fenômeno for uma vogal presente na raiz, por exemplo, mas não num prefixo (como a harmonia vocálica em PB: d<i>stino, mas *pr<i>destinado), ou dizer que o alvo não pode estar em determinado sufixo (também a harmonia vocálica em PB: b<u>lita, mas *b<u>linha), ou ainda afirmar que determinado apagamento acomete mais verbos do que substantivos, por exemplo, requer entender que, em alguma medida, o sistema distintivo das línguas também se sujeita a variação.
O que os estudos sobre o tema têm mostrado é que essa constatação não pode ser vista de modo absoluto. Assumimos a existência de um continuum que se estende do tipicamente variável ao categórico, de modo que, no meio da escala, acomodam-se esses processos que, ainda que variáveis, podem ser considerados menos superficiais do que os fenômenos que se aplicam sempre que encontram contexto (across the board). São esses os processos que podem sofrer algum controle da morfologia. Uma questão complexa, porém, entre várias, advém dessa proposta: diz respeito à identificação desses fenômenos, em especial quando dois outputs da língua, representantes da mesma alteração sonora, podem se localizar mais ao meio ou mais na superfície desse continuum9.
Exatamente neste ponto um fenômeno como AR é ilustrativo. O processo distingue verbos de não verbos, pois se aplica mais significativamente aos primeiros, mas o resultado é uma redução idêntica em nível de superfície - para as duas classes trata-se de um /R/ que é apagado em final de palavra em sílaba tônica.
Segundo a hipótese de OCs, no caso de apagamento de róticos em coda, dois processos estão envolvidos: um mais precoce, que afeta verbos apenas, e outro mais superficial, que afeta quaisquer palavras, independentemente da classe.
Na Tabela 5 procuramos nomear dois processos de apagamento distintos. O primeiro processo atinge verbos e o segundo todas as classes, como prevê nossa hipótese. Cumpre-nos, agora, caracterizar cada um desses processos.
O processo I, que consideramos fonológico, diz respeito a um apagamento que atinge uma posição tipicamente fraca, a coda final, apesar de proeminente por ser acentuada (ideia adaptada da proposta de De Lacy, 2001). A evidência de que esse processo interage com a morfologia está no fato de que I só se aplica a verbos, ou seja, depende de informação sobre classe ou sobre constituência interna da palavra. A razão para isso está, paradoxalmente, na preservação do apagamento de expoentes morfológicos.
O processo preponderantemente não atinge não verbos para não apagar conteúdo da raiz (como em ma/R/, em que /R/ faz parte da raiz da palavra, constituindo, inclusive, em português, a forma apagada um par mínimo com má, feminino de mau). O paradoxo reside no fato de que, nos verbos, ao apagar /R/, apagamos justamente um monomorfema que indica infinitivo do verbo (ou o futuro do subjuntivo). Nesse caso, contudo, o morfema apagado é sempre compensado pela vogal temática acentuada, como particularidade de tais formas no paradigma verbal (não há outra forma verbal com essa característica que admita apagamento, fazendo desse acento uma qualidade distintiva).
Uma alternativa de formalização de OCs é o uso de restrições violáveis ranqueadas entre si. Fazendo uso desse expediente teórico, não precisamos abrir mão de nenhuma das condições ou princípios linguísticos que enunciamos, mas tão somente submetê-los a avaliação. Podemos admitir, nessa perspectiva, que uma restrição (ou regra) fonológica que milita a favor de apagamento da margem /R/ é limitada por uma restrição que milita contra o apagamento de morfemas, e que esta última, por sua vez, é limitada por outra restrição que admite efeito compensatório na exponenciação fonológica do morfema, isto é, concebe-o como realizado na vogal temática acentuada.
Formalizamos um ranking provisório de restrições numa abordagem aqui bastante rudimentar da Teoria da Otimidade (Prince e Smolensky, 1993; McCarthy e Prince, 1993), por não ser foco deste texto:
Faithrootstr, MorphReal » R-M(argin)-σstr » Max(Inf).
Importa menos a definição estrita de tais restrições para nossos objetivos. Vale a pena dizer que a primeira restrição impõe fidelidade à posição acentuada da raiz, respondendo pela preservação de /R/ em formas não verbais; a segunda restrição, sem relação de dominância com a primeira, prevê que morfemas se realizem de forma aberta, permitindo que se interprete o acento na vogal temática como realização do som apagado que correspondia, na forma subjacente, ao morfema de infinitivo; a terceira restrição, dominada pelas anteriores, é responsável pela demanda de apagamento de /R/ em margem acentuada; a última restrição, por fim, também dominada pela anterior, proíbe o apagamento do morfema de infinitivo.
O processo II é, em nosso entendimento, puramente fonético. Trata-se de um fenômeno de enfraquecimento em posição de coda, o mesmo que responde pela passagem de /R/ a (h), que pode resultar em total apagamento, Ø.
Este processo não distingue verbos de não verbos e também não distingue crucialmente coda medial de coda final, embora, por conta da maior debilidade da posição final, possa ser mais frequente ali.
Esse segundo processo, como se observa nas descrições a que tivemos acesso, também apresenta maior sensibilidade a fatores sociais, o que o diferencia do primeiro, que parece limitar-se, do ponto de vista extralinguístico, sobretudo a registro. Na mesma linha do que propusemos para I, ensaiamos um ranking parcial para formalizar II:
HavePlace >> Ident-IO.
A primeira restrição bane candidatos a output que contenham segmentos debucalizados (sem ponto de articulação, como (h))11; a segunda, define a preferência por formas maximamente fieis ao input.
Não podemos perder de vista, entretanto, que não há evidência robusta de que o EA posteriorize /R/ na coda, e muitos dialetos do PB também não praticam essa posteriorização. Por essa razão, o processo em não verbos é quase inexistente em muitos sistemas, mas, onde existe, se subordina (ou raramente se iguala) ao apagamento em verbos. Isso porque, se assumirmos ordenamento de alguma natureza entre os rankings acima, podemos dizer que todas as formas de I são atingidas por II, mas as formas de II não são necessariamente atingidas por I, numa relação de subconjunto, ou Elsewhere Condition, nos termos de Kiparsky (1973).
As duas gramáticas que caracterizamos aqui permitem aproximar tipologicamente línguas e variedades que promovem diferentes combinações dos processos que identificamos envolvendo róticos. No caso do PB, a competição entre essas duas gramáticas parece dar conta das três diferentes regras sugeridas por Serra e Callou (2013). As variedades abordadas do EA também parecem estar cobertas por essa proposta.
Resta explicar, por fim, por que, apesar de raros, há casos de apagamento em não verbos em dialetos que não posteriorizam o /R/ em coda. Acreditamos que tais casos estejam justificados lexicalmente mais do que gramaticalmente. Um exame mais acurado dos exemplares que constituem as amostras dessas localidades, como realizaram Rennicke (2015), para informantes do Sul de Minas Gerais, e De Bona (2018), para informantes cariocas, pode revelar efeitos de frequência lexical e até mesmo de reestruturação de formas subjacentes nesses casos.
5. Considerações Finais
Neste texto tratamos do apagamento variável de róticos em coda em português e espanhol com o objetivo de oferecer evidências à hipótese de Outputs Convergentes, defendida em Schwindt (2015).
Em nosso recorte analítico privilegiamos a posição final de palavra, uma vez que é nesse contexto que se observa interação entre fonologia e morfologia - condição para a hipótese debatida -, tendo em vista que o processo diferencia verbos de não verbos tanto em português brasileiro quanto em espanhol americano, as variedades focalizadas.
Realizamos uma descrição não exaustiva de trabalhos que abordaram o fenômeno nas duas línguas. É consensual nesses estudos a preferência pelo apagamento em verbos, ainda que haja dialetos do português brasileiro em que o apagamento em não verbos também se aplica em grande proporção. Duas constatações cruciais para a tese debatida são licenciadas por essa descrição: se o sistema apaga /R/ final em verbos, apagará também em não verbos; apenas sistemas em que se posterioriza /R/, convertendo-o de velar a glotal, apagam essa consoante em não verbos. Os casos relativamente raros de apagamento em não verbos constatados em sistemas em que não se posterioriza o róticos seriam explicados em bases lexicais, o que, nesta análise, para nós, escapa ao domínio gramatical.
Em posse das constatações descritivas, sustentamos que o fenômeno em análise pode ser considerado um caso típico de convergência de outputs, isto é, dois processos ou duas gramáticas ordenadas concorrem distintamente em certo nível de análise para dar conta de formas ambíguas ou cumulativas de superfície com apagamento do rótico final. O primeiro desses processos demanda apagamento de /R/ em coda final mesmo acentuada, mas, porque interage com a morfologia, preserva raízes (às quais se integram /R/s de não verbos); não é bloqueado em verbos, contudo, por força de restrição que permite se entender o acento da vogal temática como a realização do monomorfema indicador de infinitivo apagado.
O segundo processo é fonética e socialmente motivado: o apagamento se deve à força da gramática em evitar segmentos debucalizados (ou que estão num percurso de debucalização, (x) → (h) → Ø). Por ser mais geral, ou mais tardio, numa análise serial, este segundo processo atinge os não verbos e também os verbos, que já se sujeitaram, por sua vez, ao primeiro processo. Isso explicaria por que o fenômeno é exponencialmente favorecido em verbos (Guy, 1991).
Por limitações de foco e espaço, alguns aspectos não foram suficientemente detalhados neste estudo, podendo ser incrementados por um olhar mais minucioso. Primeiro, optamos por não aprofundar o debate sobre a forma subjacente dos róticos nessas línguas. Por ser suficiente para o enfoque dado, apenas assumimos uma forma abstrata, a qual representamos como /R/. Nossa análise não prosperaria, contudo, numa perspectiva que não diferenciasse formas subjacentes e formas de superfície.
Em segundo lugar, não nos preocupamos em discutir as diversas realizações de /R/ nos dois sistemas, embora saibamos que tais informações, incluindo as relações de subconjunto entre onset e coda e entre diferentes posições de coda, podem ser bastante informativas quando se promove um debate tipológico. Em terceiro lugar, não exploramos o papel das muitas variáveis linguísticas que podem concorrer para o apagamento de róticos, restringindo-nos à classe, que é a variável crucial no conjunto mais amplo que dá conta dessa variação.
Também não priorizamos o exame das variáveis extralinguísticas, contentando-nos com a constatação de que parecem ser mais relevantes para o processo que identificamos como mais superficial. Por fim, do ponto de vista metodológico e teórico, entendemos que merecem aprofundamento em nossa análise a observação cuidadosa do papel da frequência lexical no fenômeno, de modo preponderante em não verbos, bem como a definição das restrições envolvidas, o que inclui o debate sobre seu nivelamento numa gramática de base formal.