1. Considerações iniciais
Em qualquer texto, o universo de sentido que o discurso oferece pode ser imposto pelo ethos, uma das principais provas retóricas, conforme os pressupostos aristotélicos. Na Retórica, Aristóteles propõe três dimensões para o entendimento do processo argumentativo, quais sejam: o logos (que se refere ao discurso em si), o pathos (o poder do orador de despertar emoções em seu auditório) e o ethos (a imagem, verdadeira ou não, que o orador constrói de si no intuito de persuadir seu auditório).
Considerando-se que o que se diz e a maneira como se diz são capazes de revelar modos de ser (isso, evidentemente, incluindo as produções humorísticas), este texto, dedicado a explorar o ethos, tem como objetivo principal mostrar como os Fradinhos, personagens do humor gráfico brasileiro, criados pelo desenhista Henfil, revelam-se no discurso humorístico. Mais ainda, quais são as disposições que tornam a dupla de frades engraçada. Para isso, buscamos estabelecer relação entre ethos e humor gráfico.
O referencial teórico que fundamenta as análises sobre ethos aqui empreendidas advém especialmente da Retórica e da Nova Retórica, a partir de pressupostos formulados por Aristóteles na Retórica, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004) e Meyer (2007). No que tange à relação entre humor gráfico e ethos, tomamos como base os estudos de Aragão (2010-2011), a Ética a Nicômaco de Aristóteles (1991), Mendes (2008), Frye (2013) e Sodré e Paiva (2002).
O corpus de análise deste texto compreende as produções do primeiro número da reedição da revista Fradim (2013), tendo em vista que tal volume concentra 111 exemplos das histórias produzidas por Henfil. Tais narrativas - que se apresentam em preto-e-branco, variam entre tiras cômicas (61 ocorrências), produzidas sob diferentes formatos, e histórias em quadrinhos curtas e longas (os demais casos) - foram publicadas em momentos e revistas distintas (Alterosa, Pasquim, Fradim). Por ser uma amostra heterogênea e concentrada da série, entendemos que ela seja capaz de dar uma noção de sua produção e dos ethé instaurados pelos personagens.
Embora o aprofundamento sobre a diferença entre tira cômica e história em quadrinhos de humor seja secundária a este estudo, uma vez que o foco do artigo é outro, assinalamos, a título de esclarecimento, que as tiras se caracterizam por apresentar um ou mais quadros, consistem em uma narrativa tendencialmente curta, com desfecho inesperado, tendo personagem fixo ou não. No que concerne às histórias em quadrinhos humorísticas, pode-se dizer que se trata de textos predominantemente narrativos, desenvolvidos em diferentes formatos e suportes e que apresentam elementos explicitamente humorísticos, tanto na temática como na composição visual da história (cf. Ramos 2010, 2014; Carmelino 2014).
Em termos de configuração, este texto se estrutura da seguinte forma: a princípio, aborda-se o conceito de ethos com base nas perspectivas teóricas adotadas, estabelecendo uma relação entre ethos e humor gráfico; na sequência, busca-se contextualizar o autor e sua produção; finalmente, analisam-se algumas produções gráficas a fim de evidenciar a forma como os Fradinhos se revelam no discurso humorístico.
2. A noção de ethos à luz da Retórica e da Nova retórica
Embora o conceito de ethos remonte à Antiguidade - tendo em vista que a força persuasiva do caráter do orador, cuja reputação exercia grande influência na adesão dos ouvintes, antecede à Grécia pré-aristotélica -, é Aristóteles quem eleva a imagem do orador à condição de prova retórica, teorizando sobre o aspecto discursivo do caráter e dos costumes. Segundo o filósofo, “as provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar” (Retórica: 63).
Nesse sentido, o discurso mobiliza um orador, um auditório e um discurso, dimensões que são denominadas por Aristóteles, respectivamente, como ethos, pathos e logos. O ethos consiste no caráter que o orador deve assumir para convencer o auditório, ganhando sua confiança; é a imagem que o orador constrói de si em seu discurso, independentemente de ela ser sincera ou não. O pathos corresponde às emoções (paixões) despertadas no auditório; ao envolvimento e ao convencimento a partir de sentimentos e de crenças do auditório. Já o logos diz respeito à estrutura argumentativa do texto, aos argumentos propriamente ditos. No que diz respeito ao ethos, Aristóteles na Retórica (63) discorre sobre três disposições que tornam os oradores persuasivos, sem que haja necessidade de demonstrações, quais sejam: a prudência (phrónesis), a virtude (areté) e a benevolência (eúnoia). Segundo Fiorin (2015), na leitura que faz da Retórica de Aristóteles:
a) a phrónesis, que significa o bom senso, a prudência, a ponderação, ou seja, que indica se o orador exprime opiniões competentes e razoáveis; b) a areté, que denota a virtude, mas virtude tomada no seu sentido primeiro de “qualidades distintivas” do homem (latim uir, uiri), portanto, a coragem, a sinceridade; nesse caso, o orador apresenta-se como alguém simples e sincero, franco ao expor seus pontos de vista; c) a eúnoia, que significa a benevolência e a solidariedade; nesse caso, o orador dá uma imagem agradável de si, porque mostra simpatia pelo auditório. O orador que se utiliza da phrónesis se apresenta como sensato, ponderado e constrói suas provas muito mais com recursos do lógos do que com os do páthos ou do éthos (em outras palavras, com os recursos discursivos); o que se vale da areté se apresenta como desbocado, franco, temerário e constrói suas provas muito mais com os recursos do éthos; o que usa a eúnoia apresenta-se como alguém solidário com seu enunciatário, como um igual, cheio de benevolência e de benquerença e erige suas provas muito mais com base no páthos. (Fiorin 2015: 71)
Ao se levar em conta tais considerações, verifica-se que o orador manifesta um ethos de phrónesis, quando se vale mais dos recursos do logos; um ethos de areté, quando demonstra maior preocupação com a exposição de seu próprio ethos; ou ainda um ethos de eúnoia, quando se mostra mais preocupado em despertar no auditório as emoções adequadas à persuasão, fundamentando-se no pathos (Figueiredo e Ferreira 2016).
A retórica contemporânea - que renasce sob o rótulo de Nova Retórica a partir das teorias da argumentação propostas no final da década de 1950 - amplia (e ressignifica) o conceito de ethos. Este passa a uma construção do discurso condicionada aos interesses mútuos dos integrantes da atividade discursiva (Perelman e Olbrechts-Tyteca 1996), de modo que “o orador adapta sua apresentação de si aos esquemas coletivos que ele crê interiorizados e valorizados por seu público-alvo” (Amossy 2005: 126).
Para Reboul (2004: 48), a instância do ethos (que é a mais eficiente das provas) refere-se ao “caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório, pois sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança”. Desse modo, o ethos diz respeito à imagem, verdadeira ou não, que o orador constrói de si com o objetivo de persuadir e convencer seu auditório. Para isso, precisa preencher as condições mínimas de credibilidade do auditório.
Meyer (2007: 35) propõe uma noção mais moderna dessa prova, ressaltando que não se pode identificar pura e simplesmente o ethos ao orador, tendo em vista que “a dimensão do uso da palavra é estruturada de modo mais complexo. O ethos é um domínio, nível, uma estrutura”, no entanto “não se limita àquele que fala pessoalmente a um auditório, nem mesmo a um autor que se esconde atrás de um texto”. Para o autor, o ethos se apresenta “como aquele ou aquela com que o auditório se identifica, o que tem como resultado conseguir que suas respostas sobre a questão tratada sejam aceitas”.
Convém ainda acrescentar que o teórico belga distingue ethos imanente ou projetivo (“projeção da imagem que deve ter o ethos aos olhos do pathos”, ou seja, é a imagem que, a priori, tanto o orador quanto o auditório projetam entre si) de ethos efetivo ou não-imanente, o que corresponde à imagem realmente construída pelo orador, visando persuadir o auditório, a que seria, portanto, efetiva (Meyer 2007: 35).
Partindo dessas considerações e do fato de que muitos textos de humor põem em evidência certos modos de ser ou parecer (que configuram determinados tipos/caracteres) para provocar o riso, torna-se relevante tratar da relação existente entre humor gráfico e ethos. Nas produções gráficas humorísticas, o efeito de sentido pode ser imposto pelo ethos (comportamento ético) dos personagens.
2.1. O humor gráfico e a construção de ethé
Quando se fala em humor gráfico (ou visual), geralmente se faz referência a certas produções curtas de uma ou mais cenas sequenciais - caso da tira cômica, charge, cartum, história em quadrinhos de humor - que apresentam aspectos característicos, como a linguagem e os elementos composicionais (mescla de signos não verbais e verbais escritos em sua constituição, presença de personagem fixo ou não, título, legenda, uso de signos plásticos e icônicos), o formato (horizontal, vertical, diagonal, irregular1) e o local de publicação, que pode ser impresso ou virtual, como em jornal, revista, livro, site, blog (Carmelino, no prelo).
De acordo Aragão (2010-2011: 115), que toma como base os pressupostos de Morin (1970), o humor gráfico consiste “em desenhos, ancorados ou não por textos, que questionam as medidas do mundo, recusam a aparência das coisas e rompem com a fotogenia, virando pelo avesso as representações”. Para o autor, a teórica francesa propõe uma fórmula para a estrutura de construção do humor gráfico, na qual a força humorística residiria mais na parte ilustrativa que no texto. Nesse sentido,
os desenhos são comparados aos jogos de palavras das anedotas que rompem com o sentido inicial de uma proposição, produzindo uma ou mais possibilidades de interpretação. Os gatilhos que proporcionam tais rupturas são chamados pela autora de “disjunções”. São elas as reais motivadoras do processo que resultaria no riso. Essas rupturas provocariam uma justaposição ou sucessão de elementos sêmicos originalmente incompatíveis, e a percepção e a racionalização de tais “impossibilidades” seriam a raiz do cômico. Ou seja, o humor nasce da justaposição ou sucessão de elementos incompatíveis que explodem uma unidade narrativa. De acordo com a autora, o riso (...) dependeria da capacidade narrativa do ilustrador, assim como na anedota verbal o papel de guia fica sob a responsabilidade de quem conta a história. Porém, é necessário perceber que não seria o estilo do traço que provocaria o riso, mas a ação dos mecanismos disjuntivos. (Aragão 2010-2011: 116)
Em tais produções, além de o humor ser produzido pelas “disjunções”, como bem observa Morin (cf. Aragão 2010-2011), ele também pode estar ligado ao modo de ser, agir e se comportar do personagem, ou seja, a certos traços éticos que, de forma implícita ou explícita, são manifestados e ajudam a caracterizar determinados tipos ou caracteres cômicos.
Aristóteles, em um dos capítulos de Ética a Nicômaco, no qual aborda as paixões, entende que a virtude moral corresponde a um “meio-termo entre dois vícios”, que seria um equilíbrio entre o excesso e a carência. Como exemplo, no que concerne ao prazer em proporcionar divertimento, o virtuoso seria o espirituoso, aquele que se distancia dos extremos, que seriam: o excessivo chocarreiro/bufão e o deficiente rústico, sem senso de humor algum (Ética a Nicômaco: 38-41).
Mendes (2008) afirma que tais considerações (que se referem aos caracteres aristotélicos) tenham inspirado a classificação dos tipos cômicos da comédia, quais sejam: o impostor ou fanfarrão (alazón), o ironista ou autodepreciador (eíron) e o bufão (bomolóchos).
A esses tipos, Frye (2013) sugere que se acrescente um quarto, o camponês ou rústico (ágroikos). Tratemos de cada um deles separadamente:
alazón: alguém que finge ou tenta ser mais do que é; caracteriza-se pela confiança e otimismo desmedido, mas também pela ausência de conhecimento próprio; conforme Frye (2013: 153) - em sua “teoria dos mitos”, que vai da tragédia à comédia - na tragédia, o alazón representaria o erudito excêntrico, o filósofo obcecado, o cientista maluco, o intelectual pedante; na comédia, seria o esperto, o carismático e sem escrúpulos, espécie de patife;
eíron: caracterizado pela crítica e pela desconfiança; é o que costuma censurar e se autocensurar, desvelando, em geral, os excessos e a impostura do alazón; em geral é o personagem que se mostra como herói inocente (autocensura) ou como superior (censura os outros, desmascarando-os) (Frye 2013; Mendes 2008);
bomolóchos: personagem com espirituosidade demais; exalta a comicidade; tais traços são reconhecidos em palhaços, pajens ou qualquer outra figura secundária que tenha o objetivo de conseguir o entretenimento da audiência (Frye 2013); Mendes (2008: 155) observa que se trata de um tipo insano, incongruente;
ágroikos: opõe-se ao bomolóchos, pois apresenta espirituosidade de menos; é reconhecido pela ausência de senso de humor; esse tipo cômico está presente em personagens que exibem traços de ingenuidade, simplicidade ou até mesmo ignorância (Frye 2013; Mendes 2008).
Além de tipos cômicos, pode-se fazer rir pelo grotesco (bizarro, ridículo, extravagante, escatológico). Conforme Sodré e Paiva (2002), o grotesco invade a contemporaneidade, tendo em vista o fato de que ir de encontro a situações esteticamente padrão chama a atenção do auditório, predisposto a rir das situações desproporcionais, chocantes. Para esses autores, o espanto, o riso, o horror e o nojo sedimentam a estética do grotesco, que é caracterizada pela presença do rebaixamento. Nesse sentido, o grotesco envolve sentimentos, desperta emoções, como o prazer em ver o outro sofrer, chorar, decepcionar. Dentre as formas expressivas que singularizam o grotesco, Sodré e Paiva (2002) destacam quatro modalidades:
a) escatológico: diz respeito a dejetos, secreções, partes baixas do corpo, entre outros;
b)teratológico: relaciona-se ao risível, como a monstruosidade, aberração, deformação e bestialismo;
c)chocante: presente nas modalidades escatológico e teratológico do grotesco, tem objetivo de provocar um choque perceptivo;
d)crítico: ocorre quando o grotesco dá margem a um discernimento formativo; a percepção do fenômeno revela o que se tenta esconder; liga-se a convenções, ideias, como acontece nas caricaturas, paródias, “ora rebaixando as identidades poderosas e pretensiosas, ora expondo do modo risível ou tragicômico os mecanismos do poder abusivo” (Sodré e Paiva 2002: 69).
Tanto os tipos cômicos quanto os grotescos revelam certas imagens de si, que, aqui, estamos considerando, respectivamente, como ethos cômico e ethos grotesco. Nas produções gráficas humorísticas, esses ethé muitas vezes não só explicam a construção do humor, mas, também, funcionam como instrumento narrativo.2 Uma análise rápida de alguns personagens do humor gráfico brasileiro que se tornaram conhecidos pelos traços comportamentais característicos pode confirmar tais observações.
A título de ilustração, podemos citar: o sacana irônico O Amigo da Onça, de Péricles Maranhão; o ingênuo Armandinho, de Alexandre Beck; o medroso Ubaldo, o paranoico, de Henfil; os maldosos e violentos Piratas do Tietê, de Laerte; a devassa Rebordosa, de Angeli; o desleixado e folgado Geraldão, de Glauco; o bajulador Fagundes, de Laerte; os escatológicos e maus-caracteres Skrotinhos, de Angeli.
Em cada um desses casos, desconsiderando-se as especificidades, depreende(m)-se ethos/ethé e, de certa forma, pode-se falar na presença de ethos cômico (O Amigo da Onça, Armandinho, Fagundes, Geraldão) ou ethos grotesco (Piratas do Tietê, Skrotinhos). Mais ainda, em textos de humor podemos pensar na existência de um ethos-estereotipado, como visto em Carmelino e Gatti (2018), no qual “as marcas estereotípicas exageradamente assinaladas levam à produção de uma imagem/representação-rotulada, que, aliada a outros recursos (linguísticos ou não), muitas vezes, é a causa do riso”. Os Fradinhos, de Henfil, entram no rol dos personagens do humor gráfico brasileiro que se caracterizam tanto por revelarem ethos cômico quanto ethos grotesco. Antes de mostrarmos tais imagens, faz-se necessário contextualizarmos o autor e a sua produção.
3. Henfil e Fradinhos: em contexto, o autor e sua produção
O cartunista Henrique de Souza Filho nasceu em janeiro de 1944, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Embora tenha vivido apenas 43 anos (hemofílico de nascença, contraiu o vírus da AIDS em uma das transfusões de sangue e acabou falecendo em 4 de fevereiro de 1988), teve uma vida bastante intensa e produtiva, tornando-se um dos desenhistas mais importantes do Brasil. Fez, sem sombra de dúvida, valer seu dito “Morro, mas meu desenho fica” (Henfil 1993; Morais 1996). E ficou.
Estudiosos e colegas de trabalho de Henfil3 são unânimes ao salientarem sua enorme contribuição, ressaltando que o profissional deixou “marcas profundas na mídia, na cultura e na história do Brasil” (Henfil 2008: 6).
Ao longo de sua vida4, trabalhou para diferentes jornais e revistas (Diário de Minas, Diário da Tarde, Última Hora, Jornal dos Sports, O Cruzeiro, Manequinho, Revista Pais e Filhos, O Paiz, Placar, O Pasquim, Jornal do Brasil, A Notícia), notabilizando-se pela criação de personagens simbólicos e de mascotes para clubes. Além do intenso trabalho na imprensa, Henfil também atuou na televisão brasileira com o quadro TV Homem do programa TV Mulher (exibido na Rede Globo); expôs seu ponto de vista nas Cartas da Mãe, publicadas na revista IstoÉ; escreveu livros e peças de teatro; produziu e dirigiu o filme Tanga, Deu no New York Times; colocou para circular a revista Fradim (1971-1980) (Henfil 1993, 2008; Morais 1996; Malta 2012).
Dentre os vários personagens emblemáticos criados pelo cartunista (e que ajudaram a construir a história do humor gráfico brasileiro), destacam-se, além dos Fradinhos, a Turma da Caatinga, que compreendia Capitão Zeferino, Graúna e Bode Francisco Orelana; Ubaldo, o Paranoico; Orelhão, o Operário; e Cabôco-Mamadô. Há muitos outros, porém menos conhecidos, como a feminista Zilda-Lib; Xabu, o Provocador; Ovídio, o Perfil do Careca; Tamanduá, o Chupa-Cérebros; o Preto-Que-Ri, que reage ao racismo com gargalhadas; o Delegado Flores, que reprime às avessas; o Flautista de Ramelin, persuasivo em seus argumentos (Morais 1996; Malta 2012).
O traço de Henfil, definido por ele mesmo como caligráfico5, é considerado ímpar, seja pela espontaneidade, leveza, agilidade, seja pelo despojamento de preocupações estéticas. O humor do desenhista, em geral de viés político, faz rir, mas causa desconforto e tende a levar à reflexão. Por meio das produções cômicas, ele denunciava arbitrariedades, omissões, cerceamento da liberdade de expressão, hipocrisias e questionava comportamentos de autoridades e personalidades públicas durante o período de ditadura militar (1964-1985) - Henfil queria mudar o mundo, reverter expectativas.
No que concerne aos Fradinhos, como dito na introdução, trata-se de uma dupla de frades. Idealizados em 1964, os personagens ficaram conhecidos pela estatura que apresentam: Baixinho e Comprido - ou Baixim e Cumprido, como foram mineiramente (referente ao modo como os moradores do estado de Minas Gerais, Brasil, falam) aculturados. O Baixim é irreverente, sarcástico, perverso, sádico; faz de tudo para azucrinar o Cumprido. Já o Cumprido é recatado, conservador, bondoso, ingênuo, medroso. Na verdade, como observa Nilson (1993), o Baixim, com seu deboche, atacava tudo que a maioria silenciosa tinha medo de ousar; enquanto o Cumprido, por sua vez, era a encarnação do espírito religioso que nos ensinava, como nos dez mandamentos, darmos a outra face. Vejamos dois exemplos.
O primeiro exemplo consiste numa história em quadrinhos curta, feita em cinco cenas divididas em quadros demarcados com linhas de contorno (cf. Ramos 2010). Nela, vê-se que Cumprido fica admirado com o fato de o Baixim contemplar, dia e noite, o nascimento de uma flor (cenas 1 e 2).
Diante da situação “inusitada” (que “pode ser o primeiro passo de sua cura, de sua reintegração na sociedade”, cena 2), agradece a Deus emocionado (cena 3). No entanto, as cenas 4 e 5 desfazem a impressão de Cumprido, que vê Baixim destruir a flor com os pés assim que ela desabrocha. Para intensificar a crueldade, o pequeno frade diz “na próxima quero ver se acompanho o desenvolvimento desde a semente!”.
Essa atitude exageradamente sádica e pouco convencional (especialmente para um frade), explicitada visualmente nas cenas finais e confirmada pelo balão de fala do último quadrinho, é o que leva ao humor. Do ponto de vista de Baixim, não bastaria apenas acompanhar o crescimento da planta para destruí-la (o que já seria inusitado). Na próxima vez, ele planeja observar o processo desde a semente para poder repetir o gesto agressivo e cruel.
Essa promessa, aliada ao modo de agir pouco comum, gera a comicidade da situação apresentada e servem para ilustrar características dos dois personagens, objetivo desta parte da discussão.
O segundo exemplo consiste em uma tira cômica construída em três cenas, as quais são estruturadas em forma diagonal, sem linhas de contorno. Na primeira cena, vê-se Cumprido espantado com a atitude de Baixim vir em sua direção gritando “- Me abraça! Me abraça!”. Em geral, o ato de abraçar consiste numa atitude de saudar carinhosamente alguém. Quem conhece a série sabe que essa não é uma postura comum ao Baixim (ele odeia abraço, carinho, contato). Alegre com a ação (uma possível mudança de comportamento) do pequeno frade, Cumprido mostra-se compadecido, na segunda cena, dizendo “- Ele não é tão mau quanto procura parecer! Sua alma límpida acaba furando o bloqueio de sadismo...”. Entretanto, na última cena, notam-se o espanto e a desilusão de Cumprido quando Baixim grita “CATAPORA!!” (depreende-se que ele tenha a moléstia, informação explicitada pela fala e reforçada pelas marcas vistas em seu rosto, e só então reveladas). Sádico, o fradinho finge demonstrar carinho pelo simples prazer de tocar Cumprido e contagiá-lo com o vírus da catapora (doença viral que causa irritação cutânea com bolhas na pele). O humor, nesse caso, está no fato de o Baixim enganar Cumprido. A verdadeira razão do abraço era para transmitir a doença ao colega de celibato.
De acordo com Henfil, a inspiração para inventar os personagens veio de sua criação católica, mais precisamente da experiência com a ordem dominicana (cf. Henfil 1993; Morais 1996; Malta 2012). Nas palavras do autor, ele criou “dois caras que eram os tipos mais característicos, fisicamente, do convento. Um era comprido, narigudo, magrelo e místico ao extremo. E outro, gordo, baixinho, com a cara de sonolência, de peixe morto, mas pronto para detonar uma molecagem a qualquer momento” (Henfil 1973: 40). Mais ainda, os dois frades foram pensados para exorcizar seus conflitos de personalidade, seus moralismos: “o lado careta, carola, conservador, representado pelo Cumprido, brigando com seu lado revolucionário, anarquista, utópico, representado pelo Baixim” (Nilson 1993).
O exame das histórias dos Fradinhos nos leva a observar que a maior parte delas foi produzida no gênero tira cômica (61 exemplos), com diferentes formatos (horizontal, vertical, diagonal, irregular). Os demais casos (50 ocorrências) dividem-se entre histórias em quadrinhos de humor curtas (de uma página, variando de 5 a 10 cenas) e longas (de duas até seis páginas). Convém ainda registrar, em termos de recursos gráficos, que, embora algumas narrativas (seis ocorrências) tenham sido construídas apenas por meio da linguagem não verbal (imagens sequenciais), a maior parte apresenta também a linguagem verbal. Desse modo, lançar mão de ambas as linguagens acaba sendo uma característica do cartunista. Um dado que reforça o estilo ágil e econômico de Henfil é a forma como traz os enunciados verbais, sem a demarcação tradicional do contorno do balão.
Os dois exemplos citados ilustram tais comentários. No caso da Figura 2, temos uma história em quadrinhos curta (de uma página), elaborada com cinco cenas; já em 3, uma tira cômica com três cenas distribuídas no formato diagonal. Ambas são compostas pelas linguagens verbal e não verbal. Embora o exemplo da Figura 2 possa ser facilmente compreendido, se considerada apenas a sequência de imagens (sem os enunciados verbais), isso não ocorre com 3, em que a palavra “CATAPORA” é essencial para a deflagração de sentido.
Em termos de produção do efeito de sentido humorístico, é preciso destacar que as imagens geradas pelos frades - perverso, sádico (Baixim) versus bondoso, ingênuo (Cumprido) -, a partir do que enunciam e do comportamento, também ajudam na promoção do riso. Diante do exposto, retoma-se o objetivo principal deste artigo, qual seja: mostrar como os Fradinhos se revelam no discurso humorístico.
4. A constituição de ethé dos Fradinhos: entre o cômico e o grotesco, estão o revolucionário sacana6e o conservador ingênuo
Das produções gráficas analisadas (um total de 111), verificamos que a maioria delas coloca em evidência (e oposição) dois modos de ser recorrentes e peculiares aos Fradinhos, de Henfil: a sacanagem, vista nas ações do Baixim, e a ingenuidade, depreendida na conduta do Cumprido. Nesse sentido, podemos considerar, em princípio, um ethos mais geral para cada um dos frades: ethos sacana e ethos ingênuo.
As situações mais comumente exploradas nas histórias que revelam a imagem de sacana são de deboche, mentira, maldade, agressividade, perversão, “estraga prazer”, nojeira.
Atitudes recorrentes do pequeno frade para com pessoas (Cumprido, superior hierárquico, criança), animais e coisas do mundo (natureza, em geral, como flor), que podem ser resumidamente tematizadas em insensibilidade/desumanidade. Já os comportamentos manifestados pelo frade grande, diante dessas situações, são de decepção e receio. Os exemplos das figuras 1 e 2 confirmam parte dessas observações. Vejamos mais dois casos.
Na tira cômica acima, Baixim sacaneia Cumprido ao trazê-lo à realidade dura e cruel em que vivem; mostra que os problemas existenciais refletidos pelo frade maior (“o habitante da lua nasceu de Adão ou Eva?”) são irrelevantes perto de questões mais urgentes do país, caso do “problema da fome no nordeste”. A conduta sacana do pequeno frade é reforçada, ao final, tanto quando enuncia “Putis! Que ferrada!” quanto no momento em que faz seu gesto triunfal de “top top” (para dizer que o outro se deu mal)7.
A decepção do ingênuo frade grande se dá na última cena (quando expressa desapontamento com o gesto imoral de Baixim, que demonstra explicitamente estar zombando dele), após se iludir e espantar (cena 2) com as reflexões do colega que pareciam profundas e sinceras. Mais uma vez, a produção do humor deve-se ao fato de Baixim enganar Cumprido.
Elaborada em três cenas, no formato vertical, a narrativa ressalta discursos voltados à prática política, como pensar a miséria, a fome. Nesse sentido, a atitude de “estraga prazer” de Baixim (que faz questão de mostrar que pensa coisas mais importantes) acaba por revelá-lo, nesse caso, como mais sábio.
Da caracterização dos ethé cômicos, vistos na Ética a Nicômaco, é possível reconhecer em Baixim traços de dois tipos, ironista (eíron) e bufão (bomolóchos), visto que o frade pequeno critica as reflexões (menos relevantes) de Cumprido, mostrando-se mais sábio ao se preocupar com coisas mais relevantes (cena 2), bem como se exibe extremamente espirituoso, ao gesticular seu top-top (cena 3). Cumprido, por sua vez, revela-se como ingênuo (ágroikos), já que, decepcionado, demonstra ausência de humor, espirituosidade de menos.
No que concerne às disposições, vistas na Retórica, que tornam os personagens persuasivos a partir das imagens que exibem, verificamos que Cumprido manifesta um ethos de phrónesis, vale-se dos recursos do logos para expor de forma prudente um problema que o angustia (“o habitante da lua nasceu de Adão ou Eva?”).
Já Baixim manifesta tanto ethé de phrónesis e eunóia (vale-se dos recursos do logos, questionando o problema da fome no nordeste, para mostrar a Cumprido que há problemas mais importantes, apresentando-se como alguém solidário com seu auditório, cheio de benevolência para com próximo - cena 2) quanto um ethos de areté (apresenta-se como desbocado e temerário, demonstrando maior preocupação com a exposição de sua própria imagem, a de sábio sacana).
Nessa história, de três cenas e formato irregular, na busca de tentar entender a vida árida de Baixim, Cumprido (horrorizado) destaca características nada positivas (“odeia tudo: o belo, o puro, a flor, o amor, as crianças...”), que vão contra a prática religiosa (cena 1). Baixim, a contraponto (e para irritar, aborrecer), busca destacar coisas de que gosta (“casca de sarampo”, “lamber modess”, “lamber ferida supurada, de pastel de lombriga”), as quais são capazes de o desvelar como infinitamente pior (cenas 2 e 3).
Considerando-se as formas expressivas que singularizam o ethos grotesco (e podem produzir humor), mencionadas por Sodré e Paiva (2002), verificamos que Baixim revela-se chocante e escatológico (fala sobre coisas nojentas, como apreciar “casca de sarampo”, “lamber modess”, “lamber ferida supurada, de pastel de lombriga”). Em muitas das narrativas gráficas, o frade pequeno apresenta outras formas expressivas de manifestar a escatologia, como cuspir, arrotar, peidar, tirar meleca do nariz e tentar passá-la no Cumprido. Convém também registrar que o ethos grotesco de Baixim mostra-se por ações teratológicas, ou seja, monstruosas, como assar e comer criança, cortar a cabeça de um passarinho com uma tesoura.
Quanto à constituição de ethé cômicos, nota-se que, nessa história, Cumprido revela os traços do eíron e do ágroikos, uma vez que censura os gostos de Baixim, manifestando menos espirituosidade para com eles.
Ao enunciar, verifica-se que o frade grande mostra o ethos da phrónesis, apresentando-se como sensato e ponderado a partir de recursos do logos (menciona exemplos de coisas odiadas). Baixim, por outro lado, manifesta traço do bomolócho, já que exibe espirituosidade em demasia ao enunciar as coisas repugnantes de que gosta. O frade pequeno vale-se, portanto, do ethos da areté, apresentando-se como desbocado, franco, temerário, construindo suas provas mais com os recursos do ethos.
Com base na análise dos exemplos mencionados (e das demais produções que, por uma questão de espaço, não puderam ser contempladas neste texto), pode-se verificar que o humor presente nos Fradinhos tem a função de criticar os moralismos da sociedade. Baixim executava, na época, o papel do que hoje se nomeia como “politicamente incorreto”: um frade - em um cenário político que abrigava uma ditadura militar - que extravasava seu sarcasmo por meio da maldade, sadismo, comportamento escatológico (cuspia, soltava gases, tirava meleca do nariz) e gesto típico de dizer que o outro estava ferrado, o seu conhecido “top-top”.
No que concerne à relação de interação entre os personagens, observa-se que, em geral, quando Baixim é construído como sacana, Cumprido é mostrado como sacaneado, vítima, ingênuo, inocente. As formas discursivas de abordar a conduta sacana e ingênua dos personagens perpassam o cotidiano (problemas sociais, existenciais e políticos da época) e colocam em destaque diferentes discursos nas narrativas dos Fradinhos, como os relacionados à prática religiosa (não seguir os preceitos da religião; destruir a natureza; enganar cego), à miséria (pôr em cena miseráveis; mencionar o problema da fome no mundo e na região nordeste do Brasil), à violência (assar e comer criança; demonstrar impulsos destrutivos), à opção sexual (rotular Cumprido como “bichona”), à hipocrisia (mostrar como é difícil ser caridoso de fato), à escatologia (cuspir, arrotar, peidar, tirar meleca do nariz, falar sobre coisas nojentas).
5. Considerações finais
Na concepção aristotélica, o ethos consiste na imagem que o orador constrói de si em seu discurso, independentemente de ela ser sincera ou não. Com base nessa consideração, não foi nosso intuito tratar de quão sinceras ou não são as imagens dos Fradinhos manifestadas nas histórias, mesmo porque o que está em análise (não podemos nos esquecer) são produções gráficas humorísticas. E, pelo humor, não custa reforçar, o simulacro acaba muitas vezes sendo relevante para o efeito de sentido pretendido. Pode-se, no entanto, verificar que a dupla de frades não constrói apenas uma imagem de si, mas várias. E todas, segundo observamos, mostram-se convincentes. Os diversos ethé depreendidos exibem, através de modos de dizer e se comportar, diferentes jeitos de ser de Baixim e Cumprido.
Partindo das situações abordadas nas histórias (em que se notam, entre outras condutas, o deboche, a mentira, a maldade, a agressividade, a perversão, a nojeira), podemos destacar que Baixim revela-se irreverente, sarcástico, imoral, sádico, perverso, estraga-prazer; já Cumprido mostra-se recatado, conservador, amoroso, solidário, bondoso, ingênuo, medroso. Tais comportamentos tenderiam a representar o bem e o mal nas figuras religiosas? Segundo entendemos, não. Baixim não representa sempre o mal, nem Cumprido, sempre o bem. Desse modo, a constituição de um ethos mais geral, que compreende a maior parte das condutas dos frades Baixim e Cumprido, pode ser, respectivamente, o sacana revolucionário e o ingênuo conservador.
No que concerne à ética aristotélica, vimos que há certos tipos éticos (que se referem à descrição de caracteres) ou ethé cômicos. Dentre esses, verificamos que tanto Baixim quanto Cumprido são personagens mesclados, ou seja, apresentam traços de mais de um dos tipos. Baixim exibe-se mais comumente como ironista (eíron) e bufão (bomolóchos). Caracterizado pela crítica, costuma censurar e desvelar os excessos do alazón (nesse caso, a bondade, a solidariedade de Cumprido). Ao fazer isso, mostra-se superior; além disso, manifesta espirituosidade demais. Cumprido, em oposição, manifesta-se recorrentemente como impostor (alazón) e ingênuo (ágroikos). Nas narrativas, o frade grande caracteriza-se pela confiança e otimismo desmedido, é um conservador exímio; além disso, apresenta espirituosidade de menos (sempre se decepciona com as sacanagens de Baixim), mostrando-se algumas vezes simples demais.
Levando-se em conta os pressupostos de Sodré e Paiva (2002) de que o humor pode nascer do grotesco, pois a intenção de divertir pode ressaltar o que choca, é exótico, sensacional, como a crueldade, a vulgaridade e a grosseria, averiguamos que Cumprido não apresenta traços de ethos grotesco. Baixim, por outro lado, manifesta todas as modalidades que singularizam o grotesco, revela-se escatológico (cospe, arrota, peida, tira meleca do nariz, fala sobre coisas nojentas), teratológico (assa e come criança), chocante (demonstra impulsos destrutivos) e crítico (mostra como é difícil ser caridoso de fato).
Por fim, considerando-se as disposições que tornam os oradores persuasivos - a prudência (phrónesis), a virtude (areté) e a benevolência (eúnoia) -, verifica-se que Baixim vale-se mais da areté, por apresentar como desbocado, franco, temerário e construir suas provas muito mais com os recursos do éthos; já Cumprido vale-se mais da phrónesis, por mostrar-se sensato, ponderado e construir suas provas muito mais com recursos discursivos