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Lingüística

On-line version ISSN 2079-312X

Lingüística vol.34 no.1 Montevideo June 2018

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20180003 

Artículos

O pacto do insulto: variação estilística, moral e identificação em interações humorísticas

The insult pact: stylistic variation, moral and identification in humorous interactions

Ana Cristina Carmelino1 

1Universidade Federal de São Paulo. anacriscarmelino@gmail.com


Resumo:

O estudo da variação e da(s) norma(s) em Sociolinguística pode vincular-se a questões morais. Os insultos (geralmente usados para ofender, humilhar e molestar) fazem parte do que se considera linguagem proibida, do campo moral das palavras. Partindo disso e da análise das edições impressas da revista de quadrinhos MAD publicadas no Brasil em 2014 e 2015, este trabalho pretende mostrar outras funções linguísticas do insulto, variante estilística presente nesse periódico. O arcabouço teórico que fundamenta o estudo advém da Sociolinguística Interacional difundida no Brasil por Preti (1983, 1984, 2004) e dos pressupostos teóricos sobre estilo sociolinguístico propostos por Coupland (1985, 2001). Observa-se que as expressões insultuosas usadas nas interações dos textos da MAD funcionam tanto como um código (verbal e não verbal) de identificação de um grupo quanto um recurso de produção de humor.

Palavras-chave variação estilística; insulto; identificação; humor; revista MAD

Abstract:

The study of variation and norm (s) in Sociolinguistics can be linked to moral issues. Insults (commonly used to offend, humiliate and molest) are part of what is considered to be forbidden language, from the moral field of words. Based on this and the analysis of the printed editions of the magazine comic MAD published in Brazil in 2014 and 2015, this work intends to show other linguistic functions of the insult, stylistic variant present in this periodical. The theoretical framework that underlies the study comes from the Interaction Sociolinguistics published in Brazil by Preti (1983, 1984, 2004) and the theoretical assumptions about sociolinguistic style proposed by Coupland (1985, 2001). It is observed that the insulting expressions used in the interactions of MAD texts operate as both a verbal and non-verbal code of identification of a group as well as a humor production resource.

Keywords: stylistic variation; insult; identification; humor; MAD magazine

1. Nossos insultos nos retratam? Considerações iniciais

Figura 1: Ilustração que consta da seção de cartas de leitores da MAD 

O texto acima (Figura 1) é comumente usado para ilustrar a seção de cartas de leitores da revista MAD1, editada no Brasil. Como é próprio de produções multimodais, a cena é composta por elementos verbais escritos e visuais. A imagem representa o personagem Alfred E. Neuman2 (a mascote da revista) sentado em frente a um computador. O aparelho “explode” diante do conteúdo escrito por ele (fato identificado pela presença de metáforas visuais representadas por sinais de fumaça, fogos e de parafusos e fios soltos).

O que teria levado o equipamento a isso seria o conteúdo que Neuman escrevia, indicado com o auxílio de um balão, cujo apêndice vai em direção à tela do computador (infere-se que ela registre o conteúdo do que ali estaria sendo digitado). O balão registra, entre aspas: “Caro Leitor Babaca...”. Ou seja: o leitor, a quem se dirige a carta ou o e-mail, é rotulado de forma explícita e direta como sendo “babaca”.

Chamar alguém de babaca seria uma forma de insulto? Considerando que “insultar” significa xingar, desacatar, afrontar, ofender, humilhar, desprezar, molestar (cf. Borba 2002), uma resposta para a questão talvez esteja no significado de “babaca”. Seria este um indivíduo desprovido de bom senso? Aquele que se acha espertalhão, quando não o é? O prepotente, o metido a inteligente, que causa repulsa aos que lhe cercam? Pessoa tola ou sem préstimos? Ser babaca é ter opiniões (errôneas) que normalmente vão de encontro às de um grupo?

Não importa quais considerações os dicionários3 atribuam ao termo “babaca”, o fato é que elas sempre apresentam valor semântico pejorativo. Em resumo, ser babaca é sinônimo de cretino, estúpido, bobo, pateta, paspalho, idiota, mané, otário, imbecil, trouxa, chato, escroto, sem graça, boçal e até “bundão”. Por essa ótica, tratar alguém por/de babaca pode configurar um modo de insulto.

Diante disso, outras questões se impõem. Que efeitos interacionais específicos levam o editor a usar termos insultuosos ao se dirigir a seu leitor? As formas insultuosas constituiriam uma variante linguística característica desse periódico4, capaz de identificar e representar seus interlocutores?

O estudo da variação e da(s) norma(s), em Sociolinguística, pode ligar-se a questões morais, tendo em vista que o sujeito, ao se expressar, manifesta uma preocupação com a língua. Os insultos - geralmente usados para injuriar, rebaixar e aborrecer - fazem parte do que se considera linguagem proibida, do campo moral das palavras.

Partindo dessas considerações, o objetivo deste texto é mostrar outras funções linguísticas do insulto, variante estilística presente na MAD: a de servir como um código (verbal e não verbal) capaz de identificar um grupo (interlocutores da revista) e a de constituir um recurso de produção de humor.

O arcabouço teórico que fundamenta este estudo advém especialmente da articulação das premissas teóricas sobre estilo sociolinguístico propostas por Coupland (1985, 2001), o qual relaciona variedade linguística e propósitos comunicativos dos sujeitos, com as estabelecidas pela Sociolinguística Interacional difundida no Brasil por Preti (1983, 1984, 2004), para quem o significado de toda variação se constrói em interações linguístico-sociais situadas.

Em termos metodológicos, o estudo leva em conta a leitura e depreensão de expressões insultuosas das edições impressas da revista de/com quadrinhos MAD, publicadas mensalmente no Brasil em 2014 e 2015, de modo a confirmar a hipótese de que essas formas usadas nas interações dos textos da MAD constituem encenações para retratar um grupo e gerar o riso (apresentam-se num enquadre humorístico). Sob esse prisma, o insulto pode ser visto como um recurso expressivo da língua, faz parte, portanto, da linguagem afetiva dos intercâmbios sociais.

Embora tenha sido feito um levantamento de todos os tipos de insulto e da quantidade de ocorrências, apresenta-se uma análise qualitativa - e não quantitativa, dada a natureza e o objetivo específico da investigação - a partir do exame de exemplos que podem ilustrar a proposta e comprovar a hipótese levantada.

2. Variação, estilo e identificação

Não é novidade, mas é importante ressaltar que a conexão entre linguagem e sociedade não é casual. É dessa relação que se ocupa a Sociolinguística, ciência que entende a língua não como uma entidade abstrata que independe de fatores sociais, mas sim como uma forma de interação social. Na verdade, a língua funciona como elemento de intercâmbio entre o indivíduo e a sociedade em que ele atua.

Desenvolvida por Labov (1966), que se inspira no método sociológico, a Sociolinguística toma como objeto de estudo a variação linguística, buscando explicar o fenômeno da linguagem a partir do registro, da descrição e da análise sistemática de diferentes falares em situações reais de uso, ou seja, naturais (espontâneas).

Observando a natureza dinâmica da fala, verifica-se, conforme os pressupostos labovianos, que a variação linguística se relaciona a diversos fatores, tais como: (a) componentes internos ao próprio sistema analisado (fatores imanentes); (b) componentes geográficos, relacionados à questão espacial, como cidade, estado ou região (fatores interfalantes); (c) componentes sociais dos falantes, como nível socioeconômico, escolaridade, gênero, idade (fatores interfalantes); ou (d) fatores de ordem individual (intrafalantes), também denominados de componentes estilísticos.

Embora a variação estilística, dentre os tipos mencionados, tenha recebido menos destaque no paradigma variacionista - por não estar atrelada a fatores performativos e a fatores inerentes ao sistema linguístico dado, mas sim a fatores como “prestígio” e “grau de atenção do falante à sua própria fala”, portanto, à posição socioeconômica do falante - o estilo consiste em um dos elementos fundamentais no estudo da variação e de mudanças linguísticas em progresso5.

Com base na pesquisa sobre a variação estilística na fala de cidadãos de Nova Iorque, Labov (1966) verifica que os sujeitos utilizam-se, ao falarem, de um repertório próprio de variedades sociolinguísticas cuja organização e distribuição no espaço social é economicamente estratificada. Tal fato leva o estudioso a propor um modelo analítico que evidencia o eixo linear formalidade versus informalidade, o qual é pensado em dois extremos: de um lado o “padrão global”, que compreende a fala formal (cuidada, monitorada; quando há maior atenção do sujeito à sua própria fala); e, de outro, “o estigma global”, que compreende a fala casual (natural, não monitorada; quando há menor atenção do sujeito à sua fala).

O estudo de Labov (1966), que parte de generalizações dos usos linguísticos, concebe a variação estilística como o elo essencial entre o indivíduo e a comunidade de fala. Além disso, é a partir das noções de “prestígio” e “atenção à fala” que o autor formula o conceito de vernáculo (fala natural, não monitorada) e que é pensada a entrevista laboviana, não só como método para coleta de dados, mas também como procedimento para extração de estilos dos informantes.

Ainda considerando estudos que refletem, de algum modo, sobre a variação estilística ou sobre o estudo do léxico no campo da Sociolinguística, especialmente porque eles podem ajudar a compreender melhor o uso de certos códigos (jargões, gírias, expressões vulgares ou grosseiras, como é o caso do insulto, objeto de interesse deste texto), merecem registro os trabalhos de Coupland (1985, 2001) e Preti (1983, 1984, 2004).

Coupland (1985), ao estudar o estilo de um locutor de rádio6, rompe com a proposta laboviana. O autor passa a considerar, na construção estilística, não o sujeito inserido em uma entrevista com fins metodológicos, mas sim o indivíduo em ação numa dada situação natural. Na leitura de Rezende (2009: 122), segundo Coupland, “o estilo linguístico é produto e também processo da elaboração de uma (ou mais) persona(s) social(is) por parte de um sujeito que, ao atuar linguisticamente, na verdade adota formas comunicativas de comportamento social”.

Na abordagem de Coupland (1985), portanto, a variação estilística consiste numa “modalidade de apresentação dinâmica do ‘eu’ consumada na/pela manipulação estratégica de fatores linguísticos e não linguísticos” (Rezende 2009: 122). Desse modo, a atenção à fala vai muito além de ser um processo que prioriza apenas o eixo prestígio versus estigma, vinculando o informante a uma categoria social pré-estabelecida, como havia proposto Labov (1966). A atenção à fala consiste em um mecanismo elaborativo e criativo capaz de revelar uma série de sentidos sociais possíveis.

Assim, nas palavras de Coupland (2001), observa-se que:

uma “estilística dialetal” mais amplamente concebida pode explorar o papel do estilo na projeção das identidades não-raro complexas dos falantes e na definição de relações sociais e outras configurações de contexto. Essa é uma perspectiva que permite à Sociolinguística engajar-se nas obras recentes interdisciplinares sobre individualidade, relações sociais e discurso7 (Coupland 2001: 186 - tradução nossa).

Tomando como referência os pressupostos teóricos da Ciência da Comunicação, Coupland (2001) considera como categorias fundamentais para a construção do estilo o espaço, o tempo e os contextos relacionais em que o sujeito falante está inserido, alargando, desse modo, os horizontes da pesquisa sociolinguística.

Essa teoria, que se caracteriza como “Sociolinguística Localista”, como assinala Rezende (2009: 123), compreende a “articulação entre variedade linguística, os propósitos comunicativos dos sujeitos, as práticas em que eles se inserem e seus efeitos de sentido nos contextos socioculturais onde surgem”.

Se compreender a linguagem como prática social implica considerá-la um modo de ação historicamente situado, a variação estilística é uma forma de identificar determinados grupos. Nos registros de Coupland (2001), os sujeitos, por serem mais ou menos conscientes das formas linguísticas, selecionam-nas em cada situação com vistas a desvelar uma identidade pessoal ou social. Logo, na interação verbal, a produção do estilo (ou estilização linguística) constitui uma forma de comportamento linguístico. É o que se vê em:

Estilo, e em particular estilo dialetal, pode, portanto, ser construído como um caso especial de apresentação do eu no interior de contextos relacionais específicos - articulando objetivos relacionais e identitários (...). Estilo, enquanto manejo de personas, capta como os indivíduos, dentro e através das situações de fala, manipulam os sentidos sociais convencionalizados de variedades dialetais - o individual através do social8 (Coupland 2001: 197-198 - tradução nossa).

Em suma, nota-se que os estudos de Coupland revelam que o estilo é um fenômeno mais amplo do que o observado por Labov (1966)9, visto que pode abranger nas análises as formas de endereçamento, de polidez ou de formalidade lexical.

Logo, a proposta teórica couplandiana, como salienta Rezende (2009), é inteligente e coerente. Ao centrar-se em uma sociolinguística interpretativa, o autor articula de forma íntima e profunda os conceitos de propósitos comunicativos, manejo de personas e estilo dialetal.

Outros trabalhos que requerem destaque são os de Preti (1983, 1984, 2004), não pelo fato de refletirem especificamente sobre o estilo, mas sobre a variação lexical. Precursor nas pesquisas da Sociolinguística e da Análise da Conversação no Brasil, o linguista se interessa pelos fatores socioculturais que agem sobre a língua oral, pela influência da norma, pelos problemas de transcrição da fala, bem como pelo estudo de certas características do léxico, caso dos vocábulos técnicos, das gírias, dos jargões, da linguagem obscena e do discurso da malícia.

Ao tratar da relevância dos estudos da língua oral, Preti (2004) fornece caminhos para se entender a variação lexical (e, de certa forma, o estilo) permitida nessa modalidade de uso da língua. Segundo ele, a interação natural e despreocupada, como deve ocorrer em interações menos tensas em que há intimidade entre os falantes, tolera certa liberdade:

O ato de conversação implica naturalidade, em que se levam em conta, no momento de sua realização, os objetivos imediatos da comunicação. É evidente que a cultura linguística do falante, seu grau de escolaridade, sua profissão, sua faixa etária pesam suficientemente sobre seus hábitos de linguagem, para que ele se autodiscipline mais, porque seu nível de fala é, afinal, a marca de sua própria cultura e personalidade. Mas nada o impede também que seja sensível ao uso linguístico dos grupos menos cultos, aos coloquialismos sintáticos e vocabulares (à própria gíria), que lhes permita nas interações mais familiares, ganhar importantes recursos expressivos (Preti 2004: 15).

Amparando suas análises em situações de interação (como reforça em seus textos), Preti (1983, 1984, 2004) difunde no Brasil a Sociolinguística Interacional, perspectiva que - apoiada nos pressupostos da Linguística, da Antropologia e da Sociologia - propõe um estudo de interações linguístico-sociais situadas, ou seja, o significado de toda e qualquer interação se constrói em determinado contexto (cf. Ribeiro e Garcez 2002). Essa abordagem entende que o uso das palavras pode explicar tanto a natureza humana quanto certos costumes sociais.

No que concerne às variações lexicais, Preti (1984) registra que elas estão ligadas aos dialetos sociais (variações socioculturais) e às situações, sendo empregadas tanto para nomear atividades específicas, quanto como recursos expressivos.

Em ambos os casos, procuram servir para uma comunicação mais eficiente. Na análise de um material léxico é preciso atentar, no entanto, para o que é de domínio individual (de interesse estilístico) e para o que é de uso coletivo (de domínio linguístico).

Em trabalhos específicos sobre a linguagem marginal, proibida (variação lexical em que se poderia incluir o uso de expressões insultuosas), Preti (1983, 1984) salienta que é preciso considerar não apenas o fenômeno do tabu linguístico (certas palavras ou temas que são inapropriados em determinados contextos situacionais), mas também o problema sociolinguístico dos vocábulos, cujo uso depende das conveniências e de um prestígio de natureza social que os termos possuem, em função dos falantes que os usam e, especialmente, da situação ou contexto em que eles são empregados.

Paveau (2015), em obra que discute a “moral da linguagem” ou a “ética da responsabilidade em linguagem”, assinala que a dimensão moral dos enunciados não está no próprio enunciado nem na cabeça do indivíduo, está na relação que ele tem com o ambiente e, portanto, com os “valores” do mundo social exterior, valores que são elaborados pelos falantes e propostos em seus enunciados.

De acordo com os pressupostos da Sociolinguística Interacional disseminada no Brasil, a qual busca compreender o processo de interação sempre inserido em um contexto, verifica-se que o uso de expressões estigmatizadas (proibidas) também constituem variações socioculturais do léxico de uma língua e que sua classificação deve levar em conta aspectos históricos, sociais e situacionais, tendo em vista que um termo pode ser considerado obsceno, grosseiro, proibido, ofensivo em uma determinada época ou em certo contexto, e em outra(o), pode ganhar a preferência de um grupo social, tornando-se usual e familiar.

Na verdade, entende-se que a perspectiva moral transposta para o campo do léxico pode se renovar. Logo, há uma linha frágil entre as fronteiras do que se imputam como bons costumes. Formas vulgares podem incorporar-se à fala culta e vice-versa. Nesse sentido, a vida das palavras torna-se um reflexo da vida social e, em nome de uma ética vigente, proíbem-se ou liberam-se palavras, processam-se julgamentos de “maus” ou “bons” termos, apropriados ou inadequados aos mais variados contextos.

A partir do que se expôs sobre variação estilística (e identificação) e variação lexical - respectivamente sob a ótica de Couplant (1985, 2001) e de Preti (1983, 1984, 2004) - e da análise do corpus aqui proposto (exemplos com expressões insultuosas presentes nas interações estabelecidas na revista MAD), convém salientar que a construção do estilo linguístico ou a escolha lexical é resultado da adaptação da forma linguística específica do ato verbal às circunstâncias em que ele é produzido e aos propósitos comunicativos do falante.

3. O insulto em questão

Vocábulos ou gestos desagradáveis, chulos, impróprios, rudes, imorais, ofensivos, grosseiros, desrespeitosos, ultrajantes, agressivos, injuriosos, esses são alguns sinônimos atribuídos aos chamados “insultos”. Ainda que de valoração negativa (considerado de pouca classe), insultar é um ato que as pessoas realizam com frequência e desinibição. É o que registram Luque, Pamies e Manjón (1997), autores da obra El arte del insulto. Haveria uma explicação para isso?

Segundo estudiosos do assunto, há várias razões para se insultar: “ofender, humilhar, relaxar, como vingança, para liberar estresse, como uma forma a mais de expressão cultural e, em alguns casos, inclusive por prazer” (Piedra 2010: 13-14 - tradução nossa10) são algumas delas. Espinosa (2001), a exemplo, assinala que as grosserias podem representar “uma válvula de escape para a tensão pela qual passamos”11, visto que, por meio dessa forma de se expressar, é possível aliviar sentimentos como raiva, impotência e dor.

No entanto, convém destacar que, associado muitas vezes ao entorno marginal e a classes sociais baixas, poucos sabem (ou admitem) que o insulto consiste em um recurso para queixar-se contra o poder. Conforme Luque, Pamies e Manjón (1997: 28), a ofensa é “a melhor arma que as pessoas comuns têm para defender-se contra os incessantes esforços de todas as esferas do poder por impor-lhes ideias preconcebidas e hábitos de conduta controláveis”12.

Com base nos pressupostos teóricos de Preti (1983, 1984, 2004), assume-se que as expressões insultuosas (tais quais os jargões, as gírias, os palavrões, a linguagem obscena e o discurso da malícia) constituem (no campo da variação lexical) recursos expressivos da língua e fazem parte da linguagem proibida, porque geralmente dizem respeito a termos que contêm ideia ofensiva (injúria ou blasfêmia) ou se centram em referentes muito específicos, a saber, escatológicos (detritos) e motivos sexuais (atos ou órgãos sexuais).

Do que se explanou até o momento, tão importante quanto observar que a linguagem desagradável, caracterizada pelos insultos, pode ser vista de forma negativa (insultar faz-se parte do inospitaleiro; ato que impõe um pensamento desagradável) e positiva (pela liberdade de expressão, livre circulação linguística como prova de sua normalização), é salientar que “os insultos fazem parte da linguagem desde a sua criação... e estão em constante evolução” (Piedra 2010: 33). Se não é possível conter a evolução da língua, não tem sentido negar a existência de palavras desagradáveis.

Disso, pode-se ainda acrescentar que, muitas vezes, o insulto parece algo desmitificado, podendo funcionar como emblema de anticaretice. Seja porque o tabu incita o uso, seja porque houve superação ou afrouxamento dos interditos morais que ele representa, o fenômeno é algo do cotidiano, ênfase necessária da linguagem dos sentimentos. As interações presentes na MAD, conforme veremos, é um exemplo para o caso.

Logo, em determinados contextos é possível observar que o insulto perdeu, pelo uso, sua força como injúria (menosprezo, aversão), ganhando conotações afetivas até “carinhosas”. Parece um “faz de conta”: é dito, mas não é para valer.

A título de ilustração, registre-se o fato de certos amigos ou conhecidos “afetuosamente” se tratarem por “filho da puta”. Não seria o caso do uso do “babaca” que aparece no texto que abre este artigo?

Considerando-se que o ato de insultar tem se mostrado lugar-comum, cumpre olhar para esse fenômeno linguístico de natureza sociocultural da forma como ele merece, buscando compreender seus usos, suas funções em contextos específicos.

É o que se propõe no próximo tópico, com a análise das edições de 2014 e 2015 da revista MAD editada no Brasil.

4. Insultar ofende? O caso da revista MAD brasileira

A revista humorística de/com quadrinhos MAD, apresentada brevemente na introdução deste texto, foi lançada nos Estados Unidos em 1952 pelo empresário Bill Gaines e pelo editor e cartunista Harvey Kurtzman. Publicada no início pela EC Comics e, atualmente, pela DC Comics, o periódico tornou-se um sucesso (pela sátira ácida e, muitas vezes, impiedosa de aspectos da cultura popular americana), sendo traduzido para vários países.

No Brasil, a MAD começou a ser impressa em julho de 1974 pela Vecchi (que a editou até 1983). Nos anos e décadas seguintes, o título migrou para outras empresas - Record (1984-2000), Mythos (2000-2006) e Panini (2008 até 201613) -, que mantiveram a linha editorial estabelecida desde o início da veiculação, a de mesclar conteúdo estrangeiro com nacional.

O tipo de humor instaurado na MAD é corrosivo, tendo em vista que se mostra tosco, agressivo, irreverente, inteligente, subversivo. Classificado pelos editores como um “humor na veia jugular” (“humor in a jugular vein” - nomeado na lombada dos primeiros exemplares da revista), o lema proposto por Gaines quando da criação da revista era: “Não leve nada a sério demais”.

Ao analisar a versão brasileira, Carmelino (2011, 2013) observa que a revista, embora sendo de/com quadrinhos, apresenta em sua constituição uma diversidade de gêneros/textos. Ou seja, além dos conhecidos gêneros dos quadrinhos (como tira, charge, cartum e histórias em quadrinhos), há muitos outros (editorial, carta de leitor, entrevista, crônica, provérbio, frase, resumo, resenha, slogan, dica, anúncio, diário, calendário, entre outros).

Essas informações são relevantes na medida em que é possível encontrar a presença de expressões insultuosas em diferentes gêneros/textos. Vejamos alguns exemplos.

(1) EDITORIAL

Vocês são tão insuportáveis e babacas que fico pensando em largar tudo aqui e começar a fabricar merdanfetamina. Tenho certeza de que boa parte dos leitores já foi viciado em MADnfetamina e para cair de cabeça na merdanfetamina é um pulo (ou seria mergulho?). ...

O problema é que a gente sabe que você, leitor acéfalo e canibal (comedor de estrume), gosta de coisa estúpida. Por isso, decidimos juntar tudo isso e fazer uma MAD do Robocop com Breaking Bad (Fernandes 2014: 4 - No. 68, grifos nossos).

O excerto acima é parte de um editorial. Os editoriais da MAD são publicados mensalmente e, em geral, ocupam uma coluna no canto esquerdo da página 4 da referida revista. Ainda que dirijam sua argumentação informalmente à opinião pública, encerram uma relação de diálogo mais comumente com o adolescente e o adulto, seu público-alvo.

Em geral, os temas abordados são a divulgação do que ocorre no meio cultural, como o lançamento de filmes e seriados no mundo e no Brasil; o destaque de acontecimentos sociais (eleições, Copa do Mundo); e a discussão de questões ou relatos concernentes à própria revista e sua equipe. O caso em tela faz referência ao seriado Breaking Bad, no qual o protagonista (Walter White) monta um laboratório de drogas para financiar seus anseios. Sendo o Robocop um policial (personagem conhecido de outros filmes), que teria, em tese, como uma de suas atribuições o combate ao tráfico, a MAD o insere na história para resolver o problema relacionado aos entorpecentes (“decidimos juntar tudo isso e fazer uma MAD do Robocop com Breaking Bad”).

Chama a atenção, no entanto, a variação linguística presente no texto, especialmente o modo como o editor insulta explicitamente seu interlocutor direto (o leitor), tratando-o como “insuportável”, “babaca”, “acéfalo”, “canibal”, “comedor de estrume” e aquele que “gosta de coisa estúpida”. Uma seleção lexical não muito comum ao gênero editorial, o qual se caracteriza, muitas vezes, pela impessoalidade e polidez.

Chama a atenção, no entanto, a variação linguística presente no texto, especialmente as expressões insultuosas usadas pelo editor ao se dirigir a seu interlocutor direto (o leitor), tratando-o como “insuportável”, “babaca”, “acéfalo”, “canibal”, “comedor de estrume” e aquele que “gosta de coisa estúpida”.

Como se nota, a linguagem que compõe os editoriais da MAD (e os seus textos em geral) é ultracoloquial (com marcas da oralidade e do português não padrão), tosca, irreverente e, em muitos momentos, ácida. O uso dos termos “merdanfetamina” e “estrume” (“comedor de estrume”) ilustra parte do comentado, tendo em vista serem vocábulos pejorativos, chulos, que se enquadrariam na linguagem proibida, conforme Preti (1983, 1984).

(2) Olá, idiotas.

É a primeira vez que estou escrevendo para essa desgraça de revista, realmente estou desorientada hoje.

Primeiramente gostaria de mandar vocês da MERD se funderem sic pois assino este çu sic e fiquei feliz quando percebi que não tinha recebido nenhuma revista por vários mêses sic e logo hoje que dormi apenas 3 horas (ninguém sim porta sic ) abro a porta da minha casa e me surpreendo com 3 de uma vez. Meu cérebro virou mingau! ... (Aquino 2015: 4 - grifos nossos).

No exemplo (2), tem-se um trecho (o início) de uma carta de leitor. Em geral, as cartas apresentam-se assinadas e se distribuem em três ou quatro páginas da revista. Os temas trazidos à tona pelos autores variam entre sugestões, reclamações e elogios sobre a MAD em si, alguma de suas matérias/seções ou seus autores e ilustradores; solicitações; comentários sobre autores de outras cartas; e relatos de experiências inusitadas vivenciados pelos leitores-autores.

Se no editorial o alvo do insulto é o leitor, na carta de leitor este escancaradamente parece dar o troco. A mira passa a ser não apenas o editor, sua equipe (“gostaria de mandar vocês da MERD se funderem”, ou seja, danarem-se, darem-se mal) e os leitores em geral (chamados de “idiotas”), mas também a própria revista, que é considerada uma “desgraça” e um “çu” (forma particular para se referir a “cu”, versão popular do termo “ânus”).

Uma vez mais é possível observar uma linguagem informal, instaurada pela seleção de uma variante de língua não padrão (“funderem”/ fuderem; “çu”/ cu; “sim porta”/ se importa), com termos vulgares (“MERDE”) e gírias (“meu cérebro virou mingau”, isto é, amoleceu, não consegue raciocinar).

Considerando-se que, segundo Coupland (2001), a variação estilística é um fenômeno amplo, que compreende as formas de endereçamento, de polidez ou de formalidade lexical, os exemplos citados (isto é, o editorial e a carta de leitor) evidenciam uma variante linguística despojada da norma. Nesse sentido, as regras de cortesia se formatam de modo a buscar uma identificação: todos que fazem parte da MAD parecem falar/usar “a mesma língua”. Esse código comum consiste, de fato, em uma forma de insultar ou funciona apenas como simulação?

(3) Lerdo Lerdo

Aaaaaas MADS não consigo vender! Quarenta anos encalhada, com o papel mofado. Ah mas quem essa merda vai ler? Só se for retardado, pois isso é bizarro!

Nem de graça, ficam com elas. Medo de o cérebro derreter. E, vamos falar a verdade, seus desenhos e seus textos não tem qualidade sic .

Mas surgiu um cara analfabeto. Que a 4 décadas compra esta bosta! Achei! Rá rá rá rá rá rá rá. Achei um lerdo! E as MADS vou desencalhar! ... (Brum 2014: 24-25 - grifos nossos).

O exemplo (3) consiste em uma paródia da canção Lepo Lepo, que consagrou a banda de pagode Psirico em 2014, já que a letra e a coreografia irreverente tiveram repercussão muito grande no Brasil e no mundo. Os versos que compõem o arremedo, conforme se observa, contêm expressões que injuriam tanto a revista MAD quanto seu leitor/consumidor.

Este é retratado como “retardado”, “um cara analfabeto” e “lerdo”; aquela, como “merda” (“Ah mas quem essa merda vai ler?”) e “bosta” (“Que a 4 décadas compra esta bosta!”).

Ainda levando em conta os exemplos (1), (2) e (3), há que se destacar, nos termos de Preti (1984), que as interações mostram total despreocupação. Dado que permite caracterizá-las como pouco tensas. Segundo o linguista, a intimidade é o elemento que toleraria a liberdade instaurada nesses processos interacionais.

Acrescente-se à intimidade o tom de humor, característico da revista e de sua linguagem. Por meio do humor, é possível “brincar”, “fingir certos usos”. Nesse sentido, a presença do código ultrajante pode ser vista como encenação (a liberdade e o humor permitem essa forma interação) e as formas insultuosas sem caráter ofensivo.

Nos demais exemplos, observa-se uma desfocalização no que concerne ao leitor e à revista como objetos de insulto. Outros passam a ser alvos.

(4)

Figura 2: Seção Baraldão, MAD vê Noé 

No exemplo (4), vê-se que a cena se ancora na história bíblica da Arca de Noé. Caberia ao leitor a identificação e a articulação dos elementos visuais e verbais que levariam a essa interpretação: a presença de uma arca, uma chuva forte (há presença de várias gotas, que aludem ao dilúvio), o mar/enchente onde a embarcação de madeira navega, a menção explícita a Noé, feita pela mulher ao lado dele (“Volte, Noé!!! Você esqueceu minha mãe!!!).(Figura 2)

O conteúdo do balão revela também que a autora da fala é esposa do condutor da arca e que a mãe dela havia sido “esquecida” pelo marido. “Esquecida” entre aspas porque a declaração de Noé dada na sequência sugere ter sido uma atitude intencional. Pode-se fazer essa leitura justamente pelo uso de um termo tido como insulto, presente no balão de fala: “Já temos jararaca na arca”.

O trecho permite algumas leituras, que dependem do conhecimento prévio do leitor para que o sentido seja alcançado.

A primeira é que, embora não mostrado na cena, a embarcação teria animais de todas as espécies, reunidos ali para que não fossem extintos por conta do dilúvio divino - conforme o relato bíblico da Arca de Noé. Haveria ali, portanto, jararacas também. A palavra selecionada (“jararaca”) é a chave para uma segunda leitura. Esse tipo de serpente é tido no vocabulário gírio como sendo uma maneira jocosa de se referir a alguém do sexo feminino.

Na definição de Serra e Gurgel (1998: 282), seria a “mulher que fala mal de todo mundo”, que faz intrigas.

A terceira leitura a ser identificada por quem observa a cena é o uso social tenso e difícil da relação entre genro e sogra. Esta é comumente rotulada como um problema a ser enfrentado pelos maridos. Verdadeiro ou não, é justamente essa acepção negativa, bastante corrente no Brasil, inclusive em piadas, que carrega a palavra “jararaca” e que é usada como mote para a construção do humor na história. No caso em questão, assemelhar metaforicamente a sogra à cobra (animal peçonhento e venenoso) constituiria uma atitude insultuosa.

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Figura 3: Parte da história em quadrinhos “Guardiões da Falácia” 

O exemplo consiste em um trecho de uma história em quadrinhos maior, de seis páginas, chamada “Guardiões da Falácia” (Figura 3). Dado o título e a data de publicação da história - foi impressa na MAD brasileira de julho de 2014 -, percebe-se que foi o filme “Guardiões da Galáxia”, lançado no país naquele mesmo mês, o que pautou a narrativa. A brincadeira feita com a proximidade verbal entre as palavras “galáxia” (sistema estelar isolado no espaço cósmico) e “falácia” (falsidade) acentua o tom humorístico da história.

Na cena selecionada, ocorre um encontro dos integrantes do grupo galáctico (Senhor das Estrelas, Rocky Racoon, Gamora, Groot e Drax) com os outros dois super-heróis (Homem de Ferro, à esquerda, e Homem Aranha, à direita). O contato é descrito na legenda, vista na parte superior esquerda do quadrinho: “Enquanto isso, nossos destemidos heróis recebem sua merecida recompensa”.

A tal recompensa é revelada na fala de Homem de Ferro: “E aí, galerinha, vocês já ouviram falar da iniciativa Vingadores?”14.

O humor mostrado na cena surge na fala mostrada no outro balão, o de Homem-Aranha. O personagem, inclusive, tem como marca ditos cômicos em situações de luta. Diz ele: “Filho da %#& amp;@!”. Na linguagem das histórias em quadrinhos, o uso desses recursos gráficos conota o uso de palavrão, uma forma de insultar. Os caracteres diferenciados - ou desenhos de cobras, pregos, caveiras e outros, também utilizados - servem para camuflar a expressão chula.

Nesse caso, há o recurso, mas não propriamente uma regra de quantos caracteres usar ou sobre o conteúdo do que ele efetivamente conota. Por isso, deve-se ancorar nas pistas existentes e no que elas sugerem. Se formos seguir a representação gráfica da palavra, mostrada com o uso de quatro caracteres (“%#& amp;@”, finalizados por uma exclamação), e observada a presença da construção “filho da”, pode-se considerar a hipótese de que haja correspondência entre o número de itens gráficos com o de letras. Ou seja, teríamos um termo de quatro letras, possivelmente “puta”, integrante da expressão “filho da puta” (cujo sentido pode ser “mau caráter”).

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Figura 4: Cartaz em forma de moldura em comemoração aos 40 anos da MAD no Brasil 

A cena acima é parte de um cartaz (Figura 4), que procura reproduzir um quadro - haja vista a borda utilizada, própria de abrigar trabalhos gráficos e plásticos de várias ordens, pinturas e desenhos entre eles. Impressa na edição da MAD de junho de 2014, a imagem ocupa duas páginas da revista.

Selecionou-se aqui apenas a primeira metade, trecho onde aparece a sequência insultuosa.

O cartaz, que comemora 40 anos da MAD no Brasil (1974-2014), tem como figura central uma versão de Alfred E. Neuman, mascote da revista, com os traços fisionômicos semelhantes ao do jogador de futebol Ronaldo (Ronaldo Luís Nazário de Lima, conhecido como Ronaldo Fenômeno) - boca, dentes, formato da cabeça, cabelo como ele usou por alguns anos. É de se destacar que o uso da camisa amarela e a presença da bandeira do Brasil aproximam o personagem mostrado a ser integrante da seleção brasileira.

O que explicita o conteúdo insultuoso é a legenda mostrada no canto direito da cena, que diz: “Por que a MAD deu tão certo no Brasil, terra do samba, futebol e carnaval? É que nada é sério neste país varonil, de um povinho tão panaca e boçal (tudo culpa de Cabral!)”. Os alvos dos insultos, nesse caso, são o Brasil, tratado como um país que não é sério, e seu povo, caracterizado pelos termos “povinho” (o diminutivo, no caso, é uma forma linguística com valor depreciativo), “panaca” (idiota, otário, bobo, imbecil) e “boçal” (ignorante, tosco).

Convém ressaltar que o cartaz - ao explicitar que a publicação deu certo (já que está comemorando 40 anos) em um país que não é sério, com um povo otário e ignorante - indiretamente rebaixa a própria MAD. Se o estilo do dizer, no sentido estrito, determina o particular, o que ocorre no Brasil espelha a revista: a MAD, portanto, também se configura como “não séria” e “tola”. A forma de produzir humor usada aqui é a (auto)depreciação.

Acredita-se que a amostragem selecionada seja suficientemente capaz de elucidar como o insulto (ou melhor, as expressões tidas como insultuosas) perpassa os gêneros/textos da MAD, dirigindo-se a diferentes alvos. Ademais, os exemplos mostram que os temas e as formas de insultar podem se diversificar.

Nas palavras de Piedra (2010: 17-18), os insultos podem ser: diretos (quando se voltam diretamente a alguém); elaborados (os que são desenvolvidos na forma de metáfora ou comparação); carregados de indiferença (vistos nas atitudes de desdém); e in absentia (quando se referem a uma terceira pessoa, ou seja, o objeto da ofensa não está presente na interação).

Retomando os exemplos (1), (2) e (5), nota-se que os insultos ali presentes dirigem-se de forma direta a seus respectivos alvos (“Vocês são tão insuportáveis e babacas”, “Ola, Idiotas” e “Filho da %#& amp;@!”). Há vários outros casos desse tipo, como em: “Seus vagabundos desgraçados bem no mês do meu aniversário (17/5) essa p*rra não chega! ... ” (Souza 2014: 7 - grifos nossos) e “Seus putos eu mando um e-mail pra vcs responderem 2 revistas depois?” (Silva 2014: 4 - grifos nossos).

Em (3), (4) e (6), verifica-se que o objeto ou ser insultado (sogra, leitor, revista MAD, Brasil e povo brasileiro) não está presente na interação estabelecida, é apenas mencionado.

Nesse sentido, enquadram-se no tipo de insulto in absentia. Um exemplo a mais seria: “Para proteger funkeiros tontos, periguetes gastonas e moleques trouxas, decidimos fazer uma edição dedicada aos rolezinhos” (Fernandes 2014: 4 - No. 67, grifos nossos).

O enunciado “Perguntas que gostaríamos de fazer a Justin Bieber: Qual vai ser a próxima pessoa na qual você vai cuspir, mijar ou insultar?” (Mejia e Lassen 2015: 22 - grifos nossos) pode ser considerado um exemplo de insulto carregado de indiferença, visto nas atitudes de desdém. Uma pessoa que age/se comporta de tal forma em relação ao outro (cuspindo, mijando ou insultando) manifesta desdém, desprezo, indiferença.

Os insultos elaborados, aqueles desenvolvidos na forma de metáfora ou comparação, têm ganhado cada vez mais corpo nas formas de interação da MAD também. Citem-se dois exemplos para ilustrar: “ ... você é um covarde como uma galinha e fedido como um porco” (Fernandes 2015: 4 - grifos nossos) e “Antes de começar a defecar nessa revista que consegue ser mais sem sentido que comercial de perfume ... ” (Blasques 2015: 6 - grifos nossos).

A análise das edições da MAD, publicadas no Brasil especialmente em 2014 e 2015, revela que o maior número de expressões insultuosas estão nos editoriais e nas cartas de leitor e se apresentam no modo de saudar e tratar o interlocutor bem como na maneira de se referir à revista.

No primeiro caso, algumas das escolhas lexicais encontradas são: “Olá babacas”, “seu imbecil”, “Olá bando de maluco e cretino”, “E ae panacas”, “Olá escrotos”, “Olá leitores fedidos”, “E aí, cambada de lazarento”, “Olá idiotas”, “burros”, “moloides”, “mané”, “Seus putos”, “Olá seus imprestáveis da MAD”. Já no segundo caso, o de retratar a revista, foram depreendidas as seguintes expressões: “ECA”, “escrota”, “imbecil”, “ridícula”, “idiota”, “merda”, “bosta”, “porcaria”, “lixo”, “trolha”, “budega” sic , “joça”, “droga”, “inhaca”, “porra”.

Os dados mostram a construção de um estilo (em especial por meio do uso de um léxico específico) contrário às regras de cortesia, descompromissado com a forma da língua, mordaz e bem-humorado. Parece que no espaço da MAD tudo é possível. Mais ainda, as regras de cortesia se formatam de modo a buscar uma identificação entre os interlocutores da revista: a variação estilística passa a uma construção do discurso condicionada aos interesses mútuos dos integrantes da atividade interativa.

Essa atividade, convém lembrar, é estabelecida em um lugar (revista MAD) caracterizado pela produção de um humor peculiar: irreverente, ácido, corrosivo.

Desse modo, os exemplos ilustram claramente a proposta de estilo linguístico tratada por Coupland (1985, 2001): a de que esse estilo é produto e também processo da elaboração de uma (ou mais) persona(s) social(is) por parte de um sujeito que, ao atuar linguisticamente, na verdade adota formas comunicativas de comportamento social.

Levando-se em conta que o estilo dialetal, para Coupland (2001), é uma forma discursiva de ação social (comportamento social motivado) e que nem sempre os sujeitos falam com suas próprias vozes, os autores da MAD, ao construírem um estilo, reelaboram a linguagem de terceiros (do editor, de outros autores leitores e da própria revista) em busca de performances. Veja-se o exemplo que segue:

(7) “Meu nome é Arthur Galvão Padilha Amorim e tenho 10 anos. Sou um leitor babaca há dois dias. Quero que a MAD faça uma homenagem ao Roberto Gómez Bolaños, o Chávez. Muito obrigada pelo tempo perdido lendo essa mensagem. TCHAU.” (Amorim 2015: 6 - grifos nossos).

A troca de insultos entre os interlocutores da revista revela-se num espetáculo, onde tudo é dissimulação. O próprio leitor se autocaracteriza como “babaca” (“Sou um leitor babaca há dois dias”). Nesse sentido, ser (posicionar-se como) babaca não é algo ruim. É um modo de integrar-se à revista, adaptar-se a ela: ganhar a aceitação por meio da identificação com o que e como se diz.

Nota-se, portanto, que o apelo emocional se reflete nos termos “ofensivos” escolhidos que, pelo veio humorístico, têm o caráter de insulto amenizado. É nesse sentido que se pode afirmar que, em certos contextos, é possível observar que as expressões injuriosas perdem sua força, seu valor ofensivo, ganhando conotações afetivas até “carinhosas”. O leitor não é babaca, é esperto, faz-se de babaca.

Nessa proposta, pode-se questionar também o que de fato ofende. Afinal o que é uma palavra insultuosa para uma pessoa pode ser não para outra. Ainda: em que condições o valor de injúria se modifica? O exemplo que segue pode ajudar a refletir sobre a questão.

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Figura 5: Salada Mista 

A cena, que consta da seção intitulada Salada Mista (Figura 5), levanta uma questão: “Isso é um elogio ou um insulto?”. Como se verifica, tudo depende do ângulo do qual se olha.

A interação entre as duas mulheres mostra que a resposta não é tão simples. Ao dizer “Seu rabo é tão grande quanto o da Valeska popozuda!”, a mulher ruiva (à esquerda na cena) espanta a mulher loira (localizada à direita do quadro). O espanto, nitidamente visto pela fisionomia, deve-se ao fato de que ter o glúteo (“rabo”) comparado ao da cantora e dançarina Valeska Popozuda (que é bem protuberante) pode ser um elogio (as mulheres em geral gostam de ter um bumbum grande) ou um insulto (a mulher mencionada teria um bumbum muito grande, além do normal).

5. Considerações finais

Neste texto, partindo especialmente dos pressupostos de Coupland (1985, 2001) e de Preti (1983, 1984, 2004) sobre variação estilística e variação lexical bem como da análise das edições impressas de 2014 e 2015 da revista humorística MAD, publicadas no Brasil, verificou-se que compreender o estilo do dizer e as formas comunicativas de comportamento social significa não apenas entender a forma de ser da linguagem, mas também que as escolhas linguísticas são intencionais.

Com base no que se expôs, pode-se retomar as questões levantadas no início deste texto, quais sejam: Que efeitos interacionais levam o editor a insultar seu leitor? As formas insultuosas constituiriam uma variante linguística característica desse periódico, capaz de identificar e representar seus interlocutores?

As duas questões já foram esclarecidas, porque estão interligadas. Na verdade, o que leva o editor a insultar seu leitor e vice-versa é o efeito interacional obtido: a identificação de ambos por meio do uso de uma variante linguística comum que os representa. Nesse caso, cumpre ressaltar que a função do insulto tem efeito retórico. Nenhum deles (editor e leitor) se sente, de fato, ultrajado. Trata-se de mera simulação.

Pinker (2008) destaca que as palavras insultuosas são capazes de criar, pelo coloquialismo e informalidade, uma relação de intimidade maior com o público bem como de provocar uma reação/resposta emocional, seja para ofender ou incomodar/constranger (já que faz com que as pessoas pensem nos aspectos mais desagradáveis de alguma coisa), seja para surpreender/chamar a atenção/chocar (tendo em vista que os tabus prestam-se ao apelo chocante).

A revista MAD caracteriza-se por ser humorística. O humor faz rir à custa de aprontações e isso incluiu o emprego de certo linguajar. Na vida cotidiana, usam-se palavras chocantes (agressivas, escatológicas e obscenas) para chamar a atenção.

Mesmo que o insulto não seja sinônimo de humor, é certamente um ingrediente importante em sua composição.

Sob essa ótica, uma das explicações para o uso das expressões insultuosas na MAD (que, ressalte-se, não ultrajam) é que elas funcionam como um dos expedientes característicos na produção de humor de seus textos.

Nesse sentido, no estudo do uso de insultos na MAD, evidencia-se a manipulação estratégica de fatores linguísticos, a qual constitui um recurso elaborativo e criativo na construção de possíveis sentidos sociais (Coupland 1985, 2001). A variedade estilística e a seleção lexical vistas na MAD remetem ao controvertido campo moral das palavras e levam a refletir sobre os tabus na linguagem. Insultar (ser vulgar) é suscitar humor, é ser integrado, é delimitar as fronteiras. Desse modo, pode-se considerar que nem sempre os insultos ofendem, mas que, muitas vezes, eles podem nos retratar.

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1A título de contextualização, a revista de humor norte-americana MAD foi criada em 1952 e se tornou conhecida por criticar aspectos da cultura popular. No decorrer do tempo, ganhou versões em vários países. No Brasil, ela começou a ser publicada em 1974, mas só ganhou visibilidade quando passou a mesclar, em sua produção, material nacional às adaptações e traduções da versão americana;cf. Carmelino 2011, 2013, 2014).

2Criado por Harvey Kurtzman e reproduzido nas capas e em muitas histórias contidas na revista, Neuman é uma figura plagiada de um personagem publicitário dos EUA dos primórdios do século XX (“Newman”). Trata-se de um “garoto idiota” (idiot kid), uma figura irreverente e sarcástica, com um rosto comum, que se caracteriza especialmente pela ausência de um dente na frente e pelas grandes orelhas de abano. Célebre por seu slogan “What, me worry?” - uma referência ao slogan institucional do governo dos EUA: “Who needs You” -, Neuman tornou-se um ícone de identificação da revista;cf. Ficarra 2012)

3Cf. Dicionário de usos do português do Brasil (Borba 2002) e Dicionário informal on line (disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/babaca/).

4Em estudo sobre a caracterização (e construção do humor) da MAD, Carmelino (2011, 2013 e 2014) observa que o periódico apresenta uma linguagem particular, extremamente coloquial, com a presença de gírias, palavrões e expressões insultuosas

5O conceito de “mudança em progresso”, segundo assinala Faraco (1991: 116-117), refere-se ao fato de o uso de uma variante, por um determinado tempo, ser predominante em relação a outra(s). A predominância pode indicar uma mudança em progresso, ou seja, “que uma das variantes está sendo abandonada em favor de outra”.

6A base dos pressupostos teóricos de Coupland (1985), empiricamente falando, encontra-se no estudo que “faz da construção estilística de Frank Hennessy (locutor de rádio da cidade de Cardiff, de Gales), no qual observa que a forma como Hennessy opera alguns recursos fonológicos socialmente distribuídos na construção de um estilo constitui-se como processo no qual este sujeito constrói ‘personas’ sociais: ora o rapaz é querido por todos na comunidade; ora uma espécie de galês não tão autêntico, de humor afiado e perverso, mas nostálgico das ruas do cais do porto e dos pubs e sempre reverenciador das cervejas locais” (Rezende 2009: 123-124).

7A more broadly conceived “dialect stylistics” can explore the role of style in the projecting speakers’ often-complex identities and in defining social relationships and other configurations of context. This is a perspective that allows sociolinguistics to engage with recent inter-disciplinary literatures on selfhood, social relationships, and discourse (Coupland 2001: 186).

8Style, and in particular dialect style, can therefore be construed as a special case of the presentation of self, within particular relational contexts - articulating relation goals and identity goals (…). Dialect style as persona management captures how individuals, within and across speaking situation, manipulate the conventionalized social meanings of dialect varieties - the individual through the social (Coupland 2001: 197-198).

9Convém lembrar que a análise do estilo na perspectiva laboviana enfatiza a variação fonológica.

10“estas palabras malsonantes se utilizan para ofender, para humillar, para relajarse, como venganza, para liberar estrés, como una forma más de expresión cultural y, en algunos casos, incluso placer” (Piedra 2010: 13-14).

11“Las groserías representan una válvula de escape para la tensión por la que pasamos; al insultar, descargamos a tal grado nuestro enojo, nuestra impotência, nuestro dolor, que se podría decir que el insulto puede cumplir también uma función catártica em el ser humano” (Espinosa 2001).

12“es la mejor arma que tiene la gente corriente para defender-se contra los incesantes esfuerzos de todas las esferas del poder por imponerle ideas preconcebidas y hábitos de conducta controlables” (Luque et al. 1997: 28)

13A revista MAD deixou de ser publicada pela Panini no último trimestre de 2016. O último número foi o 90.

14A “iniciativa Vingadores” é uma referência a sequências de outros longas-metragens da Marvel, em que os heróis de cada um dos filmes eram informados sobre tal projeto. Em síntese, consistia na reunião de um grupo de superseres, batizado de Os Vingadores - o que culminou em um filme homônimo, exibido em 2012, ou seja, dois anos antes de “Guardiões da Galáxia”.

Recebido: 24 de Janeiro de 2017; Aceito: 30 de Junho de 2017

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