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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.2 Montevideo nov. 2015

 

Lingüística

Vol. 31-2diciembre 2015: 137-143

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

ESTHER PASCUAL. 2014. Fictive interaction. The conversation frame in thought, language, and discourse. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins (Human Cognitive Processing, 47), 243 p. ISBN 978-90-272-4663-9.

 

 

Resenhado por ANDRÉ VINÍCIUS LOPES CONEGLIAN*

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

coneglian03@gmail.com

 

 

Não são novas as ideias de que as formas e os processos da língua não são um fim em si mesmos, mas, sim, servem a uma variedade de propósitos. A descrição das funções das formas e dos processos, portanto, deve ser feita considerando-se os parâmetros que moldam a língua, que são a comunicação e a cognição (GIVÓN, 1995; NEVES, 1997). E também não é nova a ideia de que o significado de uma construção linguística não pode ser plenamente compreendido sem que se faça referência ao contexto em que tal construção é usada (GIVÓN, 1989). Nessa medida, a estrutura da língua reflete suas funções comunicativas e o uso efetivo da língua não se dá senão na interação entre indivíduos, que produzem enunciados nos quais estão refletidas as condições de produção e as finalidades interativas (BAKHTIN, 1988, 2003; BRANDT, 2013). Angulada nesse conjunto de postulados teóricos e atribuindo primazia à conversação, Pascual defende, em seu novo livro, que padrões conversacionais de tomada de turno estruturam parcialmente a cognição, o discurso e a gramática (p. 29); o fenômeno investigado é o da “interação fictiva” (fictive interaction), definido por ela como um canal comunicativo intangível e inverídico introduzido pelos participantes em seus discursos (p. 9). Assim, torna-se nova tanto a tese defendida quanto o tratamento do fenômeno da interação fictiva conferido por Pascual[1].

 

Pascual, em seu livro, argumenta a favor de que exista uma base conversacional para a linguagem, a partir da qual se estruturam, parcialmente, a cognição, o discurso e a gramática da língua (p.1). Conjugando princípios da linguística cognitiva, da linguística funcional e da linguística interacional, a autora apresenta a ideia de que essa base conversacional é, na verdade, o próprio “frame de comunicação”, cujos elementos são, primariamente, um eu e um tu em interação por meio da linguagem verbal. Partindo de evidências provenientes de diversas áreas das ciências sócio-cognitivas (como a neurobiologia, a psicologia cognitiva e experimental, a etnometodologia conversacional, e a própria linguística cognitiva), a autora defende a tese de que a interação verbal cotidiana face a face, assim como todo tipo de experiência corporificada, serve de modelo para a estruturação da cognição humana, do discurso e da gramática, visto que a interação dialógica (na qual há troca de turno) é o tipo de interação mais básica em todas as culturas do mundo (p.2, 9, 29). Em suma, a ideia central apresentada e defendida por Pascual é a de que a estrutura (conversacional) do discurso e a estrutura linguística emergem de mentes intrinsicamente conversacionais (p.3).

 

A autora estabelece três perguntas de pesquisa cujas respostas são a própria comprovação da tese central do livro, segundo a qual o frame de comunicação parcialmente estrutura a cognição humana, o discurso e a gramática da língua. As três perguntas são: (p.19): “(a) que formas assumem o padrão interacional básico de tomada de turno na gramática e no discurso?; (b) quão difundidas são essas formas nas diversas línguas (não relacionadas) do mundo e nos diferentes gêneros discursivos?; (c) de que maneira são usadas tais formas como dispositivos estruturantes do discurso e como estratégias comunicativas na linguagem para alcançar objetivos específicos?”[2]. Essas três perguntas constituem o norte da investigação de Pascual.

 

Aqui, faz-se pertinente mencionar a metodologia utilizada pela autora. As análises são feitas a partir de dados coletados de situações reais de comunicação, em pouquíssimos casos fez-se necessária a utilização de exemplos construídos ou artificiais (esses tipos de exemplos foram utilizados em casos em que a autoria argumentava a respeito da produtividade de certos padrões construcionais já atestados). Os métodos empíricos utilizados pela autora são coerentes com a linha de investigação estabelecida a partir de suas perguntas de pesquisa. A lida com ocorrências provenientes de diferentes corpora de diferentes línguas evidencia a excelência e o cuidado da autora no tratamento dos dados. Faz-se pertinente, também, mencionar que o banco de dados formado pela autora para a realização do estudo apresentado no livro Fictive Interaction está disponível para acesso do público[3].

 

O livro é composto de oito capítulos, divididos em duas partes, sendo a primeira dirigida às questões (a) e (b), e a segunda parte, à questão (c). A primeira parte, intitulada “Forms and Functions of Fictive Interaction”, composta dos capítulos dois, três e quatro, dedica-se à apresentação das formas linguísticas e das funções comunicativas da interação fictiva em diferentes níveis gramaticais (oracional, frasal e lexical), e em diferentes línguas de diferentes famílias. A segunda parte, intitulada “Fictive Interaction in Criminal Courts”, composta dos capítulos cinco, seis e sete, dedica-se à investigação do fenômeno da interação fictiva especificamente em gêneros da corte judicial criminal, tanto na argumentação dos advogados quanto na deliberação dos jurados. Fica visto, portanto, na própria organização do livro a coerência com que a autora “ata as pontas”, levando à cabo todas as questões propostas em sua investigação.

 

No primeiro capítulo, o introdutório do livro, a autora discute a relação entre linguagem, interação e cognição. Nele, a autora apresenta os principais pontos teóricos que fundamentam sua discussão e apresenta evidência de estudos relacionados à aquisição da linguagem para mostrar a primazia da conversa e da interação na formação da competência comunicativa do ser humano. Essa primazia, conforme aponta a autora, deve-se, dentre outros fatores, ao fato de que o processo de aquisição da linguagem por crianças acontece primeiramente no domínio das competências interativas, e, só, então, no domínio do léxico e da sintaxe da língua. Nessa medida, argumenta a autora, a mente (e a cognição) dos seres humanos desde os primeiros anos de vida se amolda para ser uma “mente comunicativa” (p.5).

 

É também no primeiro capítulo que a autora define o que é “interação fictiva”. A noção de fictividade é proveniente da semântica cognitiva de Talmy (2000) e diz respeito à representação cognitiva de fenômenos não verídicos - essa noção é oposta à noção de “factividade”, que diz respeito à presença “verídica” de uma dada entidade em uma dada representação (TALMY, 2000, p.99, 101).

 

A autora propõe, assim, que interação fictiva é o tipo de interação que não é factual, mas também não é construída em um espaço imaginário (ou virtual). Para ela, a interação fictiva fica justamente na tensão entre o espaço do real e do irreal (p.9), pois assume uma representação cognitiva sem que haja, nela, valor veredictório.

 

Ao propor sua definição de interação fictiva, Pascual brevemente menciona um sem-número de estudos que, indiretamente, lidaram com a instanciações do fenômeno de fictividade interativa sem, no entanto, fazer menção a essa noção do ponto de vista cognitivo. O exemplo, trazido pela autora, que merece ser destacado são as construções de “atos de fala virtuais”, propostas por Langacker (1999), que seriam aquelas construções em que se instanciam ironias ou perguntas retóricas. O problema com esses estudos, aponta a autora, é que, justamente por eles tratarem de fenômenos de fictividade sem que se fizesse menção à fictividade, as análises ficaram limitadas ou a certos tipos construcionais, como foi o caso do estudo de Langacker (1999) que se restringiu a algumas construções de atos de fala, ou a certos tipos de gêneros discursivos.

 

No segundo capítulo, a autora apresenta diferentes instanciações de interação fictiva na gramática. A autora identifica três níveis em que se dá essa instanciação: (i) nível inter-sentencial; (ii) nível sentencial; e (iii) nível intra-sentencial. Quanto ao primeiro nível, o nível inter-sentencial, a autora examina principalmente “construções de [marcação da] estrutura informacional”[4] (p.32), que podem tanto marcar ou o tópico ou o foco. Em algumas línguas do mundo, conforme mostra a autora, uma estrutura de pergunta se gramaticalizou como a única forma convencional de marcação de tópico ou de foco – como é o caso de algumas línguas africanas e indígenas norte-americanas. Ainda no primeiro nível, a autora identifica construções do tipo de orações relativas, de orações condicionais e de condicionais concessivas, que apresentam um pronome interrogativo gramaticalizado como marcador dessas construções.

 

Quanto ao segundo nível, o sentencial, a autora examina construções cuja fictividade se dá em sua “força ilocucionária” (p.38), que na literatura haviam sido tratadas como “atos de fala virtuais” (LANGACKER, 1999). As construções fictivas no nível sentencial haviam sido analisadas como instâncias de ironia e de atitude emocional (p.39), no entanto a autora discute que essas classificações limitaram a análise semântica dessas construções, principalmente porque esses padrões, apesar de atestados em córpus, não constituem um caso de construções convencionalizadas. A autora propõe, então, que a fictividade na força ilocucionária está associada, geralmente, a construções exclamativas que expressam asserções, pedidos, ordens, e a construções interrogativas usadas como atos de fala indiretos. A autora confere, portanto, um tratamento mais sistemático a essas construções e estabelece quatro padrões construcionais para os atos de fala fictivos: (i) asserções fictivas; (ii) ordens fictivas; (iii) perguntas fictivas; e (iv) pedidos de desculpa, saudações, etc., fictivos. Há um caráter unificador desses dois primeiros níveis: a manifestação da fictividade interativa se dá predominantemente no diálogo fictivo, o que justifica a proficuidade de construções com pronomes interrogativos, ou se dá na marcação do falante fictivio, o que justifica em parte os atos de fala fictivos, principalmente aqueles do tipo (iv). Quanto ao terceiro nível, o intra-sentencial, o principal tipo de construção em que se verifica a presença do discurso direto sem que esteja envolvida a citação literal, portanto, não são as construções prototípicas. Nessa medida, discute a autora, as construções do terceiro nível diferem das construções dos níveis um e dois precisamente porque não só podem marcar o diálogo fictivo como também podem marcar o ouvinte fictivo. A análise que a autora propõe das construções de discurso direto em termos de fictividade reinterpreta os critérios tradicionalmente utilizados nas análises, e conclui que essas construções constituem unidades discursivas autossuficientes conceptualizadas dentro de uma interação não factiva.

 

 É importante notar que, já no segundo capítulo, a partir de um tratamento sistemático das construções que instanciam interação fictiva, a autora deixa mostrada a forte natureza comunicativa da linguagem e a determinação dessa natureza até mesmo nas estruturas gramaticais da língua. Nessa medida, o que se verifica é que há uma “mini interação” sendo conceptualizada em cada uma dessas construções que instanciam a interação fictiva, o que significa que essas estruturas sintáticas emergem diretamente da interação conversacional (p. 37). Pode-se, aqui, retomar a escala de gramaticalização proposta por Givón (1979), segundo a qual estruturas discursivas se gramaticalizam em estruturas sintáticas, que se gramaticalizam em estruturas morfológicas, que se transforam em zero. O que a autora alcança, já no segundo capítulo, é justamente apresentar novas e incontestáveis evidências de que a estrutura esquemática intersubjetiva da interação dialógica é um frame organizador e constitutivo da cognição humana, do discurso e da gramática da língua (p.56).

 

No terceiro capítulo, a autora explora em maiores detalhes a natureza metonímica da interação fictiva e a sua instanciação no nível da morfologia. O seu foco são, principalmente, compostos nominais na língua inglesa cujo elemento modificador serve como uma unidade discursiva autossuficiente. É nesse capítulo que fica estabelecida a natureza metonímica da interação fictiva: a unidade discursiva por si só evoca um cenário interativo. A condução da análise da autora leva claramente à consideração do turno conversacional como a unidade básica de análise da língua, não a oração. Essa consideração, no estudo que ela apresenta, até o capítulo três e no restante do livro, é decorrente da tese que ela defende no livro. 

 

No quarto capítulo, a autora investiga construções intra-sentenciais de interação fictiva numa amostra grande de línguas de diversas famílias e origens genéticas, incluindo línguas que não possuem código de escrita. A hipótese que ela defende, e que se confirma, nesse capítulo é a de que estruturas interativas encaixadas podem ser universais linguísticos, uma vez que é universal o fato de que a interação se dá primariamente face a face por meio da linguagem.

 

Para o exame que a autora apresenta, nesse capítulo, os dados provenientes da amostra de línguas que não possuem código de escrita revela que é nessas línguas que as construções de interação fictiva estão mais “fossilizadas” (p.84), visto que essas línguas são utilizadas somente para a interação face a face. A autora apresenta evidências de que a maioria dessas línguas não dispõe de construções sintáticas ou de marcações morfológicas para indicar discurso indireto, e de que naquelas que dispõem dessas construções ou marcações, a preferência dos falantes é pelo discurso direto, não pelo indireto. Ainda nesse capítulo, a autora mostra a relação entre construções encaixadas de interação fictiva e a marcação de tempo gramatical. Os dados apresentados revelam que, em muitas línguas do mundo, as construções encaixadas de interação fictiva são utilizadas para marcar tempo futuro, principalmente. A autora explica que o tempo futuro (gramatical) emerge da intencionalidade dos falantes, o que faz o território dessas construções encaixadas propício para a gramaticalização de marcadores de tempo gramatical.

 

Na conclusão do quarto capítulo, a autora ata as pontas dos capítulos que compõem a primeira parte. A autora recupera o fato de que a estrutura linguística é resultado dos processos de gramaticalização “do discurso à gramática” (discussão do capítulo 02) e o fato de que a existe uma organização universal da interação (discussão do capítulo 03) para sugerir que os universais linguísticos (discussão do capítulo 04), se é que eles existem, diz ela, devem apresentar uma base conversacional.

 

Essa sugestão a respeito da base conversacional para os universais linguísticos é coerente com as mais recentes propostas sobre universais linguísticos, segundo as quais eles seriam determinados a partir de padrões experienciais mais básicos (CROFT, 2001, 2003).

 

Os três capítulos que compõem a primeira parte respondem com muita clareza e precisão às duas primeiras perguntas de pesquisa da autora: “(a) que formas assumem o padrão interacional básico de tomada de turno na gramática e no discurso?; (b) quão difundidas são essas formas nas diversas línguas (não relacionadas) do mundo e nos diferentes gêneros discursivos?”. A condução da argumentação e das análises na primeira parte leva também a importantes generalizações. Algumas delas são: (i) a dimensão comunicativa e interativa da linguagem, que é decorrente da natureza intersubjetiva da cognição humana, é essencial para o entendimento das estruturas conceptuais subjacentes às categorias gramaticais e pragmáticas (veja-se p.8); (ii) os usuários da língua se valem do conhecimento dessa dinâmica intersubjetiva da comunicação para categorizar o mundo físico e o mundo mental (veja-se p. 81); (iii) a conceptualização de intenções, emoções e atitudes em termos de interação fictiva permite a subcatecorização desses estados mentais de modo que os indivíduos acessem esses estados mais facilmente (veja-se p.76). De um modo geral, fica estabelecido, na primeira parte do livro, o caráter universal da comunicação humana por meio da interação face a face, bem como a primazia filogenética e ontogenética desse tipo de interação.

 

Tendo mostrado, na primeira parte do livro, que a interação fictiva pode se instanciar nos diferentes níveis da gramática, a autora mostra, na segunda parte do livro, a eficácia da interação fictiva como estratégia argumentativa em gêneros do domínio jurídico, respondendo, assim à terceira pergunta de pesquisa: de que maneira são usadas tais formas como dispositivos estruturantes do discurso e como estratégias comunicativas na linguagem para alcançar objetivos específicos?” (p.19). As análises apresentadas na segunda parte do livro deixam claro que o fenômeno da interação fictiva encerra o gerenciamento de múltiplas perspectivas (pontos de vista) e de várias vozes por parte de uma mesma mente cognoscente.

 

No quinto capítulo, a autora apresenta uma visão geral de formas linguísticas bem como de funções comunicativas das construções intra-sentenciais de interação fictiva no inglês, mas focaliza o seu exame principalmente em construções “(be) like” no discurso de deliberação dos jurados. O exame da autora vai na direção de mostrar a versatilidade funcional dessas construções que não só podem introduzir discurso direto ou citação, como haviam sido tradicionalmente analisadas, mas também podem introduzir tipos de pensamento, de emoção e de atitude. A autora mostra que tal versatilidade funcional emerge justamente do encaixamento de uma cena de interação fictiva, e que o seu valor argumentativo está justamente na evocação representacional de uma cena interativa, seja na introdução do discurso direto, seja na introdução de pensamentos, atitudes ou emoções. A autora conclui que a construção “(be) like”, em sua versatilidade funcional, constitui a convencionalização econômica do seu potencial semântico e pragmático.

 

No sexto capítulo, a autora conduz as análises da instanciação da interação fictiva na retórica jurídica de tal modo que fique clara a essencialidade desse fenômeno como um processo cognitivo. Ela deixa claro que o uso de construções que instanciam o fenômeno da interação fictiva no discurso legal não tem finalidades de “encarecimento discursivo”, mas é motivada pela rígida natureza dialógico-interativa desse tipo de discurso. Nesse capítulo, a autora estabelece a configuração prototípica de uma cena interativa na corte judicial (ocidental), a que ela chama de “triálogo” (p.141), visto que dela participam o advogado de defesa, o promotor e o juiz/júri. A autora defende que a interação fictiva, nesse contexto interativo, nasce justamente da necessidade de a promotoria convencer, de a defesa lançar dúvida sobre o ponto de vista da promotoria, e de o juiz/júri fazer a pesagem verificativa dos pontos de vista apresentados a fim de chegar à deliberação.

 

No sétimo capítulo, dando continuidade às análises apresentadas no capítulo seis, a autora examina especificamente o uso de perguntas no discurso de encerramento e de réplica de um promotor norte-americano em um caso criminal.

 

Foram identificados por ela quatro tipos de construções com perguntas por meio das quais se instancia a interação fictiva: (i) perguntas do tipo “sim/não”, cujo propósito, naquele contexto de uso, era o da exposição de argumentos e não o propósito de buscar informação; (ii) perguntas retóricas, para as quais o próprio advogado provê a resposta; (iii) perguntas utilizadas para apresentar uma definição; (iv) perguntas ocorrentes no nível da morfologia, cujo propósito, naquele contexto de uso, era o de caracterizar o argumento do advogado. Aqui, vale retomar os níveis linguísticos em que se dá a instanciação da interação fictiva discutidos no segundo capítulo: o nível inter-sentencial, o intra-sentencial, e o sentencial; e o nível morfológico, discutido no terceiro capítulo. Os tipos construcionais (i) e (ii) são exemplos de instanciação de interação fictiva no nível sentencial; o tipo construcional (iii) é exemplo de instanciação de interação fictiva no nível inter-sentencial, dada a natureza do encaixamento da pergunta de caráter definitório; e o tipo construcional (iv) é exemplo de instanciação de interação fictiva no nível da morfologia, dado que a pergunta passa a ser modificador de um nome.

 

Se, na primeira parte, a autora discutiu com grande detalhamento a instanciação da interação fictiva na gramática, e se, na segunda parte, ela fez a mesma coisa no discurso, no capítulo de conclusão, o oitavo, ela discute a ancoragem cognitiva da interação fictiva. Essa discussão é evidente ao longo dos capítulos da primeira e da segunda parte, afinal, a proposta da autora é justamente mostrar o frame conversacional estruturando parcialmente a gramática, o discurso e a cognição. De modo mais preciso e direto, no oitavo capítulo, a autora explica, enfim, a motivação cognitiva para o fenômeno da interação fictiva.

 

Nesse capítulo, a autora relaciona o fenômeno de interação fictiva à natureza intersubjetiva da cognição humana, que é a própria capacidade cognitiva de o ser humano assumir outro ponto de vista e, assim, coordenar diferentes perspectivas (p. 189). A autora aponta que, em todas as construções analisadas ao longo do livro, se percebe que elas invariavelmente expressam diferentes pontos de vista, permitindo que, na interação, seja evocada mentalmente a cena de uma interação fictiva. Em última instância, a autora propõe que o fenômeno da interação fictiva seja uma característica universal da linguagem humana, visto que ele mimetiza padrões conversacionais, que são os mais básicos padrões de interação linguística.

 

O tema da interação fictiva, como o leitor do livro pode perceber, facilmente se desdobra em inúmeros outros temas. O prospecto de investigação é vasto, dada a própria incipiência do tratamento conferido ao tema na perspectiva cognitiva. A própria autora, no último capítulo do livro, já deixa estabelecidos veios de investigação. Para ela, o ponto de partida deve ser a elaboração de um inventário de construções que instanciam o fenômeno da interação fictiva, e, então, a verificação da frequência e da complexidade dessas construções, não só sincrônica mas também diacronicamente. Além disso, segundo ela, é relevante um estudo do papel da interação fictiva na aquisição e desenvolvimento da linguagem e no desenvolvimento do cognitivo, a fim de verificar se as formas e as funções desse fenômenos estão relacionadas à idade.

 

O livro de Pascual, afinal, constitui um marco nos estudos sobre a relação entre interação, linguagem e cognição. A obra, nessa medida, torna-se leitura obrigatória para aqueles que se propõem fazer investigações sobre a funcionalidade da linguagem humana, sejam esses estudos de orientação funcionalista, sejam eles de orientação cognitivista. A obra pode interessar, também, àqueles que se dedicam aos estudos da conversação e da enunciação, pois ela toma o frame comunicativo e a interação face a face como primordiais para o estudo do uso linguístico. A obra pode interessar, ainda, àqueles que lidam com argumentação e análise do discurso, visto que a autora apresenta, em suas análises, como forma e função conjugam-se na construção da argumentatividade discursiva.

 

Os potenciais leitores que não dominam a teoria da linguística cognitiva, utilizada pela autora no livro, encontram nele uma boa introdução à teoria e aos seus pressupostos mais gerais, sem que se faça um uso excessivo de uma metalinguagem própria da teoria. A autora é capaz de, no livro, levar à cabo todas as suas análises e defender sua tese com clareza e com uma linguagem acessível até mesmo aos leitores leigos na área da linguística cognitiva.

 

 

 

Referências

 

Bakhtin, Mikhail. 1988. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.

Bakhtin, Mikhail. 2003. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.

Brandt, Line. 2013. The communicative mind. A linguistic exploration of conceptual integration and meaning construction. Cambridge: Cambrige Publishing Scholars.

Croft, William. 2001. Radical construction grammar. Oxford: Oxford University Press.

Givón, Talmy. 1979. From discourse to syntax: Grammar as a processing strategy. In T. Givón (ed). Discourse and Syntax. New York: Academic Press, 81-112.

Givón, Talmy. 1989. Mind, code and context. Londres: LEA Publishers.

Givón, Talmy. 1995. Functionalism and grammar. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins.

Langacker, Ronald. 1999. Virtual reality. Studies in Linguistic Sciences 29(2): 77-103.

Neves, Maria Helena de Moura. 1997. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes.

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Pascual, Esther. 2006(a). Fictive interaction within the sentence: A communicative type of fictivity in grammar. Cognitive Linguistics 17(2): 245-267.

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Pascual, Esther. 2008Text for context, trial for trialogue: An enthnographic study of a fictive interaction blendAnnual Review of Cognitive Linguistics 6: 50-82.

Talmy, Leonard. 2000. Towards a cognitive semantics (vol. 1). Concept structuring systems. Cambridge: The MIT Press.

 

 

 

 




* Esta resenha foi elaborada durante a vigência da bolsa de doutorado FAPESP (processo n. 2015/08048).

[1] O tema da interação fictiva tem sido o principal interesse de pesquisa de Pascual (PASCUAL, 2002, 2006a, 2006b, 2008, entre outros).

[2] Texto original: “(i) what forms does the basic interactional pattern of turn-taking take in grammar and discourse?, (ii) how widespread are these forms across unrelated languages of the world and different discourse genres?, and (iii) how are such forms used as discourse-structuring devices and communicative strategies in language for specific purposes?” (p.19).

[3] O endereço eletrônico para acesso é << http://estherpascual.com/unquoted>>. Acessado em 09 de novembro de 2015.

[4] Information structure constructions.

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