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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.2 Montevideo nov. 2015

 

Lingüística

Vol. 31-2diciembre 2015: 83-109

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

'Tu' ou 'você', 'te' ou 'lhe'?: a correlação entre as funções

de sujeito e complemento verbal de 2a pessoa*

 

'Tu' OR 'você', 'te' OR 'lhe'?: THE RELATIONSHIP BETWEEN THE FUNCTIONS

OF SUBJECT AND VERB COMPLEMENT IN THE 2ND PERSON

 

Márcia Cristina de Brito Rumeu[1]

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.

marciarumeu@uol.com.br

 


Neste trabalho, correlacionam-se quantitativamente as estratégias de referência à 2a pessoa do discurso (tu e você) às estratégias de complementação verbal de 2a pessoa (te, lhe, a você, para você, o/a, a ti, para ti). Com base na produção escrita de mineiros e cariocas acompanha-se, no período de 1850 a 1950, não só a produtividade de tu e você, mas também a diversidade de estratégias de complementação verbal de 2P em estruturas de acusativo, dativo e oblíquo. Os resultados já anunciam os subsistemas tratamentais atualmente consolidados no eixo Minas Gerais-Rio de Janeiro: a prevalência do você-sujeito nas cartas mineiras e a variação entre os pronomes-sujeito tu e você nas cartas cariocas, cf. Lopes et al. (2011a). Mostrou-se vigorosa a alternância te ~ lhe em contexto de dativo, além da alta produtividade do te evidenciá-lo como um prefixo de pessoa, cf. Castilho (2010), Machado Rocha (2011).

 

Palavras-chave: alternância tu/você, variação te/lhe, sistema pronominal.

 

Keywords: tu/você alternation, te/lhe variation, pronominal system.

 

In this paper, the strategies for using the 2nd person in speech (tu and você) are quantitatively compared with the strategies for use of the verb complement in the 2nd person (te, lhe, a você, para você, o/a, a ti, para ti). Through the study of produced writings by mineiros and cariocas during the period between 1850 and 1950, we studied both the production of tu and você, as well as the diversity of verb complement strategies in the 2nd person in acusative, dative and oblique cases. The results present the subsystems currently used in the Minas Gerias-Rio de Janeiro region: prevalence of the subject você in mineiro letters and the variation between the subject pronouns tu and você in carioca letters, cf. Lopes et al. (2011a). There was emphatic alternation between te ~ lhe in the dative context, as well as high production of te, used as a person prefix, cf. Castilho (2010), Machado Rocha (2011).

 

 

(Recibido: 29/1/14; Aceptado: 8/8/15)

 

 

1. Considerações iniciais:

 

O objetivo principal deste trabalho é discutir as repercussões da entrada do você no sistema pronominal do português brasileiro (doravante PB) a partir da depreensão de resquícios dos atuais subsistemas tratamentais carioca (a alternância tu ~ você) e mineiro (prevalência do você), no período de 1850 a 1950. Pretende-se, mais especificamente, correlacionar as formas de referência ao sujeito de 2a pessoa (doravante 2P) tu e você às estratégias de complementação verbal acusativa, dativa e oblíqua (te, lhe, a você, para você, contigo, com você) produtivas em epístolas familiares confeccionadas por cariocas e mineiros, visando a contribuir para o mapeamento das mudanças ocorridas nos sistemas tratamentais do PB ao longo do tempo.

 

Considerando que vários estudos acerca da reorganização do quadro pronominal do PB evidenciaram que a inserção do você no sistema se deu, preferencialmente, nas funções de sujeito preenchido e complemento preposicionado, cf. Rumeu (2013: 276), justifica-se voltar o escopo desta análise para a correlação entre tais funções no intuito de depreender a relação entre os sujeitos pronominais de 2P tu e você e as estratégias de complementação verbal de 2P (te, lhe, a você, para você, contigo, com você). Nesse sentido, convém esclarecer que a “mistura de tratamentos” (Vocêi falou que eu tei veria hoje) não se aplica aos dados reais de uso da língua, caso se admita que você e te se identificam em relação ao traço de pessoa semântica (-EU), como já discutido por Lopes et al. (2011a: 25). É interessante observar a opinião de linguistas tais como Nascentes (1950, 1956[2]), Biderman (1972-1973), Cintra (1972), que, preocupados em descrever as formas de tratamento do português, mostraram-se sensíveis às possibilidades de usos das formas você e tu, atentando também para a correlação de tais pronomes ao te no PB.

 

Na língua do Brasil dá-se frequentemente a mistura de tratamentos. (...) O tratamento de você se mistura com o de tu. Eu disse que o brasileiro julga bruto o tratamento por tu. Julga bruto, porém, no pronome recto. No pronome oblíquo, emprega-o sem sentir brutalidade. Comummente, ouvem-se frases deste teor: “Você esteve na praia? Eu também estive, mas não te vi lá.” Explica-se facilmente. Como pronome objectivo te é mais leve do que você. Se se empregasse você, a frase ficaria: “Eu também estive, mas não vi você lá. Frase pesada. O brasileiro não usa o, a, com caso objectivo de você. Usa o mesmo você do caso sujeito. Há certa repulsa por estas formas átonas. Parecem-nos vazias. (Nascentes 1950: 21)

 

“No Brasil, ocorreu a substituição do tu por você, como forma de tratamento familiar e íntima, fato que se deve ter processado na virada do século XIX para o XX. A correspondência de Machado dá testemunho desse fenômeno social e linguístico. Até os anos 70, Machado usava tu com os íntimos, de modo geral. No final do século XIX e começo do XX, serve-se quase exclusivamente de você. (...) Um século depois, nesse último quartel do século XX, o tratamento de 2.a p. está quase extinto no Brasil, apesar de vários vestígios. Um deles: o uso do pronome oblíquo te e dos possessivos teu, tua, etc. no interior do sistema de 3.a p. (você). (...)” (Biderman 1972-1973: 364)

 

O sistema português (...) parece ligar-se intimamente, por um lado, a uma sociedade fortemente hierarquizada; por outro, a um certo comprazimento, a um certo gosto na própria hierarquização e na matização estilística ou, talvez, a uma dificuldade inconsciente ou subconsciente em aceitar uma nivelação maior realizada através de um processo semelhante ou pelo menos paralelo ao que conduziu, no Brasil, à fixação de um sistema dual, devido à expansão do você pelo terreno da intimidade, com prejuízo do tu, hoje moribundo e quase reduzido às formas oblíquas: te, ti. (No Brasil o sistema está efetivamente reduzido, na língua falada dos cultos e semicultos das grandes cidades, a uma oposição de dois membros: você/o senhor.) (Cintra 1972: 15)

 

Assume-se, pois, que não há mescla de pessoas semânticas distintas na referência ao sujeito de 2P, como é apresentado pelo gramático Rocha Lima (1972: 316), que já incluiu, na edição da sua gramática da língua portuguesa publicada na década de 70 do século XX, você e tu como formas rectas ou subjectivas de referência à 2P, bem como considerou te e você como formas oblíquas (objectivas diretas), ao lado do lhe, a você (objectivas indiretas) também na referência à 2P. Desmistificada essa falsa noção de “mistura de pronomes”[3] atrelada ao fato de já o discurso gramatical fazer referência à ampla difusão da forma oblíqua te, cf. também observaram Cunha e Cintra, ainda que em nota de rodapé[4] (1985: 284), descrevem-se, neste trabalho, os contextos de complementação verbal em que o te, em estruturas de complementação acusativa ou dativa, já alcançava uma alta produtividade, cf. já averiguado por outros estudos sobre o tema, seja em cartas familiares por Lopes et al. (2011a), seja em cartas amorosas por Lopes et al. (2012), Figueiredo (2013), tentando acompanhar, no eixo do tempo, não só a resistência do te como um contexto de retenção do tu, mas também o nível de alternância entre as formas te e lhe. Assumindo como ponto de partida os subsistemas tratamentais atualmente vigentes no Rio de Janeiro (tu ~ você) e em Minas Gerais (você), cf. discutido por Lopes et al. (2011a) com base em Scherre et al. (2009), conjectura-se a hipótese de que, já na escrita de sincronias passadas do PB, seja possível detectar vestígios desses atuais subsistemas tratamentais. Estudos linguísticos à luz da Teoria da Variação e da Mudança sob a orientação teórico-metodológica laboviana, cf. Lopes et al. (2011a), Marcotulio (2010), Rumeu (2013), evidenciaram a produtividade do te, seja como complemento dativo ('o prêmio te água na boca'), seja como complemento acusativo ('o presente te deixa com lágrimas nos olhos')[5] já na escrita íntima brasileira de fins do séc. XIX. Nesse sentido, entende-se que o te representa uma evidência da resistência do pronome-sujeito de 2P tu. Trata-se de um contexto morfossintático em que o tu ainda persiste no sistema pronominal do PB, tanto no espaço mineiro de expressão linguística em que o você prevalece como pronome-sujeito de 2P, quanto no espaço carioca em que tu e você disputam o mesmo espaço funcional como pronomes-sujeito de 2P, cf discutido por Lopes et al. (2011a). Diante dessas justificativas e hipótese estritamente linguísticas usadas na fundamentação do tema deste trabalho, passa-se às motivações de caráter social que orientaram a opção por uma análise contrastiva entre os comportamentos linguísticos de cariocas e mineiros em sincronias passadas do PB.

 

Os espaços geográficos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais se consolidaram como relevantes espaços para a configuração da história social e linguística do PB. A importância da análise dos dados cariocas fica evidente, ao considerar o fato de o Rio de Janeiro representar a “capital da Colônia portuguesa desde 1763, e ser uma área cuja linguagem culta tende a apresentar menor número de marcas locais e regionais, com uma tendência universalista, dentro do país” cf. Leite e Callou (2002: 10), figurando como o centro irradiador de cultura, principalmente, a partir de 1808, com a chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil. Em relação à Minas Gerais, destaca-se o Ciclo do Ouro, no século XVIII, como uma importante atividade extrativa no espaço mineiro, responsável por concentrar brasileiros de todas as partes e, consequentemente, uma rica pluralidade linguística, cf. Priore e Venâncio (2010: 70-74). A abordagem da alternância tu e você com base nos dados das produções escritas de cariocas e de mineiros em sincronias passadas é referendada pela relevância social desses estados-expoentes na composição da história linguística e social do PB.

 

O quadro teórico que conduz este estudo é o da Teoria da Variação e Mudança linguística de orientação laboviana (Labov 1994). Aos dados das formas pronominais de 2P, deu-se um tratamento quantitativo, submetendo-os ao pacote de Programas Goldvarb (Robinson et al., 2001) para o cálculo das frequências de uso das estratégias pronominais de 2P nas funções de sujeito e de complemento em conformidade com as orientações metodológicas de uma pesquisa sociolinguística, cf. Paiva et al. (2003), Mollica et al. (2004), Guy et al. (2007).

 

Estruturalmente, este texto está organizado da seguinte forma: inicialmente, retoma-se brevemente a história de inserção do você no sistema pronominal do PB, alcançando as estruturas formais de avanço do você e de resistência do tu que se mostram evidentes no PB atual. A seguir, descrevem-se as amostras de composições epistolares de cunho familiar produzidas, desde 1850 a 1950, por cariocas e mineiros. Na sequência, apresentam-se analiticamente os resultados da dinâmica variável da referência à 2P através das formas tu e você, bem como a correlação entre as funções de sujeito de 2P e complemento de 2P. Por fim, tecem-se algumas generalizações acerca dos indícios da atual produtividade do inovador você-sujeito e do resistente te-complemento nas missivas oitocentistas e novecentistas de cariocas e mineiros, visando a uma coerente análise da atual sincronia do PB à luz do seu passado na dinâmica de uma ars interpretandi.

 

 

2. A inserção do você e a retenção do tu no quadro pronominal do português brasileiro: os contextos estruturais em foco.

         

Muitos estudos acerca da variação pronominal de 2P, entre os séculos XVIII e XX, com base em amostras tipologicamente diversificadas tais como cartas (Rumeu 2004, Lopes et al. 2005a, Barcia 2006, Lopes et al. 2011a, Lopes et al. 2011b, Pereira 2012, Silva 2012, Rumeu 2013), bilhetes (Lopes et al. 2011c), peças de teatro (Lopes et al. 2003, Machado 2006, Machado 2011) e roteiros de cinema (Lopes et al. 2005b) evidenciaram as categorias gramaticais de sujeito e de complemento preposicionado como os contextos através dos quais o você se inseriu mais rapidamente no quadro pronominal do PB. Acrescente-se o fato de o segundo quartel do século XX, mais especificamente entre os anos 25 e 45, ter sido o período em que o Você se mostrou mais produtivo, especializando-se como pronome-sujeito de 2P, cf. Rumeu (2013: 278). Esse lapso temporal coincide com o período em que o PB muda de língua pro-drop, marcada positivamente em relação à produtividade do sujeito nulo [+ suj. nulo] até 1937, para língua não pro-drop, marcada negativamente em relação ao sujeito nulo [- suj. nulo], cf. Duarte (1993: 123). Partindo dessas considerações, justifica-se o direcionamento do foco deste trabalho, nesta seção da análise, estritamente para uma revisão de outros trabalhos que tenham se voltado para as estratégias de sujeito de 2P (você e tu) e as estratégias de complementação verbal de 2P nas funções acusativa, dativa e oblíqua (te, lhe, a você, para você, contigo, com você) em cartas mineiras e cariocas (1850-1950).

 

A ausência de “uniformidade de tratamento” é um fato já atestado em alguns trabalhos produzidos com base em dados da fala rural de indivíduos com baixíssimos índices de escolarização das regiões sul (Paraná e Florianópolis), sudeste (Minas Gerais), centro oeste (Goiás) e nordeste (Bahia) do Brasil. No que se refere à fala de indivíduos menos escolarizados, tem-se o estudo Gomes (2003) acerca da expressão do dativo orientado pelos dados da fala carioca do projeto PEUL-RJ[6]. Para a fala culta, tem-se as descrições da categoria pronome propostas por Moura Neves (2008), Castilho (2010) e Bagno (2011) embasados, principalmente, em dados do Projeto NURC[7] e do PB contemporâneo escrito. No intuito de explicitar o status questione deste trabalho, apresentam-se os resultados de outras análises acerca da dinâmica variável dos pronomes de 2P tu e você desde os falantes menos escolarizados até os mais escolarizados.

 

Para a fala rural paranaense, Brito (1999: 60) observou a alternância te e você com índices de 63,5% e 30%, respectivamente, na posição de objeto, em contextos referenciais de você-sujeito de 2P. Em estruturas tais como “eu vô dá todo apoio pra vocêi, tei pago, pra você pôr ropa, pra você comê”, Brito observou a variação entre as formas te e você na função de objeto. Acrescente-se que tais formas pronominais se manifestaram como complemento dativo, contexto de complementação verbal a ser descrito, neste trabalho, para as cartas cariocas e mineiras.

 

Em relação à fala mineira, apresentam-se os resultados quantitativos de Mota (2008) que entendeu o tu como um traço produtivo no contexto rural, mais especificamente de São João da Ponte, no interior de Montes Claros (MG), visto que, com peso relativo de .91, o te sobrepôs-se ao você em construções do tipo “Eu vô te piá pelas perna e vô jogá tu dend’água.”, cf. Mota (2008: 49). Muito interessante também foi a constatação de Mota (2008: 64) para o fato de que o predomínio do tu se deu nas relações sociais movidas pela intimidade, dialogando com os resultados de análises diacrônicas com base em bilhetes e epístolas amorosas tais como a de Lopes, et al. (2011c), Pereira (2012) e Figueiredo (2013), que já, em inícios do século XX (1908), evidenciaram a prevalência do tu em relações sociais centradas na relação de intimidade entre os interlocutores. Ainda para a fala mineira contemporânea, tem-se, segundo Duarte et al. (2012: 92), a interpretação de que “As ocorrências de redobro mineira parecem ser bastante produtivas, visto que não causam estranhamento aos habitantes de Minas Gerais.” Tal assertiva se deu também com base na análise qualitativa de construções de redobro pronominal de 2P que envolvem te e você numa mesma sequência discursiva tais como: “Eu vou tei levá ocêi”, “Uma coisa eu vou tei falá com ocêi”, “Eu vou tei contá pro ocêi um pouquim da minha vida.

 

No que se refere à fala rural de Goiás, Nascimento (2009: 54) verificou a prevalência da preposição para (“aí depois pegô vendeu ele pra mim”), em 79% dos dados, na expressão do dativo. Para os clíticos de 1P e 2P, tem-se uma frequência de 15%, seguida pelo zero (ø), em 09% dos dados (“eu vô ensina ø ocê os remédio, cê mesmo faiz...”), e pela preposição a, em 02% dos dados (“pede a Deus que é...”). Em comunidades linguísticas cuja influência do ensino da norma-padrão é baixíssima, evidenciou-se um sistema propenso ao avanço da preposição para e à estabilidade do zero (ø) na expressão da complementação verbal dativa.

 

Na gramática do português afro-brasileiro, representada pelas regiões baianas de Helvécia, Cinzento, Rio de Contas e Sapé, Lucchesi identificou, em relação à 2P do discurso, os seguintes pronomes: você e tu (sujeito), te ~ lhe ~ você ~ tu (objeto direto), te ~ lhe ~ a você (objeto indireto), pra/com/de você ~ com tu (complemento oblíquo/adjunto adverbial). Interessante observar o lhe na funções de objeto indireto (`eu vô lhe contá´) e de objeto direto (`eu já lhe vi´), possibilidades funcionais do lhe observáveis não só na norma do português afro-brasileiro, mas também na norma urbana culta do PB. A alternância entre os pronomes-sujeito tu e você está vinculada ao emprego do te nas funções de objeto direto (`eu vô te leva po Cinzento´) e de objeto indireto (`não te dô a conta´), segundo Lucchesi e Mendes (2009: 482). Acrescentem-se ainda os usos do tu nas funções de objeto direto (`só num já matei tu´) e complemento oblíquo (`num falei com tu´) levantados não só na fala afro-brasileira, mas também em muitas variedades do português, o que, segundo os autores, está associado a uma mudança crioulizante de eliminação da flexão de caso dos pronomes pessoais.

 

Para a fala carioca, tem-se a contribuição de Gomes (2003) que, ao se voltar para a expressão do dativo no PB, chega a identificar um dilatado leque de estratégias de referência à 2P: você e tu, para o nominativo; te, lhe, você para o acusativo e te, lhe, a ~ para você para o dativo. Em relação à fala carioca, verificou-se o desuso do lhe, marcado como expressão de formalidade, cf. Ramos (1998).

 

A análise da alternância entre as preposições a e para, em sintagmas preposicionados, e zero (ø) que complementem verbos bitransitivos (“E pede um comprovante ao presidente do morro, né?”, “Ela disse os piores nomes feios para o meu filho.”, “... ensinar ø o povo regras básicas de saneamento”) evidenciou se tratar de uma mudança em progresso a favor da preposição para, o que legitima que também se busque, neste trabalho, o controle da alternância entre as formas a você ~ para você em estruturas de complementação dativa de 2P do discurso.

 

Com base na análise da fala das cinco cidades brasileiras que integram o Projeto Nurc (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Salvador e Recife), entre os anos de 1970 e 1978, Moura Neves (2008: 524) observou maior produtividade do você-sujeito, em 99,75% dos dados em contraposição a somente 0,25% de ocorrências de tu-sujeito na fala de Porto Alegre.

 

Acerca dos índices de 2P na função de complementação verbal, Bagno (2011: 753) esclarece que, nas regiões norte e nordeste do Brasil, é produtivo o lhe correlacionado a contextos de tu-sujeito, ao passo que, nas regiões sul e sudeste, o te é o índice de 2P que prevalece tanto em contextos do tu-sujeito (sul), quanto em contextos de você-sujeito (sudeste): “Doc: você comeu muito brigadeiro? (...) Doc: não te serviram?(NURC/SP/234); “Inf. Roda viva você assistiu? (...) Inf. (...) eu te falei da peça” (NURC DID SP/234).

 

Para sistematizar os indicadores da 2P nas funções de sujeito e complemento produtivos no discurso menos monitorado do PB, Bagno (2011) compôs o seguinte quadro.

 


 

Quadro 1: Indicadores da 2a pessoa no português brasileiro, cf. Bagno (2011: 746)

 

          Castilho (2010: 477, 482), ao descrever o quadro de pronomes pessoais do PB, para as seis pessoas do discurso, atenta para a conversão da forma você>ocê>cê[8] e para a interpretação dos clíticos te e (você) como morfemas prefixais de pessoa no PB informal: `você vai´ > `vai´; `vocês vão´ > `cêsvão´; `te encontrou´ > `tincontrô´. Expõem-se, a seguir, as formas pronominais relacionadas à 2P do singular nas funções de sujeito e complemento nos registros formal e informal do PB, à luz de Castilho (2010).

 


 

 

 

 

 

Quadro 2: Os pronomes pessoais no PB, cf. Castilho (2010:477)

 

Considerando as diversificadas estratégias de referência ao sujeito de 2P tu e você e dos pronomes-complemento de 2P (te, ti, contigo, sprep+ti) e de 3P (lhe, sprep+você, lhe, o/a/os/as), busca-se, neste trabalho, responder as seguintes questões:

 

(1) As cartas mineiras e cariocas, entre 1850 e 1950, já evidenciariam os subsistemas tratamentais atualmente vigentes na atual sincronia do PB: Minas Gerais (você) e Rio de Janeiro (você ~ tu)?

(2) Qual seria o grau de produtividade dos clíticos te e lhe em missivas cariocas e mineiras oitocentistas e novecentistas? E essa produtividade prevaleceria em cartas de tu-sujeito, de você-sujeito ou mistas?

(3) Qual seria a relação entre o avanço do você-sujeito e a retenção do te-complemento em missivas cariocas e mineiras trocadas entre 1850 e 1950?

 

 

3. As amostras de escrita epistolar brasileira: as cartas cariocas e mineiras (1850 - 1950)

         

Este trabalho toma por base corpora constituídos por cartas pessoais produzidas por mineiros e cariocas em relações sociais de intensa intimidade entre os seus interlocutores no período de 1850 a 1950. A assimetria entre as amostras de missivas mineiras (63 cartas) e cariocas (65 cartas) se deu em razão de o linguista-pesquisador preocupado com fenômenos linguísticos variáveis em sincronias passadas ficar sempre à mercê dos documentos que sobreviveram à ação do tempo no interior dos arquivos públicos e particulares, como já discutido por Rumeu (2013) à luz de Lobo (2001). Assim sendo, mantendo-se ciente dos limites que os corpora impõe ao trabalho na perspectiva da sociolinguística histórica, segue o linguista-pesquisador buscando, à luz de teoria e metodologia específicas, melhor descrever e analisar fenômenos de variação e mudança não só estruturalmente, mas também socialmente encaixadas (como é o processo de pronominalização do você e as suas consequências na reorganização do sistema pronominal do PB), mesmo que fundamentado em amostras de cartas ainda não irretocavelmente equilibradas não só em relação aos lapsos temporais, mas também em relação à distribuição diatópica das missivas.

 

Neste trabalho, estão assim organizadas as amostras: nove cartas mineiras e doze cartas cariocas, para a 2a metade do século XIX (1850-1901, fase I), vinte e seis e vinte e oito missivas, respectivamente, para os períodos de 1902-1927 (fase II) e 1928-1950 (fase III). As missivas mineiras e cariocas em análise estão distribuídas em relação aos intervalos temporais de cinquenta anos para a fase I (1850-1901), vinte e cinco anos para a fase II (1902-1927) e vinte e dois anos para a fase III (1928-1950), perfazendo o total de cento e vinte e oito (128) epístolas especificadas, no quadro 3, não só no que se refere aos intervalos de tempo ([9]duas gerações (50 anos) para fins do século XIX, uma geração para o 1o quartel do século XX (25 anos) e praticamente mais uma geração para o 2o quartel do século XX (22 anos)), mas também em relação às origens (mineira e carioca) dos escreventes.

 


 

Quadro 3: A distribuição das cartas mineiras e cariocas por fases entre 1850 e 1950.

 

Para as sessenta e três cartas mineiras, têm-se as missivas pessoais (familiares e de amizade) do Fundo Barão de Camargos conservadoramente editadas por Chaves (2006) e confeccionadas, segundo Chaves, por mãos seguramente mineiras. Ainda para as cartas mineiras, foram utilizadas as missivas familiares trocadas entre a poetisa mineira Henriqueta Lisboa e os seus entes, tais como os seus pais e irmãos. As missivas foram cuidadosamente organizadas e editadas por Rumeu[10] com fac-símile e de forma diplomático-interpretativa, visando especificamente aos estudos linguísticos. Para as sessenta e cinco cartas cariocas, têm-se as cartas familiares trocadas entre os Pedreira Ferraz-Magalhães (cartas entre pais e filhos, entre irmãos e entre tios e sobrinhos) editadas e publicadas por Rumeu (2013). Isso posto, justifica-se o conservadorismo assumido no que se refere à edição de corpora históricos como uma consciente opção do linguista-pesquisador que ao transcrever textos antigos, absteve-se de propor qualquer tipo de interferência na expressão escrita dos missivistas tais como em relação às atualizações de acentuação, pontuação e grafia.

 

Considerando que análises linguísticas na perspectiva diacrônica acabam por requerer do linguista-pesquisador a construção de amostras de realidades linguísticas pretéritas que se mostraram resistentes à ação do tempo no interior dos arquivos, cf. discutido por Labov (2004), Conde Silvestre (2007), legitima-se que o presente seja assumido como ponto de partida para a reconstrução do percurso trilhado pela mudança no intuito de desvelar a realidade histórica de sincronias passadas e de compreender a atual sincronia do PB à luz dos princípios da sociolinguística histórica, cf. Romaine (1982), Lobo (2001), Conde Silvestre (2007), Hernàndex-Campoy e Conde Silvestre (2014). Nesse sentido, cabe ao linguista-pesquisador empenhar-se no refinamento metodológico de seleção e análise dos textos antigos com a intenção de identificar para dissociar os traços específicos do vernáculo do PB daqueles possíveis traços linguísticos idiossincráticos do autor do manuscrito ou próprios do gênero textual carta, cf. discutido por Rumeu (2013: 111). Trilhando essa perspectiva, a edição das cartas que embasam este trabalho foi conduzida pelos seguintes procedimentos metodológicos: (I) a organização de amostras textuais diacrônicas formadas por cartas pessoais, o que se justifica por se tratar de produção textual menos “cuidada” à luz dos preceitos da norma subjetiva (cf. Cunha 1985: 52), figurando, pois, como textos mais desvinculados da pressão da norma-padrão, tendo em vista, sobretudo, a fluidez da intimidade do discurso; (II) a elaboração de conservadoras edições filológicas de amostras textuais históricas do português; (III) a preferência por manuscritos certificadamente autógrafos; (IV) a (re)construção do perfil social dos informantes, controlando as categorias sociais como a origem (nacionalidade e naturalidade), a filiação, o gênero (sexo), a faixa etária, o nível de escolarização e a representação social (a atividade profissional) do escrevente-informante.

 

Tendo em vista a caracterização dos corpora analisados neste trabalho, bem como a exposição dos critérios de construção das amostras de missivas que conduziram esta análise, passa-se à exposição-analítica dos resultados gerais não só relacionados às formas de 2P na posição sintática de sujeito, mas também vinculados às formas variantes dos pronomes-complemento de 2P nas missivas mineiras e cariocas produzidas entre 1850 e 1950.

 

 

4. A representação do sujeito de 2P: a distribuição geral de tu e você nas cartas cariocas e mineiras dos séculos XIX e XX (1850-1950).

         

Diversos estudos evidenciaram as posições de sujeito preenchido e de complemento preposicionado como as portas de entrada do você no sistema pronominal do PB, cf. Rumeu (2013: 276), Machado (2006, 2011), Lopes et al. (2011a), Barcia (2006). Com as inserções do você (em alternância com o tu) e do a gente (em alternância com o nós), a improdutividade do vós e a consequente perda da riqueza flexional dos verbos, passa-se a se fazer necessária a expressão do sujeito em sua forma plena. A prevalência de sujeitos pronominais plenos é um fenômeno de mudança em progresso atestado por Duarte (1993) em amostras de peças teatrais brasileiras. A análise da autora permitiu acompanhar diacronicamente a mudança linguística pela qual passou o PB, no que se refere à marcação do parâmetro pro drop, passando a ser negativamente marcado [- pro drop] e, portanto, a privilegiar a expressão plena do sujeito. Para a expressão do sujeito de 2P, Duarte (2012: 23) constata que os seus índices de expressão plena passaram de 31%, entre 1928-20, a 75%, entre 1933-44, mantendo a sua alta produtividade entre 80% e 78%, no período de 1976-92. O fato de o PB ter reorganizado o seu sistema pronominal e, consequentemente, ter passado a expressar plenamente o sujeito, a partir dos anos 30 do século XX, cf. Duarte, se coaduna com as conclusões de Rumeu (2013) acerca do período entre os anos 25 e 45 do séc. XX como o momento em que o você passou a assumir um comportamento de legítimo pronome de 2P, em alternância com o tu, já destituído, pois, da potencialidade máxima do caráter de deferência e respeito que está na sua origem nominal (vossa mercê). Mediante essas constatações acerca da inserção do inovador você no sistema pronominal brasileiro e das suas repercussões na marcação do parâmetro pro-drop (+pro-drop > -pro-drop), justifica-se voltar o foco desta análise, com base na tabela 1, para a expressão do você-sujeito, em cartas mineiras e cariocas, no período de um século (1850-1950) no intuito de acompanhar o gradualismo da mudança linguística.

 

 

 

Tabela 1: O preenchimento do sujeito de 2P em cartas cariocas e mineiras: 1850-1950.

 

          No cômputo geral, constatou-se que as cartas mineiras e cariocas se diferenciaram quanto aos sistemas de referência ao sujeito de 2P. Inicialmente, observou-se que somente as cartas mineiras evidenciavam ocorrências da forma nominal de tratamento vossa mercê que, por sua vez, ainda que com uma baixíssima produtividade (somente em 13% dos dados equivalentes a 18 ocorrências), dividiu o seu espaço funcional com as formas pronominais de referência à 2P tu e você. Em relação à representação do vossa mercê, observou-se uma distribuição equânime entre as expressões nula e plena nas cartas analisadas, como se ilustra em (01) e (02), o que parece evidenciá-la como uma forma pronominal de tratamento, cf. Rumeu (2004). Trata-se de uma forma nominal em processo de mudança categorial, deixando entrever, pois, não só a manutenção de um traço nominal que é a sua expressão plena, mas também a aquisição de um traço pronominal que é a possibilidade de ter o seu sujeito resgatado na morfologia do verbo na 3a pessoa do singular.

 

01. “(...) como vossa merce tem de tirar dinheiro da CEF, rogo-lhe o favor de ϕ tirar já sessenta mil reis para me ϕ emprestar (...)” (RJFB. Ouro Preto, MG, 22.05.1855.)

 

02. “(...) peço a vossa merce para ϕ fazer me o favor de ϕ mandar para mim (...)” (MAS. Camargos, MG, 15.02.1877.)

 

Nas cartas mineiras, identificou-se a prevalência do você, com uma produtividade de 72% (102 ocorrências), ao passo que, nas cartas cariocas, o tu foi o preferido em 57% dos dados (159 ocorrências). Com relação ao preenchimento do sujeito, houve a preferência, tanto nas cartas mineiras, quanto nas cartas cariocas, pelo você pleno com altas frequências de usos, 73% e 65%, respectivamente, como se nota em (03) e (04). Tal fato encontra respaldo na história de formação do você, ou seja, no fato de o você ter a sua origem na forma nominal de tratamento vossa mercê cuja expressão plena nada mais é do que a conservação de um traço de sua origem nominal que ainda persiste no PB, cf. Rumeu (2012). Por outro lado, o tu se mostrou quase que categoricamente nulo, com frequências de 100% e 99%, nas duas amostras analisadas, comportamento típico de um legítimo pronome que tende a acionar a morfologia verbal para marcar a referência ao sujeito de 2P, como se observa em (05) e (06).

 

03. “... enquanto acasa que voce mora amiassa próxima ruina ... portanto hé de ... necissidade que voce saia dela para não acabar desgraçadamente debaixo de suas ruínas ...” (AR. MG, 20.05.1855. (carta carioca))

 

04. “... Já Você percebe que se tracta de algum patronatoninho. ...” (FO. RJ, 08.04.1869. (carta carioca))

 

05. “... Pois a mim é como ϕ sabes sempre para os lados alhéios ...” (A. Ponte Nova, MG, 20.09.1904. (carta mineira))

 

06. “... Heide tambem enviar te um diccionario em portugues para ϕ acertares, no escrever ...” (JP. Linda Vista, RJ, 26.07.1885. (carta carioca))

 

          Com o intuito de alcançar a gradual inserção do você no sistema pronominal do PB, com base na análise de epístolas mineiras e cariocas, observem-se os gráficos 1 e 2 a partir dos quais se esboça a dinâmica variável das formas de referência ao sujeito de 2P vossa mercê (somente em MG), você e tu (em MG e no RJ) no decorrer dos seguintes lapsos temporais: entre 1850 e 1901 (fase I), entre 1902 e 1927 (fase II) e entre 1928 e 1950 (fase III).

 


   

 

 

Gráfico 1: As formas vossa mercê, você e tu na função  de sujeito na escrita mineira.  

Gráfico 2: As formas tu e você na posição de sujeito na escrita carioca.

 

De um modo geral, os gráficos 1 e 2 mostram uma curva de ascendência do você. A análise contrastiva entre as cartas mineiras e cariocas trocadas entre 1850 e 1950 evidenciou as duas formas envolvidas no processo de pronominalização em questão: vossa mercê (forma-origem) e você (forma-produto). Entre os anos de 1850 e 1901 (fase I), nas cartas mineiras, o vossa mercê se mostrou com 75% de produtividade (18 ocorrências), convivendo com a sua contraparte gramaticalizada você que, por sua vez, apresentou uma frequência de uso de 25% (06 ocorrências), como se pode observar em (07) e (08). A partir de 1902, nas cartas mineiras, observa-se que começa a ser delineado um outro sistema tratamental que passa a contar com uma maior produtividade do você (90% - 66 ocorrências), abstendo-se totalmente do vossa mercê. Entre 1902 e 1927, o tu, ainda que com 10% de frequência de uso (07 ocorrências), dá sinais de convivência com o inovador você, nas cartas oitocentistas analisadas, cf. se verifica em (09) e (10). Na terceira fase controlada (1928 - 1950), as formas você e tu se mostraram como as mais produtivas formas variantes de referência ao sujeito de 2P, como se nota em (11) e (12). O você com uma produtividade de 68% (30 ocorrências) se sobrepôs ao tu, que se mostrou, na escrita mineira da 1a metade do século XX, com uma frequência de 32% (14 ocorrências). Na atual realidade linguística mineira, o você prevalece, ao passo que o tu se mantém em algumas ilhas linguísticas da qual a cidade de São João da Ponte, com um índice percentual de 04% de tu-sujeito (19 ocorrências de um total de 509 dados), é uma representante, cf. Mota (2008:60-61).

 

07. “... para vossa merce me fazer o favor de me mandar...” (AMGC. MG, São Caetano, 09.11.1891.)

 

08. “... enquanto acasa que voce mora amiassa próxima ruina... portanto hé de ... necissidade que voce saia dela para não acabar desgraçadamente debaixo de suas ruínas ...” (AR. MG, 20.05.1855.)

 

09. “... a mim é como ϕ sabes ... Queria mandar-te um jornalzinho daqui... para voce apreciar, mas emprestei-o...” (A. MG, Ponte Nova, 20.09.1904.)

 

10. “... Arlindo... eu não escutei os teus conselhos você bem me avizou...” (MEVB. MG, Gama, 05.07.1904.)

 

11. “... Estou em falta contigo, não tendo ainda agradecido o livro que nos ϕ enviastes ...” (MLB. MG, Lambari, 04.08.1941.)

 

12. “... e você, quando nos dará o prazer de uma visita?...” (CL. MG, Lambari, 20.04.1950.)

 

Nas cartas cariocas da fase I (1850 e 1901), verifica-se que o tu prevalece em 75% dos dados (33 ocorrências), ainda que o inovador você já se mostre, em 25% deles (11 ocorrências), como se verifica de (13) a (15). A medida que a 1a metade do século XX vai se encaminhando, o tu vai perdendo espaço funcional (64% (104 ocorrências) → 30% (22 ocorrências)) em favorecimento do você que chega a assumir, entre 1902 e 1950, uma frequência de 70% (51 ocorrências), como está ilustrado de (16) a (18). Interessante é observar que, entre 1928 e 1950, os missivistas mineiros e cariocas assumem comportamentos percentualmente semelhantes, visto que a produtividade do inovador você fica em torno dos índices de 68% e 70%. Em relação ao contexto linguístico mineiro, outros trabalhos, que avançaram até os anos 70 do século XX, chegaram a evidenciar a produtividade categórica do inovador você, caracterizando a realidade linguística mineira atual, cf. Figueiredo (2013), o que já está, de certo modo, anunciado no gráfico 1. Para as cartas cariocas, a prevalência do você ainda que em convivência com dados de tu (59,6% para o tu versus 40,4% para o você), foi também registrada por Souza (2012:89), nos anos 30 do século XX, com base em cartas cariocas familiares.

 

13. “... para reconhecer quanto ϕ és boa e como ϕ és amiga do teu Papae Pedreira, que é todo teu.” (JP. RJ, Linda Vista, 26.07.1885. (carta carioca))

 

14. “... O meu cunhado e amigo Jarbas não tendo a fortuna de viver intimamente com Você pensa que precisa de recommendação nossa! Escrevo-lhe dizendo lhe que Você he seu amigo ...” (FO. RJ, 31.05.1869. (carta carioca))

 

15. “... Foi bom, Você voltar ... Você va pedindo a mamãe... que lhe ensine a ler e escrever para com o tempo sustentarmos uã grande correspondência” (JP. RJ, 15.04.1886. (carta carioca))

 

16. “... Quando Você chegar ao seu destino...” (MJ, 16.01.1912 (carta carioca))

 

17. “Você meu irmão querido deve ter compreendido, que ... faltas desejo trabalhar pela minha santificação.” (MR. La Plata, 01.02.1948. (carta carioca))

 

18. “Você dirá ... arroubos de Jovem... Você me entende!” (MJ. RJ, 27.04.1933. (carta carioca))

 

Em síntese, observa-se que, nas cartas mineiras, o você parece ter se fixado no sistema pronominal, pari passu o vossa mercê, que ainda no século XIX era usado, tornou-se improdutivo. A produtividade do você e a concomitante improdutividade do vossa mercê evidenciavam, na escrita mineira oitocentista, indícios do atual subsistema tratamental – o subsistema de você-sujeito: a preferência mineira pelo você (e variações ocê, cê) para evocar o sujeito de 2P do discurso, cf. já discutido por Lopes et al. (2011a), Lopes et al. (2013), à luz de Scherre et al. (2009). Nas cartas cariocas, não há dados de vossa mercê, mas, já na 2a metade do século XIX, há indícios do atual sistema tratamental carioca: a variação tu e você na posição de sujeito de 2P.

 

 

5. As formas variantes dos pronomes-complemento de 2P nas cartas mineiras e cariocas oitocentistas e novecentistas.

 

O objetivo principal desta seção é expor os resultados gerais relacionados às formas variantes de pronomes-complemento de 2P nas funções sintáticas de acusativo, dativo e oblíquo, cf. Duarte (2003).

 

Entende-se por construções acusativas aquelas cujas estratégias pronominais de 2P complementam o verbo no exercício da função sintática de objeto direto. Projetado por predicadores verbais de dois ou três lugares, o objeto direto, expressão do caso acusativo latino, denota o papel temático de paciente ou tema, além de não ser regido por preposição e somente ser cliticizável na forma dos pronomes oblíquos átonos `o´/`a´ (e flexões de número `os´/`as´), cf. Mateus et al. (2003: 163). À luz da tradição gramatical, o te é o pronome-complemento que se correlaciona simetricamente ao pronome de referência ao sujeito de 2P tu. No entanto, a inserção do você no sistema pronominal do PB impulsionou uma fusão de paradigmas, licenciando assim a quebra da “uniformidade tratamental”, uma vez que formas pronominais de 2P e 3P (te ~ lhe ~ o/a ~ você) podem ocupar o mesmo espaço funcional numa estrutura de complementação acusativa de 2P, como se observa de (19) a (24).

 

19. “... irei logo te ver...” (ZC. Rio de Janeiro, 27.11.1912. (carta carioca))

 

20. “... de alegria por lhe ver tão contente e feliz...” (MB. São Paulo, 22.10.1925. (carta carioca))

 

21. “... Madre Visitadora que me diz que sentirá muito de ir sem vel-a.” (MB. Mosteiro do Bom Pastor, RJ, 29.07.1906. (carta carioca))

 

22. “... e brevemente mandarei xamar voce e o Souza...” (FXR. MG, São Caetano de Mariana, 16.02.1917. (carta mineira))

 

23. “... por isso ainda não te xamei...” (FXR. MG, São Caetano de Mariana, 16.02.1917. (carta mineira))

 

24. “... a nave que você pilota há de erguer voo seguro elevando você às alturas...” (JLJr. MG, Lambari, 23.10.1924. (carta mineira))

 

As estruturas dativas de complementação de 2P contemplam parte das estruturas tradicionalmente identificadas como objeto indireto que, por sua vez, assim são denominadas por estarem vinculadas a um verbo (indiretamente) através da preposição. Concebe-se como complemento dativo o termo regido por preposição, cliticizável em um lhe, projetado por um predicador verbal de dois ou três lugares, denotando o alvo, a fonte ou o beneficiário da ação com o traço semântico [+ animado], cf. Mateus et al. (2003:165-167). Neste trabalho, as formas dativas de 2P variantes te ~ lhe ~ o/a ~ ϕ ~ a/para você ~ a ti ~ para ti mostram, cf. se verifica de (25) a (33), a fusão de paradigmas pronominais como uma evidência de um processo de mudança categorial (vossa mercê > você) que, por sua vez, como um legítimo processo de mudança além de não ser abrupta, não se instaura em todas instâncias da língua ao mesmo tempo. É um processo gradual e paulatino que permite entrever não só traços da categoria-origem (traço de concordância verbal com formas de 3P), mas também traços da categoria-produto (referência à 2P do discurso), cf. discutido por Hopper (1991) em relação ao princípio da decategorização.

 

25. “... que me veiu trazer tanta alegria, a qual agradeço ϕ immmensamente...” (H.L. MG, Campanha, 22.04.1917. (carta mineira))

 

26. “... venho agradecer-te muito a optima lembrança...” (Sinhá, s.l, 18.07.1937. (carta mineira))

 

27. “... Muito agradeço a voce, mamãe e...” (MLB. Lambari, 03.10.1948. (carta mineira))

 

28. “... Agradeço-lhe a remessa dos cartões...” (JCL. RJ, 09.10.1947. (carta mineira))

 

29. “... eu escrivi para voce mas nao pude...” (MM. São Caetano, 27.04.1907. (carta mineira))

 

30. “... ainda não te escrevi porque...” (AR. 10.02.1912. (carta mineira))

 

31. “... Fina é hora do trem queria escrever para voce mais não posso.” (MPR. Mariana,13.09.1921. (carta mineira))

 

32. “... levarei alguma lembrança para ti e teus maninhos.” (JP. RJ, 08.07.1895. (carta carioca))

 

33. “... enviamos muitas saudades a ti” (MPG. MG, São caetano, 26.02.1908. (carta mineira))

 

As estruturas oblíquas se assemelham às estruturas dativas pelo fato de também serem regidas por preposição. Por outro lado, muitas são as dessemelhanças entre essas duas estruturas.

 

Formalmente, os oblíquos não ativam a cliticização além de corresponderem à sintaxe dos casos genitivo e ablativo latinos. Sintaticamente, as formas oblíquas não exercem relações gramaticais centrais, visto que não são argumentos verbais obrigatórios tais como o objeto direto (caso acusativo) e objeto indireto (dativo).

 

Concebem-se, à luz de Mateus et al., (2003: 169-170) os oblíquos como os complementos que articulados a um predicador verbal, na forma de SPREPs não-dativos, complementa-o de forma nuclear (oblíquo nuclear) ou de forma opcional (oblíquo não nuclear), projetados estes, pois, no nível da adjunção. O oblíquo nuclear corresponde ao rótulo de complemento relativo, cf. Rocha Lima (1972). De (34) a (40), expõem-se ocorrências de estruturas de complementação oblíquas estruturadas por sprep+você, para você, sprep.+ tu, a ti e para ti levantadas nas cartas.

 

34. “O meu cunhado e amigo Jarbas não tendo a fortuna de viver intimamente com Você...” (FO. RJ, 31.05.1869. (carta carioca))

 

35. “... e para voce tem cem cruzeiros...” (Sinhá. 29.12.1944. (carta mineira))

 

36. “... Tia Mimi me telephona sempre e pergunta todas as vezes por Você” (MJ. RJ, 05.09.1933. (carta carioca))

 

37. “... mas é para meu conforto, que muito preciso de ti.” (MJ. PE, Recife, 20.06 e 08.08.1928. (carta carioca))

 

38. “... é estar no logar que Deus escolheu para ti no concerto...” (JP. Vila Antonio Dias, MG, 21.09.1925. (carta carioca))

 

39. “... Estou me unindo bem a ti.” (ZC. RJ, 27.11.1912. (carta carioca))

 

40. “... De ti depende agora” (JCP. RJ, 18.12.1896. (carta carioca))

 

          Expõe-se, a seguir, a tabela 2 com a quantificação de todas as ocorrências de formas variantes de pronomes-complemento de 2P levantadas nas amostras de cento e vinte oito cartas produzidas, entre 1850 e 1950, por mineiros e cariocas.

 


 

 

Tabela 2: As estratégias de complementação de 2P distribuídas pelas funções acusativa, dativa e oblíqua.

 

A quantificação dos dados de pronomes-complemento de 2P evidenciou um total de 424 ocorrências. As formas te e lhe mostraram-se as mais produtivas com frequências gerais de uso de 53% (225 dados) e 23% (98 dados), respectivamente. O te se mostrou bem produtivo nas cartas mineiras e nas cartas cariocas para a expressão da função de acusativo, com 79% e 78%, respectivamente. Nas cartas cariocas, o te-dativo alcançou alto índice de produtividade com 60%. Esses resultados em relação à produtividade do te se coadunam aos de Lopes et al. (2011a) que, por sua vez, obtiveram uma alta produtividade de te-dativo (56%) nas cartas cariocas dos séculos XIX e XX. Ainda em relação aos resultados gerais, convém comentar a baixa produtividade do sprep+você, zero, clíticos o/a e sprep+tu que alcançaram índices percentuais de 4,5% (19 dados), 04% (17 dados), 3,1% (13 dados) e 2,8% (12 dados), respectivamente, ampliando a variedade de estratégias de complementação de 2P. Em relação especificamente aos oblíquos de 2P, verificou-se, dentre as baixas ocorrências levantadas, que as estruturas preposicionadas seguidas por você (com você, de você, por você) alcançaram índices de 58% (07 dados), nas cartas mineiras, e 43%, (12 dados) nas cartas cariocas.

 

Redireciona-se o foco deste trabalho para a relação entre os pronomes-sujeito de 2P e os paradigmas de pronomes-complemento nas funções de acusativo, dativo e oblíquo. Para tal, controlou-se o tipo de pronome de 2P usado na função de sujeito separando as missivas por cartas em que o missivista tratava o seu interlocutor por tu (cartas de tu exclusivo), por você (cartas de você exclusivo), por tu e você (cartas mistas). Somente nas cartas mineiras oitocentistas, foram levantados dados de Vossa Mercê, o que motivou o controle de tais ocorrências em um grupo de cartas de Vossa Mercê, ou seja, cartas em que o sujeito de 2P foi marcado exclusivamente por tal forma nominal de tratamento.

 

5.1. As formas variantes acusativas de 2P nas cartas mineiras e cariocas: a prevalência do clítico te.

 

          Nesta subseção, busca-se correlacionar o pronome usado na função de sujeito de 2P do discurso ao pronome-complemento na função acusativa. Parte-se da concepção de acusativo como a expressão do tradicional objeto direto.

 


 

Tabela 3: Correlação entre as formas acusativas de 2P e o sujeito de 2P nas cartas mineiras e cariocas.

 

De um modo geral, o clítico te é a forma que prevalece nas cartas mineiras de você-sujeito, com 80%, nas cartas cariocas de tu-sujeito, com 96%, e nas cartas cariocas mistas, com 88%. Ao lado do clítico te, tem-se as formas lhe (17% (04 dados), nas cartas cariocas de você-sujeito), você (10% (02 dados), nas cartas mineiras de você-sujeito) e o/a (05% (01 dado) e 39% (09 dados), nas cartas mineiras e cariocas de você-sujeito, respectivamente) como as estratégias de complemento acusativo utilizadas nas cartas analisadas.

 

Como já evidenciado no gráfico 1, somente as cartas mineiras da 2a metade do século XIX evidenciaram dados da forma nominal de tratamento vossa mercê.

 

Nessas cartas mineiras, alguns raros usos de vossa mercê e vos merecem ser descritos: uma única ocorrência de a vossa mercê em função acusativa, em carta de vossa mercê-sujeito, como se observa em (41), e um único dado do clítico vos em função acusativa, numa carta de você-sujeito, como se verifica em (42).

 

41. “Muito prazer terei se minhas indignas letras for encontrar a Va.ce[11] gozando...” (MA. M. MG, Camargos, 21.02.1877. (carta mineira))

 

42. “Arlindo Saudo-vos desejando mil vemturas e toda sorte de felicidade, juntamente a todos que vos são caros. O fim desta, é para voçê ter a bondade mandar a copia si ja tirou ...” (FAS. MG, Gama, 11.05.1911. (carta mineira))

 

A única ocorrência de lhe-acusativo em carta de vossa mercê-sujeito foi projetada pelo predicador verbal `estimar´, verbo transitivo direto, para o qual a complementação com o lhe é considerada tradicionalmente como expressão de `sintaxe vulgar´, cf. Luft (2010: 282.).

 

43. “... Sou seu afilhado que muito lhe estima ...” (FS. MG, Camargos, 05.07.1875. (carta mineira))

 

Interessante observar as duas únicas ocorrências de você-objeto em carta de você-sujeito somente na produção escrita mineira novecentista, como está exposto em (44) e (45). Ainda que esporádicas, essas evidências de preenchimento da posição de objeto de 2P com o pronome tônico você no lugar do te já parecem anunciar, ainda que timidamente na escrita mineira do início do século passado, as seguintes construções nas quais o você funciona como complemento acusativo redobrado na fala mineira contemporânea, cf. Duarte et al. (2012: 92-93): “Eles tei irrita ocêi.”, “Eu vou tei levá ocêi”, “Cê ia ajudar um camarada desse e se os camarada voltar e tei matar vocêi também?”.

 

44. “(...) e brevemente mandarei xamar voce e o Souza...” (FXR. MG, São Caetano de Mariana, 16.02.1917. (carta mineira))

 

45. “(...) a nave que você pilota há de erguer voo seguro elevando você às alturas...” (JLJr. MG, Lambari, 23.10.1924. (carta mineira))

 

Nas cartas mineiras e cariocas, o clítico de acusativo de 3P se deixa evidenciar, ainda que com baixos índices, na referência ao objeto de 2P. Tais evidências se dão em uma única carta mineira de você-sujeito, em cartas cariocas de você-sujeito (09 dados) e em cartas mistas (02 ocorrências), como se observa de (46) a (48). Levando em consideração a já atestada perda dos clíticos de acusativo de 3P, cf. Nunes (1993) é interessante ponderar sobre esses dados concretamente realizados por clíticos de acusativo não mais na referência à 3P, mas na referência à 2P, cf. também verificado por Lopes et al. (2011a) nas cartas cariocas oitocentistas e novecentistas. Mais significativo ainda é que essa mudança de escopo de atuação dos clíticos acusativos se mostre mais evidente nas cartas cariocas cujas referências aos sujeitos de 2P se dão nas cartas exclusivas de você-sujeito e nas cartas mistas (cartas de variação entre os pronomes-sujeito tu e você). A inserção do você no sistema pronominal do PB como um pronome de 2P que convive com o tu parece ter repercutido na representação do objeto de 2P (acusativo) que através dos clíticos 'o'/'a' ainda se mantém atuantes, destoando, pois, do seu desuso na expressão da 3P, sobretudo na fala contemporânea, como já verificado em vários trabalhos sobre o PB tais como Cyrino (1993), Freire (2005).

 

46. “Querida madrinha Fazendo-lhe uma visitinha muito afetuosa venho convida la para assistir à festinha da entrega dos diplomas no próximo dia 30. Terei muito gôsto que você venha.” (CL. Lambari, 25.11.1941. (carta mineira))

 

47. “É verdade minha cara que uma religiosa como dirá não tem mais estas festas, mas o nosso affecto é sempre o mesmo não podendo esquecer estas caras datas, e será lá no Coração Santíssimo de Jesus (centro do nosso amor) que irei procural-a.” (MA. Rio de Janeiro, Friburgo, 01.08.1909. (carta carioca))

 

48. “Quanto a mim, o unico motivo que me faz passar algum tempo sem lhe escrever é o receio de Extrahil-o de seus estudos” (ME. Pará, 28.07.1915. (carta carioca))

 

A esse grupo de ocorrências dos clíticos `o´/`a´ na referência ao objeto de 2P, é possível acrescer mais cinco ocorrências produzidas em duas cartas mineiras enviadas pela poetisa Henriqueta a sua mãe, como se verifica de (49) a (53). Essas cartas foram monitoradas, ainda que a autora não tenha se utilizado das formas tu ou você para fazer referência à mãe, mas do tratamento senhora. Em outros termos, como essas cartas não faziam parte do objetivo principal deste estudo, que é o de correlacionar os pronomes de referência ao sujeito de 2P tu e você aos pronomes-complemento de 2P, foram controladas para serem analisadas qualitativamente. Nesse sentido, verifica-se a sintomática propensão à ampliação do uso dos clíticos `o´/`a´ que perdem a sua funcionalidade na referência ao acusativo de 3P, mas podem alcançar um campo funcional na referência ao objeto de 2P.

 

49. “... Esta, vae levando, com todo o meu carinho, a alegria de me sentir a sombra do seu, e a pena de não poder abraçal-a pessoalmente...” (HL. RJ, 09.07.1933. (carta mineira))

 

50. “... Espero-a no dia 14 fazendo votos para que Abigail já se ache restabelecida, de modo que a Senhora possa vir tranquilla.” (HL. RJ, 09.07.1933. (carta mineira))

 

51. “... Enviando saudades aos nossos, beijo-a affectuosamente assim como a Papae” (HL. RJ, 09.07.1933. (carta mineira))

 

52. “... E Deus permitta que a Senhora esteja passando bem e que possa voltar logo a esta casa que a espera com tanta saudades.” (HL. RJ, 09.07.1933. (carta mineira))

 

53. “Abraço-a carinhosamente Com grande affecto, sua filha, Henriqueta.” (HL. Lambary, 03.10.1935. (carta mineira))

 

Em síntese: a análise das formas variantes acusativas de 2P (te, lhe, o/a, você) expôs a alta produtividade do clítico te tanto nas cartas mineiras de você-sujeito (80%), quanto nas cartas cariocas de tu-sujeito (96%) e mistas (88%) dos séculos XIX e XX, confirmando as considerações de Brito (2001: 172) acerca do te ter passado de clítico a afixo de concordância verbo-objeto. Segundo Cyrino (1992), a difusão da próclise teria impulsionado a afixação do te ao verbo numa relação de concordância com a 2P do discurso que, por sua vez, se generalizou no PB com o você. Nesse sentido, as considerações de Brito (2001) acerca do te como afixo se coadunam com a descrição de Castilho (2010) para o te como morfema prefixal de pessoa no PB informal. Esse entendimento do te como afixo é também assumido por Machado Rocha (2011) para a interpretação das estruturas de redobro de pronomes de 2P. Numa sentença como 'eu tei falei para vocêi', o clítico de redobro te é reanalisado como um prefixo, de 2P que adjacente ao verbo, é capaz de acionar a concordância com o traço de pessoa do pronome você ([+ destinatário]). Nesse sentido, entende-se a produtividade do te proclítico ao verbo como uma evidência formal que marca a 2P (afixo de 2P), cf. já discutido por Lopes et al. (2013).

 

Enfim, a diversidade de pronomes-complemento acusativo de 2P (te, lhe, você, o/a) comprova a fusão de paradigmas de 2P e 3P acionada com a entrada do você no sistema pronominal do PB, o que evidencia a quimera da 'uniformidade tratamental' imposta pela norma-padrão em descompasso com a norma de uso do PB. O filtro da escrita familiar permitiu que dois traços do vernáculo do PB emergissem. São eles: (i) a produtividade do pronome tônico na função de objeto, que na referência à 3P (`eu vi ele ali´) já é um fenômeno amplamente atestado em dados do PB, parece dar indícios de seu espraiamento, ainda que timidamente nas amostras de escrita novecentista analisadas, para o você na função de objeto de 2P (`xamar voce´, `elevando você´); (ii) os clíticos de acusativo de 3P (`o´/`a´), que está em desuso no vernáculo do PB, na gramática brasileira do português, cf. Galves (1998: 81), se deixa evidenciar como clítico de acusativo de 2P, sobretudo, em cartas de você-sujeito.

 

5.2. As formas variantes dativas de 2P nas cartas mineiras e cariocas: a disputa entre os clíticos te e lhe.

         

Considerando a diversificação de formas de referência ao dativo de 2P (te, lhe, ϕ, a você ~ para você), cf. verificado por Lopes et al. (2011a), e a perda do clítico-dativo lhe de 3P, cf. discutido por Gomes (2003) e Freire (2000) com base em dados de falantes não-universitários e de universitários cariocas, respectivamente, justifica-se que se volte o escopo desta análise não só para a retenção de clíticos (te, lhe), mas também para a alternância entre as preposições a e para acompanhadas do você em estruturas de complementação dativa de 2P. Com base em dados das Amostras Censo 80 e 2000, Gomes (2003: 87) observou dois fatos interessantes em relação à realização dos pronomes no dialeto carioca: a produtividade de clíticos para os pronomes de 1P e 2P do singular e a ausência de clíticos para as demais pessoas do discurso. No que se refere especificamente à 2P, em foco estão a alternância entre as preposições a e para aliadas ao você, nos sintagmas preposicionados a você ~ para você, os clíticos te e lhe e a expressão nula do dativo (zero).

 

Passa-se, na tabela 4, à exposição dos resultados acerca da correlação entre o sujeito de 2P e as estratégias dativas variantes.

 

 

 

 

 

Tabela 4: Correlação entre as formas dativas de 2P e o sujeito de 2P nas cartas mineiras e cariocas.

 

Em termos gerais, nas cartas mineiras e cariocas, foram observadas seis estratégias dativas de 2P vinculadas aos pronomes-sujeito tu e você. Enquanto para as cartas mineiras foram acionadas as formas te (38%), lhe (27%), zero (14%), a você (8%), para você (3%), a ti (2%), para as cartas cariocas, as formas dativas produtivas foram te (60%), lhe (37%), a você (1,2%), para ti (0,6%), zero (0,6%) e o/a (0,6%).

 

Para as cartas mineiras, tem-se um quadro de variação entre as formas te (38%) e lhe (27%). Nas cartas mistas e nas cartas de tu-sujeito, a forma te prevaleceu com índices de produtividade de 78% e 65%, ao passo que, nas cartas de você-sujeito, observou-se uma acirrada concorrência entre te e lhe, com frequências de 30% e 35%, respectivamente, embora o dativo nulo (14%) tivesse se mostrado produtivo, resultado que dialoga com os Lopes et al. (2011a: 59) para a produtividade do dativo zero, sobretudo, entre os anos de 1910 e 1920, período em que o você-sujeito mostra-se mais produtivo nas cartas cariocas. Ainda que inexpressiva, nas missivas mineiras, a frequência de uso da forma a ti (02 ocorrências - 14%) se deu nas cartas exclusivas de tu. No que se refere à alternância a você ~ para você, apesar dos baixíssimos índices percentuais (08% e 03%, respectivamente), observou-se o a você dativo como a forma privilegiada, evidenciando o conservadorismo das missivas mineiras, sobretudo, nas cartas de você-sujeito (08 ocorrências - 13,3%).

 

Considerando que somente nas cartas mineiras foram levantadas ocorrências de vossa mercê, observa-se que, em tais cartas, o lhe prevaleceu, em 59% dos dados (07 ocorrências), dividindo o seu espaço funcional com a forma a vossa mercê (33% - 04 ocorrências) e o dativo nulo (08% - um único dado), como se observa de (54) a (56). Nas cartas de vossa mercê e senhor, verifica-se somente uma única ocorrência do lhe-dativo. Já em cartas de vós e você, ainda que minoritariamente (02 ocorrências), tem-se o te-dativo e o clítico vos (06 ocorrências), como se nota, respectivamente de (57) a (60).

 

54. “... pello sr. Joze Emerençianno Gomes envio-lhe o papel ...” (FS. Camargos, 05.07.1875. (carta mineira))

 

55. “... o Furtunato ainda não vai pasando bem peço a vossa merce para fazer me o favor de mandar para mim...” (MAS. Camargos, 15.02.1877. (carta mineira))

 

56. “... mandem 50 cravos que estou com os animais do finado he o que tenho a dizer ø...” (FLC. 05.03.1882. (carta mineira))

 

57. “... Sua prima lhe remete huma arroba de arameta para o Senhor fazer o favormandar vender a 32 a libra...” (FLC. 01.09.1872. (carta mineira))

 

58. “... não poso ser mais extenca no mais peso dar-te recomendações a todos dahi emparticular...” (MEVB. Gama, 05.07.1904. (carta mineira))

 

59. “... envio te minhas saudades...” (MEVB. Gama, 05.07.1904. (carta mineira))

 

60. “... dizendo-me ter sido Voce intimado ... Eu estou mui pertinho da Capital como sabeis, se precisar de alguma coisa relativamente dos vossos negócios, peço-vos escrever-me que estou prompto a ir á Belo Horizonte entender-me a respeito.” (AS. Sabará.10.07.1907. (carta mineira))

 

Nas cartas cariocas, são identificados níveis percentuais mais expressivos de concorrência entre as formas te (60%) e lhe (37,6%). Observa-se que nas cartas de você-sujeito, o lhe prevalece (78% - 42 ocorrências). A preferência pelo te com frequências de 85% (52 ocorrências) e 73% (35 ocorrências), respectivamente, expõe o te-dativo à serviço do contexto de confluência entre as formas dos paradigmas de você e de tu, como se verifica de (61) a (63). As estratégias a você, para ti e dativo nulo evidenciaram baixíssimas frequências de uso. De (64) a (67), respectivamente, ilustram-se tais ocorrências.

 

61. “Já Você percebe que se tracta de algum patronatoninho ... O meu Jarbas lhe manda pedir uma photografia da immortal madame Linch...” (FO. RJ, 08.04.1869. (carta carioca))

 

62. “... Voce diga a Tumojia que eu agradomuito os biscoitos que ella me mandou ... Eu te offereco esta goiabada para voce cumer nu lanche ...” (AC. 17.11.1877. (carta carioca))

 

63. “... Heide tambem enviarte um diccionario em portugues para acertares, no escrever, com algumas palavras de que não estejas muito certa. ...” (JP. Linda Vista, 26.07.1885. (carta carioca))

 

64. “... Pasei a manhã muito agradavel escrevendo a Você parece que estavas aqui” (MR. La Plata, 01.02.1948. (carta carioca))

 

65. “... Quando eu for levarei alguma lembrança para ti e teus maninhos.” (JP. RJ, 08.07.1895. (carta carioca))

 

66. “... O Padre Castello vae enviar-te logo todos os numeros do Mensageiro, desde Janeiro, e depois a brochura não só para ti mas tambem uma para cada uma de nossas irmãs.” (FPCAM. Bélgica, Enghien, 17.09.1925 (carta carioca))

 

67. “... Emfim querido Irmão somos todos felizes não é? ... A graça que ϕ pedi que pedisse na missa em serto modo já alcancei ...” (MB. SP, 22.10.1925. (carta carioca))

 

Passa-se aos gráficos 3 e 4, a partir dos quais é possível acompanhar as distribuições das estratégias de dativo de 2P produtivas entre os anos 1850 e 1950, nas cartas mineiras e cariocas, visto que o contexto de complementação dativa mostrou-se o mais produtivo, com frequências de uso de 73% e 60% para as missivas mineiras e cariocas, respectivamente, cf. totais expressos na tabela 2.

 



 

 

 

 

 

 

 

 

Gráfico 3: As formas de pronomes-complemento dativo de 2P nas cartas mineiras.           

Gráfico 4: As formas de pronomes-complemento dativo de 2P nas cartas cariocas.

 

Os gráficos 3 e 4 evidenciam um painel de diversificadas estratégias de complementação dativa distribuídas pelas fases I (1850-1901), II (1902-1927) e III (1928-1950) das produções escritas de cariocas e mineiros. Nas cartas mineiras, observa-se a real concorrência entre as formas lhe, dativo nulo e te, cabendo às demais estratégias (para você, a você, a ti) frequências inexpressivas em virtude do baixíssimo número de ocorrências. Verifica-se não só o aumento progressivo do lhe dativo que com 13% (fase I) passa a 76% (fase III), ainda que, na fase II, tenha sofrido um leve decréscimo (11%), mas também o avanço do dativo nulo (10% (fase I) → 25% (fase II) → 65% (fase III)). O período de maior produtividade do clítico te é a fase II, entre os anos de 1902 e 1927, momento em que o você parece tomar fôlego para se inserir, entre 1925 e 1945, com mais força como pronome de 2P no sistema pronominal do PB, cf. Rumeu (2013).

 

Nas cartas cariocas, a competição se dá entre os clíticos lhe e te dativos, sendo reservado, às demais estratégias de complementação dativa (para ti e zero), baixíssimos índices de produtividade. Na 2a metade do século XIX (1850-1901), observa-se que as formas te e lhe assumem baixas frequências de uso de 16% e 17%, respectivamente. Para a fase II (1902-1927), tem-se o aumento progressivo do lhe, com produtividade de 37%, também acompanhado de um considerável avanço do te que alcança 60% de frequência de uso. Entre 1928 e 1950, verifica-se que lhe e te assumem comportamentos distintos: enquanto o lhe continua em ascendência, com 47%, o te, sofre um declínio, passando de 60% a 23% de produtividade na fase III.

 

Em suma: o período que compreende os anos de 1902 a 1927 mostrou-se como a fase de ascensão gradual do você-sujeito, sobretudo, nas cartas mineiras, bem como o momento de ascensão do te-dativo nas cartas mineiras e cariocas, alcançando índices de 70% e 60% nas cartas mineiras e cariocas da fase II (1902-1927), respectivamente, ainda que o lhe esteja em ascendência nas cartas e períodos controlados (MG (13% → 11% → 76%), RJ (17% → 37% → 47%)). Nas cartas mineiras, o te-dativo se espraia pelas cartas de tu-sujeito, de você-sujeito e mistas (tu ~ você), ao passo que, nas cartas cariocas, o te-dativo se dissemina com maior força pelas cartas mistas (tu ~ você). O fato de o período de maior produtividade do você-sujeito, a partir da fase II (1902 e 1927), ser também o momento em que te e lhe disputam o mesmo espaço funcional como complementos de 2P coincide com o período em que o PB passou por um processo de reorganização do seu sistema pronominal em virtude da inserção do você, que segundo Rumeu (2013: 278) se deu entre os anos 25 e 45 do séc. XX.

 

5.3. As formas variantes oblíquas de 2P nas cartas mineiras e cariocas: contexto de propagação do você.

         

Os complementos verbais oblíquos são estruturas preposicionadas caracterizadas formalmente como tônicas, avessas à cliticização e que, sintaticamente, não desempenham relações gramaticais centrais, visto não serem argumentos verbais obrigatórios tais como o objeto direto (caso acusativo) e o objeto indireto (caso dativo), correspondentes que são à expressão da sintaxe dos casos genitivo e ablativo latinos. Para este trabalho, foram levantados os oblíquos de 2P que, por sua vez, são projetados pela grade argumental dos verbos na forma de SPREPs não-dativos, articulados ao verbo de forma nuclear, complementando-os obrigatoriamente (oblíquo nuclear, cf. Mateus et al. (2003: 169) como o tradicional complemento relativo ('preciso [de você]') nos termos de Rocha Lima (1972)) ou opcionalmente (oblíquo não nuclear ('vivo muito bem [sem você]')), projetado este, pois, no nível da adjunção, cf. discutido por Mateus et al. (2003). Expõem-se, na tabela 5, os resultados da correlação entre o sujeito de 2P e as estratégias oblíquas de complementação verbal variantes nas cartas em análise.

 


 

Tabela 5: Correlação entre as formas oblíquas de 2P e o sujeito de 2P nas cartas mineiras e cariocas.

 

Nas cartas mineiras e cariocas, as estratégias oblíquas de 2P constituídas pelo você prevaleceram (sprep.+você), alcançando as frequências globais de 58% e 43%, cf. se observa de (68) a (72).

 

68. “... Não pude durmir esta noite. A madrugada sonhei muito com voce...” (São Caetano, 14.10.1912. (carta mineira))

 

69. “... Amigo João Lino passo-te estas pistolas linhas para sâber as tuas boas notícias ... Lino se tocar nisto com você... diga a elle que é verdade...” (São Caetano, 14.07.1916. (carta mineira))

 

70. “... Por exemplo - eu proprio, que gósto muito deVocê sempre minha amiguinha, a minha primeira nettinha ...” (JP. RJ, 08.07.1895. (carta carioca))

 

71. “... De você então ella fala com tanto carinho!... “ (ZC. RJ, 27.11.1914. (carta carioca))

 

72. “... Minha Isa eu preciso tanto conversar com você. ...” (JP. Fortaleza, 10.09.1919. (carta carioca))

 

Nas cartas mineiras de você-sujeito e mistas (tu ~ você) foram privilegiadas as estratégias oblíquas de 2P constituídas por sprep.+você com índices de 75% (07 ocorrências) e 100% (02 ocorrências), respectivamente. As estratégias para você e sprep.+tu mostraram-se em somente duas ocorrências, como está ilustrado de (73) a (76). Nas cartas mineiras de vossa mercê-sujeito, foi levantado um único dado de sprep.+v.mce, como se observa em (77).

 

73. “...Quebro para você o meu habito carranca de não felicitar qualquer...” (JLJr. Lambari, 23.10.1924. (carta mineira))

 

74. “... e para voce tem cem cruzeiros...” (Sinhá. 29.12.1944. (carta mineira))

 

75. “... Em infancia pus-me a lembrar de ti...” (MLB. Lambari, 04.08.1941. (carta mineira))

 

76. “... tenho pensado muito em ti...” (HL. RJ, 06.07.1933. (carta mineira))

 

77. “... mas só quando eu tiver com Vossamerce hei de lhe dizer com mais vagar...” (MAS. Camargos, 15.02.1877. (carta mineira))

 

Nas cartas cariocas, as construções oblíquas formadas por sprep.+você, sobretudo, nas cartas mistas, com 75%, concorreram com o sprep.+tu, com 67%, nas cartas de tu-sujeito, cf. está ilustrado em (78) e (79). Baixíssimas ocorrências foram reservadas às formas para você, a ti e para ti, que se deixaram evidenciar nas cartas de você-sujeito, cartas mistas e nas cartas de tu-sujeito, respectivamente, cf. se observa de (80) a (82).

 

78. “... Tia Mimi me telephona sempre e pergunta todas as vezes por Você...” (MJ. RJ, 05.09.1933. (carta carioca))

 

79. “... mas é para meu conforto, que muito preciso de ti.” (MJ. PE, Recife, 20.06 e 08.08.1928. (carta carioca))

 

80. “... porque isto seria para Você um martyrio.” (FO. RJ, 31.05.1869. (carta carioca))

 

81. “... Estou me unindo bem a ti...” (ZC. RJ, 27.11.1912. (carta carioca))

 

82. “... é estar no logar que Deus escolheu para ti no concerto harmonioso dos sacerdotes. ...” (JP. Vila Antonio Dias, MG, 21.09.1925. (carta carioca))

 

Em suma: Para as estratégias oblíquas de 2P, observa-se a prevalência de sintagmas preposicionados formados pelo inovador você, principalmente, nas cartas mineiras de você-sujeito e nas cartas cariocas mistas, o que parece já demonstrar as estratégias oblíquas como uma outra 'porta de acesso' do você ao sistema pronominal do PB.

 

 

6. Considerações finais

         

A análise da dinâmica variável dos pronomes-sujeito tu e você em relação às estruturas de complementação verbal de 2P conduz a algumas generalizações em resposta às questões norteadores deste trabalho.

 

(1)     As cartas mineiras e cariocas, entre 1850 e 1950, já evidenciariam os subsistemas tratamentais atualmente vigentes na atual sincronia do PB: Minas Gerais (você) e Rio de Janeiro (você ~ tu)?

 

As cartas mineiras e cariocas oitocentistas e novecentistas permitiram evidenciar os subsistemas tratamentais atualmente vigentes na atual sincronia do PB: Minas Gerais (você) e Rio de Janeiro (você ~ tu), confirmando a hipótese principal deste trabalho de que vestígios dos atuais subsistemas tratamentais já estariam visíveis em sincronias passadas do PB.

 

·         Para as cartas mineiras, ainda se observam, na 2a metade do século XIX, ocorrências de vossa mercê que vão sendo substituídas pela sua contraparte gramaticalizada você à medida que se avança pelo século XX. Ainda na 1a metade do século XX, o tu convive com o majoritário você, nas missivas produzidas entre 1928 e 1950. Essa prevalência do você, atestada por Figueiredo (2013) em relação ao desenrolar do século XX (1900-1969), já anunciava a sua propagação pelo espaço mineiro, cf. discutido por Lopes et al. (2013) à luz de cf. Scherre et al. (2009).

 

·         Para as cartas cariocas, observa-se que, na 2a metade do século XIX, o tu era a estratégia preferida para evocar o sujeito de 2P, sendo substituída, gradual e paulatinamente, a partir de 1928, pelo você. O fato de o você e o tu terem se mostrado como formas concorrentes para a referência ao sujeito de 2P, em 1950, parece já anunciar o subsistema que, cf. observado por Lopes et al. (2011a), atualmente vige no espaço carioca: o de variação entre os pronomes-sujeito tu e você.

 

(2)     Qual seria o grau de produtividade dos clíticos te e lhe em missivas cariocas e mineiras oitocentistas e novecentistas? E essa produtividade prevaleceria em cartas de tu-sujeito, de você-sujeito ou mistas?

 

          Considerando que a inserção do você no sistema pronominal do PB não atingiu com a mesma intensidade e ao mesmo tempo todo o quadro pronominal (pronomes pessoais do caso reto, pronomes oblíquos átonos e tônicos e pronomes possessivos), cf. Lopes et al. (2011a), tecem-se também algumas generalizações com base na análise da correlação entre tu e você e as estratégias de complementação verbal de 2P (te, lhe, a você, para você, o/a, a ti, para ti) nas cartas mineiras e cariocas produzidas entre 1850 e 1950.

 

·         O avanço do você-sujeito no sistema pronominal do PB se deu, sobretudo, nas cartas mineiras (72%), enquanto o te mostrou-se resistente alcançando os maiores índices de 80%, 96% e 88% nas estruturas de complementação acusativa das cartas mineiras de você-sujeito, cariocas de tu-sujeito e cariocas mistas, respectivamente.

 
·         Nas estruturas dativas de 2P, observou-se que o te também predominou, ainda que em concorrência com o lhe, nas cartas mineiras e cariocas. Nas cartas mineiras, o te prevalece nas cartas mistas (78%) e nas cartas de tu-sujeito (65%). A alternância te ~ lhe se mostrou, nas cartas mineiras de você-sujeito, com índices percentuais de 30% e 35%, respectivamente. Nas cartas cariocas, enquanto o te se mantém produtivo nas cartas de tu-sujeito (85%) e mistas (73%), o lhe apresenta maior frequência de uso nas cartas de você-sujeito (78%).

 

·         Ainda sobre a expressão de complementação dativa, verificou-se que o lhe prevalece nas cartas de você-sujeito mineiras (32%) e cariocas (78%) também acompanhado pelo avanço progressivo do dativo nulo (10% (1850-1901) → 25% (1902-1927) → 65% (1928-1950)) nas cartas mineiras de você-sujeito.

 

·         Diante do diversificado panorama de estratégias de complementação de 2P (te, lhe, você, o/a, a você, para você, sprep.+você, sprep.+tu, a ti, para ti), as formas te e lhe vinculadas aos pronomes tu e você se mostraram como as formas mais produtivas nas cartas mineiras e cariocas, produzidas entre 1850 e 1950, evidenciando, não só a altíssima proficiência do te em estruturas de acusativo e de dativo, confirmando o caráter de morfema prefixal de pessoa que lhe foi atribuído por Castilho (2010) e Machado Rocha (2011), mas também a confluência entre os paradigmas de 2P e 3P através da variação te/lhe em estruturas de complementação de 2P.

 

(3)     Qual seria a relação entre o avanço do você-sujeito e a retenção do te-complemento em missivas cariocas e mineiras trocadas entre 1850 e 1950?

 

·         De modo geral, o clítico te mostrou-se como a estratégia de complementação acusativa e dativa mais usada tanto nas cartas mineiras, quanto nas cariocas, com maior nível de produtividade entre os anos de 1902 e 1927, em contexto de complementação dativa, alcançando a frequência de uso de 70% nas cartas mineiras. Esse período coincide com o momento em que o você-sujeito começa a ser a estratégia de referência à 2P preferida nas cartas analisadas, harmonizando-se também com o momento de reorganização do sistema pronominal do PB com a inserção do você entre os anos 25 e 45 do século XX, cf. Rumeu (2013: 278).

 

O fato de as cartas oitocentistas e novecentistas terem sido produzidas por brasileiros, em sua maioria cultos, de espaços geográficos plurilíngues como são os contextos mineiro e carioca, só tende a evidenciar a convivência do você-sujeito com te/lhe como consequência de um processo de mudança categorial envolvendo a origem de um novo pronome de 2P (vossa mercê > você) que formalmente se harmoniza com formas de 3P, ainda que semanticamente evoque a 2P do discurso. Neste trabalho, o rastreamento das mudanças nos subsistemas tratamentais que atualmente distinguem diatopicamente os espaços mineiro (subsistema de prevalência do você-sujeito) e carioca (subsistema de variação entre você e tu) também expuseram a dinâmica variável dos pronomes-complemento de 2P te e lhe já nas eras oitocentista e novecentista do PB.

 

 

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* Este trabalho está vinculado ao Projeto Aspectos morfossintáticos da escrita culta em cartas brasileiras que recebe apoio financeiro (Demanda Universal) da FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais), instituição a qual sou grata. Agradeço também a leitura atenciosa deste artigo feita pelo parecerista anônimo da Revista Lingüística, sendo, pois, tão somente de responsabilidade da autora os problemas remanescentes.

[1] Participaram desta pesquisa, em diferentes fases, as bolsistas de Iniciação Científica Raíssa Neiva Santos (FALE/UFMG), Amanda Vieira Sollecito (Fapemig/FALE/UFMG).

[2] Nascentes (1956: 120), ao discutir o tratamento “você” no Brasil, rastreia o surgimento da forma você no PB, passando por evidências escritas das formas foneticamente desgastadas de vossa mercê até originar o você (vossa mercê, vosmincê, vossuncê, voncê, mincê, mecê, suncê, sucê, oncê, ocê, cê). É interessante que se observe a exemplificação dada para forma oncê em conexão morfossintática com o te: “Oncê. Forma aferetica de voncê. Existe em Goiás: Oncê não me conhece./Eu te dou a conhecê:/Eu chamo mundé armado./Quando dispara, pegou. (A. Americano do Brasil. Cancioneiro do Brasil Central, pg. 265)”

[3] Almeida ([1957] 2013: 174) prescreve que para a expressão de um português escorreito, há de se atentar para o cumprimento da relação de concordância entre as formas de tratamento de 3ª pessoa gramatical e os respectivos pronomes oblíquos e pronomes adjetivos possessivos: É de regra, num discurso, em cartas ou em escritos de qualquer natureza, a uniformidade de tratamento, isto é, do pronome escolhido para a pessoa a que nos dirigimos. Se tratamos o interlocutor por vós, os pronomes oblíquos devem ser os que correspondem a essa pessoa, e o mesmo se deve dizer dos adjetivos possessivos. Se o tratarmos por tu, usaremos os oblíquos te, ti, contigo e os possessivos teu, tua, teus, tuas (jamais seu, sua). Se o tratarmos por Vossa Senhoria, Você diremos o lhe, seu, sua etc.”

[4] Segundo Cunha e Cintra (1985: 285), na subseção intitulada "Emprego dos pronomes de tratamento da 2a pessoa", tem-se as seguintes informações: "(...) No português do Brasil, o uso do tu restringe-se ao extremo Sul do País e a alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente delimitados1 Em quase todo o território brasileiro, foi ele substituído por você como forma de intimidade. (...). (1Ressalte-se, porém que o emprego das formas oblíquas te, ti, contigo apresenta uma difusão bastante maior.) "

[5] Essas orações foram divulgadas em ambiência virtual, em 08.08.2013, numa propaganda de um shopping de Belo Horizonte, na época que antecedia o Dia dos Namorados: "Enquanto o presente te deixa com lágrimas nos olhos, o prêmio te água na boca. Dia dos Namorados PÁTIO SAVASSI." (grifo nosso). Considerando que vigora, no espaço mineiro, o sistema tratamental de você-sujeito, tem-se, nesse slogan propagandístico, a convivência de você-sujeito com o te-acusativo e o te-dativo.

[6] Projeto de Estudos sobre o Uso da Língua.

[7] Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta.

[8] A forma ocê além de poder funcionar pronome-sujeito de 2P, pode funcionar em estruturas de complementação verbal na forma de um sintagma preposicionado (“ele precisa doce, ele vai coce, isto é procê”), cf. exposto por Castilho à luz da discussão de Vitral e Ramos (2006).

[9] Labov (1981: 177 apud Paiva e Duarte, 2003: 22) acredita que a percepção da mudança em progressão possa se dar no intervalo ideal mínimo de meia geração (12 anos) e máximo de duas gerações (50 anos).

[10] As cartas familiares da Coleção Henriqueta Lisboa encontram-se sob a guarda do Acervo dos Escritores Mineiros (FALE/UFMG).

[11] Ao editar essas missivas, Chaves (2006: 181) optou por conservar a abreviatura de “Vossa Mercê” como Va.ce, entendendo-a como a expressão de uma variante abreviativa da forma nominal de tratamento em questão.

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