SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número2UM ESTUDO SOBRE AS PREPOSIÇÕES INTRODUTORAS DE ARGUMENTOS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO'Tu' ou 'você', 'te' ou 'lhe'?: a correlação entre as funções de sujeito e complemento verbal de 2a pessoa índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Links relacionados

Compartir


Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.2 Montevideo nov. 2015

 

Lingüística

Vol. 31-2diciembre 2015: 73-82

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

UMA POSIÇÃO SOBRE A ESCUTA NA CLÍNICA DE LINGUAGEM

 

A POSITION ON LISTENING IN LANGUAGE CLINIC

 

Maria Francisca Lier-DeVitto

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

f.lier@uol.com.br

 

Mariana Emendabili

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

mariemendabili@hotmail.com

 

 

Este trabalho é efeito de questionamentos teóricos e práticos sobre a posição do clínico de linguagem e do pesquisador frente à fala sintomática. Uma posição que implica uma escuta teoricamente orientada para poder dar “tratamento” a essa fala que chega à clínica, isto é, dependendo de como se concebe linguagem, sujeito e clínica, o acolhimento destas falas será de um determinado modo. Seguimos com a recomendação de Arantes (2001) sobre “ler depois do clinicar”: transcrever as falas de paciente e terapeuta para poder apreender os efeitos que cada uma implica na outra e, também, poder assumir uma posição em relação ao manejo clínico com esta fala patológica. Para movimentar a discussão, apresentamos caso G. que, a partir da consideração teórica sobre o procedimento indicado por Arantes (2001), pudemos levantar questões e ele pôde ganhar outras considerações e manejos dentro da cena clínica após a realização do trabalho fora da cena.

 

Palavras-chave: Linguagem, sujeito, escuta.

 

Keywords: language, subject, listening.

 

This work is the result of theoretical and practical questions about the position of the language specialist and the clinical researcher on symptomatic speech. Involves a listening theoretically oriented in order to enable a treatment of the patients speech when arriving at the clinic, that is, depending on how the language is conceived, the subject and the clinic, the reception of those speeches will happen in a certain way. We follow Arantes (2001) recommendation on "read after practice": transcribe patient and therapist speeches to appreciate the effects that each one implies the other and also be able to take a position to the clinical management with this pathological speech. We present the G. case and from the consideration of the procedure indicated by Arantes (2001), we were able to raise questions and it could receive other considerations and managements in clinical scene after this work out of the scene.

 

 

(Recibido: 31/1/15; Aceptado: 9/7/15)

 

 

1.    Introdução

 

Refletir sobre “escuta” na Clínica de Linguagem é colocar em questão a posição do clínico, que é determinante na condução do tratamento. Lier-DeVitto (2004) distingue a posição do clínico daquela do cientista frente a materiais empíricos que os interrogam. A autora discute aspectos que definem e diferenciam a posição do linguista e do clínico de linguagem frente às especificidades das abordagens científica e clínica da fala sintomática.  Para ela, trata-se de visadas que implicam éticas diferentes.

 

Lier-DeVitto (2004: 50) parte de considerações sobre o “tempo”, afirmando que na cena clínica coloca-se a problemática do “instante”, que cria “o tempo psicológico, que é, em si, atemporal – uma marca localizável num efeito vivido”. Esse tempo é atemporal já que não tem extensão: é tempo de experiência efetiva e implica um sujeito, segundo Agamben (2005). Trata-se, ainda e por isso, de “uma dimensão precisa” (Carreto 1960 apud Lier-DeVitto 2004: 50), apesar de não mensurável, é dimensão complexa, pois é nela que vetores heterogêneos se nodulam sob a forma de efeito. Perto de Heidegger, Lier-DeVitto (2004: 50) acrescenta que o instante, porém, pode (ou não) ser vivido: “No primeiro caso, ele seria autêntico (instante de afetação) e, no segundo, inautêntico (fuga ou ocultamento do instante).” Exemplar, do instante vivido pode ser retirado da interação corriqueira, que é, comumente, comandada pela sucessão de efeitos entre falas o que permite entende-la como sequência articulada de instantes autênticos que criam marcas sucessivas no tempo. Porém, prossegue a autora, pode ocorrer, no diálogo, fuga do instante, esgarçamento e desligamento entre falas, o que corresponderia a um modo de anulação do efeito. Afinal, conclui a autora, lacunas e desarranjos dialógicos e mesmo interrupção de diálogo acontecem.

 

Feitas estas considerações, Lier-DeVitto (2004) propõe que a distinção entre a posição do clínico e do cientista seja abordada a partir do tempo implicado na leitura de registros de corpora, e levando em conta o trabalho de Claudia De Lemos (2003) Corpo e corpus em que esta pesquisadora aponta para o fato de que corpus em latim é também cadáver (assim como em inglês corpse) – cadáver da voz, do corpo que fala, isto é, cadáver do instante da experiência vivida, acrescenta Lier-DeVitto (2004). De fato, na leitura do material registrado/transcrito, o tempo não é o do instante. Sendo assim, ele só pode ser adjetivado como “tempo passado”. De Lemos (2003) assinala que, na trajetória de uma fala registrada para passar pelo crivo do olhar atento do investigador, são realizados apagamentos mais radicais: o da voz e do corpo que fala – a fala escrita separa fala e falante, condição para que possa ser tornada “amostragem”, operação científica que corresponde/responde pelo ideal de homogeneidade e previsibilidade – apagamento do singular.

 

De Lemos (2003) introduz, então, a questão da singularidade de uma fala e de um corpo que fala numa situação in vivo. É bem o momento de assinalar que o encontro do clínico de linguagem é com a fala in vivo (voz, corpo e instante) - é com a fala, assim definida, que um ele tem que se haver. Em termos bem específicos, um clínico de linguagem não deveria se furtar ao instante da fala: do “corpo que fala” e do “corpo de uma fala”, como se tem sustentado na Clínica de Linguagem. Certamente esse encontro singular demanda uma escuta não menos singular, que só pode ser instituída por efeito de um corpo teórico. Nesses termos, para constituição de uma Clínica de Linguagem é inevitável a vivência do instante clínico em que a escuta do clínico é surpreendida (sempre) pela singularidade de cada paciente e de sua fala - pelo enigma de cada caso: ele se defronta com uma fala e com um corpo que fala e que, digamos, tem demanda por uma escuta que possa recolher seu sofrimento.

 

A clínica de linguagem é marcada, de fato, por inquietações e impasses frente à fala “in vivo” e não aquela encoberta/recoberta pela escrita na gravação e transcrição que constituem corpora (caso do investigador de linguagem). O encontro com o registro de materiais clínicos, ainda que possa ser importante na formação do clínico de linguagem, na instituição de uma escuta teoricamente orientada (Andrade 2003; Arantes 2001), não anula a surpresa de cada caso. Além disso, a escuta do clínico (mesmo em formação) com a escrita de uma fala carrega o efeito do instante vivido na clínica, “a pregnância das falas [...] que reverbera silenciosamente [na sua escuta] a voz de um sujeito, e que carrega a cena vivida na clínica” (Lier-DeVitto 2004: 53).  

A reflexão até aqui apresentada é relevante, uma vez que pretendemos, neste trabalho, fazer considerações sobre escuta do clínico de linguagem para a fala de uma criança. A reflexão que será encaminhada diz respeito à posição do clínico frente à fala do paciente e sobre os efeitos do corpo teórico que sustenta sua escuta no instante clínico, assim como apresentar uma interpretação do material clínico realizado fora da cena. A eleição deste tema, foi resultado da inquietação causada pela leitura de transcrições relativas ao atendimento de um paciente, cuja fala, inicialmente, mostrava-se refratária à mudança.

 

No campo da Fonoaudiologia é ampla e forte a perspectiva, que entende ser a interpretação algo qualificável como “tradução compreensiva”. Segundo Vorcaro (1997: 40), a partir de Allouch (1995), “o sentido da manifestação da criança regula-se pelo sentido dado pelo clínico [...], que desconhece a própria dimensão imaginária que o constitui”. E mais, afirma que uma clínica, assim constituída, acaba por referenciar a fuga de sentido que persiste na manifestação na criança, pelo acréscimo de sentido que a compreensão pode oferecer. Isto é: “o clínico que recobre imaginariamente o que incessantemente escapa e impede o fechamento do sentido [...]. Desse modo, evoca-se sempre o sentido.” (Arantes 2001: 89)

 

Na discussão do caso que será abaixo apresentado, procuraremos indicar a articulação singular sujeito-linguagem, para ilustrar a direção que tomam os trabalhos do Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, desenvolvido no LAEL/PUC-SP[1]. Para tanto, partimos de Vorcaro e Arantes, acima mencionadas, que discutem atendimentos de crianças “que não falam” - casos que interrogam tal articulação, uma vez que a imbricação sujeito-linguagem pode parecer duvidosa. Partir daí, permite ou exige, ainda, trazer à tona a descontinuidade entre falar-escutar (Lier-DeVitto et al. 2012) e a distância entre “ouvir” e “escutar” (Andrade 2003, 2006): “ouvir” diz respeito à capacidade orgânica (integridade do aparato sensorial) e “escutar” é efeito que decorre da estruturação do sujeito pela linguagem, “o que conduz à inclusão do linguístico na explicação de problemas na fala e, portanto, na condução de uma Clínica de Linguagem” (Andrade 2003: 15). Escutar diz respeito, conforme postula Andrade (2003: 77), à “relação da criança à fala atravessada pelo funcionamento da língua, atravessamento que abre lugar para a emergência do sujeito”. Por isso, quando há escuta para a fala pode-se dizer que há indícios da presença de um sujeito (mesmo que a fala não se apresente).

 

Diante disso, a questão fundamental para o clínico de linguagem, é - como assinalam Arantes (2001), Andrade (2003) e Andrade et al. (2005) - instituir uma escuta clínica que seja sensível a pontos de abertura e de resistência que aparecem na fala sintomática, sempre de maneira particular. O clínico deve poder, acrescentam as autoras, assumir uma posição que lhe permita: escutar para falar ou para calar (frente à fala sintomática de um sujeito) para dar direção ao tratamento para que a criança possa falar e vir a se apresentar na fala. Há, assim, modos particulares de o clínico se posicionar a cada caso, por efeito do encontro sempre inusitado que a clínica promove[2].

 

Arantes (2001) sustenta ser preciso considerar o “sintoma enquanto significante”, isto é enquanto acontecimento submetido a leis de referência interna da linguagem; em algum ponto da cadeia significante, o sujeito (do inconsciente) faz sua inserção, ponto de subjetivação (Lier-DeVitto et al. 2012). Aí o que está em questão não é mais a gramática e nem a sintaxe, mas um modo singular de relação sujeito-linguagem. Segundo Arantes (2001: 131), nesse ponto, há abalo no “imaginário da identidade [do sujeito] à língua”. Então, o clínico deve ter escuta aberta para a densidade significante da fala, “ao lugar mesmo em que o sintoma está inscrito – lugar, também, em que pode ser erigida a singularidade de uma escuta do terapeuta de linguagem”.

 

Com as considerações acima, apresentamos, abaixo, o caso de G. - trata-se de um menino de 8 anos, que, quando chegou à clínica, praticamente não falava e que, quando emitia sequências sonoras, elas eram, em sua maioria, ininteligíveis. O atendimento de G. foi gravado e transcrito, uma vez que a transcrição pode “representar a possibilidade de um fonoaudiólogo responder ao como o sintoma se articula na cadeia significante” (Arantes 2001: 146) – pode-se reconhecer, ali, há um resto do corpo que fala, ainda que um resto ininterpretável de fala. No caso de G., as sessões foram sistematicamente gravadas. A terapeuta passou a transcrevê-las, durante as supervisões deste atendimento em respostas a perguntas sobre as vocalizações da criança, as quais não podiam ser respondidas (e foi isto que levantou questão sobre sua escuta clínica).

 

A passagem de “escutar na clínica” para o “ler depois do clinicar”, segundo Arantes (2001) e Lier-DeVitto (2004), dividem o clínico entre duas posições: a primeira é a da “interpretação em cena’, em que ele está sob efeito imediato das produções dos pacientes. Ali, nesse não-tempo do instante ele não pode prever o que vai ser dito nem os efeitos que a fala do paciente produzirá nele. A segunda posição refere-se ao depois da cena clínica, em que o terapeuta se vê identificado com a posição do investigador. Segundo as autoras, é no só “depois” que o fonoaudiólogo tem distância para analisar o material registrado. Nesse “depois”, a escrita invoca a escuta e a escuta invoca a teoria de linguagem assumida (implícita ou explicitamente) pelo cínico. Importante é que nesse momento de ler, não há dissociação, mas relação entre olhar (leitura) e escuta, já o corpo do clínico articula os dois momentos. Entendemos, assim, que a transcrição, na clínica de linguagem pode favorecer a leitura do diálogo “olhar a fala da criança, a do terapeuta e o jogo entre elas.” (Arantes 2001: 154)

 

 

 

2.  O atendimento de G.

 

No caso de G. (uma criança que aparentemente “não falava”), a terapeuta, não o reconhecia, de início, como falante, i.e., não podia reconhecer que de algum modo G. falava em seus gestos e vocalizações. A sua escuta não lia como “fala” tais manifestações de G. bastante peculiares que, inequivocamente, diziam do modo dessa criança habitar a linguagem. Fato é que as mesmas vocalizações eram reproduzidas, retornavam sem novas combinações. Digamos que havia fixidez sintomática, mas... havia fala. Também, sua relação com os brinquedos repetia a mesma sequência. Vale dizer que ele escolhia o mesmo brinquedo em todas as sessões. G. pegava os brinquedos da caixa (ou figuras em folheto de brinquedos), depois eles voltavam para a caixa. Esta cena era reproduzida sempre, na mesma ordem. 

 

As vocalizações eram ininterpretáveis para a terapeuta, deixando-a aflita, além disso, estas vocalizações não eram dirigidas. Ela se empenhava em dar sentido as vocalizações ou, simplesmente, as desconsiderava - não conseguia, contudo, “puxar fio”: estabelecer relação entre as vocalizações e a cadeia de fala que apresentava. Vejamos abaixo, transcrição do fragmento de um diálogo:

 

Segmento 1[3]:

 


 

Embora haja alternância entre os turnos da criança e da terapeuta, neste fragmento de sessão, é possível notar que as vozes de cada um no ‘diálogo’ caminha em paralelo, não se entrecruzam – T., nem mesmo, reconhecia (não podia escutar) nas vocalizações de G. um arremedo de palavra, ainda que, depois, no registro e leitura do material da sessão ela, como terapeuta, tenha podido recolher fragmentos de fala identificáveis (pedaços de unidades da língua constituída).

 

Note-se que, no segmento acima, T. prosseguia, sem incorporar nada do que o menino dizia. Havia naquele diálogo aparente um descompasso entre a peculiaridade das vocalizações de G. e da fala de T, marcada pela impossibilidade de escuta para as produções da criança.

 

Fato é que este caso não caminhava, não “passava a outra coisa” na clínica (Allouch 1995) – persistia, assim, a imobilidade, a fixidez e a impossibilidade de, inclusive, movimentar uma brincadeira com G. A terapeuta resolveu, então, depois do instante da cena clínica, escutar a voz da criança e ler as sessões gravadas e transcritas. Tratou de se ver não “em cena”, mas “fora da cena”. 

 

Chamou atenção a sua insistência em tentar trazer as ações e falas de G. para sua fala, para os textos que ela tecia e causou-lhe grande surpresa a presença insistente de fragmentos de palavras (e palavras) na fala de G., que poderiam ser reconhecidos como unidades da língua, mas que não tocaram sua escuta. Como esperar, então, que o paciente a incluísse em suas manifestações e que um diálogo efetivo fosse instituído?

 

Após várias leituras destes materiais e em supervisão clínica, continuava o atendimento. Semanas depois, voltou-se mais uma vez para o material coletado e notou mudanças importantes.

 

Segmento 2:

 


 

A partir do momento em que a terapeuta pôde notar que desprezava as vocalizações/verbalizações, deu reconhecimento a elas e à criança como falante.

 

Mudou, certamente, sua posição frente e elas e aos gestos de G. – suas participações se enlaçaram e uma promessa de que o tratamento se tornaria eficaz apresentou-se porque foi tecida, segundo Vasconcellos (1999: 77), uma “rede de significantes e de sentido”, em que a criança é significada e significa. Isso ganhou espaço nas sessões. De fato, suas falas e gestos articulavam-se.

 

Brotava, então, uma discursividade motora e vocal, que fazia laço com o outro e transformavam-se em significantes gestuais/verbais. Ainda com Vasconcellos (1999) afirmamos que vê-se, no segmento 2, que o clínico atribui às figuras, aos gestos e aos sons valor de palavra e estes são lidos como tal – como operações simbólicas e imaginárias.

 

No segmento 3, abaixo, veremos o alargamento do horizonte clínico: é possível, nele, apreender outra mudança. O jogo entre falas ganha maior espaço e o apoio nos gestos decrescem. É, ainda, possível observar mudanças no contorno intonacional, que marcam um modo outro de circulação de G. na cena clínica. Vejamos:

 

Segmento 3:

 


 

Nesse segmento, além, do retorno de fragmentos de minha fala na de G., há, também, um jogo de vozes (de terceiro – pica-pau, por exemplo). Continuemos no segmento 4:

 

Segmento 4:

 


 

Note-se que G., ao contrário de antes da sessão em que esse segmento ocorreu, passa a sustentar posição na fala – resiste à interpretações de T. – grande passo no processo de aquisição da linguagem (De Lemos 1992, 2002) e indício de posição subjetiva - G. pôde, como se pode ver, resistir e restringir a interpretação de T. para sua fala (ele insiste recolocando um mesmo significante, até ela escutar sua repetição). Trata-se mesmo de uma posição diferente desta criança na linguagem - efeito benéfico da mudança da terapeuta frente à sua fala/gestos. Neste caso, pode-se falar que o paciente teve a possibilidade de identificação com a fala de T e a partir do seu posicionamento e da sua relação com a língua, a criança pôde “descolar” da fala da terapeuta, mantendo posição frente a ela. 

 

 

 

3.    Considerações Finais

 

Esse caso fundamenta as considerações teórico-clínicas apresentadas no início deste trabalho sobre posição do clínico, posição na linguagem; sobre escuta clínica e escuta para a fala – elementos essenciais que dizem respeito à relação, nem sempre fácil, sujeito-linguagem.

 

Procuramos sublinhar a relevância no atendimento de G., de um jogo entre duas dimensões da interpretação: da escuta em ato e da escuta fora da cena. Buscamos mostrar que:

 

Uma escuta penetra a outra, que não são dissociadas, mas integradas. Vale chamar a atenção para o fato de que não há transcrição que não seja já uma interpretação por mais que seja guiada pela atenção, por mais que seja regida pela ilusão de ‘reprodução de uma fala’. Ora, aquele que transcreve, transcreve com sua “orelha de falante”. Por aí, a transcrição traz um tanto da escuta sessão. (Arantes 2001: 152)

 

Foi o movimento de leitura do material clínico, em momento posterior ao do instante, que possibilitou o nascimento de uma escuta para a fala daquele paciente, antes não tocada pelas vocalizações e gestos de G. – a terapeuta ouvia, mas não escutava a qualidade sonora específica da fala do paciente e nem podia tratar seus movimentos como gestos significantes. A partir da leitura instrumentalizada por uma teoria de linguagem das sessões clínicas, fora da cena (mas com ela na orelha), T pôde admitir o apagamento do jogo significante, que deslizava nas sessões (Araújo 2002). Com isso, mudanças notáveis e decisivas aconteceram na interpretação na cena clínica. Entretanto, devemos assinalar que condição para a escuta do clínico não é dirigir atenção para algo específico em uma fala – o que é não recomendável e mesmo inviável no instante clínico.

 

Para a constituição da escuta clínica importa a leitura de materiais clínicos porque ela, a teoria, se inscreve no corpo do clínico (em sua visão/orelha), como mostra Carvalho (2005, 2006).

 

A escuta fora do instante deve ecoar na interpretação, no instante clínico. Por outro lado, apagar o que foi efetivamente “dito” pelo paciente para criar um texto é dar vazão ao imaginário do clínico, à revelia da fala do paciente. Não nos parece ser esta uma boa direção para a Clínica de Linguagem, portanto, acompanhamos Andrade (2005: 173) quando afirma que “trata-se de pensar o terapeuta na clínica de linguagem enquanto aquele que se faz terapeuta no momento em que sua escuta é capturada pela singularidade da fala-escuta do paciente”.

 

Em trabalho anterior, Emendabili (2010: 86) declarou que seu “empenho foi motivado (pela) e dirigido para a clínica”. Neste trabalho, o empenho teórico-prático não foi diferente. Entendemos que o clínico, a partir de uma formação teórica apropriada, possa constituir uma escuta teoricamente orientada e sem o concurso de uma escolha/vontade consciente. Araújo (2002: 74) sustenta que a fala sintomática é o cerne da Clínica de Linguagem e, sendo assim, “importa assegurar que ela não seja apagada, que não perca sua condição de enigma ao render-se ao imaginário de uma explicação/compreensão”. A interpretação do clínico de linguagem é, a rigor, efeito significante do diálogo clínico e o diálogo é a operação que vai garantira a tessitura de uma fala, no movimento de ir e vir[4].

 

A escuta clinica fica sob efeito da mobilidade significante que se materializa no corpo da fala sintomática. A interpretação manifesta-se como fala, que ganha estatuto de interpretação quando interroga ou produz algum tipo de modificação na fala do paciente – uma incidência de fala é interpretação apenas ‘no depois’. A interpretação se realiza de diferentes formas, mas nunca é definida a priori. (Polonnio 2011: 119).

 

Esperamos que através deste trabalho nós tenhamos indicado as razões pelas quais Lier-DeVitto (2004) entende que o encontro[5] com os registros de materiais clínicos, a pregnância das falas na escuta do clínico do caso e as marcas da cena vivida na clínica, sejam um procedimento, um método para abordagem das falas ditas patológicas.

 

 

 

4.    Referências Bibliográficas:

 

Agamben, Giorgio. 2005. Infância e história, Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais.

Allouch, Jean. 1995. Letra a letra, Rio de Janeiro, Companhia de Freud.

Andrade, Lourdes. 2003. Ouvir e escutar na constituição na clínica de linguagem, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Andrade, Lourdes. 2005. Considerações sobre a escuta na Clínica de Linguagem, Cadernos de Estudos Linguísticos, 47: 167-174.

Andrade, Lourdes. 2006. Procedimento de avaliação de linguagem na clínica fonoaudiológica: entre o singular e o universal, em M. F. Lier-DeVitto e L. Arantes, (organizadoras), Aquisição, patologias e clínica de linguagem, Vol. 1, FAPESP, São Paulo, EDUC: 349-360.

Andrade, Lourdes; Lucia Maria Arantes e Maria Francisca Lier-Devitto. 2005. A clínica de linguagem com crianças que não falam: diagnóstico e direção de tratamento, em S. Pavone, Y. Rafaeli (organizadoras), Audição, voz e linguagem: a clínica e o sujeito, Vol. 1, São Paulo, Cortez: 141-150.

Arantes, Lucia Maria. 2001. Diagnóstico e Clínica de Linguagem, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Araújo, Sonia Maria de M. 2002. O fonoaudiólogo frente à fala sintomática de crianças: uma posição terapêutica?, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Carvalho, Glória Maria M. 2005. Questões sobre o deslocamento do investigador em aquisição de linguagem, Cadernos de Estudos Linguísticos, 47: 61-67.

Carvalho, Glória Maria M. 2006. O erro em aquisição de linguagem: um impasse, em M. F. Lier-DeVitto e L. Arantes (organizadoras), Aquisição, patologias e clínica de linguagem, Vol. 1, FAPESP, São Paulo, EDUC: 63-78.

De Lemos, Claudia Tereza G. 1992. Los processos metafóricos e metonímicos como mecanismo de cambio, Substratum, 1: 121-135.

De Lemos, Claudia Tereza G. 2002. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação, Cadernos de Estudos Linguísticos, 42: 41-69.

De Lemos, Claudia Tereza G. 2003. Corpo & Corpus, em N. LEITE (organizadora), Corpo e Linguagem: gestos e afetos, Vol. 1, UICAMP, Campinas, Mercado das Letras/FAEP: 21-30.

Emendabili, Mariana. 2010. Um estudo de perspectivas teórico-clínicas nas demências: sobre a relação linguagem, memória e sujeito, Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Lier-DeVitto, Maria Francisca. 2003. Patologias da linguagem: subversão posta em ato, em N. Leite (organizadora), Corpo e Linguagem: gestos e afetos, Vol. 1, UNICAMP, Campinas, Mercado das Letras/FAEP: 233-246.

Lier-DeVitto, Maria Francisca. 2004. Sobre a posição do investigador e a do clínico frente a fala sintomáticas, Letras de Hoje, Vol. 39, 3: 47-60.  

Lier-DeVitto, Maria Francisca e Suzana Fonseca. 2012. Hesitações e pausas como ocorrências articuladas, Cadernos de Estudos Linguísticos, 54: 67-80.

Polonnio, Claudia Fernanda. 2011. Escuta e interpretação na Clínica de Linguagem, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Tesser, Evelin. 2012. O diálogo na Clínica de Linguagem: considerações sobre transferência e intersubjetividade, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Vasconcellos, Roseli. 1999. Paralisia Cerebral: a fala na escrita, Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Inédita.

Vorcaro, Ângela. 1997. A criança na clínica psicanalítica, Rio de Janeiro, Companhia de Freud.

 

 




[1]  Trata-se de GP coordenado pelas professoras doutoras Maria Francisca Lier-DeVitto e Lucia Arantes, desde 2002.

[2] Lidar com as particularidades/singularidade da fala sintomática implica um sujeito como aquele da Psicanálise, o do inconsciente. Isso permite uma outra posição/escuta nesta clínica para o sintoma, entendido como “repetição sem ocultação”, “nem evitação” (Lier-DeVitto 2003: 242).

[3] “T” faz referência à “terapeuta” e “P” à “paciente”.

[4] Sobre isso, ver Tesser (2012).

[5] Esclareço que este encontro deva ter o suporte de uma teoria de linguagem para direcioná-lo.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons