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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.2 Montevideo nov. 2015

 

Lingüística

Vol. 31-2diciembre 2015: 61-72

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

UM ESTUDO SOBRE AS PREPOSIÇÕES INTRODUTORAS DE ARGUMENTOS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO

 

CONSIDERATIONS ON THE PREPOSITIONS THAT INTRODUCE INDIRECT ARGUMENTS IN BRAZILIAN PORTUGUESE

 

Ana Regina Vaz Calindro[1]

Universidade de São Paulo

arcalindro@usp.br

 

 

 

Resumo: O objetivo principal do presente texto é propor uma análise para as construções ditransitivas do português brasileiro (PB), com verbos de transferência/movimento e verbos de criação, cujo objeto preposicionado é introduzido pelas preposições ‘a’ ou ‘para’. Ao longo do artigo, demonstrarei que as preposições introdutoras de objetos indiretos (OIs) em PB possuem obrigatoriamente um conteúdo semântico. Portanto, diferentemente do português europeu (PE), a variante brasileira não faz parte das línguas que possuem alternância dativa (cf. Larson 1988, Marantz 1993, Pylkkänen 2002), pois a mesma não apresenta núcleo aplicativo em seu inventário de projeções funcionais. Logo, minha hipótese é que as construções ditransitivas do PB apresentam um núcleo funcional PP como parte da estrutura interna do seu sintagma preposicional (cf. Svenonius 2003, 2007, 2010; Marantz 2009, 2013; Wood 2012).

 

Palavras-chave: preposições, sentenças ditransitivas, estrutura argumental, português brasileiro

 

Keywords: prepositions, ditransitive sentences, argument structure, Brazilian Portuguese

 

Abstract: The main focus of this paper is to propose an approach to ditransitive constructions in Brazilian Portuguese (BP) with dynamic verbs of transfer and movement as well as creation verbs. In BP, the indirect objects (IOs) that accompany these verbs can be introduced by two distinct prepositions: ‘a’ and ‘para’. Throughout this text, I will demonstrate that these prepositions have a lexical interpretation in BP. Therefore, differently from European Portuguese (EP), the Brazilian variety does not participate in the dative alternation (cf. Larson 1988, Marantz 1993, Pylkkänen 2002), as it does not have applicative heads in its argument structure. Thus, I assume that the ditransitive sentences in BP have a pP head as part of the internal structure of its prepositional phrase (cf. Svenonius 2003, 2007, 2010; Marantz 2009, 2013; Wood 2012).

 

 

(Recibido: 31/1/15; Aceptado: 11/6/15)

 

 

1.    Introdução

           

Estudos linguísticos têm mostrado que o português brasileiro (PB) se distancia do português europeu (PE) em diversos aspectos. No âmbito morfossintático, por exemplo, são atestadas diferenças relacionadas à expressão dos  traços de pessoa, número e caso. Um outro ponto em que essas diferenças são expressivas é o que se refere à expressão sintática, semântica e morfológica do argumento interno preposicionado das sentenças ditransitivas (cf. Torres Morais 2007, 2012; Torres Morais & Salles 2010).

 

Com esse fato em mente, o foco deste trabalho serão as sentenças ditransitivas do PB  com verbos de transferência e movimento - ‘dar’, ‘entregar’ e ‘enviar’ - e de criação -‘assar’, ‘construir’, ‘fazer’, ‘pintar’ e ‘preparar’, os quais se associam por serem verbos com dois argumentos internos: um objeto direto (OD) e um objeto indireto (OI). Diferentemente do que acontece em PE, como veremos mais adiante, os falantes de PB usam as preposições ‘a’ e ‘para’ para introduzir OIs, com verbos de transferência e movimento, embora com alta preferência de ‘para’ sobre ‘a’ (cf. 1a). No entanto, com os verbos de criação, o OI  é categoricamente introduzido por ‘para’, o que torna a presença de ‘a’ agramatical (cf. 2a) [2]. Além disso, a perda da preposição ‘a’ como introdutora de OI no PB ocorre concomitantemente à perda dos clíticos de terceira pessoa ‘lhe(s)’ usados para substituir os OIs. Para tanto, os falantes preferem as formas fortes dos pronomes, precedidas pelas preposições ‘a’ ou ‘para’[3] (cf. 1b; 2b).

 

1.     a. Maria enviou a carta para/ao João.

b. Maria enviou a carta para/a ele.

 

2.   a. Maria preparou o jantar para/ *ao João

b. Maria preparou o jantar para/ * a ele.

 

O principal objetivo deste texto, portanto, é discutir as consequências sintáticas da generalização do uso da preposição ‘para’ em PB nos contextos supracitados. Como veremos no decorrer do texto, essa perda, associada à queda no uso dos clíticos de terceira pessoa ‘lhe/lhes’, denota uma mudança gramatical na história do PB em comparação ao PE e a outras línguas românicas como o espanhol e o romeno (cf. Cuervo 2003; Diaconescu & Rivero 2007).

 

Para dar conta desses fatos de mudança, proponho que um mesmo tipo de estrutura sintática é capaz de representar o argumento indireto de ambas as  construções ditransitivas do PB, tanto com verbos de transferência e movimento como com os verbos de criação. De acordo com Svenonius (2003, 2007, 2010) e Wood (2012), é possível fazer um paralelo entre o domínio preposicional e o domínio verbal de uma estrutura sintática através de um núcleo funcional pP.

 

Logo, com base em uma teoria particular de estrutura de argumentos (cf. Hale & Keyser 1993, 2002; Marantz 1993), defenderei a hipótese de que as construções ditransitivas do PB apresentam, portanto, esse núcleo pP como parte da estrutura interna do seu sintagma preposicional, introduzido na estrutura argumental abaixo do domínio verbal da sentença.

 

 

 

2.    Estruturas ditransitivas

 

2.1 Construção aplicativa e construção preposicionada

 

Como já bastante discutido em estudos anteriores (cf. Berlinck 1996,1997; Torres Morais & Berlinck 2006, 2007; Torres Morais & Salles 2010; Freire 2000, 2005; Gomes 2003, entre outros), na variante europeia do português, ao contrário do PB, o argumento indireto das sentenças ditransitivas é preferencialmente introduzido pela preposição ‘a’, sendo categoricamente substituído pelos clíticos dativos de terceira pessoa ‘lhe/lhes’:

 

3.   a. A Maria enviou uma carta ao João.

b. A Maria enviou- lhe uma carta.

 

4.     a. A Maria preparou o jantar ao João.

b. A Maria preparou-lhe o jantar.

 

Segundo Torres Morais (2007) e Torres Morais & Salles (2010), o PE - paralelamente ao inglês, ao espanhol e ao romeno (cf. Pylkkänen 2002; Cuervo 2003; Diaconescu & Rivero 2007) apresenta o fenômeno da alternância dativa, caracterizado pela presença de duas construções: a construção de objeto duplo (DOC), denominada construção de aplicativo baixo, e a construção ditransitiva preposicionada (PDC)[4].

 

Em PE e nas outras línguas românicas, a DOC se diferencia da PDC por ser uma construção dativa, na qual o OI é realizado como um a-DP, ou seja, a preposição ‘a’ que o introduz não é plena, mas, sim, um elemento dummy, cuja função é apenas a de marcar Caso dativo. Da mesma forma, a expressão morfológica de Caso dativo se manifesta nas formas clíticas ‘lhe/lhes’. Desse modo, o argumento dativo é introduzido por um núcleo aplicativo baixo, como expresso na estrutura em (5):

 

5.   [vP  A Maria [v v [VP enviou [ApplP ao João/lhe [APPL’ Ø [DP uma carta]]]]]]]

 

Por sua vez, a estrutura preposicionada projeta um sintagma preposicionado (PP) (cf. 6). Na PDC, portanto, não há um núcleo aplicativo, logo o OI é um argumento oblíquo introduzido na estrutura argumental pela preposição ‘para’. Nesse caso, o OI não pode ser substituído pelo clítico dativo ‘lhe’. Ademais, não é possível depreender a leitura de transferência de posse direta como nos exemplos (3) e (4), pois no exemplo abaixo, está implícita a leitura de que ‘João’ não recebeu diretamente o objeto tema da Maria. Nesse contexto, ‘a carta’ teria sido enviada primeiramente para ‘Pedro’, por exemplo, e depois teria chegado a ‘João’.

 

6.   a.  Maria  enviou uma carta  para  o João / *enviou-lhe uma carta               

a'. [vP A Maria [v v [VP enviou [PP uma carta [P’ para [DPgoal o João]]]]]]]

 

2.2 Fatos de mudança

 

Em relação ao PB, estudos linguísticos têm demonstrado que a preposição ‘a’ está gradualmente sendo substituída pela preposição ‘para’, principalmente no contexto dos verbos de transferência e movimento. No gráfico reproduzido abaixo, é possível verificar que, tanto o uso da preposição ‘a’ como do clítico dativo de terceira pessoa ‘lhe’, estão em queda no PB desde o século XIX (cf. Berlinck 1996; Torres Morais & Berlinck 2006, 2007; Torres Morais 2007).

 

Gráfico I: O desenvolvimento histórico do clítico lhe a da preposição a em PB

                                                                                       (Torres Morais & Berlick 2007: 67)

 

O desaparecimento do clítico dativo assinala, portanto, a perda das características morfológicas de Caso dativo (cf. Torres Morais & Salles 2010 e Torres Morais 2012). Logo, em comparação ao que foi dito sobre o PE, o PB vem perdendo as propriedades que caracterizam a DOC e, consequentemente, não apresenta núcleos aplicativos em sua estrutura argumental.

 

Dessa forma, independentemente da preposição que o introduz, o OI em PB é um argumento preposicionado expresso por meio de sintagmas preposicionados. Conclui-se, portanto, que o PB não possui construções aplicativas e que suas sentenças ditransitivas são sempre PDCs.

 

Em PB, além disso, o elemento preposicionado pode acarretar interpretações particulares para os complementos de um mesmo verbo. Com verbos de transferência e movimento, como em (7), o complemento da preposição ‘a’ é interpretado como recipiente/alvo da ação, no sentido em queMaria’ é entendida como possuidora da carta enviada a ela diretamente pelo ‘João’:

 

7.   O João entregou um livro à Maria.

 

A preposição ‘para’ também pode levar à mesma interpretação, como podemos verificar em (8). Além disso, ‘para’ apresenta, uma ambiguidade semântica no PB que não ocorre com a preposição ‘a’. Na sentença (9), por exemplo, ‘Maria’ não é um alvo direto da ação, mas sim beneficiária do evento da carta ter sido entregue por outra pessoa em seu lugar:

 

8.  O João entregou o livro para a Maria.

 

9.  O João entregou a carta para a Maria na secretaria.

 

Para dar conta dessas interpretações, proponho que as diferentes interpretações semânticas geradas pelas preposições que introduzem os argumentos indiretos podem ser captadas através de um núcleo preposicional pP.

 

Essa categoria funcional é responsável por estabelecer uma relação de posse entre dois argumentos, nos moldes de um aplicativo baixo, no caso dos verbos de transferência e movimento, e nos moldes de um núcleo aplicativo alto-baixo, no caso dos verbos de criação (cf. Cuervo 2003; Marantz 2009, 2013; Wood 2012), como discutirei na seção seguinte.

 

 

 

3.  Proposta de análise para o PB

 

3.1. O núcleo pP

 

A hipótese de cisão do PP (Split-P Hypothesis) fundamenta-se nos trabalhos de Svenonius (2003, 2007, 2010), nos quais o autor assume que o domínio da preposição envolve as categorias p (light preposition) e P. Svenonius propõe que esses núcleos podem ser analisados paralelamente às categorias v e V do domínio verbal. Logo, os DPs ao serem introduzidos na posição de especificador de PP - complemento de pP - estabelecem uma relação restritiva que acarreta a modificação de constituintes nominais por sintagmas preposicionados.

 

Seguindo os pressupostos de um modelo de sintaxe construtivista, assumo neste estudo que certos elementos - como o objeto direto de sentenças monotransitivas - são introduzidos na estrutura argumental pelo verbo. Já outros argumentos, como os dativos de sentenças ditransitivas, são introduzidos por núcleos especializados.

 

De acordo com Wood (2012: 16), existem três núcleos desse tipo: o núcleo Voice - responsável pela introdução de argumentos externos com leitura agentiva (cf. Kratzer 1996); o núcleo aplicativo - que introduz objetos indiretos e certos experienciadores (cf. Pylkkänen 2002; Cuervo 2003); e, por fim, o núcleo p - responsável por introduzir um argumento figura, que seria o sujeito de uma small clause nucleado por um sintagma preposicionado.

 

De acordo com Wood (op. cit.) Voice e p possuem propriedades que os diferem do núcleo aplicativo, pois este pode exigir que seu especificador seja dativo, por exemplo, ao passo que os outros núcleos não fazem nenhuma exigência em relação ao elemento que se encontra em seu especificador. O núcleo Voice, portanto, seleciona um certo v, e esse v pode selecionar Appl ou p como seu complemento. O Appl seleciona um DP como complemento e p pode c-selecionar um complemento PP, como verificarmos no exemplo (10) do islandês e em sua representação estrutural em (11):

 

10.    Bjartur              tróð          blýöntunum          í   pokann

Bjartur.NOM    squeezed   pencils.the.DAT  in bag.the

‘Bjartur squeezed the pencils into the bag’

                                                                 (Wood 2012: 17)

                              

11.            

 

                                                                                          (Wood 2012: 18)

 

Como se depreende da estrutura representada acima, os conceitos de Figura e Fundo, elaborados por Talmy (1978, 1985), são fundamentais para o entendimento do núcleo pP:

 

12.    a. A Figura é um objeto que se move, ou capaz de se mover conceitualmente, cujo caminho ou lugar está em questão.

b. O Fundo é um quadro de referência, ou um ponto de referência dentro de um quadro de referência, em relação ao qual o caminho ou o lugar da Figura é caracterizado.

                                                                                                                                                  (Talmy 1985: 61) [5]

 

Através dessas definições, nota-se que os elementos Figura e Fundo são relacionais, como se percebe através do exemplo em (13). Nessa sentença, the keys é a Figura, the table é o Fundo, e a preposição on é a responsável por estabelecer uma  relação espacial entre as duas:

 

13.   John threw the keys on the table

             

De acordo com Svenonius (2003, 2007), o elemento Figura tem propriedades semelhantes às do argumento externo a v, enquanto o fundo pode ser relacionado aos argumentos internos, uma vez que as preposições apresentam restrições de c-seleção em relação ao Fundo, não à Figura. Uma preposição como on em inglês, por exemplo, toma como complemento um Fundo que tenha características de superfície, enquanto in introduz um elemento que deve ser interpretado necessariamente como recipiente (container). Restrições desse tipo não existem para as Figuras.

 

Complementando essas considerações em relação ao inglês, trago a proposta de Avelar (2006) a respeito dos sintagmas adnominais preposicionados em PB. O autor, seguindo Svenonius (op. cit.), propõe uma estrutura clausal para tais complexos a fim de capturar as propriedades que envolvem DPs modificados por preposições locativas complexas. Vejamos abaixo a representação de um sintagma adnominal dentro da proposta de Avelar (op. cit.):

 

14.

 

 

                                                                            (Avelar 2006: 181)

 

Na configuração acima, Avelar (2006) afirma que a Figura corresponde ao DP modificado pelo adjunto adnominal preposicionado e o Fundo ao complemento de tal preposição. Dessa forma, mais uma vez, o papel da preposição na configuração do núcleo pP é o de apresentar restrições de c-seleção em relação ao Fundo e não à Figura. Assim sendo, as preposições são elementos que estão relacionados aos argumentos internos. Logo, a interpretação do Fundo é muito mais dependente da preposição que a interpretação da Figura. 

 

Ademais, em línguas com caso morfológico,  as preposições também atribuem Caso ao seu complemento Fundo. Já o Caso da Figura é normalmente atribuído pelo verbo. A partir dessa afirmação, portanto, fica claro que o elemento Figura pode ser o objeto direto (OD) de uma sentença, como vimos, inclusive, através do exemplo (11) do islandês. Assumo, portanto, que o OD de uma construção ditransitiva também pode ser representado no especificador da projeção pP. Logo, as preposições podem ser responsáveis por adicionar um argumento abaixo da oração a qual elas se ligam, gerando o seguinte tipo de estrutura, proposta por Wood (2012):

 

15.

 

                                                                                   (Wood 2012: 180)                                                              

 

Nota-se pelas representações acima, além disso, que é possível estabelecer um paralelo entre o domínio preposicional e o verbal de uma sentença. Essa relação mais distante entre a Figura e P, portanto, pode ser relacionada à assimetria existente entre o verbo e seus dois complementos em uma construção ditransitiva. Daí, na configuração estrutural da sentença, a preposição permanece dentro do PP - como veremos nas configurações que serão apresentadas na seção seguinte -, pois devido aos motivos listados acima, a mesma impõe restrições ao argumento Fundo, não ao argumento Figura.

 

Por fim,  como p não é o núcleo mais alto capaz de introduzir argumentos no domínio local relevante - pois ainda há o núcleo Voice acima que pode introduzir uma relação agentiva - p pode perfeitamente ser responsável por introduzir uma relação temática. Esse fato é fundamental para resolver o problema da configuração das estruturas ditransitivas. Como discutido em Cuervo (2010)[6], os verbos envolvidos nessas construções não selecionam dois argumentos separadamente e, sim, uma relação estabelecida entre OD e OI. Assumo, portanto, que o núcleo pP é capaz de realizar a relação de posse entre o OD em seu especificador e o PP que contém o OI nucleado pela preposição ‘para’, como veremos na seção a seguir.

 

3.2 As sentenças ditransitivas no PB: verbos de transferência e movimento

 

Tendo em mente o que foi exposto nas seções anteriores, assumo que a estrutura argumental de uma sentença ditransitiva deve, necessariamente, apresentar categorias funcionais que podem expressar a relação de posse entre OD e OI, sejam elas - uma frase aplicativa, uma small clause ou uma frase preposicional. Como discutido na primeira seção, se assumirmos que o PB não tem núcleos aplicativos em sua configuração ditransitiva, pois não possui mais o Caso dativo expresso morfologicamente através do clítico dativo ‘lhe’, a relação mencionada é estabelecida na estrutura argumental pela preposição presente no núcleo de PP complemento do núcleo pP.

 

Tomando como exemplo uma sentença com o verbo de transferência ‘enviar’ em PB, item (16), proponho que sua configuração estrutural é a apresentada em (17) abaixo.

 

16.   A Maria enviou uma carta para/ao João

 

17.  

 

 

Na estrutura acima, a preposição encontra-se em uma relação de c-seleção com o argumento Fundo como explicitado anteriormente. Logo, ela está necessariamente dentro da projeção PP, complemento de pP. Semanticamente, temos uma interpretação na qual o complemento oblíquo é o alvo/recipiente do evento, ou seja, há uma relação direta de posse entre o OD e o objeto introduzido pela preposição, similar à construção aplicativa do PE, discutida na seção 2.1.

 

A partir das construções preposicionadas do PE, como a apresentada no exemplo (6), os falantes de PB reanalisaram a construção aplicativa do PE e generalizaram o uso da preposição ‘para’ para todos os contextos ditransitivos com verbos de transferência e movimento. Como vimos, nessa conjuntura, a preposição ‘a’ em PE - marcadora de Caso dativo - ainda é utilizada categoricamente.

 

3.3 As sentenças ditransitivas no PB: verbos de criação

 

Quanto aos verbos de criação, embora a estrutura sintática seja a mesma dos verbos transitivos de transferência e movimento, a relação entre OD e OI nestas construções é outra. Em primeiro lugar, porque o DP - objeto direto, nestes contextos, pode ser interpretado como um evento e não como um indivíduo.

 

Segundo Marantz (2009, 2013), os ODs dos verbos de criação não são semanticamente tema - como aqueles dos verbos de transferência e movimento. Esses elementos seriam, na verdade, eventos em si, pois representam o objeto que resultou de uma ação. Vejamos o exemplo (18) abaixo:

 

18.   Mary baked John a cake

                   (Marantz 2009: 8)

 

Nessa sentença, o bolo’ é um objeto construído, criado, ou seja, passa de um conjunto de ingredientes para um produto finalizado - fato que caracteriza um evento. Consequentemente, ‘John’, além de alvo/recipiente do próprio bolo, é beneficiário do evento de ‘Mary’ ter batido o bolo, como ilustrado no diagrama a seguir:           

           

   19.         

Essa representação mostra que ao tempo que existe uma relação de posse entre o OD - ‘John’ - e o OI - ‘a cake’, o OD também está sendo beneficiado pelo fato de ‘Mary’ ter executado o evento de ‘fazer o bolo’.

 

Essas estruturas, portanto, envolvem o que o autor chama de aplicativo alto-baixo, ou seja, há, por um lado, a interpretação de aplicativo baixo - uma vez que existe uma relação de posse entre o OD e o OI, gerada abaixo do VP. Porém, ocorre, ao mesmo tempo, a interpretação de aplicativo alto, pois o OI é beneficiário do evento expresso pelo OD[7]. Dessa forma, o DP ‘cake’ está submetido a um evento de mudança de estado, no qual é envolvido como “medida” do  evento, como Marantz (2009) ilustra através do seguinte diagrama em (20):

 

  20.

        (Marantz 2009: 8)

 

Com base nessa abordagem, Wood (2012) também propõe uma estrutura de aplicativo alto-baixo para os verbos de criação do islandês. O OD, neste tipo de evento apesar de ser um evento estativo em si, sofre uma mudança de estado.

 

Como no exemplo em (21), n blandaiði Hlynur drykk’ (Jon preparou um drink para Hlynur), pois ao preparar o drink, os ingredientes passam de um conjunto de itens para uma bebida pronta, o que acarreta a noção de evento, nos moldes de Marantz (op. cit.).

 

Logo, temos que a sintaxe dessa construção é a de aplicativo baixo, como verificamos na representação abaixo, porém sua interpretação é de aplicativo alto, uma vez que o OI ‘Hlynur’ é beneficiado pelo evento de ‘Jón’ preparar o OD tema ‘drykk’.


            a. Aplicativo Alto :     [
ApplP  IO Appl  [VP V DOtheme ]]
            b. Aplicativo Baixo:   [
VP V [ApplP  IO [Appl  [ DOtheme ]]]

 

21.

 

                                                                                                   (Wood 2012: 233)        

 

Para reforçar o conceito de aplicativo alto-baixo, Wood (op. cit.) apresenta os seguinte itens em (22) acerca da semântica do núcleo aplicativo da frase representada em (21). Essas representações nos levam à leitura semântica de aplicativo alto, porém em uma estrutura sintática de aplicativo baixo, denotando, assim, o aplicativo alto-baixo proposto por Marantz (2009, 2013).

 

22.    a. [Appl] ↔λxe. λss. BENEFICIARY (x,e)

b. [‘drink’] = λss. state  (s, drink)

c. [Appl’] = λxe. λss. BENEFICIARY (x,e) ˄ state (s, drink)

(c) comes from (a) and (b) via Event Identification

d. [ApplP] = λss. BENEFICIARY (Hlynur,s) ˄ state (s, drink)

≈ ‘Hlynur is the beneficiary of the state of the drink’

 

                                                                                                 (Wood 2012: 233)

 

  Tendo em mente, portanto, a abordagem de Marantz (2009, 2013) para os verbos de criação do inglês, associada ao estudo de Wood (2012) para o islandês, acredito que a hipótese de um núcleo pP em PB também é capaz de apreender a relação de beneficiário do tema instanciada pela preposição ‘para’ em frases com os verbos de criação, como no exemplo (23):

 

23.   A Maria preparou o jantar para o João

 

Consequentemente, podemos tratar o OD ‘jantar’ em desse exemplo, como um evento, nos moldes de Marantz (op.cit). Portanto, uma vez que os verbos de criação podem ser interpretados como eventos dinâmicos, eles projetam a mesma estrutura proposta para os verbos dinâmicos de transferência e movimento da seção 3.2, introduzindo a relação entre o OD tema e o OI alvo/recipiente através do núcleo pP.

 

Nesses termos, proponho a estrutura em (24) para as sentenças ditransitivas com verbos de criação em PB:

 

24.  

 

 

 

 

4. Considerações Finais

           

Neste texto abordei uma proposta de análise das ditransitivas no PB com foco nas sentenças com verbos de transferência, movimento e de criação. Essas estruturas do PB são particularmente interessantes, pois a introdução do seu argumento indireto vem sofrendo mudança no decorrer dos tempos, uma vez que a preposição ‘a’ vem dando lugar à preposição ‘para’, concomitantemente à perda do clítico dativo de 3ª pessoa ‘lhe’. Vimos que, com a preposição ‘para’, a representação estrutural das sentenças com verbos de criação e com verbos de transferência e movimento são as mesmas, uma vez que em ambos os casos, a raiz verbal seleciona uma relação entre o OD e o OI expressa através da preposição que faz parte do complemento PP do núcleo  funcional p.

 

Como discutido neste artigo, a cisão desse núcleo pP em p e P - nos moldes do que é preposto para estruturas clausais quanto à combinação de v e V - nos permite captar a ideia de que a preposição nas estruturas ditransitivas é capaz de estabelecer uma relação entre o argumento Figura (OD) e o argumento Fundo (OI). É importante ressaltar, além disso, que as preposições impõem restrições somente ao argumento indireto, não ao direto, o que faz com as mesmas se encontrem dentro do núcleo PP nas projeções aqui propostas.

 

 

 

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[1]Este trabalho é financiado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), processo número 6058/14-0.

[2] Os argumentos indiretos dos verbos de criação também podem ser introduzidos pela preposição ‘de’, contudo não trataremos desse caso no presente texto.

[3] É importante ressaltar que o uso dos clíticos ‘lhe/lhes’ de 3a pessoa ainda é produtivo nos textos escritos mais formais e literários, mas não nos usos coloquiais da língua. Isso reflete que são adquiridos via ensino formal, como ocorre também com os clíticos acusativos de 3a pessoa (cf. KATO 1996, 2005).

[4] DOC: double object construction; PDC: prepositional ditransitive construction (cf. Larson 1988).

[5] Tradução livre do original (Talmy 1985: 61): “The Figure is a moving or conceptually movable object whose path or site is at issue. The Ground is a reference-frame, or a reference-point stationary within a referent-frame, with respect to which the Figure’s path or site is characterized”.

[6] Cuervo (2010) discute que, para uma estrutura ser ditransitiva no nível sintático, o verbo não precisa ser ditransitivo no nível lexical. A ditransitividade é, portanto, apenas uma noção descritiva e os verbos ditransitivos pertenceriam ao grupo que Levin (1999) chama de transitivos non-core. Assim sendo, verbos ditransitivos seriam, na verdade, transitivos que tomam como complemento uma relação entre dois indivíduos (cf. Torres-Morais 2012).

[7] Para uma abordagem detalhada da sintaxe e semântica dos aplicativos baixos e altos confira Pylkkänen (2002) e Cuervo (2003). No aplicativo alto, o OI é gerado acima do VP e se beneficia do evento expresso pelo verbo. No aplicativo baixo, o OD e OI são gerados abaixo do VP. Neste caso o núcleo aplicativo estabelece uma relação de posse entre dois objetos o DP -OD e o DP-OI:

 


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