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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.2 Montevideo nov. 2015

 

Lingüística

Vol. 31-2diciembre 2015: 47-60

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

INTOLERÂNCIA CONTRA O LINGUISTA NO DISCURSO DO SENSO COMUM[1]

 

NON TOLERANCE WITH SCHOLAR LINGUISTIC IN COMMON SENSE DISCOURSE

 

José Cezinaldo Rocha Bessa

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

cezinaldobessa@uern.br 

 

 

Objetivamos, com este trabalho, demonstrar e analisar manifestações de intolerância contra o linguista que se expressam no discurso do senso comum. O presente trabalho encontra respaldo em estudos sobre variação linguística, norma, mídia e preconceito, segundo os postulados de Scherre (2005), Fiorin (2002), Bagno (2003, 2006, 2012), Faraco (2001, 2007) e Oliveira (2007), e sobre preconceito e intolerância linguísticos, conforme Leite (2008). O corpusanalisado se constitui de 157 comentários publicados por leitores do blog do jornalista Reinaldo Azevedo no contexto da acirrada polêmica em torno do livro didático “Por uma vida melhor”. Os resultados demonstram que a intolerância contra o linguista é um fato concreto em nossos dias, configurando, no discurso do senso comum, feições que vão desde a não aceitação das posições assumidas pelo linguista à desqualificação da própria figura desse profissional.

 

Palavras-chave: Intolerância; Discurso; Linguista; Senso comum; Mídia.

 

Keywords: Intolerance; Discourse; Linguist; Common sense; Media.

 

By this work, we aim at analyzing and show manifestation of intolerance against linguistic scholar that are manifested through the discourse of common sense people. This work is supported by studies from Linguistics, language rules, media and prejudice according to propositions by Scherre (2005), Fiorin (2002), Bagno (2003, 2006, 2012), Faraco (2001, 2007) and Oliveira (2007). In what is related to prejudice and linguistic intolerance, such as pointed by Leite (2008), the analyzed corpus is formed by 157 comments published by readers in a blog by Reinaldo Azevedo, in the context of a polemical publication of a textbook named “Por uma vida melhor”. The results show that the intolerance posture against the linguistic scholar is a reality in our days. And it assumes a posture that goes from a inacceptable position from that professionals to a disqualification of the own picture of the professional linguist.

 

 

(Recibido: 22/1/15; Aceptado: 1/8/15)

 

 

1. Introdução

 

Já há algum tempo, aqui no Brasil, uma parcela significativa de estudiosos da linguística, notadamente do campo da sociolinguística, têm advogado de forma mais insistente o debate público sobre questões de língua. Faraco (2001) e Bagno (2003) estão entre aqueles que mais se destacam em torno desse debate. Este estudioso afirma que “o modo científico de dizer a realidade lingüística nacional não conseguiu ainda se fazer ouvir a ponto de colocá-la como uma questão concreta sobre a mesa”, o que se deve, certamente, ao fato de que a linguística “não conseguiu ainda ultrapassar minimamente as paredes dos centros de pesquisa e se difundir socialmente de modo a fazer ressoar o seu discurso em contraposição aos outros discursos que dizem a língua no Brasil.” (Faraco 2001: 38). Oliveira (2007), por sua vez, fala de uma linguística despotencializada e despolitizada, isolada em relação aos seus falantes e encerrada no campo acadêmico. Nesse cenário, há aqueles, como Bagno (2003), que entendem que os linguistas profissionais necessitam se afirmar como uma comunidade científica especializada, no sentido de fazer com que o resultado das investigações científicas por eles desenvolvidas não seja assunto apenas de especialistas para especialistas.

 

Embora estudiosos como Gimenez (2007) afirmem que há evidências apontando que questões de linguagem não se restringem ao domínio dos especialistas, o que se tem observado é que o discurso da comunidade científica especializada de linguistas se faz ouvir muito pouco ainda entre aqueles não especialistas. Essa é, certamente, uma das razões para que a linguística permaneça “invisível e inaudível para a sociedade em geral” (Faraco 2001: 40). Fora da esfera acadêmica, portanto, o nome do linguista, nem tanto a sua voz, ressoa um pouco mais forte apenas quando entram em cena polêmicas sobre fatos da língua que repercutem na mídia. Assim foi, por exemplo, com a matéria de capa da revista Veja, “Falar e escrever – eis a questão” (nº 1725, de 07/11/2001), do jornalista João Gabriel, com a proposta de legislação antiestrangeirismos (o Projeto de Lei 1676/99), do Deputado Aldo Rebello (PCdoB/SP), e, mais recentemente, com a polêmica envolvendo o livro didático para Educação de Jovens e Adultos (EJA), “Por uma vida melhor”, dos autores[2] Heloisa Ramos, Claudio Bazzoni e Mirella Clet, acusado de estar estimulando o ensino do “português errado”. E, nesses casos, o que mais ecoa é geralmente um tom de crítica ao trabalho do linguista, por ele fazer parte do que gramáticos e alguns jornalistas denominam de uma corrente “relativista”, que faz “apologia ao erro”.

 

Como são ainda relativamente poucos os espaços que a mídia abre para a comunidade de linguistas se expressar sobre fatos da língua, a divulgação de uma visão teórica consistente sobre a língua e a defesa contra atitudes preconceituosas em relação às formas linguísticas desprestigiadas e seus falantes, não tem se mostrado, fora da esfera acadêmica, uma prática minimamente desejável em nosso país. No embate entre a voz do linguista e a da mídia mal intencionada, a voz que se faz ressoar mais forte, nos ouvidos do cidadão comum[3], é aquela que, segundo afirmam alguns estudiosos como Scherrer (2005), sustenta e difunde o preconceito linguístico, de modo a (de)formar o pensamento que este (o cidadão comum) tem sobre a língua e sobre seus falantes. Leite (2008), por sua vez, demonstra que a mídia não só dissemina atitude de preconceito, mas também de intolerância linguística, que, diferentemente do preconceito linguístico (entendido como forma de discriminação silenciosa em relação à linguagem do outro), se manifesta sempre que alguém veicula uma agressão verbal contra outro alguém em razão da linguagem que usa. Bagno (2012) vai mais além, ao propor que vivemos um momento em que a mídia chegou ao ponto de expressar preconceito contra a linguística e o linguista.

 

Mais problemático é poder constatar que a voz da mídia tem encontrado eco no ouvido desse cidadão comum a tal ponto de podermos falar hoje de manifestações de intolerância contra o linguista, como procuraremos evidenciar aqui. Objetivamos, pois, neste trabalho, demonstrar e analisar manifestações de intolerância contra o linguista no discurso do senso comum[4], expressas em comentários de leitores[5] do blog do jornalista Reinaldo Azevedo[6], colunista da “Folha de S. Paulo”. Recortamos, para essa finalidade, comentários de leitores[7] à coluna do blog do referido jornalista intitulada “O livro dos erros - Tio Rei desanca um lingüista importantíssimo da USP; e só não desenha porque deixou a tarefa para Picasso. Divirtam-se!”, em que o jornalista se pronuncia sobre a polêmica em torno do livro didático de Português “Por uma vida melhor”, criticando os linguistas e acusando-os de fazer apologia ao erro.

 

O interesse por estudar essa temática surge da necessidade de uma melhor compreensão não somente dos discursos que dizem a língua, mas também dos discursos que dizem sobre a comunidade de estudiosos que a ela se dedicam, para que possamos reforçar a necessidade de programas mais eficazes de combate às formas de preconceito e de intolerância contra falantes e linguistas que se disseminam no discurso da mídia e do senso comum, bem como para despertar a comunidade de linguistas para a necessidade de encampar lutas para o reconhecimento do papel do linguista no direito de dizer a realidade linguística e, portanto, de ser ouvida, no debate público, toda vez que o assunto for fatos da língua. É nessa direção que aponta Faraco (2001: 39), quando afirma que “[...] está mais do que na hora de se instaurar, no espaço público, um indispensável embate entre os múltiplos discursos que dizem a língua; de colocar a voz da linguista no campo de batalhas culturais como uma voz pelo menos equipolente com as demais.”.

 

Com isso, esperamos poder apresentar uma contribuição para o debate sempre atual sobre formas de intolerância que se manifestam na vida social, vislumbrando a possibilidade de que estudos nessa temática possam ganhar mais fôlego no campo dos estudos linguísticos, considerando que trabalhos com esse viés são ainda, pode-se dizer, relativamente escassos entre estudiosos da área.

 

Do ponto de vista teórico-metodológico, o presente trabalho encontra respaldo em estudos sobre variação linguística, norma, mídia e preconceito, segundo os postulados de Scherre (2005), Fiorin (2002), Bagno (2003, 2006, 2012), Faraco (2001, 2007) e Oliveira (2007), sobre preconceito e intolerância linguísticos, conforme Leite (2008). Com base nesse aparato teórico, fazemos, em um primeiro momento, uma discussão teórica sobre preconceito e intolerância linguísticos, enfatizando uma distinção entre esses termos, conforme propõe Leite (2008); em um segundo momento, procuramos demonstrar e analisar manifestações de intolerância linguística que se expressam nos comentários dos leitores de uma coluna do blog de Reinaldo Azevedo.

 

 

 

2. Na indiferença à linguagem do outro: de preconceito à intolerância no discurso sobre a língua

 

Quando, aqui no Brasil, o assunto é algum fenômeno de natureza linguística, quase sempre temos algo a dizer, sejamos especialistas ou não, diferentemente do que observamos em outras áreas. Evidentemente, na maioria das vezes, o que escutamos, principalmente da fala de um não especialista no assunto, é uma posição infundada e inconsistente sobre a língua, que não condiz, portanto, com o uso real que os falantes fazem dela para interagirem na vida social. Faraco (2007) afirma que se trata, em geral, de equívocos relacionados com a compreensão de fenômenos de variação linguística. “É justamente frente aos fenômenos da variação (por estes envolverem complexas questões identitárias e de valores socioculturais) que os falantes parecem se mostrar mais sensíveis, externando, muitas vezes, atitudes e juízos de alta virulência.”. (Faraco 2007: 23). Mais do que uma posição sobre um fato linguístico em si, entra em cena, quase sempre, um comportamento de indiferença à língua do outro, uma indiferença que é também de ordem social, caso típico de uma sociedade que não aprendeu ainda a conviver com a aceitação da diferença. Não por acaso Fiorin (2002: 23) afirmara que “uma das dificuldades da vida social é a aceitação da diferença”, que se explica, pelo que se pode entender dos dizeres do autor, porque “tudo que é diferente é visto seja como inexistente, seja como inferior, feio, errado”. Trata-se, de acordo com o autor, de uma questão de preconceito, cuja raiz reside na rejeição da alteridade, na consideração das diferenças como patologia, erro, vício, etc.

 

Como destaca o autor, se observarmos a nossa volta vemos que esses preconceitos são de natureza diversa (étnico, cultural, religioso, de gênero ou orientação sexual etc.). O preconceito de natureza linguística, contudo, parece ser mais resistente do que os outros, afirma Fiorin (2002). Segundo ele, isso não tem nada a ver com a língua, mas com o modo como percebemos essas diferenças em nossa formação social. Não se trata, portanto, apenas de preconceito linguístico ou, como dirá Bagno (2003), não se trata de preconceito linguístico, porque, para ele, o preconceito linguístico não existe. De que se trata, então? Uma resposta pode ser encontrada nas próprias palavras do autor:

 

Se discriminar alguém por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc, já começa a ser considerado “publicamente aceitável” (o que não significa que essas discriminações tenham deixado de existir) e “politicamente correto” (lembrando que o discurso do “politicamente correto” é quase sempre pura hipocrisia), fazer essa mesma discriminação com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita “naturalidade”, e a acusação de “falar tudo errado” “atropelar a gramática” ou “não saber português” pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical. Por que será que é assim? (Bagno 2003: 16, grifos do autor).

 

Como se pode perceber, a questão não é meramente de ordem linguística. Diz respeito fundamentalmente à origem social dos usuários da língua. O preconceito é, antes de tudo, na visão desse autor, indiferença à dada classe social. Trata-se, pois, tão somente de “um profundo e estranhado preconceito social”.

 

Um modo interessante de pensar que a indiferença à linguagem do outro é também uma forma de indiferença social, é pensar a indiferença à linguagem do outro não apenas como manifestação de preconceito linguístico, mas também de intolerância linguística, como propõe Leite (2008), partindo-se da compreensão de que o preconceito e a intolerância linguísticos expressam uma atitude linguística (entendida como comportamento de um falante diante da linguagem de outro), assunto que não se limita ao domínio da língua. Por isso, Leite (2008: 14) ressalta que “estudar o preconceito e a intolerância é ir além de fatos e opiniões que dizem respeito à língua e sua realização”.

 

Para compreender melhor o modo de pensar a questão a partir da perspectiva de Leite (2008), convém tentar entender a diferença entre preconceito e intolerância linguísticos. É preciso esclarecer, antes de tudo, que, para focalizar o lado linguístico-discursivo desses fenômenos, Leite (2008) busca respaldo numa perspectiva filosófica dos conceitos de tolerância, propostos por Voltaire e Dascal, e de intolerância, postulados por Bobbio e Rouanet; conceitos que são adaptados para os estudos da linguagem por essa estudiosa. Na visão de Leite (2008: 24, grifos da autora), preconceito e intolerância linguísticos têm origem na rejeição à diferença.

 

O preconceito é a discriminação silenciosa e sorrateira que o indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro: é um não-gostar, um achar-feio ou achar-errado um uso (ou uma língua), sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o que viesse a ser bonito ou correto. É um não gostar sem ação discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário, é ruidosa, explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um discurso metalingüístico calcado em dicotomias, em contrários, como, por exemplo, tradição x modernidade, saber x não-saber e outras congêneres. (Leite 2008: 24, grifos da autora).

 

Como se observa, a intolerância linguística é uma forma de discriminação mais explícita, que se caracteriza como uma agressão verbal, e não atinge só a linguagem, mas também o próprio falante. É uma atitude de reagir agressivamente a uma ideia ou posição contrária sobre algum fato da língua expressa por um falante. A intolerância não é simples discordância, é julgamento da fala e do comportamento linguístico do outro, que, muitas das vezes, é também uma forma de desqualificar esse outro. De acordo com Leite (2008), essa desqualificação do outro pode ser por uma falha gramatical, por uma palavra mal escolhida, por causa do sotaque, ou por qualquer uso linguístico. A autora afirma ainda que os intolerantes associam as falhas do falante no uso linguístico a dificuldades de raciocínio, à falta de clareza na exposição das ideias, à dificuldade de pensar de modo organizado ou à incapacidade de pensar. Exemplos claros de manifestação de intolerância linguística são muitos dos discursos da mídia sobre o comportamento linguístico do ex-presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, em trechos como esses recortados de estudos desenvolvidos por Leite (2008) sobre preconceito e intolerância na mídia:

 

Ao se referir a ele [ao escritor cubano] num tom de superioridade afetada, o sr. Inácio provou a vulgar mesquinharia do seu próprio espírito de um caipira arrogante e presunçoso, a arrotar superioridade ante uma figura humana que transcende infinitamente o seu horizonte de compreensão.

Também não se pode esperar outra conduta de um homem que em três décadas de ascensão social ininterrupta se esmerou mais em fazer as unhas e em posar com ternos Armani do que aprender outro idioma, mesmo que fosse o seu próprio. Que esse indivíduo de envergadura microscópica tenha se tornado o ídolo de todo um povo, só mostra o quanto esse povo perdeu todo o senso de medida das virtudes humanas, já não sendo capaz de aprender sinais de grandeza de espírito e mérito, senão na forma dos mais postiços simulacros, midiáticos e eleitorais. (Leite 2008: 67, grifos da autora)[8].

 

Nesse recorte, de acordo com a argumentação da autora, fica clara a intenção do jornalista de desqualificar o ex-presidente Lula por uma suposta origem caipira deste. Esse dizer do jornalista expressa intolerância contra o ex-presidente Lula, na medida em que condena este quanto ao uso da língua (da própria língua!) e quanto a sua capacidade de emitir uma opinião sobre alguém, o que representa uma nítida tentativa desse jornalista de excluir da sociedade, pelo discurso, o outro, o homem caipira. Na “arte” de manifestar intolerância na mídia, além de alguns jornalistas como Olavo de Carvalho, João Gabriel de Lima, Clóvis Rossi e Reinaldo Azevedo, destacam-se também, aqui no Brasil, os “guardiões da gramática tradicional” como Pasquale Cipro Neto e Dad Squarisi, para citar dois nomes apenas.

 

Podemos mencionar também que há intolerância linguística (e não apenas preconceito) em discursos da mídia em relação aos linguistas, quando consideramos comentários como esse que foi recortado e analisado por Leite (2008: 101, grifos nosso) como manifestação de preconceito e de intolerância linguísticos:

 

Elas [as críticas ao professor Pasquale] ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha que os gramáticos preocupados com as regras da norma culta prestam um desserviço à língua. De acordo com essa tendência, o certo e o errado em português são conceitos absolutos. Quem aponta incorreções na fala da fala popular estaria, na verdade, solapando a inventividade e a auto-estima das classes menos abastadas. Isso configuraria uma postura elitista. Trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema do “povo”. O que esses acadêmicos preconizam é que ignorantes continuem a sê-lo. Que percam a oportunidade de emprego e a consequente chance de subir na vida por falar errado.[9].

 

Não só por desconhecer e/ou ignorar o que é “certo” e “errado” sobre fatos da língua (no caso em questão o português) na concepção dos linguistas, mas também por condená-los pelo fato de aceitarem a língua popular como uma forma de expressão perfeita dentro dos propósitos a que ela se presta, condenando, portanto, o entendimento construído por “esses acadêmicos”, fica clara a atitude de intolerância no uso, pelo jornalista, de expressões como “raciocínio torto” e “esquerdismo de meia-pataca” para referir-se aos linguistas, numa demonstração nítida de não aceitação do pensamento divergente, por conseguinte, também de indiferença ao outro.

 

Nesse cenário, há também, conforme nos mostra o estudo de Leite (2008), espaço para manifestação de intolerância linguística por parte do cidadão comum, que, não tendo o mesmo espaço que os jornalistas têm para usar a palavra no jornal, na revista e na televisão, usa, por exemplo, canais como “Carta de leitores” em jornais e revistas online para expressar atitudes de intolerância contra a linguagem usada pelo jornal e até mesmo contra os jornalistas, muitas das vezes, desqualificando redatores, que são taxados de ignorantes e analfabetos, em razão de cometerem “erros” de linguagem, que desvirtuam a língua (entendida como língua de prestígio).

 

Essa aparente consciência sobre nossa realidade linguística e sobre o que é certo e o errado na língua que se expressa no discurso do senso comum tem consequências para os estudos linguísticos, considerando que, no debate sobre fatos da língua, esse discurso do senso comum tenta negar a contribuição que o linguista tem dado ao seu campo de investigação. Essa negação se dá não só por esse discurso desconsiderar a voz do linguista, mas também por se mostrar intolerante em relação ao modo deste compreender a língua como fenômeno histórico-social, heterogêneo, mutável e sujeito à variação[10].

 

O entendimento do que seja intolerância pode ser sintetizado na ideia de não aceitação da opinião, do pensamento do outro; portanto, das diferenças. No sentido que lhe damos aqui é, pois, uma atitude de reagir agressivamente a uma ideia ou posição contrária sobre algum fato da língua expressa por outro, cuja finalidade é desqualificar esse outro, suas ideias, seu comportamento, sua atividade.

 

 

 

3. No dizer a língua no discurso do senso comum: a intolerância contra o linguista

 

Exposto o direcionamento teórico assumido neste trabalho, trataremos aqui de examinar o corpus selecionado. Antes de nos ater à análise propriamente dita, é importante detalhar, ainda que brevemente, alguns aspectos metodológicos deste trabalho. Cumpre dizer que se trata de um trabalho de natureza descritiva (Andrade 2010). O enfoque assumido é o qualitativo, considerando que partilhamos da visão segundo a qual o conhecimento científico em ciências humanas “[...] não pode basear sua construção sobre uma medida objetiva dos fenômenos estudados [...].” (Laville e et al. 1999: 35). Cabe ressaltar que o corpus se constitui de 157 comentários[11] publicados por leitores do blog do jornalista Reinaldo Azevedo em resposta à coluna intitulada “O livro dos erros - Tio Rei desanca um linguista importantíssimo da USP; e só não desenha porque deixou a tarefa para Picasso. Divirtam-se!” e coletados em 24 de junho de 2012, às 11h54min[12]. Tanto os comentários como a coluna do jornalista se inserem no contexto da acirrada polêmica (entre jornalistas e gramáticos, de um lado, e linguistas, de outro) em torno do livro didático para Educação de Jovens e Adultos (EJA) “Por uma vida melhor”, dos autores Heloisa Ramos, Claudio Bazzoni e Mirella Clet – aprovado e distribuído pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) a escolas públicas de todo o país –, acusado por gramáticos e jornalistas de fazer apologia ao “erro”.

 

Cabe ressaltar ainda que, para o tratamento analítico do corpus, optamos pela técnica de pesquisa não probabilística, centrando-nos numa amostragem intencional (Lakatos et al. 2008, 2010). Tendo em vista os propósitos deste trabalho, nossa amostra se constitui daqueles comentários em que se pode observar que os leitores manifestam intolerância contra os linguistas. Na direção de selecionar esses comentários, fizemos uma primeira leitura para conhecer o teor de cada um deles. Em seguida, fizemos uma segunda e uma terceira leitura dos comentários com a finalidade de identificar e destacar aqueles em que era possível observar dizeres que evidenciam intolerância contra os linguistas. Tendo identificado e destacado esses comentários, passamos à etapa da análise. Nessa etapa, procuramos examinar a posição expressa em cada comentário e observar, na materialidade textual, manifestações de intolerância contra o linguista. 

 

Apresentado o percurso metodológico, é importante começar a análise contextualizando a polêmica em torno do livro didático “Por uma vida melhor”, dos autores Heloisa Ramos, Claudio Bazzoni e Mirella Clet.

 

Essa polêmica surge na mídia impressa e televisiva a partir de 12 de maio de 2011. O que vimos, nos dias seguintes, em debates televisivos, artigos publicados em jornais e blogs, e notícias rádios e redes sociais, foi um embate entre, pelo menos, dois modos de conceber o fenômeno linguístico. De um lado, a posição dos “guardiões” do idioma, representados por gramáticos, jornalistas, alguns escritores e até mesmo políticos, de outro, basicamente uma corrente de linguistas, contando com o apoio de alguns poucos jornalistas e escritores[13].

 

Com base em uma página de um capítulo, intitulado “Escrever é diferente de falar”, que trata de variação linguística, o argumento sustentado pelos “guardiões” do idioma era que o livro didático estaria fazendo, para usar uma expressão de Reinaldo Azevedo, “apologia ao erro”, considerando, que “contém erros gramaticais”, “despreza a norma culta” e “ensina um português errado”, entre outros.

 

Com uma posição diferente, o músico, compósito, escritor e professor José Miguel Wisnik diz que o que se viu foi um coro de vozes que sentenciavam que o livro didático em questão sustentava uma descarada proposta de ensino do português pelo método invertido, preconizando o erro de concordância, o desvio sintático e o assalto à gramática” (Wisnik 2011: s. p.). Ele aponta ainda que a crítica ao livro se sustenta pela crença, de alguns, na “adoção do ‘lulês’ como idioma oficial da escola brasileira”. Houve até quem sustentasse que o livro representava uma apologia da ignorância, levada a cabo pelo “apedeuta” Lula[14], com sua chegada ao poder.  É isso que se pode entender desse excerto de uma das três colunas[15] de Reinaldo Azevedo

 

A chegada do Apedeuta ao poder, com a sua compulsão de fazer a apologia da ignorância, parece dar razão prática a essa estupidez. Até parece que a complexa equação econômica em que se meteu o petismo, tendo de conservar os fundamentos do governo anterior, foi comandada por prosélitos do analfabetismo.

 

Na contramão da posição dos guardiões do idioma e de discursos no tom desse que é acima transcrito, linguistas como Carlos Alberto Faraco passaram a manifestar a visão do campo dos estudos da linguagem sobre a questão em pauta. Esse linguista sustenta a falta de qualquer fundamento para a polêmica instaurada, dado, segundo ele, o desconhecimento, de jornalistas e gramáticos, da história e da realidade social e linguística brasileira:

 

O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.

Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.

Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da língua. [...]. (Faraco 2011: s. p.).

 

Colocando-se ao lado dos linguistas, entrou em cena também a voz das duas associações mais importantes de pesquisadores da área dos estudos da linguagem no país, a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) e a Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB). Em seus respectivos posicionamentos, assinados por suas respectivas presidentes, divulgados entre seus associados e tornados públicos via sites das duas entidades e outros canais pela internet, as duas associações procuraram reafirmar os pressupostos teóricos construídos pelas pesquisas na área da linguagem no que diz respeito a questões como variação linguística, norma, língua oral versus língua escrita, variantes de prestígio e variantes desprestigiadas e noção de erro, assumindo, como fez a ABRALIN, a defesa de que, no livro didático e nas posições reveladas nas falas dos linguistas, “em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. [...] entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais.” (Foltran 2011: s. p.), e repudiando a atitude dos veículos de comunicação frente à discussão e convidando, como expressou a ALAB, “seus membros a se posicionarem nestes veículos de forma mais efetiva e veemente sobre questões relacionadas a ensino de línguas e políticas linguísticas, construindo leituras mais situadas, persuasivas e plurilíngues” (Szundy 2011: s. p.).

 

Isso posto, cabe, finalmente, antes de passar ao exame dos comentários, explicitar que nosso olhar, neste trabalho, assume a intolerância contra o linguista, no discurso do senso comum, como uma atitude, expressa pelo leitor da coluna do blog supracitado, de reagir agressivamente a uma ideia ou posição contrária sobre fatos da língua expressa pelo linguista, cuja finalidade é desqualificar não apenas as ideias/opiniões/posições, mas também a atividade, o comportamento e até mesmo a própria figura desse profissional, numa demonstração de imposição das próprias convicções a outrem, a despeito da escuta e da aceitação do pensamento divergente. Nesses comentários[16], portanto, a intolerância contra o linguista assume feições que vão desde a não aceitação das convicções do linguista à desqualificação da própria figura desse profissional, senão vejamos abaixo:

 

1. Ferreira pena

 -

29/05/2011 às 10:06

Esse professor Fiorin, no mínimo tem doutorado, e pela idade que tem, não vai aprender a ser claro em suas exposições. São os nossos doutores, tortos para o lado esquerdo. O povo é sempre vítima de suas experiências e idiotia.

 

Constata-se, nesses dizeres, uma posição cujo fio condutor não é simplesmente discordar do que o linguista pensa sobre determinado fato da língua, tendo-se em mente que a discussão gira em torno da polêmica do livro didático taxado de fazer “apologia ao erro”. Nesse comentário, a atitude que se expressa não é a de dizer que a posição do linguista pode ser, por exemplo, equivocada ou inconsistente, ainda que seja a visão de um especialista no assunto. Pelo contrário, é uma posição de intolerância com o pensamento divergente, já que o que se pode observar aí é a própria incapacidade de respeitar e aceitar as posições assumidas pelo linguista, posto que tido como “tortos para o lado esquerdo”, como se a opção por uma linha partidária (a esquerda) fosse um fundamento para explicar algum fato da língua. Sem nem entrar no mérito de discutir a desqualificação com base na titulação do linguista (Fiorin), a atitude de intolerância é mais evidente ainda quando se constata uma tentativa de desqualificação da própria figura do linguista, considerado “idiota” e como alguém que, com suas experiências, é capaz de “vitimar o povo”, e, ainda, como alguém que, pela idade que tem, é incapaz de pensar e se expressar de forma clara. Como se ver, o discurso expressa claramente desrespeito ao outro, no que pode ser interpretado como manifestação de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, nesse caso, à comunidade de linguistas, representada aqui por Fiorin, alvo principal das críticas constantes na coluna do jornalista Reinaldo Azevedo.

 

A tentativa de desqualificação da própria figura do linguista pode ser observada também, no comentário abaixo, pelo uso de termos como “papagaio do que estrangeiro diz”, como evidência de atestar uma suposta incapacidade do linguista brasileiro de compreender nossa realidade linguística. Para além da adjetivação “medíocre marajá”, a desqualificação do linguista pode ser observada também pela associação que se faz com o espaço institucional de atuação desse profissional, tido como “antro inútil de burrive”.

 

2. Joseph

 - 

29/05/2011 às 9:45

Papagaio do que estrangeiro diz, esse aí deve se achar o Noam Chomski brasileiro. Mas é um medíocre marajá, pendurado no governo.

Tá na hora de fechar as escolas de humanas da USP, antro inútil de burrive.

 

Com esses comentários, os leitores do blog objetivam também desqualificar a atividade do linguista e seu papel no direito de dizer a língua, ao expressarem, por exemplo, que tal atividade é realizada por pessoas “de intenções duvidosas” (65. Natan Oliveira de Souza) e “mal-intencionadas” (8. Desconstruir o desconstrucionismo).

 

A negação da atividade do linguista assume tom agressivo mais acentuado, quando se leva em consideração comentários que situam os linguistas como parte de um movimento denominado “Marcha dos Petistas com Bagnistas pela Destruição da Língua e Liberdade” (141. Gabriel Birkhann), como se a contribuição desses intelectuais corroborasse para a destruição não só da língua, mas também da liberdade do usuário da língua, o que revela, além de desconhecimento do papel do linguista, uma tentativa de construir uma imagem de que o seu fazer contribui para que se destrua a liberdade. O tom ainda mais extremado de intolerância se verifica pela negação do direito do linguista dizer sobre fatos da língua:

 

3.  Essa questão nao pertence aos linguistas e sim humanas

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28/05/2011 às 22:37

Essa questão da ridicularização da lingua regional, tanto apontada, está sendo resolvida por pessoas erradas. É um problema que deve ser resolvido pelo professor de filosofia e geografia. Pergunte a qualquer bom professor da área e terá soluções melhores.

Agora o fator da ridicularização não é só da fala errada ou regional, não culta. Desde que rir faz parte do ser humano, há tempos que o riso e a ridicularização faz parte da sociedade humana. É uma forma que o homem encontrou para diminuir o outro, e não adianta nivelar por baixo e acabar com a gramática, com as conjugações, com análise morfológica (tão difícil), o homem sempre vai arrumar um jeito de ridicularizar o outro. Até mesmo se for inteligente, lindo e carismático. Me diga quem nunca foi ridicularizado na vida? Quem nunca sofreu algum tipo de preconceito na escola? Eu, por exemplo, sofri preconceito por causa do meu nome que não é muito bonito, e nome não é fácil de mudar, sofri preconceito por ser quietinha e tímida, e personalidade é difícil de mudar, ainda mais num mundo de falantes, quanto não sofre preconceito, só quem é para saber, mas a lingua sim, é só aprender. Será que é tão dificil assim aprender a lingua portuguesa?

Se os alunos ridicularizam a lingua regional, é questão de consciência, como aquela velha frase: “só se ama aquilo que se conhece”, que tal conhecer um pouco mais sobre as outras regiões, sua história, importância nós.

Exitem outros caminhos e a pior solução é essa: destruir a lingua culta!

 

Para além das concepções equivocadas sobre nossa realidade linguística e sobre suas implicações pedagógicas, como a que se verifica na pergunta “Será que é tão dificil assim aprender a lingua portuguesa?” e na afirmação “Exitem outros caminhos e a pior solução é essa: destruir a lingua culta!”, o comentário acima merece nossa atenção principalmente em função de sustentar a posição de que fatos da língua, como é o caso da questão da língua regional, estão sendo enfrentados por “pessoas erradas”, não constituindo, portanto, assunto para linguistas, mas para professores de filosofia e geografia, que teriam “melhores soluções” para o “problema”. Reforçadas ainda por discursos como “Esse ‘professor’ deveria ser filósofo e não ‘linguista’” (142. Antônio). Posições como essa revelam desrespeito pelo trabalho do linguista, já que seu trabalho é substituível pelo de outros profissionais, e sinalizam para uma ideia de “inutilidade” do saber produzido pelos linguistas, já que de interesse de outros profissionais, mesmo quando a questão em pauta está diretamente relacionada ao escopo de investigação da linguística, de modo que parece fazer sentido, desse ponto de vista, falar-se de crise de ‘serventia’ da linguística, como bem expressa Oliveira (2007).

 

O tipo de posição expresso nos dois últimos comentários deixa evidente a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa. No caso em pauta, pode-se dizer que a intolerância chega ao extremo de se emitir um atestado de incompetência ao linguista, no que se pode interpretar como um gesto de condenar a atividade da comunidade de linguistas. A própria existência da linguística como ciência da linguagem é questionada, para não dizer condenada, quando tomamos para reflexão comentários como os que reproduzimos a seguir:

 

4. beaujolais

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29/05/2011 às 14:26

Linguistica? No seculo XXI? Ai, ai.

 

5. Romane

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28/05/2011 às 22:30

É a lingüística achada na rua.

 

6.  Marcio

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28/05/2011 às 18:55

Quem precisa de linguistas quando temos o Grande Reinaldo Azevedo?!

 

Pelo que expressam esses três comentários, parece não fazer sentido falar de linguística no século XXI. Para que falar de linguística, se é uma linguística “achada na rua”, que, por suposto, não produz saber com seriedade, com rigor metodológico? Para que falar de linguística, se esta pode ser feita por “qualquer um” jornalista, no naipe do “Grande” Reinaldo Azevedo, baseada, de certo, em impressões pessoais?

 

Essa ordem de reflexão que tais comentários suscitam aponta para uma manifestação de profundo desrespeito pela linguística, pelo saber produzido nesse campo do saber, pela contribuição que ela tem dado para a descrição e a compreensão dos fatos da língua, e, porque não dizer, de suas implicações pedagógicas, logo se pode abdicar da contribuição do linguista pela contribuição de um jornalista, evocado como entendedor da questão, como alguém investido de mais autoridade no assunto.

 

Menosprezar, pois, a contribuição do linguista nesse debate representa uma forma de negar a relevância social da linguística, representa também, em última instância, uma forma de tentar impor irresponsavelmente opiniões infundadas, sem respaldo algum, a outrem, enquanto expressão de intolerância com o pensamento divergente, longe, portanto, de contribuir para se construir uma harmonia na diferença e para consolidar uma cultura do pluralismo, mesmo quando se trata do debate sobre questões de linguagem.

 

 

 

4. Conclusão

 

Se concordamos que, quando o assunto diz respeito a fatos da língua, nos deparamos ainda com pouca discussão e pouca conscientização no interior da esfera social, reconhecer as manifestações de intolerância que se expressam, seja no discurso da mídia, seja no discurso do senso comum (como foi o caso aqui), revela-se um debate necessário para estudiosos de um campo do saber que precisa se afirmar e se fazer respeitar nessa esfera social.

 

Foi, portanto, na direção de explicitar e combater manifestações de indiferença à figura do linguista e ao seu direito de dizer a língua, que trazemos o debate sobre a intolerância, comum no campo da filosofia, para as questões inerentes ao domínio dos estudos da linguagem.

 

Do que ficou demonstrado a partir dos estudos pioneiros de Leite (2003, 2005, 2008), a intolerância é um fenômeno que atravessa os discursos de diversos atores sociais, notadamente o discurso da mídia, esfera na qual atores como jornalistas e gramáticos tem espaço privilegiado para expressar e disseminar atitudes de preconceito e de intolerância linguísticos. Como decorrência disso, o discurso do cidadão comum se vê contaminado por discursos preconceituosos e intolerantes com o falar, com os falantes e, surpreendentemente, com a comunidade de estudiosos da língua, como buscamos evidenciar aqui.

 

Este trabalho tem como foco demonstrar que a intolerância contra o linguista é um fato concreto em nossos dias. Um fato que, no discurso do senso comum, configura feições que vão desde a não aceitação das posições assumidas pelo linguista à desqualificação da própria figura desse profissional. Isso representa, em última instância, a desqualificação da linguística como ciência da linguagem, já que tem seus pressupostos negados e é questionada em sua utilidade como campo do saber e em sua relevância social.

 

A não aceitação, no discurso do senso comum, do direito do linguista expressar uma compreensão mais adequada de nossa realidade linguística coloca, pois, a comunidade de linguistas sob a condição de precisar justificar sua relevância e, por que não dizer, justificar, para a sociedade, sua própria existência como produtora de um conhecimento sistematicamente construído, o que, a nosso ver, parece ser um contracenso, principalmente se levamos em consideração a proliferação, em nosso país, de programas de pós-graduação, de linhas de pesquisas e também de pesquisadores que se dedicam aos estudos sociolinguísticos, bem como a existência de associações como Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) e Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB), e se considerarmos ainda a multiplicação de eventos acadêmico-científicos e de revistas científicas, na disseminação da produção do saber produzido nesse campo.

 

Por que, então, estamos nessa condição incômoda de necessitar justificar para a sociedade a existência do linguista e de seu campo do saber? Queremos acreditar que, dentre outras razões, isso está diretamente relacionado ao fato de ainda não nos fazermos ouvir entre os não especialistas, ao fato de não darmos a devida visibilidade ao que temos produzido. É nessa direção que aponta Rajagopalan (2005), quando afirma que há um fosso entre o linguista e o leigo, resultado do desdém que a linguística moderna tem para com o leigo, o que, certamente, contribui para que o cidadão comum permaneça “impassível diante dos argumentos dos linguistas, os quais consideram muito acadêmicos ou frequentemente contrários ao seu próprio ‘senso comum’.” (Rajagopalan 2005: 88).

 

Se concordamos com a posição de Gimenez (2007), para quem a mídia contribui para a definição de quais questões de linguagem são relevantes, parece-nos imperioso pensar que uma saída mais concreta para o enfrentamento da crise de ‘serventia’ da linguística (Oliveira 2007) passa necessariamente por fazer com que questões de linguagem possam ocupar mais espaço na mídia, como têm defendido Rajagopalan (2005) e Gimenez (2007), e não apenas quando se trata de assuntos polêmicos, como aqueles evocados na introdução deste texto. Concordamos, portanto, com Gimenez (2007), quando defende que a mídia tem um importante papel na aproximação entre o linguista e leigo (o cidadão comum):

 

[...] a mídia pode dar uma contribuição importante ao diálogo necessário entre elaboradores de políticas, especialistas e população, ao tornar acessíveis os resultados de pesquisa. A mídia tem um papel importante no incentivo a essa aproximação na medida em que puder enquadrar questões vinculadas à língua de modo mais abrangente e público. (Gimenez 2007: 107).

 

Concordamos ainda com a ideia de que a comunidade de linguistas precisa buscar também essa aproximação, buscar, pois, estabelecer esse diálogo, “mediante o reconhecimento de que a publicação de textos na imprensa é tão importante quanto em periódicos científicos.” (Gimenez 2007: 107). Parece, contudo, que a preocupação com a valorização e a visibilidade do saber produzido mediante a publicação em eventos e em periódicos científicos de alto impacto tem contribuído para fazer com que permaneçamos invisíveis e inaudíveis para sociedade em geral, como afirma Faraco (2001), logo esse saber acaba, quase sempre, se tornando assunto de e entre especialistas.

 

Se queremos, contudo, superar esse quadro, defendemos aqui que a linguística brasileira precisa colocar a discussão em torno dos meios de divulgação do saber que o campo produz e dos interlocutores que pretende atingir como pauta de suas preocupações em sua agenda de prioridades desse início de século. Se começarmos a pensar nessas questões, teremos dado um importante passo na direção de trazer nova vida e novas perspectivas a esse campo do saber e, por conseguinte, pensar a “construção da sociedade dos direitos linguísticos, do plurilinguismo, do respeito à diversidade, da gestão democrática dos conhecimentos gerados em todas as línguas do mundo.” (Oliveira 2007: 90) e criar condições favoráveis a uma “cultura da tolerância”, em benefício do estabelecimento de uma coexistência dinâmica e do engajamento em um processo de enriquecimento mútuo.

 

 

 

5. Referências bibliográficas

 

Andrade, Maria Margarida de. 2010. Introdução à metodologia do trabalho científico, 10ª ed., São Paulo, Atlas.

Bagno, Marcos. 2003. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira, São Paulo, Parábola Editorial.

Bagno, Marcos. 2006. Nada na língua é por acaso, Presença Pedagógica, 12 (71): 22-29.

Bagno, Marcos. 2012. Preconceito contra a lingüística e os linguistas. Disponível em: http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=59. Acesso em: 08/06/2012.

Faraco, Carlos Alberto. 2001. Guerras em torno da língua: questões de política linguística, em C. A. Faraco (org.), Estrangeirismos: guerras em torno da língua, 2ª ed., São Paulo, Parábola Editorial: 37- 83.

Faraco, Carlos Alberto. 2007. Por uma pedagogia da variação linguística, em D. A. Correa (org.), A relevância social da Lingüística: linguagem, teoria e ensino, São Paulo, Parábola Editorial: 21-50.

Faraco, Carlos Alberto. 2011. Polêmica vazia. Gazeta do povo, Curitiba, 19 maio. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1127433. Acesso em: 13/07/2012.

Fiorin, José Luiz. 2002. Os Aldevandros Cantagalos e o preconceito linguístico, em F. L. da Silva e H. M. de M. Moura (orgs.), O direito à fala: a questão do preconceito linguístico, Florianópolis, Editora Insular: 23-37.

Foltran, Maria José. 2011. Língua e ignorância, Linguasagem, São Carlos, 17ª ed.; Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao17/linguaeignorancia.php>.  Acesso em: 13/07/2012.

Gimenez, Telma. 2007. A relevância social dos estudos da linguagem, em D. A. Correa (org.), A relevância social da Lingüística: linguagem, teoria e ensino, São Paulo, Parábola Editorial: 94-109.

Lakatos, Eva Maria e Maria de Andrade Marconi. 2008. Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisa, amostragens e técnicas de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados, 7ª ed., São Paulo, Atlas.

Lakatos, Eva Maria e Maria de Andrade Marconi. 2010. Fundamentos de metodologia científica, 7ª ed., São Paulo, Atlas.

Laville, Chistian e Jean Dionne. 1999. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Tradução de Heloísa Monteiro e Francisco Settineri, Portalegre, Artes Médicas, Sul Ltda.; Belo Horizonte, Editora UFMG.

Leite, Marli Quadros. 2003. Intolerância e linguagem: um estudo de caso, Revista Anpoll, 14: 175-188.

Leite, Marli Quadros. 2005. Intolerância lingüística na imprensa, Linha D’Água, 18: 81-96.

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Oliveira, Gilvan Müller de. 2007. A ‘virada político-lingüística’ e a relevância social da lingüística e dos linguistas em D. A. Correa (org.), A relevância social da Lingüística: linguagem, teoria e ensino, São Paulo, Parábola Editorial: 79-93.

Rajagopalan, Kanavillil. 2005. Language politics and the Linguist, Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, 5 (1): 83-96.

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Wisnik, José Miguel. 2011. Dona norma, O globo, 21 maio. In: Dossiê Por uma vida melhor: intelectuais, pesquisadores e educadores falam sobre o livro. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/dossie%20-%20por%20uma%20vida%20melhor%20final_30_06_2011.pdf>. Acesso em 13/07/2012.

 




[1] Com o título “No embate de vozes sobre língua(gem): a intolerância contra o linguista no discurso do senso comum”, este trabalho foi apresentado em sessão de comunicação oral no I Simposium Internacional EDISO - Estudios sobre discurso y sociedad, realizado nos dias 15 e 16 de maio de 2014, em Servilla, Espanha.

[2] Da coleção “Viver, aprender”, o livro didático “Por uma vida melhor” é composto de 18 (dezoito) capítulos, dos quais apenas 04 (quatro) são dedicados à disciplina português.

[3] Para os propósitos deste trabalho, concebemos como cidadão comum aquele indivíduo que faz parte da coletividade social, por assim dizer, os falantes em geral, mais precisamente aquele que não é estudioso da língua, condição que lhe permitiria alcançar certa especialidade nos debates do campo da linguística.

[4] Fiorin (2002) fala de uma linguística do senso comum, que, nas palavras dele, se constituiria das ideias de língua que têm os falantes em geral, as quais se expressam por julgamentos de valor investidos de componentes ideológicos, afetivos e estéticos. Concordando com esse pensamento do autor, optamos, contudo, pelo termo discurso do senso comum, por compreendermos que se trata de um termo mais corrente e mais consensual.

[5] Como os leitores do blog, ao expressarem suas visões sobre fatos da língua – que são evocados no texto do jornalista – falam da posição de um cidadão comum, não de especialista em linguística ou de estudioso dessa área, seus comentários são tomados aqui como representativos do discurso do senso comum. Eventuais comentários de leitores que se apresentam como pesquisadores ou estudiosos da linguística não serão considerados como representativos do discurso do senso comum, já que se pressupõe certo nível de especialidade na área.

[6] Conforme informações disponíveis na enciclopédia Wikipédia, em 24 de junho de 2012, Reinaldo Azevedo é tido como um jornalista e articulista, de orientação política conservadora, que costuma se autodefinir como de direita, liberal e democrática. Exerceu cargos em importantes veículos de imprensa do país e foi articulista da revista Veja, onde mantém hospedado um blog, intitulado blog do Reinaldo Azevedo, que tem em torno de 150.000 acessos diários. Nele escreve principalmente sobre política, mas também sobre economia, religião, literatura e assuntos diversos (questões de língua, por exemplo, como mostra a coluna aqui referida).

[7] A opção pelos comentários dos leitores ao referido blog se justifica em razão de acreditarmos que, numa situação dessas, é possível colher impressões mais consistentes e fiéis ao pensamento dos falantes em geral que em situações de realização de entrevista ou de aplicação de questionário, em cujas situações componentes como presença do pesquisador, obrigação de responder perguntas indesejáveis, limitações de espaço e tempo, entre outros, acabam interferindo na qualidade das informações prestadas.

[8] O trecho é um recorte de texto do articulista Olavo de Carvalho publicado na coluna “Tendências e Debates” do jornal Folha de S. Paulo, em 16 de outubro de 2002. O texto na íntegra encontra-se disponível no seguinte endereço: <http://www.olavodecarvalho.org/semana/10162002fsp.htm>.  Acesso em: 13 jun. 2012.

[9] O trecho é um recorte de matéria de capa intitulada “Falar e escrever – eis a questão”, da revista Veja, de 07 de novembro de 2001, assinada pelo jornalista João Gabriel de Lima. O texto na íntegra encontra-se disponível no seguinte endereço:<http://veja.abril.com.br/071101/p_104.html>. Acesso em: 13 jun. 2012.

[10] Não dedicaremos aqui um tópico para discutir especificamente essa compreensão de língua, por entendermos que, assim como a discussão sobre norma e variação, se trata de uma questão fartamente explorada na literatura da área. Sendo assim, deixaremos para retomar a compreensão construída por estudiosos da temática, ao longo dessa exposição, apenas quando isso se fizer necessário para um melhor entendimento da questão da intolerância contra o linguista.

[11] Embora nosso estudo não seja quantitativo, parece-nos pertinente dizer que mais de 90% dos comentários coletados revelam um posicionamento favorável à posição expressa na coluna do jornalista Reinaldo Azevedo, embora algumas dessas posições não expressem atitudes de intolerância ou de preconceito linguístico.

[12] Fizemos questão de destacar a data e o horário, porque, como a coluna está online ainda e aberta a novos comentários, é possível que o leitor deste trabalho, caso tenha a curiosidade de consultar tal coluna, se depare com número maior de comentários que o informado em nosso corpus. Recortamos, pois, do blog, em 24 de junho de 2012, todos os comentários à referida coluna, os quais foram postados de 28 de maio de 2011 a 13 de junho de 2011.

[13] Num Dossiê elaborado pela “Ação Educativa”, que coordenou o livro didático “Por uma vida melhor”, constam artigos produzidos, em sua maioria, por linguistas. É possível constatar também nesse dossiê o nome de um ou outro jornalista e escritor que saiu na defesa do livro didático.

[14] Apedeuta, que significa ignorante, sem instrução, sem estudo, é um dos adjetivos usados sempre pelo jornalista Reinaldo Azevedo para se referir ao presidente Lula.

[15] Na primeira coluna, datada de 14 de maio de 2012, o ataque do jornalista se dirige mais diretamente a Heloisa Ramos, uma dos três autores do livro, e ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) e, por tabela, pode-se dizer, à política do presidente Lula e do Partido dos trabalhadores (PT).

[16] Como os comentários são de domínio público e, como sabemos, no mundo virtual, o indivíduo assume identidades (no caso, posta com uma identificação) que nem sempre correspondem ao mundo real, optamos por preservar a identificação dada pelo indivíduo que postou o comentário, de modo que acreditamos estar respeitando os princípios que sustentam a ética na pesquisa. Destacamos ainda que, nos comentários a serem analisados, o numeral que antecede a identidade do indivíduo que posta o comentário trata-se de número usado pelo próprio blog para indicar a ordem em que os comentários foram postados, numa disposição (de cima para baixo) que coloca os mais recentes em primeiro plano.

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