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vol.31 número1RUBÉN MEDINA (coord.). Perros habitados por las voces del desierto. Editorial Aldus, Ciudad de México, 434 pp. 2013. ISBN 978-607-7742-89-0 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
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Lingüística

versão On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.1 Montevideo  2015

 

  • Lingüística

    Vol. 31-1, junio 2015: 179-184

    ISSN 2079-312X en línea

    ISSN 1132-0214 impresa

     

     

    JOSÉ LUIZ FIORIN. 2015. Argumentação.

    São Paulo: Contexto. 271p. ISBN 978-85-7244-886-4

     

     

    RESENHADO POR Lucía Teixeira De Siqueira e Oliveira

    Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

    luciatso@gmail.com

     

     

    O novo livro de José Luiz Fiorin se desenvolve em torno de duas ideias centrais. A primeira, expressa logo no prefácio e desenvolvida ao longo dos capítulos, afirma a dimensão argumentativa de todo discurso. Qualquer texto ou enunciado é compreendido como um jogo de forças entre vozes que se contrapõem, ainda que não estejam explicitadas as diferentes posições ideológicas e discursivas em confronto. Se todo discurso é dialógico, ele argumenta sempre em favor de determinada posição, quer convencer de sua verdade, justiça, beleza, imparcialidade etc. A essa ideia se articula outra, a da necessidade de herdar a retórica para o estudo da argumentação, por meio de uma abordagem discursiva. Não se trata de simplesmente renomear ou reconceituar procedimentos, nem de considerar que a retórica seria precursora de um Bakhtin, por exemplo, para citar um teórico caro ao autor do livro de que aqui se fala. Trata-se de compreender o modo como os estudos clássicos já consideravam a natureza antifônica de todo discurso, para descrever os mecanismos que “possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatário crer naquilo que foi dito”. Trata-se, ainda, de “analisar o modo de funcionamento real da argumentatividade, ou seja, o dialogismo presente na argumentação.” (p.26)[1].

     

    Para desenvolver esses dois eixos de reflexão, que têm como mesmo fundamento a compreensão da heterogeneidade constitutiva de todo discurso, Fiorin acolhe a contribuição de Bakhtin, serve-se de fundamentos da análise do discurso francesa e da semiótica e expõe, com a erudição e clareza particulares que caracterizam seu estilo, os princípios, conceitos e termos da retórica clássica, incorporando sobretudo as lições de Aristóteles, e ampliando a consulta aos desdobramentos mais recentes, representados na obra de Perelman e Tyteca. O tema já havia sido explorado pelo autor, na obra Figuras de retórica, publicada um ano antes (São Paulo: Contexto, 2014), em que analisa a contribuição dos estudos clássicos, mostrando por que teria sido a retórica relegada a um simples estudo de figuras, para então apresentá-las como “operações enunciativas para intensificar o sentido de algum elemento do discurso”, o que lhes restitui sua “dimensão argumentativa” (FIORIN, 2014, p.10)[2].  

     

    Nos últimos anos, vem sendo esta a tônica da atuação do professor, conferencista e escritor José Luiz Fiorin: a abordagem da argumentação, com base na dimensão discursiva dos procedimentos retóricos. Nestes dois livros que sistematizam sua contribuição ao tema, o autor, ao ensinar ao leitor que é preciso recuperar a tradição e ressignificá-la, propõe um movimento de reverência e desconstrução muito próprio de todo pensamento que compreende a história como uma sucessão de ondas que se formam das mesmas águas, sendo no entanto cada uma nova e única em sua aparição singular.

     

    O título do livro de 2015, Argumentação, em sua simplicidade e economia, associado ao nome do seu autor, convida o público de linguistas e estudiosos de Letras de modo geral à leitura, já se sabendo que haverá, na obra, todas as virtudes do conhecimento largo e profundo do autor, apresentado em linguagem dotada de clareza e didatismo. Mas o conteúdo do livro interessará a um público mais amplo, constituído de jornalistas, advogados, publicitários e todos os estudiosos de áreas de atuação em que a força da palavra é voltada para a persuasão e o convencimento. Fiorin não só analisa procedimentos e estuda a constituição discursiva deles, apresentando exemplos variados que vão de situações do dia a dia ao mais erudito dos autores literários, mas mostra as fragilidades de certos mecanismos, ensina os contra-argumentos, explica as partes de um texto argumentativo e articula sua organização à do texto dissertativo. Em síntese, o autor prepara o leitor tanto para compreender a atividade de argumentar quanto para exercê-la com mais competência.

     

    O livro, constituído de capítulos em grande parte já publicados esparsamente em meios variados, ganha unidade na orientação teórica que liga todas as partes a duas questões centrais a que já nos referimos: a do caráter argumentativo de todo enunciado e a da necessidade de herdar a retórica para o estudo da argumentação, submetendo-a a uma abordagem discursiva.

     

    A parte I intitula-se “Problemas gerais de argumentação” e está dividida em quatro capítulos. No primeiro, “Argumentação e discurso”, o autor reconhece a contribuição de Ducrot e Ascombre para o estudo da argumentação, mas associa a concepção deles a uma abordagem linguística, de orientação pragmático-semântica. Recusando a microanálise linguística feita pelos dois estudiosos, muito voltada para os conectores que realizam a orientação argumentativa dos enunciados, Fiorin explica que um estudo discursivo deve considerar a “organização das unidades discursivas transfrásticas e o modo de funcionamento real do discurso, ou seja, seu caráter dialógico” (p.17). Para fazer isso, o autor revisita a tradição clássica e mostra que Aristóteles divide os raciocínios em necessários, aqueles em que, sendo verdadeiras as premissas, a conclusão não pode não ser válida, e preferíveis, os que apresentam conclusão possível, provável, plausível, mas não necessariamente verdadeira, porque as premissas sobre as quais se assenta não são logicamente verdadeiras. Os necessários são estudados pela lógica e demonstram verdades. Os preferíveis são estudados pela retórica e destinam-se “a persuadir alguém de que uma determinada tese deve ser aceita, porque ela é mais justa, mais adequada, mais benéfica, mais conveniente e assim por diante” (p.18). Para compreender os mecanismos de persuasão, são estudados pelo estagirita e recuperados por Fiorin os três elementos do discurso: o enunciador, constituído como um éthos, o enunciatário, dotado de um páthos, e o discurso propriamente, o lógos, elementos retomados no capítulo 4. O ponto central do capítulo 1 é a demonstração do caráter discursivo do estudo que se fará e, para isso, o autor recupera as cinco operações da retórica antiga (inventio, dispositio, elocutio, actio, memoria) e observa que, com o tempo, elas se separaram, de modo a que, de um lado, figurasse uma teoria da argumentação (topologia; operações da invenção e da disposição, com os elementos destinados a persuadir e convencer) e, de outro, uma teoria das figuras (tropologia; operação de elocução). Começa-se assim a pensar em duas retóricas: a da argumentação e a dos tropos, sendo esta última associada ao ornatus, que, visto como embelezamento do texto, por meio do ornamento criado pelas figuras, acabou perdendo sua função argumentativa. Fiorin tratou muito bem de reincorporar essa função de avivar ou abrandar o sentido, por meio de mecanismos de concentração e expansão semânticas, no livro já citado, Figuras de retórica. O capítulo 1 é concluído pela reafirmação de que “todos os discursos são argumentativos, pois todos eles fazem parte de uma controvérsia” e “são uma reação responsiva a outro discurso” (p.29), o que reafirma os princípios teóricos de base da obra.

     

    O capítulo 2 da primeira parte, “Argumentação e inferência”, trata daquilo que está além da superfície do texto, os conteúdos implícitos depreensíveis por meio de inferências de três tipos: lógicas, decorrentes de implicações necessárias entre proposições; semânticas, constituídas por pressupostos e subentendidos; e pragmáticas, decorrentes das regras de uso da linguagem em situações de troca verbal. O autor fala rapidamente das inferências lógicas, detendo-se nos outros dois tipos.

     

    A diferença entre pressuposto e subentendido é explicada com clareza, por meio de exemplos ligados a situações cotidianas e da diferença entre os dois polos da enunciação. A pressuposição é instalado no discurso pelo enunciador e, segundo o autor, “aprisiona o enunciatário numa lógica em que o posto é proposto como verdade, enquanto o pressuposto é imposto como verdade” (p.37). O subentendido, de responsabilidade do enunciatário, é “uma informação cuja atualização depende da situação de comunicação” (p.39). O pressuposto, explica o autor, pode muitas vezes expressar preconceito. Dizer, por exemplo, “ele é ecologista mas é sensato” parte do pressuposto de que os ecologistas são insensatos. O subentendido deve ser interpretado pelo enunciatário e permite que o enunciador fuja da responsabilidade, por exemplo, de uma afirmação maliciosa. O exemplo dado pelo autor é de uma reportagem em que se insinuava a corrupção de determinado político, sem afirmá-la explicitamente. A conclusão de que o político seria corrupto seria de responsabilidade do leitor e não do autor do texto.

     

    Para tratar da inferência pragmática, Fiorin acolhe a contribuição de Grice e explora as máximas conversacionais, que segundo ele, não são “regras para pautar a comunicação”, como querem os críticos, mas “princípios de interpretação”, “condições gerais de uso da linguagem, que permitem fazer inferências pragmáticas” (p.41). Elas são organizadas de acordo com quatro categorias: “a da quantidade das informações dadas, a de sua verdade, a de sua pertinência e a da maneira como são formuladas” (p.40).  

     

    O capítulo tem o objetivo de mostrar que o processo de leitura implica a realização de inferências e são elas que fazem progredir o discurso. Para isso, são usadas formas de raciocínio desenvolvidas conceitualmente no capítulo 3: dedução, indução e analogia. O autor introduz o capítulo com os princípios da lógica clássica que regulavam os tipos de raciocínio (o da identidade, o da não contradição e o do terceiro excluído), para alertar que “a linguagem humana não funciona segundo os princípios da lógica clássica” (p.48) e mostrar, por meio de exemplos dos discursos jornalístico e poético, como os tipos de raciocínio podem funcionar a partir de contradições. Ao explicar a dedução, raciocínio que vai do geral ao particular, Fiorin analisa o silogismo, que Aristóteles considerava “o tipo perfeito do raciocínio dedutivo” (p.48), já que uma conclusão necessária se segue a algo anteriormente enunciado. Mostra que a dedução pode também operar com o provável, como no caso do entimema. Sobre o raciocínio indutivo, que vai do particular ao geral, o autor mostra que ele será completo ou amplificante e exemplifica com pesquisas de opinião que, como as pesquisas experimentais, baseiam-se no “sofisma de indução da enumeração insuficiente” (p.61), a partir do qual se apontam soluções generalizantes. É interessante pensar aqui que o autor não toma como exemplo um texto propriamente, mas uma prática semiótica, um conjunto de procedimentos que se congela como práxis social e é regulado por procedimentos discursivos e mecanismos de argumentação. Também para falar de analogia, o autor vai usar como exemplo uma prática de pesquisa, aquela que permitiu a Alexander Fleming descobrir a penicilina, reafirmando o alcance da argumentação para além do texto.

     

    No último capítulo da primeira parte, apresentam-se os fatores da argumentação, éthos, páthos e lógos. O éthos, compreendido como imagem do enunciador, explicita-se na enunciação enunciada e corresponde à imagem do autor, um autor discursivo, definido pela totalidade da sua obra e depreensível nos enunciados concretos. As marcas do éthos encontram-se nas recorrências do discurso: “na escolha do assunto, na construção das personagens, nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem usado, no ritmo, na figurativização, na escolha dos temas, nas isotopias, etc” (p.71).  Fiorin usa aqui o exemplo muito bem achado dos poetas da segunda geração romântica, que têm “um corpo jovem, magro, pálido; um caráter oscilante, que vai da melancolia à paixão, que se exprime numa enunciação também cambiante, que varia do tom entediado ao tom apaixonado” (p.71). Esse tipo de análise tem grande contribuição a oferecer em relação, por exemplo, ao estudo dos estilos de época, uma vez que opera com as recorrências discursivas concretas registradas num corpus expressivo. Daí também se pode partir para a análise de discursos como o jornalístico (de uma época, de um jornal, de um tipo de jornal etc), religioso (de religiões particulares), ou o de alguma profissão (estilo do médico, do médico patologista, do médico cirurgião etc).

     

    Para analisar o páthos do enunciatário, o autor mostra que ele “faz parte do sujeito da enunciação” (p.74), é também produtor do discurso, já que “bem argumentar implica conhecer o que move ou comove o auditório a que o orador se destina” (p.73). O autor examina falas do ex-presidente Lula, mostrando que “parece ter uma percepção muito aguda da imagem de enunciatário a que se dirige” (p.74), razão provável da eficácia de sua argumentação, comprovada no apoio popular de que desfrutou em seu governo, sobretudo das classes menos favorecidas.

     

    Na relação que se estabelece entre um éthos e um páthos em torno do lógos, o autor enumera e comenta alguns procedimentos, como o da escolha dos argumentos em função do auditório, mostrando a diferença entre demonstração (relação necessária de uma conclusão com premissas) e argumentação, que “trabalha com aquilo que é plausível, possível, provável” (p.77).  Por isso a argumentação opera com o preferível, isto é, com juízos de valor. “Na argumentação não se opera com o verdadeiro e o falso, mas com o verossímil, com aquilo que não é evidente por si” (p.77). Para falar de argumentação e linguagem, o autor usa o exemplo original da força argumentativa dos mecanismos de formação de palavras, indicando que um sufixo com valor pejorativo, por exemplo, pode argumentar contra uma pessoa ou situação. É outro exemplo original e oportuno, que inclui mecanismos estruturais da língua e sua contraparte semântica como fatores de argumentação no discurso. Mostra, ainda, que a ambiguidade e a vagueza da linguagem podem funcionar como mecanismos argumentativos. A simples escolha entre palavras como militante e terrorista ou ativista e vândalo aponta a inscrição ideológica do discurso, explicita o ponto de vista do enunciador e impõe ao texto valor argumentativo. Por isso, o autor segue mostrando que objetividade, imparcialidade e neutralidade são fatores impossíveis de obter, “pois a linguagem está sempre carregada dos pontos de vista, da ideologia, das crenças de quem produz o texto” (p.83). No discurso, criam-se efeitos de sentido, que não correspondem a fatos, dados ou verdades, mas a efeitos construídos com a matéria significante da linguagem, destinados a argumentar a favor, por exemplo, da objetividade de uma reportagem ou da imparcialidade de uma fotografia.

     

    Ainda nesse capítulo, o autor dedica espaço à reflexão sobre o politicamente correto. Ele avalia que sugerir o uso de linguagem politicamente correta é gesto que se funda na crença de que existiriam termos neutros ou objetivos, corretos portanto. Trata-se de acreditar que “alterando-se a linguagem, mudam-se as atitudes discriminatórias” (p.87). Fiorin vai mostrar, com o caso de palavras que teriam raízes etimológicas em negro ou judeu, como denegrir e judiar, que “não se remotiva, por um ato arbitrário de vontade, o que a língua desmotivou. Os sentidos mudam e não se volta atrás para restaurar o que a história da língua apagou” (p.90). A discussão é interessante e o autor a retomará adiante.

     

    Encerra o capítulo com uma explicação sobre o valor argumentativo do acordo prévio em torno de valores e lugares.  Parte-se sempre, na interlocução, de um acordo, de um ponto de partida comum, que pode ser dado, existente, ou instalado no discurso, funcionando como recurso argumentativo. Fiorin enumera e analisa os lugares que Perelman e Tyteca sistematizaram a partir de Aristóteles – da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência, da pessoa – e acrescenta o lugar da justa medida. Em nossa sociedade, diz ele, “são considerados negativos o excesso e a insuficiência, enquanto a justa medida é vista como termo positivo” (p.102). Aponta, então, para procedimentos discursivos de regulação dos valores no discurso, tal como formulados pela semiótica tensiva de Fontanille e Zilberberg: a mistura e a triagem. O primeiro é regulado pelo regime da participação, o aspecto contínuo e o andamento rápido, sendo da ordem do permitido. Seu regime é o dos valores de universo e seus conteúdos são difundidos na extensidade. O segundo procedimento, a triagem, é regulado pelo regime da exclusão, o aspecto descontínuo e a desaceleração, pertencendo à ordem do interdito. Fiorin usa os exemplos dos valores democráticos e aristocratas, para associá-los, respectivamente, à mistura e à triagem.

     

    A parte II, “Os argumentos”, abre-se com pequena introdução em que o autor retoma Perelman e Tyteca, para dizer que eles classificam os argumentos em dois tipos: os que se valem dos processos de ligação e aproximam elementos distintos, estabelecendo entre eles uma relação de solidariedade, e os que se servem de processos de dissociação e separam, dissociam, desunem elementos de um todo. Os esquemas de ligação estão na base da construção de três tipos de argumentos: os quase lógicos, os que se fundamentam na estrutura do real e os que fundam a estrutura do real. Os conteúdos organizam-se em pequenos capítulos, divididos em itens e subitens que exploram tipos de argumentos e formas de argumentar e contra-argumentar, a partir das noções de ligação e dissociação.

     

    São apresentados, primeiro, os argumentos quase lógicos, como a definição, a tautologia, a comparação, a reciprocidade, a transitividade, a inclusão, a divisão; em seguida, aparecem os argumentos fundamentados na estrutura da realidade, como aqueles estruturados por relações de causalidade, de sucessão e de coexistência; por último, entre os argumentos criados por ligação ou associação, estão os que fundamentam a estrutura do real, como o exemplo (que funda uma regra), a ilustração (que reforça uma tese), o modelo e o antimodelo.

     

    Os argumentos advindos de dissociações, que indicam a ausência de ligação entre conceitos ou a indevida vinculação entre eles, são analisados pelo autor a partir de pares opositivos como essência e aparência e ilustram as distinções estabelecidas seja entre conceitos, como palavra e fato, seja entre dados do enunciado, que pode ser indicada pela citação, entre aspas, das vozes que falam.

     

    A parte II se encerra com um novo bloco de capítulos sobre outras técnicas argumentativas, entre as quais se arrolam os recursos aos implícitos, ao lugares-comuns, aos paradoxos e ironias, aos excessos e à distorção do ponto de vista do adversário.

     

    Ressalte-se, nessa parte, a farta, oportuna e bem analisada exemplificação, que contempla Camilo Castelo Branco, Vieira, Camões, Rabelais, Castro Alves, Fernando Pessoa, Aluísio de Azevedo, Agata Christie, mas também argumentos do senso comum, exemplos de jornais e revistas e análises de fatos da vida social do país, como a campanha do desarmamento, a luta pela legalização do aborto, a discussão sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, para citar alguns. Os exemplos reforçam o caráter didático da obra e ilustram não só o vasto conhecimento literário do autor, mas também sua escuta atenta do mundo.

     

    Na parte III, que trata da organização do discurso, o papel dos exemplos se intensifica, porque o autor faz análises completas de vários trechos citados. Começa pela apresentação dos gêneros retóricos, segundo Aristóteles, e, em seguida, analisa um sermão de Vieira em sua organização, mostrando as partes: exórdio ou proêmio; narração; confirmação; digressão e peroração. Em novo capítulo, articula-se o conhecimento da dispositio clássica à estruturação de um texto escolar muito comum, a dissertação. Analisa vários exemplos, mostrando os tipos de argumento e o modo de organização do discurso em três partes, introdução, desenvolvimento e conclusão, na parte que talvez ofereça a maior contribuição didática da obra.

     

    A conclusão da obra traz a apresentação de alguns conceitos da teoria semiótica e funciona como uma espécie de justificativa tardia das posições do autor. É um recurso interessante: ao marcar os capítulos com pouca nomenclatura da teoria e mesmo com pouca explicitação de que a utiliza, o autor conduz o leitor pelos caminhos já consagrados da retórica clássica, ajustando-a e redimensionando-a aos termos e princípios do que chama genericamente de “teorias do discurso” ou “abordagem discursiva”. No entanto, é a semiótica que fundamenta a argumentação do autor, nas passagens em que trata da enunciação, dos valores disseminados no discurso, dos temas e figuras, de oposições fundamentais, de triagem e mistura. No capítulo final do livro, a semiótica aparece então explicitamente, para exemplificar “como se pode descrever, com uma metalinguagem precisa nos quadros de uma teoria do discurso, os diferentes procedimentos argumentativos. (p.265)”. O recurso foi engenhoso e o espectro de leitores pode ter sido ampliado. Além disso, a generalização da abordagem do autor em torno de teorias do discurso permitiu-lhe ampliar o leque de referências e apresentar a herança da retórica a partir das contribuições também de Bakhtin e da análise do discurso francesa, particularmente em relação ao conceito de heterogeneidade discursiva, de Authier-Revuz.

     

    Da mesma maneira que iniciamos esta resenha com dois princípios gerais que organizam o livro teoricamente, terminaremos com duas ideias que inscrevem o ponto de vista do autor no discurso. Logo no prefácio, ele diz que a argumentação é “parte da marcha civilizatória do ser humano, da extraordinária aventura do homem sobre a Terra. Ao abdicar do uso da força para empregar a persuasão o homem se torna efetivamente humano” (p.11). Mais adiante, vai dizer: “A retórica é, de certa forma, filha da democracia. Nas ditaduras, não se admitem pontos de vista divergentes. É na democracia que floresce a contradição, base da retórica” (p.26). Instaladas na argumentação do autor como pressupostos compartilhados com o leitor, as duas afirmativas consolidam a ideia de que o livro representa o trabalho não de um linguista, embora o autor seja um dos mais reconhecidos linguistas brasileiros, mas de um humanista. Preocupa-se ele, mais que com a linguagem, com o modo como a linguagem se inscreve na vida, sua força de ato e de mecanismo social, sua qualidade de ser identidade e diferença e de poder, com isso, estar em toda parte, a qualquer instante em que um homem fale. É desse homem que fala que Fiorin se ocupa no ótimo livro agora entregue ao público leitor, razão pela qual ele ultrapassa as fronteiras dos estudos linguísticos para fazer uma reflexão sobre a natureza humana e sua vocação de existir na linguagem.

     

     

  • [1] As citações do livro resenhado (FIORIN, 2015) serão indicadas apenas pelo número da página.

  • [2] FIORIN, José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014.
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