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vol.31 número1TRABALHO DE FACE E ESTIGMA NO ENCONTRO INTERACIONAL MISTO: UM ESTUDO DE POLIDEZ APLICADO AO CONTEXTO PRISIONALESTRELLA MONTOLÍO DURÁN (ed.). Hacia la modernización del discurso jurídico. Barcelona: Publicacions i Edicions de la Universitat de Barcelona. 224 pp. 2012. ISBN 978-84-475-3609-2 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.31 no.1 Montevideo  2015

 

Lingüística

Vol. 31-1, junio 2015: 147-161

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

Entre o riso e a derrisão, é um traço. Duas diferentes maneiras de ler (a partir de) uma charge polêmica

Between laughter and derision, it’s a trace. Two different ways of reading (FROM) a polemical cartooN

 

 

Aracy Ernst-Pereira

UCPel

aracyep@terra.com.br

 

Marchiori Quadrado de Quevedo

UCPel/IFSul

marchioriquevedo@gmail.com

 

 

A partir da análise de uma polêmica charge de Caruso a respeito da tragédia do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, interior do RS, este artigo visa a refletir acerca do estatuto da imagem na Análise de Discurso, da aplicação de conceitos da teoria - mormente os de SD e enunciado (visual) - à materialidade visual e à materialidade das diferentes leituras que aquele objeto textual suporta. Foram observadas e analisadas duas leituras antagônicas quanto aos elementos que compõem a charge. A análise realizada defende que uma das interpretações se baseia em um funcionamento falacioso.

 

Palavras-chave: discurso; imagem; leitura

 

Keywords: discourse; image; reading.

 

Based on the analysis of a polemical Caruso’s cartoon about the tragic fire at Kiss nightclub in Santa Maria, RS, the aim of this article is to reflect on the status of the image in Discourse Analysis, the application of theoretical concepts - especially discursive sequence and (visual) statement - to the visual materiality and materiality of different ways of reading permitted by that textual object. Two antagonic readings were analyzed and observed according to the main elements found in the strip. The analysis argues that one interpretation is based on a fallacious operation.

 

 

(Recibido: 24/1/14; Aceptado: 31/7/14)

 

 

Considerações iniciais – O artista errou a mão? O fato, a charge (e a) polêmica

 

A charge à cuja análise procederemos alude à tragédia ocorrida no centro da cidade de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, um domingo, a boate Kiss foi consumida em um incêndio causado por um artefacto pirotécnico utilizado na apresentação da banda Gurizada Fandangueira. Da plateia que assistia ao espetáculo e que em muito excedia a lotação do local, 239 morreram (carbonizados no local ou de complicações decorrentes de queimaduras e inalação de substâncias tóxicas) e dezenas precisaram recorrer à internação em hospitais da cidade e da capital, Porto Alegre.

A repercussão na imprensa e nas redes sociais na internet foi intensa, questionando e responsabilizando desde o dono do estabelecimento aos Poderes Públicos municipal e estadual pelo falho modelo de fiscalização e punição. A tragédia chamou à atenção da opinião pública o risco que correm os frequentadores de estabelecimentos cujo PPCI (plano de prevenção e controle de incêndio) seja inexistente ou falho. Posta na pauta da mídia, tal preocupação gerou uma onda de fiscalização que atingiu o funcionamento de estabelecimentos comerciais em outras cidades do país, restando muitos interditados pela falta de alvarás (situação análoga à da boate), e ensejou discussão inclusive do modelo de cobrança de consumo nas casas noturnas.

O trágico acontecimento teve mais que o contorno de uma tragédia anunciada, acalentada na triste conjugação entre o descomedimento do lucro visado e a precariedade da estrutura de fiscalização. Como se pôde apurar pelo depoimento dos sobreviventes, o durante da tragédia teve seu quinhão de responsabilidade homicida. Muitas das vítimas não puderam ou tiveram dificuldades em sair da boate Kiss, em virtude de os seguranças, que até então não haviam percebido (a dimensão d)o incêndio, tentarem barrar a multidão apavorada, exigindo-lhe a apresentação da comanda. Não o bastante, a largura não era suficiente para dar vazão ao público obviamente desesperado. A boate tornava-se uma prisão no mesmo compasso em que o fogo a consumia. Esse aspecto parece haver sido decisivo ao traço do cartunista, conforme podemos perceber em sua charge[1].

 


Figura 1 – Charge polêmica

 

A charge do cartunista Caruso veiculada no Jornal O Globo causou polêmica em virtude de retratar o acontecimento (para muitos impróprio para uma charge) e por apor à tragédia a figura da presidenta Dilma (o que muitos creditaram a uma crítica rasteira ao governo federal). Um colega do cartunista, o jornalista Ricardo Noblat, publicou em seu blog um texto de defesa ao colega. O que se vê no texto de Noblat é a sustentação de uma leitura favorável ao cartunista, que assim teria feito uma crítica ao terrível fato e ao em que se transformou aquele local. Essa leitura é brandida em contraponto a uma outra leitura, realizada, para o autor, por aqueles que não entenderam nadinha. Noblat põe, dessarte, a questão em termos de uma leitura única, situando-a no confronto entre a leitura verdadeira e leituras erradas, sem explicitar os critérios que o levam a definir a primeira e as outras, mas se permitindo ilações acerca de quem são os maus leitores[2] e do que os motiva a assim opinar. A seguir, apresentamos o texto[3].

 

Os que criticam a charge do Chico Caruso postada, hoje, aqui perderam o bom senso, a se levar em conta o que escrevem. E a violência com o que o fazem.

O que a charge tem de chocante, de desrespeitosa com quem quer que seja?

Dilma pôr as mãos na cabeça e dizer "Santa Maria" é um absurdo? Só enxerga nisso uma crítica a presidente os fanáticos políticos de plantão. Aqueles que politizam tudo. Os que alugaram sua pena e sua mente a interesses partidários.

Dilma não faz política quando grita "Virgem Maria". Nem a charge sugere isso. Revela seu desespero. Sua inconformidade. Que é nossa também.

Ela não tem culpa alguma pelo que aconteceu. De resto, foi solidária com todos os que sofrem com a tragédia. Foi pessoalmente à Santa Maria. Sinceramente se comoveu.

O que tem mais na charge?

A boate transformada numa prisão? As janelas gradeadas? As mãos dos que ali ficaram retidos clamando por ajuda?

Mas não foi mesmo numa prisão em que a boate se transformou? Numa armadilha? Numa ratoeira?

Perdão, mas a maioria que execra a charge não entendeu nada direito. Nadinha.

 

O propósito de nosso artigo é ultrapassar o plano dos gestos de interpretação contrapostos nas leituras A e B’, deslocando o foco para a compreensão do processo que autoriza tanto uma quanto outra leitura. Para tanto, partiremos do pressuposto de que ambas as posições entenderam alguma coisinha do texto. Como sustentação, recorreremos ao dispositivo teórico-analítico da AD, a partir de cujos procedimentos de interpretação construiremos um gesto de análise que nos encaminhe para a conclusão de qual leitura nos parece mais defensável e, precipuamente, explicite por quê. 

 

 

1               O objeto textual charge

 

Derivada do francês charger (em francês, carregar, exacerbar) e do italiano caricare (igual tradução), o termo charge produz um efeito de memória ainda atualizado nos processos de textualização chárgicos hodiernos: o forte tom de crítica (ou sarcasmo), próprio ao humor, e a preocupação com o contexto social e político a partir do qual produzia sua crítica. Flôres (2002) entende a charge como

 

documento histórico, como repositório das forças ideológicas em ação, mas, também, como espelho de imaginário de época [...] que ao mesmo tempo projeta e reproduz as principais concepções sociais, pontos de vista, ideologias em circulação (2002: 10).

 

Situada – aliás, como todo texto – no jogo de relações das diversas forças sociais, entre cujos interstícios se situa pelo funcionamento da indústria da informação, a charge torna-se um dos suportes de opima administração da produção e leitura dos fatos, visto que oferece uma leitura rápida, irônica e supostamente subversiva do quadro de forças. Não surpreendentemente veiculada junto aos editoriais ou páginas de opinião e contraposta à suposta neutralidade da notícia, a charge é o espaço da subjetividade marcada, da crítica a um só tempo conveniente, mas pela qual o jornal não se responsabiliza, visto que a delega ao sujeito empírico que a produz, como se sua circulação naquele veículo de imprensa fosse mero efeito da propalada pluralidade de opiniões da sociedade.

Atualmente, há quem faça distinção entre o cartum (texto atemporal, em que geralmente há crítica de costumes) e a charge (texto mais sensível às condições enunciativas de produção, especialmente às temporais). A charge, embora não necessariamente esteja vinculada ao campo discursivo político – ela também pode fazer crítica de costumes –, dele mormente extrai ou produz os fatos cuja leitura proporá. O quadro de forças sociais cuja leitura a charge propõe é tratado de forma diversa nas charges de crítica política e nas de crítica de costumes. Enquanto nesta a cena ou fato é atemporal – e comumente produza uma espécie de empatia com a posição leitor, visto que concerne a saberes e temas próprios à forma-sujeito histórica a que pertencem as posições autor e leitor –, naquela o corte é mais evidente.

Na charge política, o quadro de forças sociais é recortado temática e temporalmente, procedimento que, de um lado, responde à gênese da charge intimamente ligada ao contexto jornalístico e que, de outro, sustenta o gesto de interpretação feito por um sujeito histórico; sujeito este que também é um recorte desse mesmo quadro social. Se na charge de costumes, a forma-sujeito histórica funciona muitas vezes à guisa de uma instância compartilhada entre os diversos sujeitos, na charge política o corte é mais visível e preciso. O gesto de interpretação evidencia mais o corte e o confronto que o sustentam.

Disso advém, na charge de costumes, um efeito atemporal – visto que a mudança da forma-sujeito é mais diluída ao longo da história e comumente essa forma se nos apresenta como um sempre-já imutável – e, na charge política, uma certa perecibilidade, visto que ela produz sentidos a partir de um referente factual, cuja materialidade no traço nem sempre é reconhecida pelo leitor distanciado temporal ou espacialmente do fato. Romualdo (2000: 21), aliás, chega a falar de uma “limitação temporal” dessa charge.

Sob a égide da “leitura rápida”, determinada por seu consumo ou circulação social, a charge é constituída propositivamente com o que poderíamos chamar de um texto mais enxuto, com poucos, mas suficientes recursos de linguagem a sustentar o gesto de leitura pretendido ou antecipado pelo lugar de A. Nesse sentido, embora qualquer texto seja lacunar, parece-nos que a charge é um dos em que isso se torna mais evidente, visto que posto (ou posto que visto) à superfície. Cabe ao sujeito histórico que, naquela situação enunciativa, ocupa a posição-leitor restaurar o processo discursivo e mobilizar, corroborando ou refutando, o trabalho de leitura proposto pelo produtor da charge.

Em vista do entrelaçamento recorrente no texto chárgico entre os campos discursivos político e humorístico, facilmente notamos uma tentativa de administração da leitura que oscila no modo como antecipa o lugar de B e no modo como prevê ou determina a relação do leitor com os sentidos propostos, situando-o em uma zona de tensão entre relações parafrásticas e polissêmicas (Orlandi 1999): entre a reversibilidade do tipo polêmico – com que o campo político materializa seus dizeres – e o jogo que vaza as fronteiras verbo-visuais do tipo lúdico – em que o campo humorístico mormente funciona.

 

 

2               Um exercício teórico-analítico com a imagem em AD

 

Ao tratar de imagens, a discussão parece estar restrita a dois tipos: as imagens que vemos mediante um artefacto cultural (uma foto, por exemplo) e as que produz (ou se produzem no) nosso pensamento (que correspondem a recortes no Imaginário; por exemplo, as diversas imagens que se tem de mulher). Se as segundas nos parecem bem contempladas na teoria da AD, a partir do conceito de formações imaginárias – que, em um contexto enunciativo, submete um imaginário heteróclito a uma divisão objetiva, avalizada por uma posição-sujeito –, nas primeiras parece-nos ressoar alguma sorte de neopositivismo.

Isso nos parece bastante evidente quando se considera que a imagem que vemos a partir de um dispositivo textual (uma charge, um gráfico, etc.) é fruto daquilo a que Pêcheux (1995) aludiu como consenso intersubjetivo. O autor desenvolve com maestria os mecanismos que produzem as materialidades desse consenso e os submete ao rigor teórico da AD, para restringi-los à condição de um efeito. Assim, pressupor que todos veríamos a mesma imagem, embora produzíssemos leituras diferentes, parece-nos refutar a proposição pêcheuxtiana. Antes mesmo de discutirmos gestos de interpretação de uma charge, nosso objetivo é problematizarmos a partir das seguintes perguntas: de fato, vemos a mesma charge ou a mesma imagem? Admiti-lo não seria o mesmo que assumir no que tange ao visual o pressuposto de transparência e da literalidade que negamos à escrita?

Com base nisso, consideramos rechaçável o mal disfarçado neopositivismo do constructo de uma imagem neutra anterior à divisão do trabalho de leitura, à qual se sobreporiam opacidades. O pressuposto de que partimos aqui é de uma divisão radicalmente constitutiva, realmente inscrita na objetividade material contraditória de todo produto do discurso (como o são as imagens), e de uma assunção da opacidade do texto imagético que pretira, sob o tratamento teórico de um consenso, a denegação de uma posição interpretativa.

Dito isso, cumpre observar que, quando vemos todos a mesma imagem (a foto de um automóvel, por exemplo), o consenso não está na existência do objeto fora do discurso (um indivíduo humano sem qualquer contato com a “civilização” poderia ver outra coisa ou simplesmente não vê-lo), mas sim na existência do objeto a partir do nosso olhar (ainda que ele se suporte no objeto empírico), como gesto de interpretação que alude, na condição de objeto teórico da AD, não a um ato do indivíduo, mas sim a uma prática escópica de significação e a um sujeito inscritos na história. Quando Lacan (1979) afirma que não somos nós que vemos o objeto, mas é o objeto que nos olha, podemos concluir, de acordo com Davallon (1999), que,

 

se a imagem define posições de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos, isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade – um acordo – de olhares: tudo se passa então como se a imagem colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista (1999: 31).

 

Imagem e sujeito histórico performativizam-se, produzindo a evidência de um para o outro. Assim sendo, o gesto de olhar, e mesmo o anterior, o de ver, é fundamentalmente um trabalho de leitura e, como tal, é realizado sempre por um sujeito histórico, atualizado no sujeito empírico/indivíduo, a partir de uma dada posição de interpretação e sob dadas condições de produção. Não se dá sustos no Real nem se flagram as próprias coisas. Esse trabalho de leitura que performativiza a imagem sobre a imagem empírica mobiliza uma memória discursiva, a qual incide em um dado feixe de representações do Imaginário. Conforme Pêcheux, a memória discursiva é o que,

 

face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos' (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível (1999: 52).

 

Ao analista, a imagem não apenas funciona, conforme afirma Pêcheux, como “um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar” (1999: 51), mas também como uma materialidade a ser desopacizada mediante esse investimento de significação que Mariani (1998) chamou um “trabalho de leitura” (apud Fonseca 2008). No sintagma utilizado pela autora, reverbera uma posição materialista, a partir da qual a palavra trabalho remonta à (re)produção/transformação de relações sociais, de um Imaginário. Nesse ponto, a positiva ambiguidade de imagem se nos revela produtiva, visto que assumem um só corpo material, na casa de espelhos de sua equivocidade, a imagem como objeto empírico, a imagem como leitura e a imagem como representação.

Assim sendo, não pode(ria) se restringir nosso objeto analítico à mera imagem empírica, produto das trocas sociais, sob pena de adentrarmos áreas outras. Essa importa às ciências da forma ou à sociologia, por exemplo. Em uma perspectiva discursiva, parece-nos importar a materialidade (no caso, visual) do sentido, para o que concorre nosso gesto de análise a partir de procedimentos que interpretem a relação do sujeito, leitor ou analista, com a imagem qua acontecimento a ser lido (visto). O que doravante chamaremos imagem é, incontornavelmente, um trabalho/investimento de significação sempre sobreposto à imagem-OE. No caso de análise em tela, se o objeto social é uma charge, o objeto analítico são as duas ou mais imagens que se a ela sobrepõem.

Para atingir esse objetivo, o dispositivo teórico-analítico deve atravessar a imagem em sua opacidade historicizad(or)a, reparando-a[4] no interior do seu trajeto de leitura, na memória em que se estabelece para aquela imagem-texto a condição do legível (visível) em relação ao próprio legível (visível). Parece-nos dessarte não que todos vejamos a mesma imagem, mas sim que, algumas ou muitas vezes, estamos todos sujeitos ao mesmo trabalho de leitura. Somos atualizações, em forte relação parafrástica, de uma forma-sujeito histórica.

A concepção de imagem da qual partimos nos parece atender aos princípios da Análise de Discurso, uma vez que convoca o sujeito (em sua acepção histórica, discursiva) à produção da imagem, sendo-lhe radicalmente constitutivo. Se, em termos empíricos ou nos alhures teóricos, podemos postular um sujeito individual ou social que recebe uma imagem, não nos parece ser este o objeto da Análise de Discurso na tradição de Michel Pêcheux. A imagem nunca é exterior ao sujeito, mas sim a materialidade de um jogo de sentidos entre os lugares dos sujeitos colocados em A e em B, o produto discursivo de uma relação de forças entre esses lugares.

Desse modo, gerada e gerida no e pelo discurso, devemos admitir que o que a imagem “mostra”, o seu “visível”, não lhe é próprio ou intrínseco, mas sim (sobre)determinado pela formação discursiva a partir da qual o sujeito histórico a produz (o que o leitor recebe é a imagem objeto empírico). Se a Formação Discursiva (FD) determina o que pode e deve ser dito (Pêcheux 1995), por extensão devemos admitir que ela também determina o que pode e deve ser visto, e isso só significa pelo confronto com a presença-ausente do que ali não está, do que ali não é ou não pode ser visto. Para bem além de uma mera decodificação, o que vemos funciona por sua relação com o que (não) podemos ver e com o que em cujo lugar está. É disso de que trata a leitura na condição de objeto teórico-analítico da AD.

Longe de ser um enquadramento consensual e pacífico do olhar, uma imagem é produzida, antes de mais nada, a partir da projeção, em um suporte textual, de um olhar sobredeterminado, que busca administrar (ainda que em um processo falível) – a um outro olhar, outro sujeito –, essa tensa zona de (in)visibilidades. O que entendemos próprio ao dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso – e o a que nos propomos aqui – é produzir um gesto de análise que se baseie em desnaturalizar a ordem simbólica (Barthes 1984), deslocando a superposição da imagem à imagem-OE, desacomodando assim um jogo proposto dos sentidos.

Por fim, cabe considerarmos que a imagem empírica é, para a imagem, não só objeto de troca social mas também o produto de uma operação de textualização, a qual, como recordamos a partir de Orlandi (2005), é condição sine qua non para a circulação dos discursos. Tal como o texto verbal, a imagem – malgrado, em seu âmbito discursivo, seja tecida em sua opacidade e equivocidade –, submete-se, na condição de efeito-texto, a efeitos que obliteram tais condições de produção. Assim, também a imagem se nos apresenta sob o efeito de completude, de fechamento, de coerência, de transparência, de inequivocidade etc. Sem jamais desprezá-la e sem jamais tomá-la como fim ou como véu, compreender um texto implica atravessar a fantasia ideológica dos efeitos do seu processo de textualização. Para tanto, recorremos a uma teoria, que, conforme Pêcheux (1995), visa à construção de procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito.

Para analisar os componentes da charge, recorreremos à noção de SD tanto para o que integra o verbal (as “sequências discursivas”) quanto para o que integra o visual (que chamaremos de “secções discursivas”). O uso do sintagma “secção discursiva” parece-nos apropriado por duas razões: alude, pela sigla, a uma das noções mais produtivas da AD e reitera que o analista, longe de perceber a verdade do texto, produz tão somente um gesto de interpretação, constitutivamente eivado pelo dispositivo analítico. Interpretação (e a descrição sobre a qual se baseia) é uma secção.

Outra noção bastante produtiva em AD é a de enunciado, sequência linguística de extensão igual ou superior à da frase que, em uma rede com outros enunciados, significa em sua dimensão histórica (Courtine 2009). Dado que a charge não se compõe apenas de enunciado verbal, mas também de SDs (secções discursivas) visuais, sentimos necessidade de recorrermos à noção de enunciado visual, para dar conta analiticamente dos diversos elementos que as compõem.

A fim de precisarmos o que concebemos aqui como “enunciado visual”, é mister recorrermos a  Foucault (2002), para quem um enunciado não é “nem sintagma, nem regras de construção, nem forma canônica de sucessão e de permutação, mas sim o que faz com que existam tais conjuntos de signos e permite que essas regras e essas formas se atualizem” (2002: 100), estabelecendo o que o autor chama de “jogo enunciativo”, produzindo “efeitos de séries e sucessões”, distribuindo “papéis” e “funções” (2002: 114). Parece-nos, em breve cotejo, que o enunciado a que alude Pêcheux corresponderia ao que Foucault trata por “formulação enunciativa”.

Courtine (2009) revisitará a noção de enunciado na AD, constituindo uma producente divisão. A noção foucaultiana de enunciado será trazida à AD como “elemento de saber de uma FD” e será representada pela notação [E]. Esse [E] aludirá à dimensão vertical do discurso (interdiscurso) e constituirá uma "forma [ou] esquema geral, que governa a repetibilidade no seio de uma rede de formulações" (2009: 99). Essa rede compor-se-á de enunciados [e], isto é, formulações enunciativas que atualizarão no nível do intradiscurso os saberes [E] da FD. O dizível da FD, ou a sua rede de formulações possíveis, terá como notação: R[e].

 

 

3               As diferentes maneiras de ler (uma charge): posições de leitura

 

A polêmica suscitada pela charge põe em evidência as diferentes maneiras de ler, os diferentes gestos de interpretação sustentados por posições-sujeito diferentes a partir de um mesmo texto. Para delinearmos o que pretendemos desenvolver em seguida, consideremos que haja precipuamente duas leituras: uma que chamaremos leitura A, a leitura publicamente assumida pelo chargista Chico Caruso e corroborada pelo jornalista Noblat, e que notaremos como Ia(r); e uma leitura outra, que chamaremos B’ (feita pelo lugar ocupado pelos que se sentiram ofendidos pela charge) e que notaremos como Ib’(r).

Optamos por notá-la como B’, porque o lugar enunciativo de B é heteróclito, visto que é virtualmente ocupado tanto pelos que corroboram quanto pelos que repugnam o jogo de humor proposto por A. Assim, parece-nos que B’ seja a melhor notação, pois materializa não apenas uma deriva do gesto de leitura, mas também um contraponto à antecipação da posição leitor (B) pelo lugar de A.

O nosso ponto de falha analítica é a impossibilidade de saber se isso é de fato um malogro enunciativo (até que ponto a leitura B’ é realmente imprevista?) ou se, ao contrário, faz parte de uma estratégia de paralipse: a formulação da crítica à presidenta, dissimulada no rastro ideológico da suposta neutralidade da sua alusão. Em outras palavras, a despeito da pretensa ingenuidade dos efeitos de sentido não pretendidos (e entendidos com má-fé, segundo A), paira a suspeita de um maquiavélico paradoxo: simular-se-ia não prever a deriva para de fato materializá-la (e assim desconstituí-la enquanto tal) em suporte à estratégia de derrisão. Nosso ponto de falha, afinal, gira em torno do estatuto dessa deriva: seria mera deriva do sentido (como sói nos mal entendidos) ou seria a deriva da deriva (a deriva que autorretroage e assim desconstitui o estatuto do qual se baseara para funcionar)?

Já nos cá parece relativamente fácil situar precisamente um dos pontos de dissenso (malgrado não o principal, consoante pretendemos demonstrar). Na leitura de A, o efeito de sentido proposto ou previsto passa pela formulação (verbo-)visual da tragédia e do horror da presidenta Dilma. Já para B’, o sentido desliza para a construção de uma responsabilização, ou ao menos implicação, de Dilma quanto à tragédia. Para que analisemos as ferramentas textuais com que são materializados os sentidos da leitura A e da leitura B’, e para que nos posicionemos quanto a que leitura se encontra mais bem fundamentada e defensável à luz da teoria, procedamos à nossa configuração metodológica.

Em consideração ao objeto textual charge – que comumente disciplina o gesto de leitura de sua proposição a partir de uma legenda ou título verbal –, em consideração aos blocos distintos[5] de significações a que correspondem a imagem da boate e a da presidenta, e à ordem ocidental de leitura (da esquerda para a direita), organizaremos nosso dispositivo metodológico em torno de três SDs para o texto em tela. É entre tais secções que pretendemos reparar a rede de relações de aliança, oposição, desigualdade/subordinação e aparente neutralidade e, precipuamente, reparar o processo discursivo que rege a materialidade dos gestos de leitura.

Em SD1, temos uma formulação verbal: “– Santa Maria!”, que funciona à guisa de uma contextualização. Nesses termos, essa formulação verbal administra o gesto de leitura do lugar de B (não necessariamente B’), produzindo e coligindo as evidências com as quais paramentará a operação de leitura. Embora ela esteja disposta depois da imagem do incêndio (se pensarmos na ordem ocidental de leitura: de cima para baixo), o ponto de basta (Lacan 1979) que ela instaura retroage significando os elementos anteriores, situando-os de uma dada forma (e não de outra) na zona de (in)visibilidades.

Isso porque tal formulação verbal não representa apenas a estratégia do lugar de A de antecipar a posição sujeito leitor do objeto textual charge e a sua busca por elementos verbais ou visuais a partir de cujo concerto se possa (re)conhecer um sentido. Em termos mais específicos da AD, essa formulação verbal produz um efeito de memória suficiente para trazer a lume para o leitor as condições enunciativas de produção, dentre elas especialmente o referente, no caso o factual (como bem poderia ser uma cena prosaica, no caso das charges de costumes). Desenvolveremos a materialidade desse fato mais adiante, visto que é em torno dele que gravita um dos dissensos das leituras A e B’.

Ainda em SD1, não nos parece desprezível a presença do travessão, marca do discurso direto que ressignifica a formulação verbal da pureza do funcionamento contextualizador para a zona séptica dos discursos. Afinal, – Santa Maria! não é mais tão somente a pista textual da configuração da charge, mas a pista discursiva (Ernst-Pereira 2009) de uma tomada da palavra que se materializa em um gesto de outorga dessa palavra. A presidenta é convocada à cena da charge não apenas pelo efeito de sua presença visual ali, nem apenas pela formulação do seu desespero (no enunciado [e] das mãos à cabeça ou no dos três traços à frente do rosto), mas também pela exclamação que foi posta em funcionamento no seu dizer (em nenhum momento factual, Dilma foi surpreendida fazendo tal exclamação diante da tragédia). A materialidade dessa tomada da palavra associada à materialidade da tomada da imagem por certo significam.

Em SD2, temos a formulação visual de uma jaula, em cujo interior muitas pessoas estão sendo incineradas. Vários enunciados visuais [e] constroem o Enunciado [E] de horror da tragédia à que o texto remete. As labaredas e a fumaça escura e espessa concertam a grande proporção do incêndio. As grades, o teto preto (ou chamuscado) fechado e as mãos segurando a grade são enunciados [e] que, em relação de aliança, formulam o [E] de prisão, ou mesmo armadilha (como leu o jornalista).

O enunciado, de discutível necessidade ou bom-senso, das bocas escancaradas [e] produz o [E] de horror das centenas de vítimas, assim como produz o da despersonalização, da anonimação das vítimas. Os enunciados [e] da jaula e da multitude em concerto com os Enunciados [E] do confinamento, do desespero e, por fim, da desantropomorfização dos corpos[6] produz um sentido de denúncia no mesmo compasso em que produz um sentido de desumanização das vítimas. O que discutiremos mais adiante é se essa desumanização advém do fato ou do traço.

Em SD3, temos a formulação visual de uma pessoa que, por enunciados [e] como os sapatos de salto, percebemos ser uma mulher. Há o apagamento do rosto (cuja negação do gesto de dar a ver pelo produtor da charge retomaremos mais adiante), todavia os enunciados [e] do cabelo curto em cor castanho claro, do perfil retilíneo do corpo, da roupa feminina executiva e do casaco vermelho (pelo efeito de memória que administra, associando a personagem ao PT), produzem o reconhecimento do personagem político: a presidenta Dilma. As suas mãos à cabeça e os três traços [e] constroem o [E] de estupefação ou mesmo horror, em relação de aliança com SD1.

Finda essa breve descrição, tornemos a ela para problematizá-la de forma menos escandida. Discriminando, na superfície do texto chárgico, tais SDs, percebemos que elas sustentam, cada uma a seu modo ou no modo de cada concerto, diferente(s) leitura(s). A formulação verbal de SD1, como referimos anteriormente, se superficialmente funciona parecendo-nos cumprir um esperado papel de contextualização, também funciona de outra forma, estabelecendo um ponto de divórcio entre as leituras A e B’. Isso porque a expressão “Santa Maria!” não apenas produz o efeito memória que localiza a tragédia – mobilizando a memória afetiva por se tratar de uma tragédia próxima a nós[7] –, mas também produz um efeito interjetivo pelo funcionamento do sintagma em uma frase exclamativa em efeito sinonímico a “Virgem Maria!”, normalmente utilizada para expressar espanto, terror.

Se esse é o funcionamento da formulação verbal na leitura A – e tudo nos aponta para que A assim a entenda –, também nesse ponto reside o dissenso. O funcionamento polissêmico de Santa Maria – como toponímico e como frase optativa – materializa, para além da função referencial da linguagem, a atenção às possibilidades de significação do sistema, fazendo funcionar um discurso lúdico, que, se é próprio ao objeto textual charge, não vem a sê-lo quando se trata de temas tabus com forte comoção popular.

Ao contra-argumento de que, sem essa formulação verbal, se perderia a referência factual e assim malograria a produção de sentido, objeta-se a réplica fácil no esteio da pista das alterações contextuais de Orlandi (1999). Basta que cogitemos a ausência de pistas linguísticas do discurso direto (e mesmo o concerto com a formulação visual de Dilma ou de qualquer outra pessoa), para observarmos que dessarte não passaria por SD1 o funcionamento lúdico da charge. Ademais, é justamente a tomada da palavra sem lastro factual (Dilma jamais o dissera) que materializa a opção pelo lúdico, pelo humorístico, ao encenar a fala da presidenta (recurso, aliás, típico do texto chárgico). Para B’, a assunção deliberada do funcionamento polissêmico, empurrando os limites da linguagem, acaba por produzir um efeito em alguma (grande) medida derrisório, inadmissível para ela no que tange ao fato aludido. Como tragédias (especialmente as nossas tragédias) são uma espécie de tema tabu ao humor, o lugar de B’ produz a leitura de um sentido ofensivo.

A SD2 produz significação a partir do efeito de memória que gera (a gravidade do incêndio que acometeu as dependências da boate Kiss) aliado a um efeito de crítica a fatores que contribuíram à extensão da tragédia, como, por exemplo, a dificuldade relatada pelos sobreviventes de sair do estabelecimento. Há na superfície significante da charge as materialidades visuais desse efeito de memória, os detalhes factuais na cronologia do acontecimento trágico. Enquanto para A, tal fenômeno de significação materializa tão somente o atravessamento do discurso jornalístico no objeto textual chárgico (e que responde à genealogia da sua circulação social), para B’ ganha certo ar de crueldade; muito menos pela referência ao fato e muito mais pelo funcionamento detalhista dessa alusão, pelos pormenores cruciantes da perda do ente querido. Desenvolvamo-lo.

Para B’, a charge é ofensiva à medida que expõe aqueles que perderam os seus entes queridos ao alijamento da sua defesa psíquica de evitação do Real, o cerne duro do trauma (Žižek 2010). Inscrevendo o trauma (e o escrevendo) no Simbólico, a charge perpetua no traço a impossibilidade do contorno, negando aos familiares e amigos, pela proximidade temporal entre a tragédia e a publicação, a operação de foraclusão e a estruturação da fantasia que preservaria um quinhão de esperanças mitigadoras de sofrimento, comumente formuladas, em situações análogas, à guisa de uma autossugestão de que os jovens talvez não tenham sofrido tanto (visto que teriam morrido desmaiados pela inalação da fumaça tóxica) ou de que o acontecimento responde a um desígnio divino.

No entanto, quando materializada no traço (de humor?), a rudeza do acontecimento nega-lhes o polimento da linearidade amparadora dos discursos de extrusão da dor. A visibilização do horror funciona, pela negação linear desses discursos (e seus saberes místicos ou enunciados confortadores), como um acinte para B’. Na crueza da cena retratada, o célebre caso freudiano do Pai, não vês que estou queimando? torna-se, para os que com ela se ressentem, a repetição angustiante de um pesadelo sem saída. O despertar é sempre mais difícil quando se sonha acordado um pesadelo desse quilate.

Já para A, o [E] de prisão não produz efeito derrisório ou humorístico, porque apontaria[8] para um efeito de crítica à direção da boate, que demorou a perceber a magnitude do que ocorria. Ultrapassada a restrição factual, a crítica ali presente é atinente a uma denúncia também de ganância e desleixo, visto que essa direção, segundo o que até o momento foi apurado, não teria formulado ou seguido estratégias de prevenção e controle de incêndios, bem como teria superlotado o local. Isso posto, temos a jaula [e] e o desespero [E] como materialidades da armadilha em que se transformou o estabelecimento aos clientes. A crueza da cena, uma das pistas lineares de um excesso (Ernst-Pereira 2009), torna-se uma estratégia de situar em zona de visibilidade a crueldade do fato. Nesse esteio, o excesso do dizer não é um dizer a mais: é a condição de emergência desse dizer. Não se acede a esse efeito de sentido senão o excedendo.

Por fim, SD3 parece-nos o grande eixo do dissenso interpretativo. Na leitura de A, o efeito de sentido preconizado pela formulação visual da presidenta Dilma a situa como espectadora impactada e impotente da tragédia. O sentido produzido é o de uma aliança com a posição-leitor que ela supostamente antecipa: para esse B, Dilma, tanto quanto cada um nós, irmanar-se-ia na dor daqueles que tiveram, dentre as vítimas, pessoas de suas relações de sangue ou de afeto. Dilma, por seu posto – ou por seu lugar discursivo –, representaria a dor e o estarrecimento de um país inteiro, produzindo o sentido de uma comoção que ultrapassou em muito as fronteiras municipal ou estadual ou mesmo a (ausência de) relação direta de cada brasileiro com as vítimas.

Na leitura de B’ – esse sujeito supostamente não antecipado por A–, a aposição da formulação visual de Dilma à formulação visual da tragédia de Santa Maria produz um efeito de sentido em nada elevado ou representativo de uma dor nacional. Primeiro, pelo gesto de estranhamento – pista desenvolvida por Ernst-Pereira (2009) – ao fato de SD3 produzir referência a uma autoridade não relacionada à tragédia; no caso em tela, sê-lo-ia o prefeito de Santa Maria ou o governador do estado do Rio Grande do Sul. Ao primeiro e, em última instância, ao segundo caberiam as ações de fiscalização que poderiam ter prevenido a tragédia.

Segundo, pela assinatura institucional da charge, vinculada a um veículo de imprensa notoriamente crítico ao governo federal. Como sabemos, as condições enunciativas de produção (dentre elas a prevista circulação de um texto ou discurso) afetam a produção do sentido, especialmente no modo como administram a posição de leitura. A produção da charge por um sujeito empírico que é funcionário da empresa Globo e sua veiculação em um dos jornais do Grupo – associadas à defesa feita por um jornalista da mesma empresa – produzem a expectativa de crítica ao governo federal, ainda que uma crítica absurda nos termos da sua proposição, uma vez que não compete à União a fiscalização de estabelecimentos noturnos. Estaria aqui mais um indício de ingenuidade dos indivíduos que ocupam o lugar de A (ao acharem que a aposição seria lida de forma casual ou neutra) ou mais um rastro discursivo de uma estratégia paralíptica de crítica/escárnio?

Na leitura de B’, haveria uma FD conservadora que linearizaria ambos (tragédia e presidente), produzindo uma relação de implicação. Essa relação, senão pelo efeito de responsabilização, estenderia ao governo federal, por associação, a atualização de um imaginário negativo da opinião pública em relação à qualidade e confiabilidade dos serviços públicos e privados de nosso país. Para B’, a estratégia de A revela-se vil. Ao simular uma aposição casual – que o preserva da acusação de falsear o discurso administrativo público no que tange a responsabilidades de fiscalização –, o lugar de A diz sem dizê-lo, ou ao menos sem assumir o ónus de dizê-lo.

Ao situarmo-nos na Análise de Discurso, refutamos de antemão atribuir ao sujeito empírico produtor da charge intencionalidade[9]. Não porque seja defeso aos indivíduos terem intenções, mas por três motivos precípuos: (i) não são os indivíduos o objeto da AD, mas os sujeitos históricos que se realizam nos sujeitos empíricos ou indivíduos; (ii) não são as intenções dos indivíduos o objeto da AD, mas os discursos que funcionam em seu dizer; (iii) mesmo tomadas no prosaísmo do quotidiano, essas intenções não são puras, posto que atravessadas e traídas pelo inconsciente.

O nosso dispositivo teórico-analítico prevê (e provê) o gesto de análise do funcionamento dos sentidos e dos gestos de leitura para sujeitos históricos, e pensamos ter logrado conseguir confrontar duas leituras conflitantes sobre o mesmo texto. No entanto, em nossa compreensão desta mesma teoria, partimos da premissa de que o gesto de análise seja mais profícuo tanto quanto o analista assuma que tenha uma posição de leitura (fenômeno denegado por abordagens neopositivistas) e que a explicite.

Essa explicitação não deriva de uma crença íntima na inabalabilidade do nosso gesto de leitura ou mesmo na garantia de podermos chegar a uma verdade objetiva. Ela baseia-se no entendimento da assumpção como parte de uma responsabilidade analítica que cerceie, no parco limite de até onde consiga divisar, a administração de uma dada leitura ao leitor. Nesse sentido, a provocação jocosa, que na nota de número 7 deste texto retroagia à própria nota, é distendida aqui.

Não se trata de uma mera assumpção de uma assumpção, mas sim a assumpção do que não poderíamos assumir, visto que situado no Real da matriz simbólica a qual sustenta nosso gesto de interpretação. Dessarte, assumirmos a incontornabilidade do inassumível é um gesto de assumpção analítica que entendemos atinente aos princípios da teoria da AD. A previsão do limite e da falha analíticos em nada fere a validade científica do procedimento interpretativo; ao contrário, preserva-o do fantasma da totalidade.

Dito isso, explicitamos o que já estava patente em nosso texto: parece-nos mais defensável a leitura B’. Para finalizar com os argumentos que desenvolveremos a seguir, precisaremos uma vez mais entrelaçar as SDs, em cujos entremeios nos situaremos para compreender. Para compreender como as SDs contribuem à produção de sentido na linearidade significante, recorreremos uma vez mais ao procedimento de alterações contextuais preconizado por Orlandi (1999).

Em rápida primeira reaproximação analítica, resta-nos evidente que elidir a SD2 amaina em muito a crítica e a denúncia das péssimas condições do funcionamento da boate que culminaram para a extensão absurda da tragédia (o baluarte da leitura assumida pelo lugar de A). Assim como abdica do registro do horror das vítimas, construído pelo concerto de enunciados da formulação visual. Preservadas as SDs 1 e 3 nesse hipotético contexto, Dilma exclamaria, vendo o nada, o vazio que ficou após a partida dos frequentadores da boate. Garantir-se-ia o efeito de memória com SD1, embora Santa Maria funcionasse deslocado da função meramente toponímica para a sinonímica, passando a representar um vazio, que por extensão metonímica representaria o vazio no peito dos que choram a morte de parentes e amigos. A hipotética alteração possivelmente interviesse na condição empírica de ocupação de B’, visto que preservaria os que deploram a associação da tragédia à presidenta, mas congelaria a crítica da ofensa à memória dos mortos.

O apagamento de SD1 desatende a um princípio de funcionamento das charges, cuja sucintez da leitura não pode, sob o risco do malogro enunciativo, prescindir da referência ao acontecimento jornalístico a que alude. De acordo com Ghilardi, para que uma charge seja entendida, é fundamental

 

o conhecimento do assunto tratado, das pessoas nela representadas e do contexto, pois ela leva em conta o fato noticiado ao qual se vincula. Assim, é imprescindível que o desenho tenha suficiência de dados, fornecidos pelos detalhes. A caracterização do ambiente, dos personagens, e as marcas simbolizando o tema são suportes necessários à interpretação adequada. São esses os dados explícitos que vão possibilitar a leitura dos implícitos (1995/1996: p. 87).

 

Cabe já aqui uma ressalva ao fazermos funcionar a citação de Ghilardi no âmbito dos estudos do discurso. Em primeiro lugar, nem sempre a charge significa a partir de um fato noticiado (há charges de costumes), todavia mais importante é relativizarmos o que a autora considera (in)suficiência de dados, especialmente como eixo do jogo entre sentidos explícitos e implícitos. A essa dicotomização, preferiremos, em virtude de nosso lugar teórico, considerar que, na charge – assim como consideramos para qualquer imagem –, há uma tensão de (in)visibilidades e que tanto umas quanto as outras têm opacidades. Malgrado reconheçamos a relevância da operação de leitura (seja da imagem, seja da palavra) como uma decodificação, não é este nosso objeto, mesmo porque o consideramos um fenômeno de significação muito menor que o da produção dos sentidos.

Embora a curtíssimo prazo não houvesse maior prejuízo à leitura do sentido proposto pelo efeito de memória, a charge, em virtude da perecibilidade de suas referências temporais, falharia no seu escopo de registro jornalístico de uma época (se é que de fato o tem), assim como perderia a formulação verbal, com que é construído, na leitura A, o horror de Dilma, e, na leitura B, o teor lúdico da ofensa à dor dos parentes das vítimas.

Por fim, hipotetizemos a elisão de SD3. O efeito de memória, produzido pelo concerto das SDs 1 e 2, restaria garantido, e, com a ausência da formulação visual de Dilma, haveria uma ressignificação de SD1. O tom lúdico da formulação verbal cederia lugar ao tom de apelo – seja ao ente cristão por ela aludido, seja à própria cidade – anabolizado pelo teor exclamativo da interjeição. Sem a SD3, restaria igualmente a posição-leitor como espectador da cena, como se o apelo de SD1 ressoasse em cada um de nós e por cada um de nós se fizesse soar. Elidida a SD3, a injunção a significar não mais associaria a presidenta à tragédia. Assim, preservam-se os sentidos preconizados pela leitura A (a comoção nacional), mas se esvaem o sentido de crítica presente na leitura B’. Isso enseja a pergunta incontornável, fatídica: a que(m) servem os sentidos advindos da formulação visual de SD3?

 

 

Considerações finais

 

As charges, como o são todos os textos, são tecnologias do discurso, suas condições de circulação, produzidas e lidas por sujeitos históricos que não necessariamente são os mesmos em um e em outros casos, ainda que atualizem a mesma forma-sujeito histórica, o que os leva não a partilhar um consenso intersubjetivo mínimo, mas a disputar os objetos sociais e discursivos que a integram.

Os gestos de leitura são a materialidade da relação com os sentidos produzida pela inscrição histórica dos sujeitos e sobredeterminada pela posição desses na relação de forças sociais. É evidente que a leitura passa pelo ato semiologicamente determinado de decodificação de significados relativamente estabilizados, assim como é evidente que não é esta leitura o objeto da Análise de Discurso. Ultrapassado o ténue limite do mundo semanticamente normal e dos universos discursivos logica ou relativamente estabilizados, o que nos interessa aqui é como se sustentam os gestos de interpretação e como se produz a compreensão do processo discursivo em que são positivamente inscritos.

Sendo assim, a leitura única ou verdadeira ganha os ares de uma quimera; quimera, no entanto, que tem o que Lacan chamava, com base em Lèvi-Strauss, eficácia material do Imaginário, visto que passam por essa concepção mítica da leitura práticas sociais de normatização e regulação, por um lado, e de exclusão e de higienização do pensamento, por outro. Para bem além do mero decifrar, a leitura é um trabalho na acepção materialista da palavra; um trabalho discursivo que, para Pêcheux, determina o legível a partir das condições do próprio legível.

Nesse contexto, resta (quase) inadmissível a defesa do estatuto de erro ou acerto a uma dada leitura, ainda mais quando o que se defende é o estatuto terminal: a possibilidade de uma leitura ser totalmente correta ou errada. O que se desconsidera nesse ínterim é de uma ordem estarrecedora. Todo gesto de leitura produz relações lineares e discursivas de sentidos, deslocando, deslizando, ressignificando, (in)visibilizando efeitos de pré-construído e transversos, (des)mobilizando memórias; em suma, tramando relações entre recursos semiolinguísticos ou entre saberes discursivos.

Igual absurdo, se deslocado do contexto pontual pragmático – que como dissemos não é nosso objeto analítico –, a dizer que se entendeu tudo resta apenas o de esgrimar que o outro (o outro sujeito, o outro discurso, o outro indivíduo) não entendeu nadinha, e desfiar um corolário conveniente de motivos para a incompreensão. Metainterpretar, sem apoio (explícito ou não) de uma teoria de interpretação, não transcende o belicoso palpite. Produzir significação avança muito além de meramente reconhecer sentidos: o mínimo que faz é agitá-los, atualizá-los, retroalimentar os imaginários que os sustentam. Fosse mera decodificação, prosperaria irrefreavelmente a ideografia fregeana. Fosse apenas isso uma língua, não haveria a deriva, a polissemia, o lúdico, o chiste, o sujeito que desponta naquilo que falha.

Nesse esteio, esse artigo objetivou, não sem assumir um efeito de demarcação de sua posição, cotejar gestos de interpretação, procurando o em que se sustentam e que sentidos (re)produzem. Para tanto, visou empreender a compreensão do processo discursivo que os produz, legitima e sustenta e para cuja análise não importam os sujeitos empíricos, mas os históricos que nele se atualizam e que a ele performatizam evidências a partir do concerto material de estratégias argumentativas historicamente inscritas.

Portanto, o apelo ao empírico que sustenta a suposta neutralidade da leitura de A ganha, no interior da Análise de Discurso, os ares de uma falácia. O que se advoga a partir de A é um conjunto de conveniências: a (de)negação da ideologia, o cancelamento da História, o inopino não funcionamento das condições de produção. O que A propõe, frente aos dois modos de ler a charge, é uma solução de impasse interpretativo que passa pela aparente autoderrisão (os indivíduos que ocupam o lugar de A seriam ingênuos a ponto de não perceberem implicações ideológicas daquilo que dizem, o que na verdade implica serem superiores a esse jogo ideológico e haver esse nível acima, a partir do qual enunciariam) e pela ferina derrisão dos ofendidos, sejam os familiares e amigos – que apenas porque traumatizados veriam um acinte em um texto comum –, sejam os partidários da Dilma – aqueles que veem política em tudo. O máximo que A reserva a B’ é o lugar de penetra na festinha de debutantes dos seus sentidos.

Ao contrário do mero jogo de poder que se (re)vela nas paralipses; ao contrário do consuetudinário apelo às (sempre boas) intenções, o qual é menos pródigo em explicar alguma coisa e mais, em fazer funcionarem as que seriam as verdadeiras; ao contrário do maniqueísmo reducionista que dispõe de forma antípoda e não inter-relacionada o confronto de leituras em uma relação sempre-já parametrizada, o que temos é um pouco disso tudo, mas muito mais: um texto é, antes de qualquer consideração, um lugar de confrontos. A interpretação é, antes de tudo, corte e confronto.

O que a polêmica trouxe a lume é a condição opacizad(or)a da materialidade do processo de textualização, que (inter)dita o dizer e que situa a imagem em um jogo de (in)visibilidades, projetando em um suporte textual o dizível/visível de modo que o discurso possa circular, sob a aparência de unidade, coerência, completude, fechamento etc. O que temos afinal disso tudo senão justamente o bom-mocismo desse efeito-texto sendo desmascarado pela objetividade material contraditória dos sentidos?

 

 

Referências

 

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Lacan, Jacques. 1979. O Seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar Editores.

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Pêcheux, Michel. 1995. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio, Trad. de Eni P. Orlandi. Campinas, Ed. Unicamp.

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Romualdo, Edson Carlos. 2000. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de São Paulo, Maringá, Eduem.

Žižek, Slavoj. 2010. Como ler Lacan, Rio de Janeiro, Zahar. Artigo enviado em 23 de janeiro de 2014.

 

 

 


[2] Reconhece-se aqui uma relação com o mau sujeito de Pêcheux (1995) - o sujeito que se contraidentifica com a formação discursiva da qual faz parte.

[3] Postagem do jornalista Noblat, em defesa do cartunista Chico, seu colega no jornal O Globo, em seu blog, no dia 28 de janeiro de 2013. Disponível em: http://www.facebook.com/BlogdoNoblatOGlobo

[4] Reparar, em oposição a ver e a olhar, conforme desenvolvido em Quevedo (2012): tanto na acepção de recuperar o processo discursivo que presidiu a produção de dada materialidade, quanto na acepção de interpretar o interpretar – a consideração do lugar de onde se vê/olha/interpreta.

[5] Pretendemos demonstrar mais adiante o quão distintos (não) podem ser os dois gestos de leitura sobre cuja materialidade cá nos havemos de debruçar.

[6] Notemos que, em SD2, funcionam apenas enunciados à guisa de um deslocamento. Isso vale tanto para o enunciado [e] das mãos abertas por entre ou segurando as grades (que mobiliza a memória visual dos registros dos presidiários) quanto para o enunciado dos corpos das vítimas.

[7] Provavelmente tão mais afetiva quanto mais próximos estiverem os sujeitos empíricos em que se realiza esse “nós”.

[8] O preterimento da flexão no presente do indicativo é materialidade do nosso gesto de assumpção de interpretação, o que provavelmente não deve ter passado despercebido ao leitor. Sendo assim, o que é essa nota? Assumpção da assumpção?

[9] O que, não obstante óbvio a outros analistas de discurso, convém que seja explicitado aos leitores de outras áreas.

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