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Lingüística
versión On-line ISSN 2079-312X
Lingüística vol.31 no.1 Montevideo 2015
Vol. 31-1, junio 2015: 111-125
ISSN 2079-312X en línea
ISSN 1132-0214 impresa
SUBJETIVIDADE E CONECTIVOS CAUSAIS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO*
SUBJECTIVITY AND CAUSAL CONNECTIVES IN BRAZILIAN PORTUGUESE
Universidade Federal do Rio de Janeiro
lilianferrari@uol.com.br
Helen de Andrade
Universidade Federal do Rio de Janeiro
helendeandrade@gmail.com
Palavras-chave: espaços mentais, subjetividade, conectivos causais.
Keywords: mental spaces, subjectivity, causal connectives.
This paper draws on Cognitive Linguistics, and more specifically on Mental Spaces Theory (Fauconnier 1994, 1997; Fauconnier et al. 2002), in order to investigate causal connectives in Brazilian Portuguese. The research aims at describing and explaining the cognitive processes associated to the establishment of causal relations by the connectives portanto, por isso and consequentemente, taking as its starting point the Sanders et al. (2009) paper on Dutch causal connectives. Thus, based on the notions of Basic Communicative Spaces Network (BCSN) and Subject of Consciousness (SdC), it is claimed that the causal connectives under investigation may be ranked along a scale of subjectivity, which takes into account the presence of an actor or concluder in causal relations represented in different mental spaces built up during ongoing discourse.
(Recibido: 15/1/14; Aceptado: 6/5/14)
1. INTRODUÇÃO
Os falantes do português brasileiro (PB) possuem à sua disposição diferentes conectivos para expressar relações de causa-consequência, dentre os quais se incluem aqueles descritos tradicionalmente como conclusivos ou consecutivos. As análises linguísticas do fenômeno, em geral, enfocam tais elementos sob a ótica do processo de gramaticalização; assim, descrições de conectivos tais como por isso e portanto destacam a presença de elementos dêiticos (isso) e elementos correlativos intensificadores (tanto) em sua formação. Os estudos em gramaticalização também apontam um tipo comum de mudança na qual os advérbios com o sufixo -mente assumem valor de conectivo (ex. consequentemente)
Do ponto de vista sincrônico, entretanto, os conectivos que expressam relações de causalidade
A proposta do presente artigo é preencher essa lacuna explicativa, a partir da análise dos conectivos por isso, portanto e consequentemente. A motivação para a escolha desses conectivos em particular surgiu da hipótese de que esses elementos, embora semanticamente semelhantes, diferem quanto a aspectos pragmáticos relacionados ao grau de subjetividade com que constroem relações causais. Assim, a compreensão dos processos cognitivos envolvidos nessa construção pode lançar luz sobre os fatores que levam o falante a escolher entre um e outro em situações reais de uso.
O trabalho adota o referencial teórico da Linguística Cognitiva e, mais especificamente, a Teoria dos Espaços Mentais (Fauconnier 1994, 1997; Fauconnier et al. 2002), com o objetivo de desenvolver uma investigação dos processos cognitivos ativados pelos conectivos analisados, articulando as noções de Sujeito de Consciência (SdC) e Rede de Espaços Comunicativos Básicos. Partindo da análise inovadora dos conectivos causais do holandês, proposta por Sanders et al. (2009), buscamos contribuir para a descrição dos conectivos causais do português brasileiro, levando em conta a presença (ou não) de um agente ou sujeito epistêmico no estabelecimento de relações causais em diferentes espaços mentais acionados no discurso.
O artigo está organizado em três seções principais. Inicialmente, apresentamos os pressupostos teóricos que sustentam a análise, partindo da proposta de Langacker (1990) para o tratamento da subjetividade, e destacando seu papel fundador no que se refere a propostas mais recentes sobre o fenômeno. Ainda com relação à base teórica, enfocamos a contribuição de Sanders et al. (2009) sobre conectivos causais do holandês, que propõe um refinamento da Teoria dos Espaços Mentais para tratar da questão da subjetividade dos referidos conectivos. A seção 3 apresenta a metodologia, explicitando o objeto de estudo, a hipótese e a origem dos dados. Na seção 4, encontra-se a análise propriamente dita, em que se desenvolve a proposta de distribuição dos conectivos do português brasileiro de acordo com graus de subjetividade.
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Neste trabalho, a análise dos conectivos causais do português brasileiro parte de propostas recentes sobre a noção de subjetividade na literatura cognitivista, a serem detalhadas a seguir.
2.1. Subjetividade e espaços mentais
A noção de subjetividade/objetividade desenvolvida por Langacker (1990) é baseada na forma como o falante constrói cognitivamente a cena descrita (operação de construal). Assim, uma entidade é maximamente objetiva quando é perfilada ou, em uma metáfora usada pelo autor, se encontra onstage; é o foco da atenção do conceptualizador. Proporcionalmente, uma entidade é maximamente subjetiva quando não é perfilada e, portanto, se encontra offstage, embora tenha um papel na experiência perceptual ou conceptual, fazendo parte do Ground (que é constituído por falante, ouvinte, local e momento em que a interação conversacional ocorre). Dessa forma, tempos verbais refletem certo grau de subjetividade, pois o falante utiliza o Ground (mais especificamente, o seu momento de fala) como base implícita de referência para passado, futuro e outros deslocamentos promovidos pelos tempos verbais.
Sanders et al. (2009) retomam a noção de subjetividade/objetividade em sua análise dos conectivos causais do holandês. Os autores partem da definição langackeriana de subjetividade/objetividade em termos de construal, para analisar os referidos conectivos. Conforme Sanders et al. (2009), o grau de subjetividade está na proximidade existente entre o falante e o Sujeito de Consciência (SdC) que protagoniza a relação causal enunciada. Quanto mais próximos falante e SdC estiverem, mais subjetiva é a relação.
Para a análise da complexidade de dados relativos aos conectivos causais, Sanders et al. (2009) retomaram o instrumental teórico da Teoria dos Espaços Mentais. No entanto, os autores sentiram a necessidade de elaborar a noção de Espaço Base, que corresponde, em linhas gerais, ao conceito de Ground, proposto por Langacker (1990). Ao elaborarem uma visão mais detalhada do Ground, desenvolveram a noção de Basic Communicative Spaces Network
(a) Espaço de Ato de Fala – o espaço referente ao tipo de situação comunicativa em curso e atos de fala associados (por ex. pedido, ordem, oferta, etc.).
(b) Espaço Epistêmico – o espaço referente aos estados mentais do falante (por ex. conclusões, resultados de raciocínio, etc.).
(c) Espaço de Conteúdo – o espaço referente aos conteúdos expressos pelo falante (aquilo de que se fala).
Esses espaços representam as estruturas básicas mínimas, automaticamente presentes no Ground de interação de fala. Para tratar dos conectivos causais do holandês, Sanders et al. (2009) subdividiram, ainda, o Espaço de Conteúdo em dois: Espaço de Conteúdo Volitivo (relações causais associadas a ações volitivas de um participante de terceira pessoa) e Espaço de Conteúdo Não-Volitivo (relações causais entre eventos do mundo). Os autores propuseram a representação detalhada na Figura 1:
Figura 1 - Rede de Espaços Comunicativos Básicos
(Basic Communicative Spaces Network)
A Figura 1 consiste de um diagrama 2x2. A parte de baixo representa o nível conceptual. No caso dos conectivos causais, ali está a Base de Conhecimento que licencia as relações P > Q, realizadas na linguagem. É na Base de Conhecimento que está incluído o Espaço Base (a conceptualização geral do mundo por parte do falante).
A parte de cima do diagrama representa o nível linguístico da fala que se realiza explicitamente. É importante notar que o diagrama distingue verticalmente as situações em que há um Sujeito de Consciência (SdC) explícito (Espaço de Conteúdo) e SdC implícito (Centro Dêitico de Comunicação, onde o falante está presente). Quando uma relação causal criada por um conectivo é enunciada, pode ser interpretada no Espaço de Ato de Fala, no Espaço Epistêmico ou no Espaço de Conteúdo
Conforme também evidenciado na análise de Ferrari e Sweetser (2012) sobre níveis de subjetividade e processos de subjetificação em fenômenos gramaticais do inglês, referências que acessam os espaços mais implícitos representados à direita do diagrama (Ato de Fala e Epistêmico) são mais subjetivas do que aquelas que acessam espaços apresentados à esquerda (por exemplo, o Espaço de Conteúdo Volitivo). Além disso, no lado direito do diagrama, o espaço superior é mais subjetivo do que os inferior, por ser ainda mais implícito do que esse último. É o que será exemplificado a partir da análise dos conectivos do holandês, conforme veremos a seguir.
2.2. Os conectivos causais do holandês
A análise dos conectivos causais dus, daarom e daardoor do holandês, feita por Sanders et al. (2009), segue uma escala que vai, em termos linguísticos, de um maior a um menor grau de subjetividade. Os exemplos discutidos pelos autores são os seguintes:
1. Het licht bij buren is uit. DUS ze zijn niet thuis.
P (As luzes dos vizinhos estão apagadas.) DUS Q (eles não estão em casa)
2. Er is koffie en thee. DUS wat wil je?
P (Tem café e chá.) DUS Q (o que você quer?)
3. Het was een warme dag. DAAROM ging Jan zwemmen.
P (Foi um dia quente.) DAAROM Q (Jan foi nadar.)
4. De zon scheen. DAARDOOR steeg de temperatuur.
P (O sol estava brilhando.) DAARDOOR Q (a temperatura subiu.)
No exemplo (1), dus demonstra uma relação entre um estado de coisas no mundo e uma conclusão à qual o falante chegou, que em termos de BCSN é representada no Espaço Epistêmico. O SdC, implícito é o próprio falante. Assim sendo, esse uso de dus é o mais subjetivo dentre os conectivos estudados. No exemplo (2), dus representa uma relação causal construída no Espaço de Ato de Fala. O falante também se encontra linguisticamente implícito nesse exemplo. Porém, como a situação se dá no Espaço de Ato de Fala (mais baixo na rede), o falante é menos implícito do que no exemplo (1). O exemplo (3) apresenta um SdC explícito, Jan, que realiza uma ação por vontade própria, e portanto a relação é representada no Espaço de Conteúdo Volitivo. O falante não toma parte na decisão, mas apenas reporta a relação de causalidade. Dessa forma, daarom é menos subjetivo do que dus, já que promove uma distância entre falante e SdC. O exemplo (4), por sua vez, não possui um SdC, retratando uma relação causal entre eventos naturais, representada no Espaço de Conteúdo (não-volitivo). Assim, daardoor é o mais objetivo dos conectivos estudados, pois é o que representa a relação de causalidade que mais se distancia do falante.
3. METODOLOGIA
A análise dos conectivos causais do holandês desbrava uma área ainda relativamente inexplorada no que se refere à análise dos conteúdos semântico-pragmáticos e cognitivos desses conectivos. Com relação ao português brasileiro, podemos adaptar os exemplos holandeses apresentados anteriormente da seguinte forma
1.a. P (As luzes dos vizinhos estão apagadas.) PORTANTO Q (eles não estão em casa.)
2.a. P (Foi um dia quente.) POR ISSO Q (Jan foi nadar.)
3.a. P (O sol estava brilhando). CONSEQUENTEMENTE Q (a temperatura subiu.)
Embora os conectivos portanto e por isso sejam tradicionalmente classificados no grupo de conjunções conclusivas ou consecutivas, os exemplos (1a) e (2a) evidenciam que esses conectivos não são exatamente intercambiáveis. Isso porque o uso de por isso, em (1a), daria a ideia de que a razão para os vizinhos não estarem em casa é o fato de as luzes estarem apagadas; do mesmo modo, o uso de portanto, em (2a), indicaria que a relação entre dia quente e Jan ir nadar é estabelecida pelo falante
Tomando por base os resultados encontrados para o holandês, descritos na seção anterior, estabelecemos as hipóteses de que: (i) portanto sinaliza prototipicamente uma conclusão do falante; (ii) por isso evidencia a causa da ação volitiva de um participante da cena descrita; (iii) consequentemente apresenta a relação causal como algo independente de processos volitivos ou epistêmicos.
Para submeter as hipóteses acima a uma análise mais criteriosa, selecionamos os conectivos em questão em contextos reais de uso. Os dados foram obtidos de edições da Revista Época (n. 610 a 625), de 2010. Procuramos, através da representação da Rede de Espaços Comunicativos Básicos, demonstrar os processos cognitivos associados a cada um dos conectivos.
4. ANÁLISE DE CONECTIVOS CAUSAIS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Nesta seção, enfocaremos os conectivos causais portanto, por isso e consequentemente, apresentando as principais generalizações decorrentes da análise de cada um deles. Na subseção final, procederemos à análise contrastiva dos conectivos em termos de graus de subjetividade.
4.1. O conectivo portanto
Os dados demonstram que o conectivo portanto pode expressar uma relação de ato de fala (referente ao centro dêitico da comunicação) ou epistêmica (referente aos processos de raciocínio do falante).
No exemplo (5), o jornalista utiliza portanto no início de um ato de fala diretivo (uma pergunta), em que convida o leitor a refletir sobre o conceito de mulher bonita. Vejamos:
5. No Brasil do século XXI, celeiro mundial de modelos claras e delgadas, existe uma acentuada predileção popular por mulheres carnudas e morenas, com curvas bem demarcadas. Portanto, o que é uma mulher bonita
A representação diagramática desse uso pode ser assim estabelecida:
Figura 2 - PORTANTO - Ato de Fala
No exemplo (5), a conexão causal é construída no Espaço de Ato de Fala, que constitui o Centro Dêitico da Comunicação. Nesse espaço, falante e ouvinte estão presentes, mas permanecem implícitos; ao mesmo tempo, são representadas as codificações linguísticas da causa (P’) e da consequência (Q’).
O exemplo (6), a seguir, e sua representação na Figura 3, evidenciam o estabelecimento de um processo de raciocínio por parte do falante, na articulação da relação causal:
6. Um inglês que aqui esteve em 1893 deixou registrado que o maior elogio que se podia fazer a uma dama era observar que ela “estava a cada dia mais gorda”. (...). É possível, portanto, que a estética das mulheres fortes seja apenas uma evolução histórica do gosto nacional por mulheres curvilíneas, que predomina há 500 anos
O exemplo (6) é uma instância do uso de portanto, em que o conectivo sinaliza acesso ao Espaço Epistêmico do redator. O conhecimento da situação (P) por parte do jornalista (“o maior elogio que se podia fazer a uma dama era observar que ela estava cada dia mais gorda”), o leva, como indicado por portanto, a concluir que “a estética das mulheres fortes é apenas uma evolução histórica do gosto nacional por mulheres curvilíneas”(Q). O SdC implícito nessa situação é o falante e, dessa forma, falante e SdC se fundem. Assim sendo, esse é o uso do conectivo mais subjetivo dos casos estudados, apresentando relação direta com o conectivo dus epistêmico do holandês.
A representação das relações estabelecidas pelo conectivo portanto dentro do BCSN são apresentadas a seguir:
O exemplo (7) constitui mais uma ocorrência do conectivo portanto. Entretanto, trata-se de uma ocorrência mais complexa, em que se observa mesclagem entre o falante e o SdC:
7. Bratke nasceu com catarata grave nos dois olhos. Com 2 anos, começou a ficar estrábico, e isso resultou em ambliopia. Ele perdeu a visão central em um dos olhos. Desde pequeno, portanto, o pianista criou ferramentas próprias para sobreviver e ocultar seus problemas visuais
O exemplo acima evidencia mesclagem, na medida em que o conectivo portanto dá acesso ao processo epistêmico do SdC (no caso, o pianista), que chega à sua própria conclusão quanto à forma de lidar com seus problemas visuais. Entretanto, o conectivo portanto também autoriza uma leitura em que a consequência (“o pianista criou ferramentas próprias para sobreviver...) seja acessada por meio de um processo epistêmico do falante, que também pode ter chegado à mesma conclusão sobre a situação. O significado do conectivo portanto, nesse caso, é acessado através do espaço mescla que se cria entre o Espaço Epistêmico do SdC e o Espaço Epistêmico do falante. É o que ilustra a Figura 4:
Figura 4 - PORTANTO em contexto de mesclagem entre falante e SdC (3ª p)
É interessante ressaltar que, diferentemente do que ocorre com os exemplos (5) e (6), o uso de por isso soaria natural em (7). O que parece ocorrer aqui é que a escolha de portanto para codificar mesclagem entre o ponto de vista do falante e do SdC permite que os dois pontos de vista continuem disponíveis para a interpretação. Entretanto, se o objetivo comunicativo fosse colocar em proeminência apenas o ponto de vista do SdC, provavelmente o redator escolheria por isso, como ocorre em outros exemplos com sujeito volitivo de terceira pessoa, a serem discutidos na seção a seguir.
4.2. O conectivo por isso
A análise demonstrou que, de forma análoga ao uso de daarom em holandês, a escolha de por isso está associada a um SdC explícito, que realiza uma ação por vontade própria. Essa ação pode ser representada no Espaço de Conteúdo Volitivo, já que o falante não toma parte na decisão, mas apenas reporta a relação de causalidade. O exemplo (8) ilustra esse fenômeno:
8. O Brasil não tem um satélite meteorológico e, por isso, usa dados enviados pelos Estados Unidos. O satélite americano envia imagens ao Brasil a cada 30 minutos, quando o ideal seria a cada 15 minutos
A relação causal estabelecida em (8) pode ser representada no diagrama a seguir:
Figura 5 - POR ISSO - Espaço de Conteúdo Volitivo
Nesse caso, existe uma objetificação da relação causal através do conectivo por isso. O fato de que o Brasil não tenha satélite meteorológico é apresentado como causa para a decisão brasileira de usar dados enviados pelos Estados Unidos. A relação causal se dá no Espaço de Conteúdo Volitivo, o que demonstra que esse uso do conectivo por isso é mais objetivo que os usos de portanto, discutidos anteriormente. É interessante ressaltar, entretanto, que a escolha de portanto nesse contexto também seria possível, e caso tivesse ocorrido, representaria mesclagem entre o ponto de vista do redator e do SdC (que, nesse caso, inclui representantes do governo brasileiro, acessados metonimicamente através de Brasil). Se tivesse usado portanto, o jornalista assumiria uma perspectiva mais subjetiva, já que, de alguma forma, estaria demonstrando alinhamento epistêmico em relação à decisão tomada pelo governo brasileiro.
Embora a representação diagramática seja basicamente a mesma apresentada na Figura 5, o exemplo, a seguir, destaca aspectos interessantes do uso de por isso:
9. Quando o dinheiro começar a entrar com mais intensidade, é provável que se dirija para as redes sociais. Por isso é estranho que o Google, dono da rede de relacionamento Orkut (sucesso principalmente no Brasil e na Índia), não tenha aproveitado a base para combater o Facebook em seu próprio terreno, fazendo do Orkut uma operação global
A princípio, o uso de portanto pareceria até mais natural em (9), já que a sentença em que por isso ocorre é iniciada pelo marcador epistêmico é estranho que, acessando implicitamente os processos epistêmicos do falante/redator. Mas o jornalista opta por enquadrar o fato de “o Google não ter aproveitado para combater o Facebook...” como uma decisão estranha tomada pelo Google, por ter se afastado da decisão esperada (“fazer do Orkut uma operação global”). Assim, a relação causal que é ressaltada no exemplo é entre um fato e uma decisão de terceiros (ação volitiva), e não entre um fato e uma conclusão do falante. Vejamos uma possível paráfrase para a leitura volitiva proposta por (9):
9.a. Quando o dinheiro começar a entrar com mais intensidade, é provável que se dirija para as redes sociais. Por isso, o Google agiu de modo estranho ao não aproveitar a base para combater o Facebook em seu próprio terreno, fazendo do Orkut uma operação global.
Por outro lado, se a escolha do jornalista tivesse recaído sobre o conectivo portanto, uma possível paráfrase seria:
9.b. Quando o dinheiro começar a entrar com mais intensidade, é provável que se dirija para as redes sociais. Portanto, considero estranho que o Google não tenha aproveitado a base para combater o Facebook em seu próprio terreno, fazendo do Orkut uma operação global.
Obviamente, a escolha entre um e outro conectivo reflete uma opção por uma perspectiva mais ou menos subjetiva. É possível que o uso de por isso em (9) funcione como uma estratégia retórica para objetificar uma relação causal que está, na verdade, conectada ao redator. Assim, o assunto abordado é apresentado menos como uma opinião particular do jornalista, que poderia ser questionada pelos leitores, e mais como um fato do mundo, menos passível de questionamento.
4.3. O conectivo consequentemente
Os dados demostram que, de forma semelhante ao que ocorre com o conectivo daardoor do holandês, o uso do conectivo consequentemente reflete a opção de retratar uma relação causal de forma totalmente independente dos processos volitivos de um SdC ou dos processos epistêmicos do próprio falante. Observemos os exemplos (10) e (11):
10. Quando a Unilever lançou a versão concentrada de seu principal amaciante, em maio de 2008, parecia ter escutado a demanda dos consumidores, que diziam querer comprar produtos mais ecológicos. Com meio litro, o novo produto rende tanto quanto 2 litros da versão convencional. Como a embalagem é menor, economiza 58% de plástico e, consequentemente, usa menos petróleo. Seu processo de produção consome 79% a menos de água
11. Depois dos 35 anos, a maioria das mulheres sofre uma queda acentuada em sua reserva ovariana e, consequentemente, em sua fertilidade
Esses exemplos apresentam uma relação causal que não depende da decisão ou da conclusão, seja de um falante, seja de um SdC. Essa relação apenas retrata eventos do mundo, como a ilustrada em (10), em que certa embalagem usa menos petróleo, como consequência de usar menos plástico, ou um fenômeno, como o que se verifica em (11), em que a maioria das mulheres sofre uma queda acentuada em sua fertilidade, em decorrência da queda acentuada da reserva ovariana. Assim sendo, o conectivo abre um Espaço de Conteúdo Não-Volitivo, que é representado cercado por uma linha pontilhada, para deixar bem claro que esse espaço se encontra completamente externo ao Ground, e é totalmente independente dos parâmetros do evento de fala. A representação diagramática é a seguinte:
Figura 6 - CONSEQUENTEMENTE - Espaço de Conteúdo Não-
Como ilustra a Figura 6, o conectivo consequentemente constitui o mais objetivo entre os casos estudados, já que a relação causal é acessada no Espaço de Conteúdo Não-Volitivo.
4.4. Distribuição dos conectivos por graus de subjetividade
Com base na discussão apresentada nas seções anteriores, é possível propor a escala a seguir, para representar a distribuição dos conectivos causais quanto ao grau de subjetividade:
Figura 7 - Escala de subjetividade
Conforme representado na escala acima, os resultados da pesquisa indicam que:
(i) os conectivos causais se distribuem ao longo de uma escala de subjetividade, do mais subjetivo para o mais objetivo, que se inicia com o conectivo portanto, passando pelo conectivo por isso e chegando ao conectivo consequentemente. Assim, portanto é o mais subjetivo de todos, e consequentemente o mais objetivo.
(ii) em sua parte da escala, o conectivo portanto apresenta nuances quanto ao grau de subjetividade: no extremo mais subjetivo, sinaliza a representação da relação causal no Espaço Epistêmico (o espaço mais implícito de todos); exibindo um grau um pouco menor de subjetividade, estabelece a representação da causalidade no Espaço de Ato de Fala (espaço ainda implícito, mas um pouco menos do que o Espaço Epistêmico, por ser mais intersubjetivamente verificável). Por fim, portanto pode promover a representação da relação causal em um espaço que mescla os espaços Epistêmico (mais subjetivo) e de Conteúdo Volitivo (menos subjetivo), exibindo assim um grau um pouco menor de subjetividade em relação às outras ocorrências.
(iii) o conectivo por isso apresenta grau intermediário de subjetividade, retratando a relação causal no Espaço de Conteúdo Volitivo, normalmente associado a um SdC de terceira pessoa.
(iv) o conectivo consequentemente é o mais objetivo dos três, construindo a relação causal em um espaço de Conteúdo (não-volitivo), que enfoca eventos naturais externos, independentes de um SdC.
5. CONCLUSÃO
Esse trabalho apresentou a análise dos conectivos portanto, por isso e consequentemente do português brasileiro, tomando como referencial teórico a Linguística Cognitiva e, mais especificamente, a Teoria dos Espaços Mentais associada às noções de Rede de Espaços Comunicativos Básicos e Sujeito de Consciência (SdC).
Com base em dados retirados de corpus jornalístico escrito, argumentamos que os conectivos analisados se distribuem ao longo de uma escala de subjetividade, que tem portanto em seu extremo mais subjetivo e consequentemente no polo mais objetivo. O conectivo por isso apresenta grau intermediário de subjetividade, construindo relações causais no Espaço de Conteúdo Volitivo, sob a perspectiva de um participante de terceira pessoa.
Embora tenham sido apontadas correspondências entre os conectivos portanto, por isso, consequentemente e os conectivos holandeses dus, daarom e daardoor, respectivamente, seria necessária uma pesquisa futura para a comparação mais detalhada do uso dos conectivos correspondentes nas duas línguas. É provável que, além das áreas de superposição, também existam aspectos divergentes em seus usos, como ficou claro com relação à artificialidade no uso de portanto em determinados contextos relativos a atos de fala, como o exemplo (2).
Em linhas gerais, a pesquisa apresentada neste trabalho buscou contribuir para o refinamento descritivo e explicativo dos conectivos causais investigados, através de um modelo capaz de dar conta da associação entre processos cognitivos e nuances semântico-pragmáticas associadas à noção de subjetividade. Vale destacar, entretanto, a existência de outros conectivos que expressam causalidade no português brasileiro, entre os quais se incluem aqueles que parecem ser mais produtivos na fala espontânea, tais como então, aí, entre outros. O desenvolvimento de pesquisas futuras, a partir do quadro teórico aqui delineado, poderá não apenas fornecer uma melhor compreensão dos referidos conectivos, como também embasar análises comparativas mais detalhadas em relação aos conectivos causais de outras línguas.
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