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vol.30 número2O PAPEL DAS LÍNGUAS AFRICANAS NA EMERGÊNCIA DA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO[1]MARCOS BAGNO. Gramática pedagógica do português brasileiro, São Paulo, Parábola, 1056p. 2011. ISBN 978-85-7934-037-6 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.30 no.2 Montevideo dic. 2014

 

Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 289-330

ISSN 1132-0214 impresa

ISSN 2079-312X en línea

 

 

Contato entre quimbundo e português clássico: impactos na gramática de impessoalização do português brasileiro e angolano.

 

THE CONTACT BETWEEN KIMBUNDU AND CLASSICAL PORTUGUESE: IMPACTS ON THE GRAMMAR OF IMPERSONAL CONSTRUCTIONS IN BRAZILIAN AND ANGOLAN PORTUGUESE

 

 

Esmeralda Vailati Negrão

Universidade de São Paulo/CNPq

evnegrao@usp.br

 

Evani Viotti

Universidade de São Paulo

viotti@usp.br

 

 

O objetivo deste artigo é o de buscar uma explicação para a emergência de construções de impessoalização das variedades brasileira e angolana do português, que as marcam como diferentes da variedade europeia. Nossa hipótese é a de que essas construções emergiram a partir do contato entre o português clássico e o quimbundo. Esse contato ocorreu em um espaço transatlântico construído na época colonial por meio das intensas interações entre europeus e africanos e, na sequência, entre mercadores brasileiros e angolanos. Nesse espaço transatlântico, um banco de dados linguísticos teria sido formado a partir de características gramaticais das línguas em contato. A seleção de algumas dessas características, especialmente daquelas que pareciam ser compartilhadas pelas duas línguas, é o que nós propomos que pode explicar as peculiaridades das construções analisadas neste trabalho.

 

Palavras-chave: português brasileiro; português angolano; contato de línguas; construções impessoais.

 

This article aims at explaining the emergence of some impersonal constructions of the Brazilian and Angolan varieties of Portuguese, which set them apart from the European variety. Our hypothesis is that these constructions emerged out of the contact between Classical Portuguese and Kimbundu. This contact took place in a transatlantic space built during the colonial era as a result of the intense interactions between Europeans and Africans, and, later, between Brazilian and Angolan merchants. In this transatlantic space, a pool of linguistic data would have been formed, encompassing grammatical traits contributed by the languages in contact. The selection of some of these traits, especially of those which seemed to be shared by both languages, is what we claim may explain the peculiarities of the constructions analyzed in this paper.

 

Keywords: Brazilian Portuguese; Angolan Portuguese; language contact; impersonal constructions

 

 

Os cientistas costumam estudar o passado com a obsessão dos historiadores, porque poucas outras profissões dependem tanto dele. Cada experiência é uma conversa com uma experiência anterior, cada nova teoria é uma refutação das teorias antigas.”

 

Siddhartha Mukherjee, 2011 - O imperador de todos os males. Uma biografia do câncer, p. 121

 

 

1. Introdução

 

A perspectiva teórica assumida pelo programa de investigação científica, posto em curso pela Gramática Gerativa, segundo a qual princípios universais que estão na base de todas as línguas naturais podem explicar o processo de aquisição da linguagem pelas crianças, estimulou o desenvolvimento de pesquisas com enfoque na comparação entre as propriedades das gramáticas das diversas línguas. Foi sob esse enfoque que um conjunto de pesquisas voltou-se para o estudo das propriedades do português brasileiro que o distinguem do português europeu e, mais genericamente, das línguas românicas, concluindo que as propriedades da variedade do Brasil advêm de um processo de mudança paramétrica que a distanciou da variedade europeia. Diferenças entre estratégias de relativização; assimetrias concernentes ao preenchimento da posição do sujeito e do objeto; preferências diversas quanto à posição dos clíticos; mudanças na ordem de constituintes sentenciais exemplificam alguns dos tópicos da gramática do português cobertos por pesquisas diacrônicas feitas dentro da perspectiva paramétrica (Roberts et al. 1993).

Devido ao aparato teórico que a embasa, essa visão de mudança muito contribuiu para a caracterização das peculiaridades da sintaxe do português brasileiro. Explicando-as de maneira explícita e sistemática, os estudos produzidos segundo essa perspectiva se distanciaram, no debate sobre a emergência do português brasileiro, das duas concepções tradicionais sobre a mudança nas línguas naturais, ora vista como resultante de um processo genético de evolução linguística, ora vista como resultante do contato linguístico. Podemos sintetizar as propostas de explicação para a emergência do português brasileiro dentro dessas concepções tradicionais, por meio de quatro grandes hipóteses: (i) o português brasileiro teria resultado de um processo de “deriva secular da língua de Portugal” (Naro et al. 2007: 48); ou derivado de uma língua crioula (Guy 1981); ou resultado de um processo de descrioulização (Holm 1987); ou ainda teria emergido de um processo de transmissão irregular leve que teria feito do português brasileiro uma variedade de língua de superstrato por meio de uma simplificação de certas estruturas gramaticais desencadeada por situações de contato linguístico (Baxter 1992).

Literatura recente trouxe para o debate contribuições importantes vindas de outros lugares teóricos, recolocando a discussão em outro patamar. Petter (2008) traz evidências em favor de uma hipótese da mudança causada pelo contato bastante diferente das elencadas acima. Seu ponto de partida é antes a comparação entre as variedades brasileira, angolana e moçambicana do português, do que o contraste entre qualquer uma delas e o português europeu. Para a autora, as propriedades gramaticais compartilhadas por essas três variedades do português, que constituem o que ela chama continuum afro-brasileiro do português, sugerem que, apesar de essas variedades terem emergido a partir de situações de contato próprias, a semelhança entre elas se deve ao fato de terem resultado do contato do português com um conjunto de línguas do grupo banto, com características muito próximas[1].

A nosso ver, o estudo da emergência do português brasileiro feito dentro da perspectiva de contato linguístico proposta por Petter deve conduzir a respostas a algumas das questões que têm sido colocadas por pesquisadores da linguística histórica. Investigações recentes feitas a partir de textos portugueses produzidos entre os séculos XVI e XVIII concluem que as variedades contemporâneas do português brasileiro e europeu têm sua origem no português falado nesse período, conhecido como português clássico (Galves 2010)[2]. Entretanto, Paixão de Sousa (2008) observa, a partir de estudo quantitativo, que algumas características da gramática do português clássico não se mantiveram no português brasileiro: (i) a preferência pela ordem VS; (ii) a preferência por sujeitos nulos anafóricos, retomando antecedentes fronteados; (iii) a tendência de sujeitos nulos a carregar o papel temático de agente; (iv) o fato de a posição pré-verbal não ser preferencialmente ocupada por sujeitos típicos, mas, sim, por constituintes pragmaticamente proeminentes; e (v) o fato de complementos do verbo, canonicamente não-portadores do papel temático de agente, serem frequentemente fronteados.

Às análises quantitativas, Paixão de Sousa soma uma análise qualitativa da valência de 385 verbos e propõe que o processo de evolução do português clássico para o português brasileiro partiu de uma reanálise das estruturas de verbos alternantes, que teria causado uma mudança na valência desses verbos. A autora observa que, essa mudança de valência, associada à estrutura preferida do português clássico XVS, em que X é um constituinte não agentivo fronteado, acaba por levar à reanálise desse constituinte fronteado como sujeito sentencial. Para a autora, uma das questões que se colocam para o entendimento da mudança que deu origem ao português brasileiro é: como teria surgido uma gramática como a do português brasileiro em que impera a ordem SV, a partir da gramática do português clássico, em que a ordem mais frequente é a XVS, resultante do fronteamento de um constituinte não-sujeito X para uma posição de proeminência discursiva (Paixão de Souza 2008: 19)?

Este artigo tem por objetivo responder essa questão levantada por Paixão de Sousa, com o intuito de fazer avançar a hipótese de Petter sobre o continuum afro-brasileiro de português. Para isso, vamos mostrar que o mesmo raciocínio feito para explicar alguns aspectos da sintaxe do português brasileiro pode ser aplicado para dar conta de construções típicas do português angolano. Os fenômenos das duas línguas que vão ser aqui analisados estão relacionados a algumas de suas estratégias de ‘passivização’ que as caracterizam como diferentes do português europeu. Na próxima seção, apresentamos a visão de contato linguístico que estamos assumindo. Na seção 3, discutimos a noção de ‘passivização’ que estamos usando, que abrange uma série de construções superficialmente diferentes, mas semanticamente aparentadas por terem em comum algum tipo de demoção de constituintes de agentividade, o que, para nós, se traduz em uma estratégia de impessoalização. Na seção 4, apresentamos um tipo de ‘passiva’ do português angolano, ressaltando sua proximidade com um tipo de ‘passiva’ do quimbundo. Na seção 5, apresentamos as propriedades de duas estratégias de impessoalização que emergiram no português brasileiro, as quais hipotetizamos serem consequência da situação de intenso contato linguístico entre o português clássico, as línguas africanas e, possivelmente as línguas indígenas, nos séculos coloniais. Na seção 6, explicitamos algumas das propriedades gramaticais das línguas em contato – português clássico e quimbundo - que integraram o banco de traços linguísticos a partir do qual emergiram duas variedades coloniais do português – o português brasileiro e o português angolano. Por fim, na seção 7, tecemos as nossas considerações finais.

 

 

2. A ecologia do contato

 

Em um conjunto de artigos[3], vimos defendendo a hipótese de que o português brasileiro é uma língua transatlântica[4], que emergiu numa condição sócio-histórica particular como uma variedade colonial resultante de um processo de intenso e extenso contato linguístico. O mesmo pode ser dito do português angolano.

No caso do português brasileiro, temos defendido que o contato linguístico a partir do qual se originou o português brasileiro não se limitou ao encontro de uma língua europeia bem definida com uma ou outra língua africana, ou uma ou outra língua indígena. Essa ideia, por si só, já nos coloca em uma posição diferente daquela assumida, de maneira geral, pelos estudiosos do contato e da mudança linguística. O que via de regra se encontra na literatura sobre as mudanças que deram origem ao português é a referência a uma língua-mãe - no nosso caso, a portuguesa - idealizada a partir dos textos literários ou documentais a que temos acesso. Entretanto, quando pensamos nas condições sócio-históricas em que se formaram os embriões das línguas vernáculas coloniais, precisamos levar em conta que o português falado pelos exploradores e pelos primeiros colonos teria sido bastante diferente daquele que encontramos nos textos produzidos na época colonial. A língua usada na comunicação dos navegadores que primeiro encontraram povos africanos, asiáticos e ameríndios era, então, uma língua já impactada pelo contato entre diferentes línguas europeias[5].

Na África, atingida pela expansão colonial portuguesa antes da América, o quadro não era muito diferente. Além de serem ativos comerciantes, acostumados a interagir com grupos de diferentes etnias, os povos da África, habituados a fazer prisioneiros de guerra que serviam como escravos e que podiam ser utilizados em futuras trocas comerciais, costumavam manter juntos cativos de diferentes línguas com o intuito de evitar a organização de possíveis tentativas de fuga. Mesmo antes da chegada dos europeus, situações de contato linguístico eram bastante comuns.

A prática de confinar, em um mesmo lugar, escravos de diferentes línguas e etnias foi posteriormente adotada pelos portugueses durante o período do tráfico negreiro (Bonvini 2008). Durante o tempo em que esperavam os navios para levá-los, esses africanos não só interagiam entre si, mas também com os portugueses que tinham a função de vigiá-los. Para isso, eles devem ter ou desenvolvido uma forma de comunicação particular, ou devem ter escolhido uma das línguas por eles falada como língua franca[6]. O contato próximo com os portugueses, por outro lado, indica que a língua portuguesa já era, se não plenamente usada, pelo menos conhecida, ainda em território africano, por muitos daqueles que acabaram por ser transplantados para o Brasil e que viriam a falar uma variedade de português que participou na formação do português brasileiro.

A questão do conhecimento e do uso do português no período que antecedeu o transporte dos escravos para o Brasil se torna particularmente interessante quando consideramos a história dos primeiros contatos dos portugueses com o reino do Congo: o rei africano e vários membros da nobreza se converteram ao catolicismo, embaixadores foram trocados, vários congoleses foram enviados a Portugal para aprender certos ofícios, e, fundamentalmente, para aprender português. Foi justamente dessa região já bastante impactada pela cultura e pela língua portuguesa que saiu grande parte dos africanos transplantados para o Brasil. O português já era uma língua conhecida entre eles, bem antes de eles aportarem na colônia portuguesa na América do Sul.

O que temos procurado mostrar, então, é que o português brasileiro teve sua formação iniciada antes mesmo da descoberta do Brasil e de sua colonização. Os agentes pioneiros dessa formação foram justamente europeus e africanos já acostumados às situações de multilinguismo e multiculturalismo em que viviam, tanto na Europa, quanto na África, mas também no oceano Atlântico que, nos séculos da expansão mercantilista, se transformou numa extensão desses territórios, ligando-os à América[7].

A ideia de que o português brasileiro começou a se forjar já durante a exploração da costa africana nos permite aproximar cronologicamente sua origem daquela do português angolano, se considerarmos que contatos linguísticos intensos estão na base dessas duas variedades do português. Entretanto, a ecologia em que se formaram os embriões de cada uma das variedades é bastante diferente.

A presença portuguesa na costa ocidental da África centro-sul teve início em 1492. Como já dito, o contato entre portugueses e a nobreza governante desse território foi não só forte, mas em grande medida alavancado pelos interesses dos próprios africanos. De maneira geral, esse contato se restringia a algumas áreas, mas há registros de que contatos mais difusos ocorriam em outras regiões, pela ação tanto de missionários quanto de comerciantes[8].

A fundação de Luanda pelos portugueses, em 1576 atrai poucos portugueses, mas um grande número de africanos de várias etnias, que se relacionavam entre si e com os europeus que lá viviam, criando um contexto caracterizado por um intenso multilinguismo: lá se falavam o português, a variedade de quimbundo que se tornou própria dessa região, e uma língua já fruto do contato da língua europeia com a língua africana[9].

Nessa ecologia multilíngue, é provável que a(s) língua(s) africana(s) tenha(m) tido um peso maior do que o da língua europeia. Contribuem para essa ideia os fatos (i) de que a população europeia metropolitana era pequena; (ii) de que os portugueses que lá viviam no século XVI eram majoritariamente pessoas que já viviam em outras regiões da África portuguesa, distantes da língua e da cultura metropolitana há bastante tempo; (iii) de que poucos portugueses recém-chegados sobreviviam à malária; e (iv) de que havia muito poucas mulheres brancas na colônia, o que fazia com que os filhos dos colonos fossem criados por suas mães africanas ou pelas escravas que falavam suas línguas com eles (Inverno 2005: 68-69).

Por outro lado, há outro fator a ser levado em consideração na reconstituição da ecologia linguística colonial de Angola: seu contato com o Brasil. Durante os séculos coloniais, as relações de Angola com o Brasil eram bastante estreitas. A localização geográfica das duas colônias, aproximadas pelas correntes marítimas do oceano Atlântico, e a demanda cada vez maior da economia brasileira por escravos fizeram com que a triangulação África-Portugal-Brasil fosse logo eliminada. Especialmente depois que brasileiros libertaram Luanda de um domínio holandês que se estendeu por sete anos[10], e com o objetivo de agilizar o comércio escravagista, o rei de Portugal preferiu nomear pessoas radicadas no Brasil para administrar a colônia africana. A interação constante com brasileiros e o aumento da imigração de brasileiros em Angola aproximou a população de Luanda daquele português falado no Brasil durante a época colonial (Inverno 2005: 71). Ao mesmo tempo, essa proximidade com Angola não pode ter deixado de impactar a língua que se formava no Brasil; tanto o quimbundo, quanto a variedade de português que emergia em Luanda foram, durante aproximadamente quatro séculos, línguas que participaram, ainda que de maneira indireta e limitada, da situação de contato da qual emergiu o português brasileiro[11].

Ao delegar a administração da colônia africana a brasileiros, Portugal deixa claro que seu interesse em Angola é puramente exploratório: é só a obtenção de escravos para suprir o mercado brasileiro e outros mercados americanos que importa para a coroa. Aí reside uma das grandes diferenças entre o Brasil e Angola. Nessa época - meados do século XVII - o Brasil já estava em estágio avançado de colonização, especialmente no litoral; no sertão, os paulistas já haviam chegado até a fronteira sul, e estavam prestes a chegar à Amazônia, delineando, assim, os primeiros contornos do que viria a ser o Brasil contemporâneo. Apesar de o multilinguismo ainda ser bastante forte, a variedade do português que se formava na colônia já começava a se constituir como um fator de unidade. Diferentemente, Angola só veio despertar um interesse colonizador de Portugal no final do século XIX, após a independência do Brasil e após o término do tráfico e a abolição da escravidão. Muitos portugueses chegaram a Angola durante a primeira metade do século XX para ocupar e colonizar o território angolano, fazendo com que o uso da língua portuguesa se estendesse por regiões em que ela ainda não havia chegado. Em contrapartida, como aponta Chavagne (2005: 27), o aumento da extensão de uso da língua não corresponde ao que o autor considera a ‘profundidade’ que a língua tinha nos primórdios da ocupação. Depreende-se que essa profundidade estava associada ao fato de que, nos tempos do tráfico, havia, especialmente em Luanda, uma parceria entre europeus, brasileiros e africanos, construída a partir de um interesse comercial comum. Diferentemente, no período tardio de colonização, a chegada de portugueses criou um grande hiato entre os brancos recém-chegados e a população local, na medida em que seus interesses políticos e econômicos eram muito diferentes (Chavagne 2005: 29). Finalmente, após a independência em 1975, apesar de 95% dos portugueses que viviam em Angola terem deixado o país, o português se estabeleceu como a língua de união nacional, após as guerras de independência[12].

Neste trabalho, como temos por objetivo levar adiante a proposta de Petter sobre o contínuuo afro-português, vamos nos concentrar na hipótese que vimos esboçando sobre como o contato do português clássico com o quimbundo, uma das línguas bantas faladas no território que hoje corresponde, grosso modo, a Angola, pode valer como hipótese explicativa para algumas construções sintáticas próprias do português brasileiro e do português angolano. Por isso, deixamos de lado o impacto que as línguas indígenas provavelmente tiveram na emergência da variedade brasileira, e que outras línguas africanas talvez tenham tido na constituição da variedade angolana. Mesmo assim, enfatizamos que a teoria de contato linguístico que estamos assumindo, lançada por Chaudenson (1992, 2001), considera que: (i) o desenvolvimento de línguas vernáculas coloniais ou línguas crioulas não pode ser entendido de maneira isolada em relação ao desenvolvimento de outros aspectos culturais, como a música, a culinária, a religião, etc.; (ii) a formação de cada cultura ou cada língua colonial, crioula ou não, é diferente da formação de outras culturas e línguas coloniais, crioulas ou não; e, mais importante, (iii) o que emerge das situações de contato, tanto do ponto de vista linguístico quanto cultural, é sempre algo novo, que se diferencia, em maior ou menor grau, de tudo o que entrou em sua formação; não se trata, portanto, nem da réplica, nem da simplificação de alguma característica presente nas línguas e culturas que contribuíram para a emergência desse elemento novo.

A proposta de Chaudenson parte, então, da ideia de que qualquer vernáculo colonial deve ser sempre analisado tomando por base a ecologia econômica e social em que ele emergiu e se desenvolveu ao longo de um amplo período de tempo. Em cada território, cada fase do processo de exploração e colonização avança de maneira particular, com diferentes taxas de imigração de membros das diversas etnias que participam de sua formação, com diferentes padrões de interação social entre os indivíduos das diversas etnias, e com diferentes alvos linguísticos, o que vem gerar diferentes graus e padrões de reestruturação e evolução linguísticas (Mufwene 2001: viii).

A teoria de evolução linguística que se coaduna com a proposta de Chaudenson e que embasa nossa análise é aquela submetida por Mufwene (2008). Sua observação inicial é a de que uma língua é uma população heterogênea de idioletos, que oferece, a quem quer aprendê-la, um conjunto de variantes para os mesmos fins comunicativos. Uma criança em processo de aquisição, ou um estrangeiro querendo aprender o português brasileiro, por exemplo, vão ter à sua disposição várias possibilidades de pronúncia do /r/ em final de sílaba; vão poder eleger uma ou outra palavra para se referir à mesma entidade (como, em alguns contextos, face, rosto, ou cara); e vão deparar com algumas estruturas sintáticas diferentes, como Esta é a menina que o João vai casar com ela, ou Esta é a menina com quem o João vai casar. Todas essas possibilidades de pronúncia, de alternativas lexicais, de estruturas gramaticais que caracterizam uma língua constituem contribuições dos falantes para a formação de um banco de traços linguísticos (feature pool). Os idioletos que os aprendizes da língua vão desenvolver, sejam eles crianças ou adultos, vão ter, para cada um dos casos exemplificados acima, uma das variantes como dominante, dependendo do contexto social em que se dá o processo de aquisição da língua, da personalidade de cada falante e de sua história de interação social; as demais variantes continuam disponíveis para a interpretação da fala de membros de outras comunidades. Às variantes são, então, atribuídos diferentes pesos. Existe uma competição entre elas e uma seleção que corresponde à preferência dos falantes pelas variantes consideradas menos marcadas. Sendo assim, nenhum idioleto é idêntico a outro; ele pode, no máximo, se assemelhar ao idioleto de outros falantes por ter se formado na mesma ecologia de interação comunicativa (Mufwene 2008: 115-117).

No caso de ecologias em que diferentes línguas estão em contato, o banco de traços linguísticos recebe contribuições de todas elas. Esse banco não se compõe apenas de variantes de uma mesma língua, mas de traços de todas as línguas usadas nas interações comunicativas entre as pessoas. Para além disso, uma das grandes diferenças que existe entre o contato de idioletos de falantes de uma mesma língua e o contato de idioletos usados por falantes nativos de línguas diversas tem a ver com a questão da congruência de traços, apontada por Chaudenson (2001; 2003) e explorada por Mufwene (2008). Por mais diferentes que sejam os idioletos de falantes de uma mesma língua, existe uma congruência substancial entre os traços de todos os idioletos. O mesmo acontece quando o contato se dá entre línguas tipologicamente próximas. Quando, no entanto, o banco de traços linguísticos é composto por traços de línguas muito diferentes, como é o caso das línguas europeias e das línguas africanas e indígenas, há uma alteração no equilíbrio de poder (balance of power) entre as variantes (Mufwene 2008: 32; 118). Ou seja, há uma mudança na configuração dos pesos atribuídos às variantes, o que permite a seleção de traços de diferentes línguas para a formação da nova língua que emerge da situação de contato. Mesmo assim, se existe alguma congruência entre estruturas das línguas em contato - congruência que deve ser entendida não necessariamente como um fato objetivo, mas como percebida pelas pessoas em interação -, é bem possível que a língua emergente desenvolva uma estrutura própria a partir das estruturas congruentes das línguas em contato, e, parcialmente semelhante a elas (Mufwene 2008: 123). Isso é o que vamos ver mais adiante.

Essa postura traz algumas consequências epistemológicas e metodológicas para o estudo do contato de línguas, já mencionadas superficialmente, e aqui ressaltadas. A primeira delas é que as estruturas que emergem no novo vernáculo não podem ser entendidas como a transposição direta de alguma estrutura de uma das línguas em contato para a nova língua; há sempre alguma adequação da estrutura ao contexto geral da língua emergente, e essa adequação não significa uma simplificação. Não se trata, portanto, de dizer que a língua emergente x incorporou, em sua gramática, a estrutura y da língua z. Tudo o que aparece na nova língua passa por um processo de competição e seleção, em que ocorre toda uma alteração na atribuição de pesos dos traços constitutivos do banco; por exemplo, traços que, para os indivíduos em situações de contato, parecem apresentar alguma congruência em relação a traços das outras línguas, tendem a ser selecionados para a língua emergente, independente do peso que tinham nas línguas de origem. Além disso, não se pode esquecer que, em situações de contato, um número grande de pessoas adultas está passando por um processo de aquisição de segunda língua. Como se sabe, de maneira geral, o resultado nesse processo é sempre diferente daquele naturalmente obtido por crianças em processos de aquisição de primeira língua.

A segunda consequência diz respeito a uma questão que perpassa grande parte dos trabalhos sobre contato de línguas: a busca por evidências que apontem claramente quais línguas específicas teriam participado de uma determinada situação de contato. Dentro da perspectiva que estamos adotando, essa questão pode ser modalizada. Nesse sentido, pensamos que, para entender a situação de contato da qual emergiram as línguas coloniais, podemos (e devemos) também trabalhar com noções mais amplas, como a de traços comuns a membros de famílias de línguas, ou como a de características areais que aparecem em várias línguas faladas em uma região geográfica. Afinal, como já dissemos, para entender o contato, não podemos trabalhar com uma noção de língua desvinculada do nicho ecológico em que ela vive. E esse nicho ecológico inclui línguas próximas, quer por pertencerem à mesma família, quer por serem faladas em áreas vizinhas.

Por fim, temos que ter claro que o melhor resultado a que podemos chegar sobre a emergência das línguas coloniais é hipotético; por mais detalhada e acurada que seja a reconstituição dos fatos, nunca vamos poder estabelecer com rigor absoluto quais eram as características dos idioletos dos indivíduos envolvidos na expansão colonial, fossem eles europeus, africanos, ou indígenas. Nesse sentido, o que vamos apresentar aqui é uma hipótese sobre o que estaria na base de certas construções sintáticas particulares das variedades brasileira e angolana do português, tomando por base os recursos que temos disponíveis no momento. Essas construções são parte de um domínio semântico amplo que abrange um grande número de construções sintáticas diferentes, que é o domínio passivo. Antes, então, de tratarmos das construções do português angolano e brasileiro que nos interessam, vamos elaborar um pouco essa noção de domínio passivo no item a seguir.

 

 

3. ‘Passiva’ como um epifenômeno, ou estratégias de impessoalização?

 

As construções gramaticais conhecidas como ‘passivas’ podem ser arroladas como um dos tópicos mais abordados na tradição dos estudos gramaticais e da linguística. Pesquisadores, a partir de diferentes perspectivas teóricas, as têm estudado com variados objetivos, o que resultou em um conjunto muito diversificado de análises, integrando o tópico gramatical conhecido como voz verbal. Tradicionalmente, a construção passiva prototípica é aquela em que o argumento tema do verbo aparece em posição de sujeito, seguido do auxiliar ser + particípio passado do verbo, e, opcionalmente, um agente da passiva. Sob o enfoque da teoria sintática de base gerativa, essa passiva prototípica é explicada como resultante da ação do conjunto de princípios gerais universais que regulam a construção das sentenças das línguas naturais. Perspectivas de base semântico-pragmática, de maneira geral, tratam essas construções como um processo de alteração nas relações gramaticais dos constituintes das sentenças, ora enxergando-as como um mecanismo de desfocalização do argumento agente, ora como um mecanismo de promoção do argumento não-agente para a posição de maior topicalidade da sentença.

Elaborar a noção de ‘passiva’ a partir dessa construção prototípica, no entanto, leva a uma caracterização muito restritiva de um fenômeno que abarca uma série de fatos gramaticais diacrônica e semanticamente associados, apesar de apresentarem estruturas morfo-sintáticas diversas. Trata-se de fenômenos que refletem uma gradiência de impessoalização: são construções em que a figura do agente perde sua força, quer porque apareça em uma posição periférica, como no caso da passiva prototípica; quer porque seja um agente indeterminado, genérico, ou indefinido, como nas construções tradicionalmente conhecidas como passiva sintética ou construções de sujeito indeterminado.

Essa parece ser a visão de Givón (2006). Definindo as passivas como “o tipo de construção sentencial na qual o agente da sentença ativa correspondente é radicalmente destopicalizado e o paciente, por default, torna-se o único argumento tópico” (Givón 2006: 338), Givón nos dá a entender que a noção de ‘passiva’ deve ser concebida como um epifenômeno, ou seja, como um fenômeno de natureza secundária, causado por outros fenômenos de natureza primária. ‘Passiva’ deixa de ser entendida, então, como apenas uma construção sintática do tipo ser+verbo no particípio passado+agente da passiva, para ser concebida como uma noção ampla, que abarca uma série de construções sintáticas diferentes, que convergem no sentido de uma interpretação não necessariamente igual, mas orientada para a mesma direção, que é a diminuição da agentividade até sua total supressão.

Dentro desse entendimento, Givón propõe uma tipologia de diversas construções em diferentes línguas, tomando como base os processos diacrônicos de gramaticalização pelos quais elas passaram. Segundo o autor, só assim é possível predizer suas propriedades relacionais, uma vez que essas características derivam de propriedades das construções das quais se originaram diacronicamente.

A tipologia proposta por Givón contém seis tipos de construções que ele chama ‘passivas’. Para a discussão que aqui faremos sobre a emergência de construções de fronteamento de constituintes e construções de impessoalização no português brasileiro e no português angolano, três dos seis tipos de ‘passivas’ integrantes da tipologia de Givón são relevantes.

O primeiro tipo, denominado Tipo A, é o das passivas tradicionalmente consideradas como prototípicas, encontradas tanto no português brasileiro, quanto no português angolano. Analisando a construção passiva canônica do inglês, Givón propõe que sua emergência seja diacronicamente devida a um contínuo de construções formal e funcionalmente semelhantes, que inclui: (i) sentenças predicativo-adjetivas, como It is big; (ii) sentenças resultativo-perfectivas, como It has been broken; e (iii) sentenças adjetivo-estativas, como It is broken, até chegar à construção passiva em (1):

 

1.    Passiva:

It was broken (by someone)

 

O segundo tipo de ‘passiva’ que é particularmente interessante para nós é o Tipo B, cuja origem, no caso das línguas românicas, está em construções de voz média-reflexiva. Givón exemplifica esse tipo com dados do espanhol[13]. A ‘passiva’ médio-reflexiva é resultante da expansão do uso do se-reflexivo/recíproco, para as construções do domínio médio, a partir da reanálise do se como um marcador daquilo que Givón chama passiva impessoal de não-promoção. Passivas de não-promoção são aquelas em que o argumento tema/paciente topicalizado não adquire propriedades gramaticais próprias do constituinte com função de sujeito na sentença ativa. As passivas de promoção, diferentemente, são aquelas em que o constituinte fronteado se comporta como sujeito. A reanálise foi possível graças a algumas propriedades importantes do espanhol[14]. São elas:

 

(i) A existência de uma construção de sujeito indeterminado, com concordância neutra de terceira pessoa do plural:

 

2.   le-vieron         en       la    calle

3s/obj-viu/3p   em      a    rua

'Eles o viram na rua.' (sujeito interpretado anaforicamente)

‘Viram-no na rua.’ (sujeito com interpretação indeterminada)

 

(ii) A expansão do se reflexivo que evolui para se tornar um marcador de construções médias, que acabam por ser interpretadas como um tipo de ‘passiva’, na medida em que o agente é demovido e o tema/paciente é o único argumento que aparece na construção:

 

3.   Voz média ou passiva impessoal:

se-quebraron                 las  ventanas

ref-quebrar/3p            as  janelas

‘Quebraram-se as janelas’.

‘As janelas (se) quebraram’.

 

(iii) A flexibilidade de ordem de palavras do espanhol que permite colocar o sujeito após o verbo, neutralizando a diferença entre sujeito e objeto, como se observa na comparação entre uma sentença ativa, como em (4a) e uma sentença média/passiva, como em (4b):

 

4a.  Ordem VO, ativa:

curaron                         los caballos

curar/pass/3p             os cavalos

'Eles curaram os cavalos.'

 

4b.  Ordem VS, média:  

se-curaron                     los caballos

ref-curar/pass/3p     os cavalos

'Os cavalos se curaram.' (Os cavalos ficaram bem)

 

Como consequência, as interpretações reflexiva, média e de passiva do se, em um período anterior à marcação obrigatória de objetos humanos com a preposição a, foram neutralizadas[15]:

 

5.   se-curaron                     los brujos

ref-curar/pass-3p    os  bruxos

Reflexiva: 'Os bruxos curaram a si mesmos.'

Média: 'Os bruxos ficaram bem.'

Passiva: 'Os bruxos foram curados.'

 

A partir dessa conjuntura, emergiram ‘passivas’ impessoais não-promocionais, em que o argumento tema/paciente é marcado como objeto, e o verbo apresenta marcas de concordância de 3a pessoa singular, como em (6a). Além disso, é possível encontrar também ‘passivas’ promocionais com sujeitos plurais, como (6b), que se confundem com construções médias:

 

6a. Passiva impessoal de não-promoção:    

se-curó                          a   los brujos

ref-curar/3s dat                os  bruxos

'Alguém curou os bruxos.'

 

6b. Passiva de promoção:

se-venden            bién   los apartamentos

ref-vender/3p   bem   os  apartamentos

'Apartamentos vendem bem’.

‘Vendem-se bem apartamentos’.

 

O terceiro tipo de ‘passiva’ importante para a análise a ser desenvolvida neste artigo é do Tipo E. Sua importância está no fato de que ela retrata a evolução da ‘passiva’ em quimbundo, apresentada em (7a) abaixo. Esta é a ‘passiva’ que tem sua origem diacrônica na confluência de uma construção de deslocamento à esquerda (como (7b)) e de uma construção com sujeito impessoal com marcas de morfológicas de terceira pessoa do plural no verbo (como em (7c)):

 

7a. ‘Passiva’:  

Nzua       a-mu-mono             kwa   meme[16]

João        eles-ele-viram         por    mim

'João foi visto por mim.'

(lit.: ‘João, eles o viram por mim’)

 

7b. Deslocamento à esquerda com NP-sujeito pleno:

Nzua, aana    a-mu-mono

João, filhos   eles-ele-viram

'João, os filhos o viram.'

 

7c. Deslocamento à esquerda com sujeito pronominal[17]:

Nzua, a-mu-mono

João, eles-ele-viram

a. Ativa anafórica: 'João, eles o viram.' (anafórica/ativa)

b. Passiva impessoal: 'João, ele foi visto.' (impessoal/passiva)

 

A construção que Givón chama ‘passiva’ do quimbundo, portanto, resulta da congruência das seguintes propriedades: o deslocamento à esquerda do argumento tema/paciente objeto, e a impessoalização do sujeito caracterizada pela marca de 3a pessoa do plural no verbo. Esse tipo de ‘passiva’ é considerado por Givón como uma ‘passiva’ de não-promoção, pois o argumento tema/paciente não exibe propriedades de sujeito: como mostra o exemplo (7a), o constituinte deslocado Nzua está na 3a pessoa do singular, e o verbo apresenta morfologia de 3a pessoa do plural no prefixo de concordância com o argumento sujeito.

A partir dos três tipos de ‘passiva’ da tipologia de Givón, apresentados acima, podemos já esboçar algumas propriedades gramaticais que nos permitem caracterizar ‘passivas’ como um epifenômeno, ou como parte de um conjunto de estratégias de impessoalização de que se valem as línguas naturais: (i) o fronteamento do constituinte tema/paciente, que pode ou não assumir as propriedades gramaticais associadas à função de sujeito (ou seja, a ‘passiva’ pode ser de promoção ou de não-promoção); (ii) a possibilidade de alterações no verbo, em alguns tipos de ‘passivas’, como modificações na sua morfologia (o uso da forma de particípio; a cliticização do se reflexivo, algumas vezes junto com a introdução de verbos auxiliares ou leves), enquanto, em outros tipos, o verbo se mantém na mesma forma que na ativa correspondente (como no caso do Tipo E); e (iii) a realização ou não do argumento agente com propriedades de constituintes oblíquos. Essas características vão ser retomadas quando tratarmos de construções do português angolano e do português brasileiro que podem ser consideradas manifestações do epifenômeno ‘passiva’, e que temos explicado como fruto do contato do português clássico e do quimbundo.

 

 

4. O epifenômeno ‘passiva’ – ou uma estratégia de impessoalização – no português angolano

 

Na primeira descrição gramatical do quimbundo, intitulada “A Arte da língua de Angola[18], uma gramática redigida no Brasil pelo sacerdote jesuíta Pedro Dias e publicada em Lisboa em 1697, encontra-se a seguinte afirmação: “Naõ tem esta lingua verbo passivo, donde para dizerem, ‘Deos he amado dos homens’, dizem: Omala azola nzambi, ‘os homens amaõ a Deos’: pondo o verbo na activa(Dias 1697: 18).

Sendo uma gramática escrita por um jesuíta europeu, ela “contém, em seu texto, observações que permitem mostrar o olhar que um falante do português dessa época lançava sobre uma língua africana tipologicamente diferente da sua” (Bonvini 2008: p. 34). Esse olhar também é encontrado em estudos mais recentes sobre a língua quimbundo, e sobre as línguas bantas em geral. No caso específico das ‘passivas’, esse olhar eurocentrista advém da generalização de um tipo particular de passiva (o Tipo A, de Givón) como caracterizadora do fenômeno geral que congrega um conjunto de estratégias de impessoalização. Como discutimos acima, estudos tipológicos, como o de Givón, vêm mostrar os problemas dessa tomada de posição. Na gramática do quimbundo não encontramos as chamadas passivas prototípicas, originadas de orações com predicados adjetivais, mas encontramos construções consideradas parte do epifenômeno ‘passiva’, advindas da confluência de estruturas de deslocamento à esquerda, e de estruturas de indeterminação do sujeito marcadas pela morfologia de 3a pessoa do plural no verbo na forma ativa. Os dados do quimbundo discutidos por Givón e apresentados acima foram atestados recentemente por um falante angolano dessa língua[19]. Eles são repetidos abaixo, com a diferença de que agora as glosas contêm as traduções oferecidas por esse falante, que é também falante do português angolano.

 

8a. Deslocamento à esquerda com NP-sujeito pleno:

Nzua,   ana            a-mu-mono

Joha     os filhos    lhe viram

 

8b. Deslocamento à esquerda com sujeito pronominal:

Nzua, a-mu-mono

Joha   lhe viram

 

8c. Passiva:

Nzua       a-mu-mono       kwa’na

Joha        lhe viram          nos filhos

 

A sentença do quimbundo em (8a) apresenta as seguintes características: (i) o argumento tema/paciente nzua ‘João’, objeto deslocado para a posição inicial da sentença, sendo retomado pelo prefixo –mu- de 3a. pessoa do singular, afixado ao verbo; (ii) o argumento agente ana ‘filhos’, sujeito da sentença em posição pré-verbal, retomado pelo prefixo a- de 3a. pessoa do plural, afixado ao verbo; e (iii) o verbo na forma ativa[20].

A sentença (8b) é ambígua: o prefixo a- afixado ao verbo, marca de concordância de 3a pessoa do plural associada ao constituinte em função de sujeito, tanto pode ser interpretado como retomando um sujeito definido no contexto, como pode receber uma interpretação genérica/indefinida. O prefixo mu-, por sua vez, concorda com o argumento tema/paciente objeto, deslocado para a posição inicial da sentença[21].

Por fim, analisemos a sentença ‘passiva’ (8c). Em quimbundo, ela não é mais ambígua. O prefixo a- afixado ao verbo, marca de 3a pessoa do plural, impessoaliza a sentença. O prefixo mu-, por sua vez, concorda com o argumento tema/paciente objeto, deslocado para a posição inicial da sentença. O verbo mantém sua forma ativa. O argumento agente é reintroduzido na sentença por meio da preposição kwa, como um argumento oblíquo. Como já dito, as ‘passivas’ do quimbundo, exemplificadas em (8c), são de não-promoção (nos termos de Givón), uma vez que a sentença mantém a organização prefixal das sentenças ativas: o prefixo –mu- adjacente à raiz verbal concorda com o argumento tema/paciente deslocado à esquerda, antecedido pelo prefixo a-, marca morfológica de 3a pessoa do plural impessoal.

A tradução oferecida pelo falante do português de Angola para a sentença (8c) é merecedora de destaque. Chavagne (2005), em sua tese de doutorado sobre o português angolano, já havia atestado um conjunto de sentenças que ele caracterizou como uma forma curiosa de ‘passivas’ do português angolano, retiradas de um corpus literário por ele constituído. A respeito dessas passivas, Chavagne cita Luandino Vieira: “Uma criança, em Luanda, que quer dizer que outra criança foi batida, que quer dizer: ‘João foi batido pela sua mãe’, o que é uma construção portuguesa passiva, diz : ‘O João, lhe bateram na mãe dele’.” (Chavagne 2005: 269).

Retomando a explicação oferecida para a formação de ‘passivas’ do quimbundo por Héli Châtelain em sua gramática dessa língua, descrição essa de construções equivalentes às apresentadas por Givón e exemplificadas em (10c), Chavagne atribui a origem das ‘passivas curiosas’ do português angolano às ‘passivas’ do quimbundo. Abaixo alguns dados apresentados por Chavagne[22]:

 

9.   O João lhe bateram na mãe dele (LABA, p.145)[23]

‘O João foi batido pela mãe

 

10. O papá estão a lhe bater num doente (MALB, p.31)

‘O papai está sendo batido por um doente’

 

11. ...quando tinham-lhe tirado o cabasso num tio dela (VIEH, p.33)

‘...quando o cabasso lhe foi tirado por um tio dela

 

Às ‘passivas curiosas’ do português angolano exemplificadas entre (9) e (11), bem como à tradução da sentença (8c), podemos oferecer a seguinte descrição: (i) o argumento tema/paciente objeto é fronteado e retomado pelo clítico objeto lhe; (ii) o verbo, na sua forma ativa é realizado com marca de concordância de 3a pessoa do plural, denotadora de sujeitos genéricos/indefinidos; e (iii) o argumento agente é realizado como um argumento oblíquo introduzido pela preposição em[24].

É também merecedor de nota o fato de que as passivas prototípicas, ou seja, as passivas originadas de orações com predicados adjetivais também são atestadas no português angolano. Em pesquisa que buscava caracterizar as diferenças entre passivas verbais e passivas adjetivais no português brasileiro e no português angolano, a partir de dados de língua escrita jornalística, Soares (2009) se defrontou com dados do português angolano como o seguinte:

 

12. Zéphirin Diabré [...] esteve ladeado do representante em exercício do Pnud em Angola, Herbert Behrstock.

 

Em (12) o argumento tema/paciente objeto é promovido à posição de sujeito da sentença; o argumento sujeito é realizado como um argumento oblíquo introduzido pela proposição de; e o verbo, no particípio passado, tem suas marcas de tempo e concordância realizadas pelo auxiliar estar.

Apesar das diferentes modalidades, língua escrita jornalística e língua falada por falantes bilíngues de português e quimbundo, é interessante observar que numa mesma língua coexistem ‘passivas’ advindas de estruturas diferentes. Sua coexistência pode então encontrar explicação em uma teoria que traga para a discussão a história dos contatos linguísticos, na medida em que as situações de contato propiciam interações comunicativas entre os falantes das línguas envolvidas desencadeando, por parte de cada falante, interpretações próprias sobre as propriedades gramaticais das línguas em contato. Como visto, sob o enfoque da teoria de contato que subjaz este trabalho, as diferentes línguas contribuem para a formação de um banco de traços gramaticais que é acessado durante as interações comunicativas. Na seção 6, vamos desenvolver a hipótese de que a congruência de traços gramaticais provenientes do português e do quimbundo está na base de uma explicação para a emergência do português angolano e do português brasileiro.

 

 

5. O epifenômeno ‘passiva’ – ou uma estratégia de impessoalização – no português brasileiro

 

Assim como no português angolano, coexistem, no português brasileiro, diferentes tipos de construções de impessoalização, cujas características permitem-nos associá-las ao epifenômeno ‘passiva’, para além da passiva prototípica, como exemplificada em (13):

 

13. No ano passado, perdemos o título já na primeira partida, em Salvador, quando fomos prejudicados pela arbitragem.

 

Algumas dessas construções são particularmente interessantes na medida em que acabam por distanciar o português brasileiro do português europeu, e até mesmo de outras línguas românicas. Vimos descrevendo e analisando essas construções em uma série de artigos, em que mostramos como elas vêm se expandindo no português brasileiro: sentenças tipicamente impessoais, normalmente envolvendo verbos denotadores de fenômenos meteorológicos e de tempo decorrido, como em (14) e (15), estendem-se para abrigar verbos monoargumentais inacusativos, como em (16) e (17) (Negrão et al. 2011b), chegando mesmo a compreender verbos plenamente transitivos, como em (18) e (19), à semelhança das construções existenciais com foco apresentacional, como em (20) (Franchi et al. 1998; Viotti 1999; Negrão et al. 2008):

 

14. Choveu muito pouco no verão este ano

15. Faz muito tempo que a gente não conversa sobre literatura

16. Aconteceu um acidente horrível na Marginal Pinheiros hoje cedo

17. Chega um ponto na carreira, em que o acúmulo de serviço é tal que a gente não aguenta

18. Dá umas nanicas enormes na minha chácara

19. gravando direito nesse gravador?

20. Tem problemas sérios de trânsito em São Paulo

 

Paralelamente a essas construções, outras são dignas de nota. A sentença (21), considerada por Galves (2001: 81), como uma construção característica do português brasileiro, tem sido estudada como consequência da evolução de uma sentença do tipo ‘passiva’ impessoal de não-promoção, semelhante à sentença (6a) do espanhol, com verbo na forma ativa na 3a pessoa do singular, que teria perdido a marca do clítico se, mas mantido uma interpretação de um agente genérico ou indefinido (Cavalcante 2006):

 

21. Aqui conserta sapatos

 

Para além dessas construções em que a ausência do clítico e o verbo na 3a pessoa do singular levam a uma interpretação indefinida do agente, em sentenças como (18) e (19), também típicas do português brasileiro e inexistentes no português europeu, a impessoalização é total, no sentido de que qualquer traço de agentividade é apagado[25]. Nesses casos de impessoalização total, o argumento tema/paciente pode, se fronteado, assumir as propriedades do constituinte sujeito. Nos termos de Givón, teríamos, então, passivas de promoção, como em (22) e (23):

 

22. Estas nanicas enormes deram na minha chácara

23. A entrevista gravando

 

A impessoalização com interpretação genérica/indefinida permite, ainda hoje, a inserção do pronome se, reforçando a ideia de que sua origem estaria nas ‘passivas’ impessoais de não-promoção, características das línguas românicas:

 

24. Aqui se conserta sapatos

 

No entanto, no caso de impessoalização total, o uso do se gera agramaticalidade:

 

25. *Estas nanicas enormes se deu/se deram na minha chácara

26. *A entrevista está se gravando

 

Essa assimetria entre sentenças como (24), em que o clítico se ainda é possível, e casos em que a presença do clítico é impossível, indica que a peculiaridade de sentenças como (22) e (23) não pode ser explicada apenas pela perda do pronome clítico de 3a pessoa que vem sendo atestada na evolução do português brasileiro[26].

As construções de impessoalização total com a promoção do argumento tema/paciente vêm se expandindo na gramática do português brasileiro. De há muito apontadas por nós, essas construções, que analisamos como construções absolutas (Negrão et al. 2010), são cada vez mais atestadas na fala cotidiana do português brasileiro contemporâneo. Além dos muitos exemplos que apresentamos em trabalhos anteriores, todos anotados a partir de fala espontânea, encontramos, num comercial recente, um exemplo de construção absoluta que mostra (i) como essas construções são, de fato, comuns no português brasileiro; e (ii) como, nelas, o argumento tema/paciente realmente se comporta como sujeito, disparando a concordância de número e pessoa do verbo:

 

27. A cada um minuto quatro coisas vendem.

 

Nos trabalhos que vimos desenvolvendo, temos argumentado no sentido de explicar essas construções absolutas como resultante do contato que o português clássico teve com o quimbundo nos séculos coloniais, sempre em busca de uma resposta à questão levantada por Paixão de Sousa (2008), mencionada na Introdução deste artigo. Na próxima seção, retomamos essa argumentação sobre a emergência dessas construções do português brasileiro, expandindo-a para dar conta das construções passivas peculiares do português angolano, vistas na seção 4.

 

 

6. A constituição do banco de traços linguísticos do qual emergiram o português brasileiro e o português angolano

 

Retomamos aqui a questão apresentada na Introdução deste artigo, levantada por Paixão de Sousa a propósito da emergência do português brasileiro, que nós estendemos para incluir o português angolano: o que teria possibilitado a emergência de gramáticas com as propriedades descritas acima, caracterizadoras quer do português angolano, quer do português brasileiro, a partir de uma gramática como a do português clássico? A resposta, como já adiantamos, passa pela história dos contatos do português clássico com as línguas africanas, nas ecologias próprias em que se constituíram cada uma das variedades do português. Mais ainda, passa pela observação de que a congruência entre as propriedades gramaticais das línguas em contato pode explicar as propriedades gramaticais das variedades emergentes. Vejamos, então, quais seriam as propriedades gramaticais do português clássico e do quimbundo que seriam relevantes para explicar as construções do português brasileiro e angolano que apresentamos nas duas últimas seções deste artigo.

No que diz respeito ao português clássico, comecemos por retomar algumas de suas principais características (Paixão de Sousa 2008), tomando por base a descrição da sentença (28) abaixo:

 

28. El Reii ....[uma chamada Dona Urraqua]j,øi casou tj com o Conde Dom Reymão de Tolosa (Paixão de Sousa 2008)

 

Em (28), o constituinte uma chamada Dona Urraqua, complemento do verbo casar, portador do papel semântico de paciente, é fronteado para uma posição pré-verbal, recebendo com isso proeminência pragmática; e o argumento agente corresponde a um sujeito nulo que retoma anaforicamente o constituinte El Rei, introduzido previamente no texto. A marca de terceira pessoa do singular no verbo casar possibilita a recuperação da interpretação referencial definida do constituinte sujeito, por meio de associação anafórica. Essa retomada anafórica acontece independentemente da distância entre o sujeito nulo e o antecedente com o qual o sujeito nulo mantém relação:

 

29. Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradoresi fazem seus mantimentos que lá Øi comem em lugar de pão. A raiz se chama Mandioca, e a planta de que se gera, é da altura de um homem pouco mais ou menos. Esta planta não é muito grossa e tem muitos nós: quando Øi a querem plantar em alguma roça, Øi cortam-na e Øi fazem-na em pedaços, os quais Øi metem debaixo da terra... (Gandavo 1576)[27].

 

Em (29), os diversos sujeitos nulos de verbos com marcas de terceira pessoa do plural têm interpretação referencial definida dada pela relação anafórica estabelecida entre elas e o constituinte os moradores, introduzido em uma oração relativa que integra a primeira sentença do trecho[28].

Além dessas propriedades - a preferência por sujeitos nulos anafóricos, que tendem a carregar o papel semântico de agente; a preferência pelo fronteamento para uma posição pré-verbal de constituintes com papel semântico de paciente, o que lhes confere proeminência pragmática; a possibilidade de ligação anafórica à distância entre um sujeito nulo e um referente já presente no discurso - o português clássico se caracteriza por uma expansão do pronome se reflexivo para construções impessoais, como em (30) e (31); médias, como em (32); e construções tradicionalmente chamadas passivas sintéticas, como em (33-35)[29]:

 

30. Esta ilha jaz dentro de um rio muito grande, de cuja barra dista uma légua pelo sertão dentro: no qual se mata infinito peixe... (Gandavo 1576)

31. Outras arvores differentes destas, há na capitania dos Ilhéus, e na do Espírito Santo a que chamam Caborahíbas, de que também se tira outro bálsamo (Gandavo 1576)

32. Somente tratarei aqui de uma [erva]i muito notável (....) Chama-se erva viva (...). Quando alguém lhei toca com as mãos, ou com qualquer outra coisa que seja, naquele momento  Øi se encolhe & murcha... (Gandavo 1576)

33. Uma planta se dá também nesta província... (Gandavo 1576)

34. Algumas [frutas] deste Reino se dão também nestas partes, convém a saber, muitos melões, pepinos, romãs e figos de muitas castas... (Gandavo 1576)

35. Duas léguas deste mesmo arrecife, para o Norte, está outro, que é o porto, onde entrou a frota quando esta província se descobriu. (Gandavo 1576)

 

Nas sentenças (30) e (31), nas quais os verbos exibem marcas de terceira pessoa do singular, o argumento tema permanece em posição pós-verbal e o pronome se está adjacente ao verbo em posição pré-verbal. Nelas, a interpretação associada ao argumento agente é uma interpretação genérica/indefinida. Já em (32), o sujeito vazio tem uma referência definida dada pela relação anafórica estabelecida com o constituinte erva, previamente introduzido no texto. O pronome se, nesse caso, proporciona à sentença uma interpretação média, ou seja, a de que os papéis semânticos de desencadeador do encolhimento e de paciente do encolhimento não são nitidamente distinguíveis.

As sentenças de (33) a (35) exigem uma discussão mais longa. Nelas, o argumento tema/paciente está fronteado, realizando-se em posição pré-verbal. A sentença (34) deixa claro que o argumento fronteado desencadeia concordância no verbo: algumas frutas, argumento tema/paciente em posição pré-verbal, com marca de plural, desencadeia no verbo marcas de terceira pessoa do plural. Tradicionalmente, as sentenças entre (33) e (35) seriam analisadas como passivas sintéticas. A ideia por trás dessa análise é a seguinte: o fato de o argumento tema/paciente poder ser fronteado para uma posição pré-verbal e poder desencadear marcas morfológicas de concordância no verbo dá a esse argumento o comportamento de sujeito da sentença. Reforça a caracterização dessas sentenças como estruturas passivas o fato de que, em um período da história do português, foram atestadas sentenças com se nas quais o argumento agente podia ser explicitado como um constituinte introduzido por preposição[30].

Entretanto, Cavalcante (2011), ampliando a proposta feita por Raposo et al. (1996) para o português europeu, argumenta que as construções com se tradicionalmente conhecidas como passivas sintéticas não podem ser tratadas como sentenças passivas, no sentido estrito do termo; ou seja, elas não podem ser equiparadas às passivas prototípicas. Para sustentar seu argumento, Cavalcante recorre a uma análise quantitativa em dados diacrônicos extraídos de corpus composto por textos de autores nascidos entre os séculos XVI e XIX[31]. O trabalho compara o comportamento de sujeitos canônicos de sentenças ativas e de passivas prototípicas ao comportamento exibido pelo argumento tema/paciente, fronteado ou não, das construções com se em que o verbo exibe marcas de concordância com esse argumento tema/paciente. Além disso, a autora realiza um levantamento das construções com se contendo argumentos agentes realizados explicitamente por constituinte introduzido por preposição.

A análise mostra, em primeiro lugar, que essa explicitação do argumento agente sob a forma de um constituinte introduzido por preposição se mantém muito baixa desde o século XVI sugerindo que se trata de algo fossilizado, que não faz parte da gramática. Em segundo lugar, e esta é uma conclusão muito importante, nas construções com se, o argumento tema/paciente fronteado, ainda que possa desencadear concordância, não exibe o mesmo comportamento histórico do sujeito prototípico ao longo dos séculos contemplados na análise, ou seja, na trajetória do português clássico para o português europeu contemporâneo. O que fundamenta essa observação é o fato de que, diferentemente do que aconteceu com os sujeitos canônicos, os argumentos tema/paciente das construções com se mantiveram, ao longo dos séculos, uma distribuição estável de realizações em contextos pré-verbais, pós-verbais, ou como argumentos nulos.

Esse padrão estável de realização contrasta frontalmente com o desenvolvimento histórico do posicionamento estrutural dos sujeitos canônicos, que, no século XVIII, passam por uma mudança drástica: cai a preferência pela ordem VS, e os sujeitos das sentenças ativas e das passivas prototípicas passam a exibir uma alta frequência de realização em posição pré-verbal.

Para além dessas observações, outro dado quantitativo corrobora a ideia de que os argumentos tema/paciente das construções com se têm comportamento de objetos canônicos, e não de sujeitos canônicos: o número de realizações desses temas/pacientes como argumentos nulo é muito baixa, não chegando a 10% de todas as ocorrências no período observado, equiparando-o às taxas de realização de objetos nulos no português europeu moderno.

A análise deixa claro, então, que os argumentos tema/paciente das construções com se, mesmo quando desencadeiam concordância, são constituintes fronteados e não sujeitos prototípicos. Entretanto, apesar de diferentes da passiva prototípica, essas construções podem ser consideradas manifestações do epifenômeno ‘passiva’, podendo ser caracterizadas, nos termos de Givón, como passivas impessoais de não promoção. O argumento tema/paciente é fronteado para uma posição pré-verbal, pragmaticamente proeminente. O pronome se nessas construções, dá ao argumento sujeito agente uma interpretação genérica/indefinida; ou seja, ele é uma marca de impessoalização da sentença.

Em termos gerais, para os fins da elaboração da hipótese que estamos levantando aqui, as propriedades do português clássico que entraram na composição do banco de traços das línguas em contato nas colônias do Brasil e de Angola são as seguintes: (i) a posição pré-verbal da sentença não é a posição canônica para sujeitos, sendo frequentemente ocupada por argumentos tema/paciente por razões de proeminência pragmática; (ii) argumentos agente, sujeitos da sentença desencadeadores de concordância no verbo, frequentemente são nulos ou se realizam em posição pós-verbal; (iii) sujeitos nulos recebem interpretação referencial definida se estiverem anaforicamente ligados a constituintes já inseridos no discurso; e (iv) nas construções com se, o argumento tema/paciente, quando fronteado, ocupa a posição pré-verbal destinada a constituintes não-sujeito e o argumento agente recebe interpretação indefinida/genérica.

Por outro lado, as propriedades do quimbundo que entraram na composição do banco de traços das línguas em contato nas colônias do Brasil e de Angola, de acordo com os dados em (7) e (8) acima, são as seguintes: (i) a posição pré-verbal da sentença é ocupada por argumentos tema/paciente fronteados; (ii) o argumento tema/paciente fronteado é retomado pelo prefixo de objeto, adjacente ao verbo; e (iii) o prefixo de sujeito, afixado ao verbo em sua forma ativa, carregando marcas de 3a pessoa do plural, causa uma ambiguidade entre duas interpretações possíveis para o argumento agente sujeito: a interpretação referencial definida pelo estabelecimento de relação anafórica com algum constituinte já introduzido no discurso, ou uma interpretação genérica/indefinida. Quando o argumento agente é reintroduzido por um argumento oblíquo, o prefixo de sujeito com marcas de 3a pessoa do plural impessoaliza a sentença.

Seguindo a teoria de contato e de evolução linguística que expusemos na seção 2 acima, temos proposto que algumas construções impessoais do português brasileiro se originaram a partir da interpretação que europeus e africanos fizeram dos traços tanto do português clássico, quanto do quimbundo, disponíveis a eles em um banco de traços linguísticos, construído a partir das interações comunicativas que ocorreram na época colonial. Como dissemos anteriormente, essa teoria de contato linguístico enfatiza a congruência entre traços das línguas que participam da formação do banco, como um fator de peso na seleção dos traços que vão eventualmente entrar na gramática da língua colonial emergente.

Vamos ver, então, como temos explicado casos de impessoalização total do português brasileiro - construções que temos chamado absolutas - como as dos exemplos (22) e (23), aqui repetidos como (36) e (37):

 

36. Estas nanicas enormes deram na minha chácara

37. A entrevista gravando

 

Traços de uma estrutura como a do português clássico, em (38) (correspondente a uma sentença como (28) acima), são congruentes com traços de uma estrutura do quimbundo, em (39) (correspondente a uma sentença como (7c) acima).

 

38. [DP tema deslocado para posição pré-verbal ][Ø sujeito nulo anafórico ][Vforma ativa/concordância com antecedente do sujeito nulo]

39. [DP tema deslocado para posição pré-verbal] [prefixo sujeito anafórico OU com leitura impessoal + prefixo objeto + Vforma ativa]

 

Nas construções absolutas do português brasileiro, o que temos é um argumento tema/paciente deslocado para a posição pré-verbal, fruto da congruência de características do português clássico e do quimbundo. Igualmente, como consequência da congruência de traços das duas línguas, temos o verbo na voz ativa. Por fim, temos a leitura impessoal, herdada do quimbundo, transformada na total ausência de agentividade.

Na impessoalização parcial do português brasileiro, discutida a propósito da sentença (21), aqui retomada como (40), o que vem da congruência entre traços do português clássico e do quimbundo é, primeiramente, a manutenção do verbo na forma ativa. A ausência de argumento agente pode ser explicada pela leitura impessoal da estrutura do quimbundo, associada ao sujeito nulo da estrutura do português clássico, que, na variedade brasileira não se liga anaforicamente a nenhum constituinte.

 

40. Aqui conserta sapatos

 

Vejamos agora como podemos explicar a emergência das ‘passivas curiosas’ do português angolano por meio de uma teoria de contato, como a que adotamos aqui. As ‘passivas curiosas’ estão exemplificadas em (9) acima, aqui retomadas como (41):

 

41. O João, lhe bateram na mãe dele (LABA: 145)

      João foi batido pela mãe

 

As características dessa construção estão ligadas à congruência de traços do português clássico apresentados na estrutura (38), e de traços do quimbundo que entraram no banco de traços a partir da estrutura de uma sentença como (7a), aqui repetida como (42):

 

42. Nzua       a-mu-mono              kwa   meme

João        eles-ele-viram          por    mim

João, viram-no por mim (lit.)

João foi visto por mim.

 

A estrutura dessa sentença é a seguinte:

 

43. [DP tema deslocado para posição pré-verbal] [prefixo sujeito com leitura impessoal + prefixo objeto + Vforma ativa][preposição + pronome]

 

Nas ‘passivas curiosas’ do português angolano, temos a seguinte configuração: um argumento tema/paciente deslocado para a posição pré-verbal, resultante da congruência de características do português clássico e do quimbundo; o verbo na forma ativa, como congruência das estruturas das duas línguas; o pronome lhe cliticizado ao verbo, retomando o constituinte deslocado para posição pré-verbal, de maneira semelhante ao prefixo de objeto cliticizado ao verbo na estrutura do quimbundo; a marca de 3a pessoa do plural, conferindo à sentença uma leitura impessoal, que também existe na estrutura do quimbundo; e, por fim, a realização do argumento agente como um constituinte oblíquo introduzido pela preposição em, como na estrutura do quimbundo, e como nas passivas prototípicas do português clássico.

Com essa nossa breve apresentação das possibilidades de congruência de traços entre o português clássico e o quimbundo, a partir das quais supomos que tenham emergido algumas das construções impessoais do português brasileiro e angolano, não queremos dizer que os traços de uma língua e de outra tenham se mantido ‘imaculados’ no âmbito da ecologia de contato. É sempre importante ter em mente que, na época colonial, as línguas eram usadas por adultos que as aprendiam como língua estrangeira. Seu interesse não era ‘preservar’ as línguas, mas usá-las de modo colaborativo, em suas interações diárias. Portanto, o raciocínio que temos que fazer para conceber o banco de traços linguísticos deve envolver alguns passos a mais, relacionados a possíveis alterações que eventualmente tenham ocorrido nas características das línguas, resultantes do processo de aquisição. Como ilustração desse raciocínio, tomemos mais um dado do português clássico, como (44a), extraído de Gandavo (1576):

 

44a ....que foi a segunda navegação que fizeram os portuguesesi para aquelas partes do Oriente (....) E depois de haver bonança junta outra vez a frota, Øi empegaram-se ao mar, assim por Øi fugirem das calmarias da Guiné, que lhesi podiam estorvar suai viagem ...

 

Como nos dados do português clássico já analisados acima, em (44a) os diversos sujeitos nulos de verbos com marcas de terceira pessoa do plural têm interpretação referencial definida dada pela relação anafórica estabelecida entre elas e o constituinte os portugueses, complemento do verbo de uma sentença bem distante. Mais uma propriedade do português clássico, integrante do banco de dados das línguas em contato, congruente com propriedades do quimbundo, parece ter aflorado de maneira interessante nas ‘passivas curiosas’ do português angolano: o pronome dativo lhes. Em (44b) isolamos as relações que nos interessam para a análise desse pronome:

 

44b. Os portuguesesi.... fugirem das calmarias que lhesi podiam estorvar suai viagem

 

O verbo estorvar tem como seus argumentos: o pronome relativo que, argumento sujeito carregando o papel semântico de causa do estorvo, que retoma o constituinte as calmarias da oração anterior; e o constituinte sua viagem, argumento objeto que carrega o papel semântico de tema do estorvo. O pronome dativo lhes, cuja referência é dada pela relação anafórica estabelecida com o constituinte os portugueses, carrega o papel semântico de beneficiário ou maleficiário afetado não necessariamente previsto na grade do verbo estorvar. Esse pronome dativo lhes, por sua vez, está ligado ao pronome possessivo sua integrante do argumento objeto, sua viagem. Intuitivamente, lhes e sua formam um constituinte descontínuo[32], carregando duas relações semânticas: a de ser quem realiza a viagem e a de ser quem pode ser estorvado pelas calmarias. Estruturas como essas do português clássico certamente integraram o banco de traços das línguas em contato. Como já hipotetizado, esse banco de traços também contém estruturas do quimbundo, em que –mu-, prefixo de objeto retoma o argumento tema/paciente fronteado para a posição pré-verbal. Nas ‘passivas curiosas’ do português angolano, como exemplificado em (41), o pronome dativo lhe emerge ao mesmo tempo retomando o argumento tema/paciente fronteado para a posição pré-verbal e relacionando-se anaforicamente com o possessivo contido no argumento agente realizado como um oblíquo introduzido pela preposição em. Cabe ainda notar que o possessivo no português angolano é realizado pela forma dele, forma também usada no português brasileiro para denotar o possuidor de terceira pessoa.

O banco de dados deve, então, ser sempre entendido como algo que não permaneceu estático ao longo dos anos de contato, mas como algo dinâmico, sempre aberto a alterações e a novas contribuições.

 

 

7. Considerações Finais

 

Fazer da linguagem humana seu objeto de estudo já é tarefa árdua para qualquer cientista, uma vez que dela só temos de concreto suas realizações; a partir delas, temos que levantar hipóteses sobre os mecanismos responsáveis por essas produções. Mais árdua ainda é a tarefa do linguista dedicado a explicar o processo da evolução linguística, uma vez que as produções a que temos acesso, normalmente textos escritos e dados históricos, são fontes que precisam da interpretação do investigador para a construção do seu sentido.

Neste artigo, a partir de fontes históricas, textos escritos e dados de produção linguística atestados recentemente, tivemos como objetivo construir hipóteses sobre o que teria sido a história dos contatos linguísticos que desencadearam a emergência de duas variedades coloniais, o português brasileiro e o português angolano. Sempre tendo em mente que o contato se dá em uma ecologia sócio-histórica particular, procuramos, inicialmente, construir algumas das características da ecologia em que tiveram início as formações do português brasileiro e do português angolano. Em seguida, na busca de uma explicação para as propriedades das construções sintáticas que caracterizam as estratégias de impessoalização das variedades emergentes, partimos da análise das propriedades das gramáticas das línguas em contato no período colonial para reconstruir o processo de congruência que possibilitou essa emergência e assim oferecer uma perspectiva coerente para a explicação da evolução linguística.

 

 

Referências

 

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[1] Trabalhos comparativos recentes têm sido inspirados pela perspicaz observação de Petter. Figueiredo et al. (2013), por exemplo, comparam os sistemas pronominais do português falado na região do Libolo, em Angola, com o português afro-indígena de Jurussaca, na região norte do Brasil, mostrando que a hipótese de um contínuo de português constituído por variedades africanas e brasileiras está no caminho certo.

[2] Esses textos são parte do Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese (Galves et al. 2010).

[4] A idéia dessa denominação foi inspirada na análise de Alencastro (2000), para quem a formação da nação brasileira se deu a partir de fortes relações econômicas mantidas entre o Brasil e Angola, desde o século XVI até o fim do tráfico, em meados do século XIX, em um espaço transcontinental constituído pelas rotas marítimas que ligavam Portugal, Brasil e a África ocidental.

[5] Não queremos dizer com isso que o estudo da emergência do português brasileiro deva deixar de lado os textos dos escritores portugueses dos séculos em que se deu a expansão colonial europeia. Afinal, esses são os únicos documentos que temos do que era a língua dessa época. Queremos apenas enfatizar que existe uma distância entre essa variedade do português e aquela falada pelos primeiros desbravadores.

[6] Bonvini comenta que, nos entrepostos do tráfico na costa de Angola, é provável que o quimbundo de Luanda tenha sido a língua veicular de comunicação entre aqueles que aguardavam os navios negreiros.

[7] No território colonial, esses agentes vieram encontrar, em diferentes períodos da história, uma variedade de outros povos, falantes de outras línguas, que, tanto quanto os africanos, estavam acostumados a interagir - pacificamente, ou não - com seus conterrâneos, cujos dialetos e culturas, embora muitas vezes próximos, tinham suas particularidades. Desse rico encontro de diferentes povos, culturas e línguas, em diferentes fases, com diferentes níveis de intensidade, em meio a diferentes proporções de participação étnica e linguística é que emergiu o português brasileiro.

[8] Chavagne (2005: 21-22) cita alguns testemunhos da época que registram que o português - certamente alguma variante nova do português - era falado por uma boa parcela da população, para além das línguas locais. Há registros, inclusive, de que o castelhano também era ouvido em algumas partes da região.

[9] Chavagne (2005: 24) sugere que o quimbundo e o português foram se dialetizando, até o momento em que surgiu uma língua ‘crioula’ de uso geral nas atividades cotidianas de Luanda. Ele comenta que essa língua era falada não só pelos africanos, mas pelos habitantes de origem europeia. Pensamos que Chavagne considera essa língua falada em Luanda como uma língua ‘crioula’ apenas no sentido de que ela é uma língua que emergiu em uma situação de contato linguístico e cultural, e não necessariamente uma língua que tenha se forjado em ecologias semelhantes àquelas em que se formaram as línguas hoje conhecidas como ‘línguas crioulas’.

[10] Não temos notícia do impacto linguístico que a presença dos holandeses possa ter causado em Luanda, durante os anos da ocupação. De qualquer maneira, não se pode ignorar que a língua falada pelos invasores participou, por quase uma década, do panorama sociolinguístico de Luanda.

[11] Bonvini (2008) apresenta evidências de que o quimbundo era uma das línguas faladas no Brasil no século XVII.

[12] Durante o período das guerras de independência, deve-se notar o contato intenso que os angolanos tiveram com o espanhol cubano, levado para a África pelo grande contingente de soldados de Cuba recrutados para colaborar com os exércitos revolucionários, especialmente o MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola (Chavagne 2005: 20). Além disso, Angola faz fronteira com países francófonos ao norte e anglófonos ao sul. É de se esperar, então, que o francês, num caso, e o inglês, em outro, tenham participado da ecologia de contato nas regiões limítrofes do território.

[13] No caso do inglês, esse tipo de ‘passiva’ abrange as passivas com get, como em Mary got fired (A Maria foi demitida).

[14] Mantivemos os exemplos no espanhol como estão em Givón, mas tomamos a liberdade de traduzi-los para o português diretamente do espanhol, e não a partir das traduções do inglês que aparecem no artigo original.

[15] Givón observa que originalmente o espanhol não exigia que objetos do verbo denotadores de seres humanos fossem introduzidos pela preposição dativa a que, no espanhol moderno, é um marcador obrigatório de objeto direto com traço [+humano].

[16] Estamos mantendo, com a tradução para o português, a descrição dos dados tal como em Givón (2006).

[17] Esta construção tem duas possibilidade de leitura, que vêm explicitadas em (a) e (b) abaixo.

[18] Bonvini (2008) assim registra as informações catalográficas da gramática: Arte da lingoa de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Pedro Dias da Companhia de Jesu. Lisboa, na Officina de Miguel Deslandes, Impressor de Sua Magestade. Com todas as licenças necessarias. Anno 1697. 48 p.

[19] Agradecemos a José Albino José, colaborador angolano do Projeto Interdisciplinar Aspectos Linguístico-educacionais, histórico-culturais, antropológicos e sócio-identitários do Município do Libolo - Kwanza Sul/Angola, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Figueiredo, da Universidade de Macau.

[20] É preciso registrar que nas línguas bantas a ordem dos prefixos do verbo é fixa: o prefixo adjacente ao verbo exibe marcas de concordância com o argumento tema/paciente em função de objeto, ao passo que o prefixo mais distante da raiz verbal exibe marcas de concordância com o argumento agente em função de sujeito. É esse o mecanismo utilizado pela língua para garantir, a partir da distribuição sintática dos constituintes, a interpretação semântica dos argumentos do verbo.

[21] Cabe ressaltar que o falante preferiu traduzir o prefixo -mu- pelo pronome lhe do português. O uso do pronome dativo lhe para a retomada de argumentos com função de objeto direto é atestado tanto no português angolano (Figueiredo et al. 2013), como no português de Moçambique (Gonçalves 2010). Gonçalves propõe que a uniformização dos argumentos beneficiário [+humano] com função gramatical de objeto direto e indireto no português de Moçambique pode ser explicada como advindo da transferência de propriedades das línguas nativas (línguas bantas) dos falantes adquirindo português. Proposta semelhante é feita para o português angolano por Figueiredo et al. (2013).

[22] Esses dados também foram atestados por José Albino José, colaborador angolano do Projeto do Libolo.

[23] As siglas entre parêntesis indicam a catalogação dos dados no corpus constituído por Chavagne (2005)

[24] Chavagne (2005) também registra, como uma característica do português angolano, o uso da preposição em no lugar das preposições a, para, de e por do português europeu.

[26] Para uma discussão mais detalhada desse fato, ver Negrão et al. (2010).

[27] Os dados do português clássico são citações retiradas da obra de Pero Magalhães de Gandavo (1576), texto que integra o Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese (Galves et al. 2010). Para tanto utilizamos a versão texto completo modernizado.

[28] Essa possibilidade de retomada anafórica à distância nos leva a perguntar como e quando teriam surgido as construções de impessoalização com sujeito nulo e verbo na 3a pessoa do plural, como em Compraram aquela casa da esquina. Numa primeira leitura de alguns textos do português clássico, parece não haver casos de impessoalização desse tipo: todos os sujeitos nulos puderam ser anaforicamente ligados a algum antecedente. Isso nos dá a impressão de que, no português clássico, o pronome se é o marcador de impessoalização do sujeito canônico. Essa impressão pode ser tomada como uma hipótese de trabalho. Mais estudos precisam ser realizados para verificar essa questão.

[29] Isso está de acordo com a observação feita por Givón sobre a diacronia do espanhol, vista acima. Os grifos, nos exemplos, são nossos, assim como a inserção das marcas de sujeito nulo e de correferência que aparecem em alguns casos.

[30] Para exemplos dessas construções com o argumento agente introduzido por preposição, ver os dados extraídos de Os Lusíadas, apresentados em Negrão et al. (2008).

[31] Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese (Galves et al. 2010).

[32] Esse fenômeno, também encontrado em outras línguas, é conhecido na literatura gerativista como construções possessivas dativas.

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