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Lingüística
On-line version ISSN 2079-312X
Lingüística vol.30 no.2 Montevideo Dec. 2014
Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 171-208
ISSN 1132-0214 impresa
ISSN 2079-312X en línea
CONSTRUÇÕES COM PRONOMES LOCATIVOS (LOC) DO TIPO LOCV E VLOC NO PB E NO PE: CORRESPONDÊNCIAS E DISTINÇÕES
GRAMMATICAL CONSTRUCTIONS WITH LOCATIVE PRONOUNS (LOC) OF THE LOCVANDVLOCTYPE IN EP AND BP: CORRESPONDENCES AND DISTINCTIONS
Mariangela Rios de Oliveira[1]
Universidade Federal Fluminense
Hanna Batoréo
Universidade Aberta
O presente artigo objetiva a descrição e a análise de expressões verbais formadas por pronomes locativos, interpretadas como instanciações de dois padrões construcionais, LocV e VLoc, a funcionar na conexão textual, como aí vem e lá vai, e na marcação discursiva, como vá lá e olha aqui. Procede-se à abordagem das referidas expressões no PB e no PE, focalizando correspondências e distinções. Sob a orientação teórica da linguística centrada no uso, com base no Funcionalismo e no Cognitivismo, na linha de Traugott e Trousdale (2013), Bybee (2010), Goldberg (2006), entre outros, constata-se que as duas variedades trilham caminhos análogos e, de outra parte, apresentam distinções de uso. Os resultados apontam que a gramaticalização de construções, a depender da norma – PB ou PE, pode assumir traços mais específicos, com distinção de visibilidade e de ritmo ao nível das mudanças construcionais. Essas diferenças têm a ver com motivações pragmáticas e estruturais específicas.
Palavras-chave: construções gramaticais; gramaticalização; língua em uso; língua portuguesa (PE e PB); construções com pronomes locativos: LocV e VLoc.
In the present paper we aim to analyse Portuguese verbal expressions formed with locative pronouns that are part of the discursive markers formed with constructional patterns of either the LocV type, as in aí vem (lit. 'here it comes'), or of the VLoc type, as in olha aí (lit. 'look here'). The study is carried out on the basis of contemporary Portuguese language corpora, both EP and BP, and with the theoretical background of language-in-use orientation of both Cognitive Linguistics and Functional Linguistics, as postulated in Traugott and Trousdale (2013), Bybee (2010) and Goldberg (2006), among others. The results indicate that the grammaticalization of the two types of constructions in the two main national varieties of Portuguese shares the same constructional patterns but varies according to the language usage in a given variety, showing different rhythms of grammaticalization changes due to different structural and pragmatical motivations.
Keywords: grammatical constructions; grammaticalization; language-in-use; Portuguese language (European Portuguese and Brazilian Portuguese); constructions with locative pronouns: LocV and VLoc.
1. Introdução
No presente artigo, levantamos, descrevemos e analisamos contrastivamente dois padrões de uso, constituídos por verbo (V) e pronome locativo (Loc), no português brasileiro (PB) e no português europeu (PE) contemporâneos. Assumimos que os referidos padrões, em seu estágio de maior vinculação interna de sentido e forma, cumprem funções gramaticais específicas, consideradas como processo de gramaticalização. Fazemos referência à construção conectora textual, formada por pronome locativo e verbo (doravante LocVct), como apresentado em (1), extraído de Oliveira e Rocha (2011: 163) e em (2), retirado do jornal português O Público[2], e à construção marcadora discursiva (doravante VLocmd), como em (3), extraído de Teixeira e Oliveira (2012: 22), e em (4), também de O Público:
1. Este chacra é um mestre que nos faz ouvir a inteligência cósmica, e então sabemos que rumo tomar. Daqui vem a capacidade de canalizar sem desligamento da matéria. (http://www.astrologianaweb.com.br/chacras, acesso em 15/06/2009)
2. Pode-se saltar de página para página, seguindo uma trajectória que se expande como se de uma infinita teia de aranha se tratasse -- e daí vem a própria designação de World Wide Web. (par=ext853592-com-97b-1:)
3. Pela madrugada julgava impossível escrevê-lo, tudo parecia banal ou extravagante. Mas depois do almoço, antes de sair, o pai lembrou-me como se lembra a um escritor: - Vê lá, Júlia, o artigo é para hoje. Tenho que o levar à noite. Havia um jornal que exigia o meu trabalho. Era como se o mundo se transformasse. Sentei-me. E escrevi assim o meu primeiro artigo. (Site Corpus do português, João do Rio)
4. Conta-se que, nos meios investigatórios e nas prisões, existem «angariadores de clientes» mediante percentagem: «vê lá, eu é que estou a investigar o caso, há aqui este meu amigo advogado que te pode ajudar... "(par=ext1046067-nd-97a-2:)
Nos fragmentos de (1) a (4), as expressões destacadas, respectivamente (d)aqui vem e vê lá, se encontram altamente entrincheiradas, tanto em termos de sentido quanto de forma. Em tais contextos, as subpartes envolvidas (pronome locativo e verbo) se destituem de traços das categorias originais, com consequente perda de sentido mais referencial ou lexical. Assim vinculadas do ponto de vista semântico e sintático, as aludidas expressões migram para classes mais gramaticais: a) a dos conectores, no caso de (1) e (2), em que (d)aqui vem funciona na articulação lógica de todo o fragmento, concorrendo para o sentido consecutivo do período que introduz face ao primeiro; b) a dos marcadores, verificado em (3) e (4), quando vê lá, mais desvinculado em termos semântico-sintáticos do fragmento em que se insere, atua como mecanismo de injunção, orientado para o interlocutor.
De acordo com os fundamentos teóricos que nos orientam, alicerçados na linguística centrada no uso (Traugott e Trousdale 2013; Bybee 2010), consideramos que as expressões (d)aqui vem e vê lá, como instanciações respectivamente de LocVct e VLocmd, resultam de processo de construcionalização ou mudança construcional na gramática do português. Nessa perspectiva, assumimos que LocVct e VLocmd, como macroconstruções da língua, nos termos de Traugott (2012; 2008; no prelo), são resultantes de rotas de construcionalização de contextos específicos, marcados por certas particularidades discursivo-pragmáticas, como a articulação de sentido (inter)subjetivo e inferencial e a maior abstração das subpartes envolvidas nesses usos, ou seja, do elemento originalmente verbal e do pronome locativo.
De outra parte, levando em conta o PB e o PE, defendemos que tais rotas apresentam correspondências, como as verificadas nos dois pares de exemplos apresentados anteriormente, e ainda apontam certas distinções, principalmente nas instanciações da VLocmd, tratadas mais especificamente na seção 4 deste artigo. Assim posto, os resultados a que chegamos fortalecem a hipótese de que, na abordagem da mudança gramatical de uma língua, como a portuguesa, é preciso levar em conta os contextos específicos, tais como os estruturais, os sócio-históricos e os cognitivos, em que os usos ocorrem, uma vez que as especificidades referidas podem motivar padrões de uso também particulares a cada variante. Assim, consideramos ser possível abordar a gramaticalização sob duas perspectivas distintas e complementares – como processo amplo e geral e, também, como mecanismo submetido às contingências de uso local. Como essas duas perspectivas não têm sido tratadas mais sistematicamente no conjunto dos estudos da mudança gramatical por construcionalização, consideramos que nossos resultados são promissores não só no sentido de melhor entendermos como se processa a mudança categorial numa dada língua em suas duas variedades nacionais – o PB e o PE, como também de poder contribuir para o refinamento teórico dos pressupostos dessa vertente de pesquisa.
Para dar conta de nossos objetivos no presente artigo, utilizamos fontes empíricas distintas do português contemporâneo, em viés qualitativo e quantitativo. Para o PB, na pesquisa da LocVct, trabalhamos com os dados de Rocha (2011) e Oliveira e Rocha (2011), em sua grande maioria extraídos de blogues brasileiros; na seção sobre a VLocmd, trabalhamos com dados de Teixeira (2010)[3] e Teixeira e Oliveira (2012), retirados de sites do Brasil e de outros textos de circulação nacional. Para o PE, utilizamos como fonte básica o jornal diário O Público, com cerca de 191 milhões de palavras.
O artigo encontra-se dividido em quatro seções maiores. Na primeira, apresentamos os fundamentos teóricos definidores da linguística centrada no uso, a partir da correlação entre pressupostos funcionalistas e cognitivistas. Na segunda seção, dedicamo-nos à descrição e análise da LocVct no PB e no PE, com destaque para os pontos de correspondência em tais usos. Na terceira seção, o foco recai na VLocmd, enfatizando os traços mais salientes que distinguem as duas variantes nesse âmbito. Na quarta seção, dedicada às considerações finais, sintetizamos os resultados obtidos e apontamos encaminhamentos de pesquisa, em termos de continuidade da investigação empírica e do refinamento teórico que os aludidos resultados ensejam.
2. Pressupostos da linguística centrada no uso
Os fundamentos teóricos que nos orientam estão alicerçados na mais recente tendência de pesquisa resultante do diálogo entre o funcionalismo linguístico e o cognitivismo, nomeada de linguística centrada no uso[4], conforme exposto em Traugott e Trousdale (2013) e Bybee (2010), entre outros. Sob esse rótulo, o interesse recai em padrões convencionais de uso, em expressões que são produzidas e recebidas como um todo de sentido e forma, e que passam a cumprir funções mais gramaticais ou discursivo-pragmáticas na língua, como as instanciações de LocVct e VLocmd abordadas neste artigo. Trata-se de uma vertente de investigação que compatibiliza os estudos sobre a mudança gramatical, seus níveis e subprincípios (Noël 2007; Traugott 2008, 2012, no prelo; Diewald 2006) e a abordagem construcional da gramática (Goldberg 1995, 2006; Croft 2000).
De acordo com tal perspectiva, os usos linguísticos e sua convencionalização resultam da atuação, em conjunto, de três fatores: os estruturais, os sócio-históricos e os cognitivos. Assim posto, a análise linguística deve considerar, respectivamente, os aspectos formais que moldam a convenção gramatical, os fatores pragmático-comunicativos envolvidos nas interações, como os textuais e os situacionais, e ainda os atinentes à perspectivização, às derivações metafóricas e demais aspectos associativos. Trata-se, pois, de uma abordagem holística, que compatibiliza o viés qualitativo e o quantitativo, com foco nas relações contextuais, em seus diversos níveis.
Nossos objetos de pesquisa são considerados instanciações de construções, definidas estas como modelos esquemáticos em que forma e sentido se encontram entrincheirados. De acordo com tal perspectiva, como Goldberg (1995, 2006), Croft (2000) e Croft e Cruse (2004), consideramos que o sentido construcional não corresponde à soma dos componentes internos da construção; por outro lado, defendemos que cada subparte, com seu sentido, concorre para a instauração do sentido geral construcional. Assim é que, por exemplo, em relação a (d)aqui vem e vê lá, concernentes aos fragmentos de (1) a (4), apresentados na seção anterior, ainda que a função conectora textual e marcadora discursiva, respectivamente, não seja atingida a partir da consideração da soma dos sentidos de Loc e V, cada um desses componentes contribui para a instauração do sentido construcional, de modo que se tivéssemos, por exemplo, padrões como daí concluo ou espera lá, chegaríamos a sentidos mais ou menos distintos.
Em consonância com a estreita relação entre sentido e forma na perspectiva construcional, assumimos a proposta de Croft e Cruse (2004: 258) e Croft (2000: 18), a partir de seu modelo para a estrutura simbólica da construção, conforme demonstra a Figura 1:
Como podemos observar, os autores propõem um modelo que procura dar conta de todos os níveis de uso de uma dada construção, tanto em termos de suas propriedades formais quanto de suas propriedades referenciais. A conexão entre convencionalização de sentido e forma é interna à construção, envolvendo aspectos mais arbitrários e outros mais motivados. Trata-se, portanto, de um modelo holístico de abordagem construcional, que procura dar conta das distintas dimensões aí envolvidas e suas interfaces, modelo que também aqui adotamos.
Entendemos hoje a gramaticalização, conforme Trousdale (2008) e Traugott (2008, 2012), como o surgimento ou a instanciação de construções mais esquemáticas, cumpridoras de funções gramaticais, tais como a conectora (no caso da LocVct) e a marcadora (no caso da VLocmd), por exemplo. Nessa reorientação do conceito de gramaticalização, ganham destaque as relações associativas ou metonímicas, como apontam Traugott e Dasher (2005), Bybee (2010) e, no Brasil, defendem Martelotta e Alonso (2012) e Oliveira (2012a). Assim, combinações contextuais passam a motivar metaforização, tomada agora como consequente e derivada de relações associativas. Em outros termos, trata-se de reequilibrar a relação entre função e forma, de modo que, da concepção funcionalista clássica, que deriva diretamente a forma da função (função > forma), passamos, agora, a uma visão que correlaciona ambas as dimensões, em que uma implica a outra e vice-versa (função Û forma), conforme defendemos em Oliveira (no prelo).
A abordagem construcional da gramaticalização lança luz também sobre o papel dos interlocutores, dos usuários envolvidos nas práticas interacionais, tal como defendem Traugott e Dasher (2005) e Bybee (2003, 2006, 2010). Nesse sentido, o caminho da gramaticalização é também a rota do incremento das pressões subjetivas e intersubjetivas, no entendimento de que a expressão de crenças, valores e atitudes, por parte do locutor (subjetivização), e sua atuação no convencimento do interlocutor (intersubjetivização) são etapas da mudança gramatical, estabelecendo-se o gradiente objetividade > subjetividade > intersubjetividade. Essas etapas são cumpridas por intermédio de inferência sugerida[5], entendida, de acordo com Traugott e Dasher (2005), como a estratégia segundo a qual o locutor convida o interlocutor a partilhar suas crenças, opiniões e convicções, lançando de formas à disposição da língua, por regra com sentido referencial, para a instauração de sentidos mais gramaticais ou processuais (no caso da LocVct) ou discursivo-pragmáticos (no caso da VLocmd).
Na perspectiva da gramaticalização de construções, entendemos, como Traugott (2010, 2012, no prelo), que se pode estabelecer um gradiente entre construções lexicais e gramaticais, em que as segundas perdem conteúdo referencial, em prol do cumprimento de funções mais processuais, relacionais ou pragmáticas. Assim, conforme Noël (2007), assumimos que, do conjunto geral de construções da língua, de suas variadas esquematizações, interessam ao funcionalismo baseado no uso aquelas que cumprem rota na direção de funções mais gramaticais, ou seja, aquelas que passam por gramaticalização, tal como acontece no caso da LocVct e da VLocmd.
Assumimos aqui, como Traugott (2012), a distinção entre construcionalização e mudança construcional. De acordo com a autora, a construcionalização diz respeito a um tipo de mudança processada por intermédio de pequenos passos, no qual novas combinações de subpartes tomam lugar. Na construcionalização, verifica-se diminuição de analisabilidade (isto é, nível de acessibilidade formal das subpartes) e de composicionalidade (entendida como nível de acessibilidade semântica das subpartes), acompanhada de correspondente aumento de esquematicidade (abstração e vinculação semântico-sintática) e produtividade (desenvolvimento de novos tipos de construção e extensão de padrões existentes para novos tipos – host-class[6]). Tal concepção significa que mudanças localizadas, que atingem somente a forma ou o sentido, embora tomadas como mudança gramatical, não chegam a constituir construcionalização.
De acordo com Traugott (2010, 2012), a mudança construcional, por outro lado, atinge subparte(s) de um esquema construcional. Esse atingimento pode se dar no aspecto semântico, sintático, morfofonológico ou no de colocação. Trata-se de alteração mais localizada, que, embora muito produtiva na língua, não chega a constituir, por si só, uma nova esquematização. Assim, podemos dizer que construcionalização pressupõe mudança construcional, porém constatamos que a recíproca não é verdadeira, uma vez que nem toda mudança construcional deriva em construcionalização. Defendemos, como Bybee (2010), que trajetórias de construcionalização devem ser detectadas em exemplares categoriais, nos membros que mais prototipicamente representam a categoria. Assim, a partir de fatores de ordem cognitiva, como a perspectivização espacial, e de frequência type vs token[7], consideramos que expressões formadas por verbos de movimento ou estativos, como ir, vir e estar, e por pronomes da classe dos locativos, como aqui e lá, inseridos em sequências cujo frame é menos espacial, como as expositivas, configuram-se como os contextos motivadores da mudança construcional e consequente construcionalização de LocVct (como (d)aqui vem) e de VLocmd (como vê lá).
De outra parte, uma vez convencionalizados os esquemas gerais LocVct e VLocmd, tais modelos podem deflagrar um novo processo de mudança construcional, a analogização. De acordo com Fischer (2009), os interlocutores, a partir do reconhecimento de padrões de uso exemplares e de perspectiva categorial, desenvolvem e fixam novas formas de dizer. Trata-se de processo estensional, que replica e amplia outros usos já consagrados na língua, fundados em modelos esquemáticos disponíveis. Também conforme Traugott (2012, no prelo), Bybee (2010) e Fischer (2009), a analogização é entendida por nós como gramaticalização, como um tipo de mudança construcional recriador de padrões gramaticais, estendendo esses padrões para novos tipos e contextos de uso ou host-class.
Na pesquisa da construcionalização e da mudança construcional de nossos objetos de pesquisa, assumimos, como Traugott (2012) a seguinte perspectiva de abordagem construcional, que capta quatro níveis distintos de esquematicidade, dos quais três constituem types, ou tipos de construção com diferentes níveis de abstração, e um concerne ao uso efetivo, como token, conforme a Figura 2:
Na Figura 2, as setas para cima representam a gramaticalização como rota de construcionalização, na criação de pareamentos cada vez mais convencionais, capazes de serem captados na história da língua. As setas para baixo constituem gramaticalização como mudança construcional analógica, partindo dos modelos existentes para replicação de outros. No nível mais alto, se encontra a macroconstrução, representada em nossa pesquisa pela LocVct e pela VLocmd. Cada macroconstrução se desdobra em conjuntos de construções específicas ou mesoconstruções, que constituem grupos semânticos de verbo, como os de movimento (como ir e vir) e os de elocução (como dizer e falar), entre outros. As microconstruções são definidas como os types individuais, tomados também como modelos abstratos, do tipo (d)aqui vem ou vê lá. Por fim, como nível mais básico e elementar, relativo ao uso efetivo, temos os tokens, referentes às expressões efetivamente articuladas em seus contextos, os constructos destacados anteriormente de (1) a (4).
A abordagem holística da mudança gramatical, assumida pela pesquisa da gramaticalização de construções, enfatiza justamente as relações de sentido e forma articuladas não só entre as subpartes de padrões de uso ou contructos, como também nos contextos, nas sequências maiores em que tais usos ocorrem. Traugott (2012) chega a propor, em termos metodológicos, que tais sequências sejam tomadas, por exemplo, como as cinco orações que antecedem e as três que sucedem os padrões pesquisados. Esclarece ainda a autora que a porção contextual considerada deve levar em conta os objetos linguísticos em estudo, uma vez que a extensão de contexto depende justamente dos padrões de uso analisados.
Na investigação mais específica desses contextos semântico-sintáticos mais amplos, motivadores da gramaticalização, se destacam as propostas de Diewald (2002) e Heine (2002). Em ambas as propostas, padrões de uso se iniciam em contextos típicos, para Diewald, ou normais, para Heine, ou seja, em ambientes nos quais predominam sentidos referenciais e maior objetividade. O segundo estágio contextual, mais subjetivo, em que ambiguidades e inferências são instauradas, é classificado por Heine como ponte e por Diewald como atípico e crítico[8]. Nesse ambiente, as subpartes começam a perder composicionalidade e analisabilidade, em prol da maior vinculação semântico-sintática. Por fim, tanto Diewald (2002) quanto Heine (2002) apontam o estágio contextual mais avançado, (inter)subjetivo e esquemático, nomeado pelos autores de isolamento ou convencionalização, respectivamente. Tais contextos, ilustrados no presente artigo a partir dos fragmentos de (1) a (4), motivam os usos mais entrincheirados e configuram efetiva mudança gramatical. Neste artigo, os contextos isolados ou convencionais são aqueles em que se instanciam as macroconstruções LocVct e a VLocmd.
3. Instanciações do padrão LocVct
De acordo com Oliveira e Rocha (2011) e Rocha (2011), a LocVct atua na articulação de relações lógicas entre partes textuais maiores, no nível da oração, do período ou mesmo de segmentos mais amplos. Trata-se de usos pouco recorrentes, principalmente em modalidade escrita e em registro mais formal, que, lançando mão da anáfora, processada originalmente pelo pronome locativo, promovem a progressão textual, unindo e expandindo, em termos semântico-sintáticos, o que se declara. Pesquisadores como Tavares (2012, 2009) e Braga e Paiva (2003) têm ressaltado essa propriedade funcional dos pronomes locativos nas expressões de que fazem parte em textos do PB. Em Tavares (2012: 39), esse duplo papel anafórico e catafórico é nomeado de sequenciação retroativo-propulsora, que “se volta para o enunciado passado como fonte de informações para o discurso subsequente, direciona a atenção a um enunciado que está por vir”. Entre os instrumentos que atuam nessa função, a autora destaca o conector daí.
Nas pesquisas que temos desenvolvido com base em corpora do PB contemporâneo, referentes a textos de blogues da internet, investiga-se, entre outras, a expressão daí vem, no apontamento do seguinte cline de vinculação semântico-sintática, adaptado de Oliveira e Rocha (2011: 174) e apresentado na Figura 3:
Segundo as referidas autoras, os três pontos de aglomeração podem ser ilustrados, respectivamente, com base nos seguintes dados de pesquisa (Oliveira e Rocha 2011: 169-170):
5. E outra coisa que me irrita, eu me contorço toda para não bater em ninguém daí vem uma baixinha e me da um baita tranco, poxa parece que não enxerga! (http://www.lula.pro.br/forum/forum_posts.asp?TID=1026, acesso em 13/11/2009)
6. Video legal...
dai vem o auscker chato e fica usufruindo do seu ''ingreis'' pra ficar esnobando a galera... (http://www.vilammo.com/forum/index.php?showtopic=50392&pid=258005&mode=threaded&start, acesso em 13/11/2009)
7. A mediunidade, porém, não é uma arte, nem um talento, pelo que não pode tornar-se uma profissão. Ela não existe sem o concurso dos Espíritos; faltando estes, já não há mediunidade. Pode subsistir a aptidão, mas o seu exercício se anula. Daí vem não haver no mundo um único médium capaz de garantir a obtenção de qualquer fenômeno espírita em dado instante. (http://www.espirito.org.br/portal/codificacao/es/es-26.html, acesso em 13/11/2009)
Em (5), daí vem apresenta maior composicionalidade e analisabilidade, uma vez que daí, conquanto atue como elemento de conexão, não se vincula de modo mais efetivo a vem, que tende a ser interpretado como verbo referencial, relativo ao deslocamento do sujeito posposto uma baixinha. Já, em (6), o nível de vinculação de sentido e forma de daí vem é maior em relação a (3), uma vez que se trata de mecanismo articulador da contrastividade sequencial entre vídeo legal x ausckerchato. O nível de vinculação semântico-sintática de daí vem se acentua em contextos como o ilustrado em (7), em que prevalece a função mais gramaticalizada de operador argumentativo, destacando-se seu uso como elemento de conexão. A detecção do referido cline de integração culmina com o contexto de isolamento de LocVct, ilustrado em (7), nos termos de Diewald (2002, 2006).
Nos contextos de isolamento, referentes ao uso mais gramaticalizado dessas expressões, como instanciações da LocVct, a pesquisa do PB tem apontado a maior diversidade formal do primeiro constituinte, o Loc, face ao segundo, o V. Assim, enquanto na primeira posição podem figurar elementos como lá, aí, aqui ou aí, a segunda posição é ocupada exclusivamente por verbos de enquadramento espacial – de movimento, como ir e vir – ou de estado, como estar. Em investigação atualmente sob nossa orientação[9], temos ratificado essa tendência. Exemplificamos tais usos com os seguintes fragmentos do PB, extraídos de romances brasileiros:
8. Que negócio é esse? - É uma sociedade de dança, mamãe. Só famílias conhecidas. O Mário arranjou um convite pra nós.. Deixaram o sultão todo encabulado no tamborete do piano e vieram discutir na sala de jantar. (Famílias distintas. Não tem nada demais. As filhas de Dona Ernestina iam. E eram filhas de vereador. Aí está. Acabava cedo. Só se o Crispiniano for também. Por nada deste mundo. Ora essa é muito boa. Pai malvado. Não faltava mais nada. Falta de couro isso sim. Meninas sem juízo. Tempos de hoje. Meninas sapecas. (Site Corpus do português, ficção, Alcântara Machado)
9. Creio que me entende, não? - Perfeitamente, senhor Bensabath. Dito assim, parece que é verdade; mas eu lhe digo que não. - Oh! exclamou o velho Bensabath, voltado para o Moitinho, conservando os olhos arregalados de espanto e a boca na expressão da exclamativa. - Sim; continuou o velhote português, cujos olhos vivos dançavam nas órbitas protegidas por supercílios espessos; eu lhe digo que não, e aqui está por que o digo. Quando vim para o Mucujê, em 1846.. - E eu, em 45.. interrompeu o Bensabath. -.. vi cousas que hoje não vejo, porque os costumes mudaram, concluiu o Moitinho. (Site Corpus do português, ficção, Maria Dusá)
Nos fragmentos (8) e (9), as expressões em destaque estabelecem relação de natureza lógica. Em (8), aí está articula noções de causa/consequência, reforçando argumentos relevantes para a sustentação do ponto de vista do locutor; a posição da expressão, na parte inicial do período, concorre para a progressão textual e ratifica a articulação desse tipo de relação, inerente às sequências argumentativas. Em (9), aqui está introduz o por que, num tipo de arranjo metonímico que concorre para a abstração e para a função relacional da expressão destacada. Tais sequências, por serem intrinsecamente subjetivas, representam contexto ótimo para tais usos, colaborando para a interpretação de aí está e aqui está como instanciação da LocVct. A distinguir as referidas instanciações, está justamente o primeiro elemento, o Loc, que cria efeitos de sentido distintos, por conta do tipo específico de perspectivização instaurada: com aí está, o sentido mostrativo/estativo do verbo se volta efetivamente para o interlocutor, provocando afastamento do objeto mostrado; com aqui está, o locutor aproxima o objeto de si e, por consequência, de toda a situação mostrada.
No PE, a pesquisa exaustiva das instanciações da LocVct empreendida no jornal O Público tem apontado as mesmas tendências de uso, como observamos no quadro seguinte:
Como referimos no início desta seção, destaca-se a baixa frequência dos usos mais vinculados e isolados de Loc e V na fonte pesquisada, que registra mais de 190 milhões de palavras no total. Foram levantadas 2.315 expressões envolvendo o pareamento LocV, porém, descartando-se os contextos típicos, atípicos e críticos, restaram somente 139 dados, que não representam sequer 10% do levantamento inicial. Trata-se da mesma tendência detectada em textos do PB. Outra correspondência está nos tipos de microconstrução, sempre compostas por um dos verbos espaciais – estar, ir ou vir. Tal como no PB, o PE registra maior frequência de instanciações (91,2% no total) em torno do verbo estar (aí está – 37,4%; aqui está – 32,3%; lá está – 20,1%; cá está – 1,4%), como em:
10. Pollack é mais romântico (aí está «África Minha» para o provar), respeitando nos seus filmes o lugar que cabe a cada sexo, e servindo-se apenas do personagem travestido para melhor os situar na relação. (par=ext209396-nd-92a-1)
11. Logo durante o encontro com Soares, quando o Presidente contou ter falado do assunto com o primeiro-ministro, que lhe terá dito «não ter pessoalmente nada contra a amnistia, embora achasse que ela só deveria ser aprovada com o voto de todos os partidos», Narana Coissoró, o líder parlamentar centrista ironizou: «ora aqui está a prova de como nós somos uma força correctora e decisiva». (par=ext280205-pol-91a-1)
12. Aliás, a primeira vez que me perguntaram se o grupo é feminista fiquei um bocado agastada, porque, lá está, ninguém pergunta aos grupos de homens se são machistas. (par=ext667626-clt-93b-2)
O traço comum às três expressões destacadas em (10), (11) e (12) reside na função mostrativa/expositiva articulada pela forma verbal está, que, associada ao Loc antecedente, cria um tipo de uso inovador, conectando logicamente cada sequência e concorrendo para instaurar a marca geral da (inter)subjetividade e abstração. A diferença entre as referidas expressões se encontra na aludida distinção de Loc, que cria efeitos de perspectivização distintos: aproxima o objeto em (11), o afasta um pouco mais em (10) e o coloca em posição distante em (12).
A marca distintiva do PE, a respeito da instanciação da LocVct em torno da forma verbal está, se encontra no registro do Loc cá a anteceder o V, como em:
13. Pensei: cá está, como espécie, construímos satélites, televisão por cabo e o Ford Mustang, mas, e se tivessem sido os cães e não as pessoas a inventar essas coisas? (par=ext1563899-clt-94b-1)
Embora com apenas dois dados no corpus (1,4%), consideramos interessantes tais ocorrências e as creditamos a um traço específico da gramática do PE, que mantém o uso regular de cá como locativo. Assim, a convencionalização de cá está como instanciação da LocVct teria como motivação o uso mais sistemático de cá no PE em contraste com o PB. No PB, o Loc aqui tem sido usado como a forma geral e não-marcada de referência ao espaço da primeira pessoa, o que justifica a baixa frequência de cá, que fica restrita a contextos muito específicos e ritualizados. Esse resultado já começa a apontar uma tendência que, na próxima seção, fica mais evidente – a de que propriedades estruturais do PB e do PE condicionam os processos mais gerais de gramaticalização do português.
Outras três instanciações de LocVct apontadas no Quadro 1, com 8,8% de ocorrências, correspondentes ao que verificamos no PB, se ilustram a seguir e abrangem os constructos com os verbos dêiticos ir e vir: lá vai (5,8%), (d)aí vem (2,2%) e aí vai (0,8%):
14. Então lá vai: conheço em Portugal duas experiências desse tipo, qual delas de resultados mais reveladores. (par=ext445074-pol-98b-1)
15. N. C. era descendente pelo pai de um emigrante inglês do século XVII, pedreiro na construção da Universidade de Harvard (onde o filho se formaria mais tarde); daí vem o nome de família. (par=ext323536-nd-95b-1)
16. Bem, assim sendo, e como estou mesmo com vontade de dizer aquilo que de grave se passou, aí vai: perguntem ao professor Fernando Mota se é ou não verdade que teve de ir ao apartamento às duas da manhã para evitar que um colega meu se envolvesse à pancada. (par=ext1289994-des-92b-1)
Em (14), (15) e (16), o papel relacional das expressões destacadas é evidente. Trata-se de formações muito esquemáticas, cujas subpartes se encontram em avançado nível de integração. Loc e V se destituem de grande parte das propriedades de suas respectivas categorias-fonte, em prol da assunção de nova e mais avançada função gramatical, no nível sintático-textual.
Acerca de lá vai, o levantamento do PE detectou dois tipos de uso mais complexos, em termos estruturais, e muito recorrentes. Embora não representem contextos isolados, nos termos de Diewald (2002, 2006), os dois usos referidos são considerados ambientes atípicos, pela abstração e polissemia veiculadas. A título de exemplo, fazemos menção a usos como os seguintes, não levantados no PB:
17. As estatísticas -- coisa que para muitos é um instrumento que permite aos políticos dizerem mentiras falando verdade -- mostram que a recessão já lá vai e que a retoma está em curso. (par=ext589050-eco-95a-1)
18. A razão tinha sido confessada pelo próprio Presidente, na véspera, quando disse aos jornalistas que o questionaram sobre o caos urbanístico que «o que lá vai lá vai». (par=ext799849-pol-96a-1)
Com o fragmento (17), ilustramos a instanciação do padrão atípico SNsuj já lá vai. Nesse tipo de uso, o SN tende a ser preenchido, tal como no texto apresentado, por nome abstrato e de referência temporal, que, na função de sujeito, se combina com o predicado subsequente, podendo este ser parafraseado por já passou. Assim, ocorrem em O Público usos do tipo a recessão já lá vai, como em (17), ou ainda o tempo do lirismo já lá vai ou o estado de graça já lá vai, entre outros, na veiculação de períodos ou etapas que já não voltam mais por se encontrarem concluídos (perfectivos). O sujeito abstrato e de sentido temporal, combinado com predicado verbal em torno de deslocamento físico, conferem a atipicidade contextual referida.
Com relação ao padrão exemplificado em (18), trata-se de um tipo de estrutura paralelística e reiterativa, equivalente a o que passou, passou. Com o que lá vai, lá vai, o locutor do PE lança mão de uma estratégia retórica, quase esvaziada em termos semânticos, cuja função maior é sinalizar para o interlocutor que o tópico ou assunto em pauta não tem mais razão de ser, muitas vezes livrando esse locutor de assumir maior compromisso com algum tipo de declaração mais efetiva. É que ilustramos em (18), no fragmento em que, ao ser questionado por jornalistas sobre matéria de sua responsabilidade, a autoridade responde de modo evasivo com a declaração o que lá vai, lá vai. Trata-se também de um padrão ambíguo, (inter)subjetivo e, por isso mesmo, atípico.
Um terceiro padrão atípico em torno de lá vai, detectado tanto no PE quanto no PB, se ilustra a seguir:
19. «Não que queiramos uma vida regalada», esclareceu Lopes Cardoso, «mas já lá vai o tempo em que se tinha de trabalhar de sol a sol e não faz parte do nosso projecto de vida trabalhar ao domingo». (par=ext667212-soc-93b-2)
20. E já lá vai um mês... um mês inteiro de visão do bom senso. (par=129081)
Em (19) e (20), exemplificamos o uso de já lá vai SN, em que o último constituinte tem referência temporal e função de sujeito não prototípico. Nas duas variedades, é comum a articulação desse tipo de expressão como estratégia retórica, na evocação de um período perdido, como ocorre em (19), extraído do PE, com mas já lá vai o tempo em que se tinha de trabalhar de sol a sol, quanto em (20), retirado do jornal Folha de S. Paulo, no uso de já lá vai um mês. Em O Público, são recorrentes declarações do tipo já lá vai o tempo em que podia contar com o apoio entusiástico da população ou ainda já lá vai o tempo em que o Zé Povo tinha de aceitar tudo pelo melhor e bater palmas.
4. Instanciações do padrão VLocmd
Conforme defendido em Oliveira (2012b), Teixeira e Oliveira (2012) e Teixeira (2010), a VLocmd constitui, no português contemporâneo, um esquema construcional altamente vinculado e muito produtivo, notadamente em interações mais informais e injuntivas, nas quais preponderam pressões intersubjetivas, nos termos de Traugott e Dasher (2005). O grande entrincheiramento de suas subpartes, com perda acentuada das propriedades típicas desses constituintes, contrasta com o modo mais desvinculado com que VLocmd atua nos textos em que ocorre. A função precípua dessa macroconstrução é pontuar a sequência em que se insere, orientando o foco do interlocutor para o que se intenta destacar. Trata-se de um tipo de inferência sugerida, nos termos de Traugott e Dasher (2005), mecanismo metonímico e de abstratização por meio do qual locutores convidam seus interlocutores a partilharem crenças, atitudes e valores.
Assim posto, em relação à LocVct, abordada na seção anterior, assumimos que a VLocmd se encontra em ponto mais avançado na rota de gramaticalização, dado que a marcação discursiva, no nível pragmático, é interpretada como etapa posterior à conexão textual, no nível morfossintático. Em termos de construcionalização, o maior entrincheiramento das subpartes de VLocmd face à LocVct também é argumento ratificador do estágio mais avançado de convencionalização daquela.
Conforme verificado em relação à LocVct, nossa pesquisa da VLocmd no PB contemporâneo, com base em fontes brasileiras do Site Corpus do português, identificou níveis distintos de vinculação semântico-sintática que culminam na instanciação da VLocmd. Apresentamos a seguir, com base em ocorrências de está aí, fragmentos que ilustram três estágios diversos de entrincheiramento desta expressão, extraídos de Teixeira e Oliveira (2012: 28-29):
21. Baldava empenhos o Felipe, a fim de amainar a cólera do hóspede, asseverando que ali, no Xique-Xique, não valia tanto aquele negócio; que esfriasse a cabeça e pensasse.- Não tenha susto, respondia Ricardo. Agora só desejo que amanheça o dia para ir ver logo o garimpo. O saco se faz hoje mesmo. - Mande chamar o Braço Forte e outro, que o meu camarada está aí. No dia seguinte seguiam o mineiro e três camaradas para o Coisa Boa. (Site Corpus do português, ficção, Maria Dusá)
22. Até agora os presidentes se esforçaram para combater a inflação, mas nenhum fez um esforço sincero para cumprir a Constituição, critica o jurista. Falta ao governo uma convicção sincera de que a Carta está aí para ser cumprida. (Site Corpus do português, jornalístico, SP, Cumprir a Constituição ainda é um desafio)
23. O problema é fazer disso tudo uma pirotecnia dispensável, inclusive com gente que já enfrenta esse tipo de coisa para sobreviver.. É um equívoco imaginar que os brasileiros ainda querem ter, como na época de O Povo na TV, a miséria saindo das ruas e invadindo suas casas. Os sapatos devem ser, sempre, limpos, no tapete da porta. Taí o sucesso de novelas mexicanas como Marimar, ou Maria do Bairro, que mostram e falam de pobreza, só que de maneira mais cândida, velada. Parafraseando o mago Joaozinho Trinta, o povo não gosta de lixo. (Site Corpus do português, notícia, BA, Brasil Surreal)
Em (21), está aí tem como sujeito meu camarada, SN que, prototipicamente, funciona como termo a que se refere o predicado; nesse contexto, em discurso direto, a forma verbal está atua como efetivo termo lexical e o locativo aí faz referência ao ambiente físico onde se situam os locutores. Já em (22), o SN a carta é sujeito de está; os traços de menor prototipicidade desse sujeito (não humano, não volitivo e não agentivo) conferem à expressão está aí sentido mais abstrato, atinente a papel mostrativo. Neste caso, trata-se de uso mais vinculado, em termos de sentido e forma, da referida expressão, que se insere em sequência de natureza expositiva. O fragmento (23) ilustra o uso mais vinculado de está aí, considerado seu contexto mais convencional, efetivamente gramaticalizado como instanciação de VLocmd; nesse contexto, verificamos inclusive a erosão formal, com o uso monossilábico taí, ou seja, a redução de sentido levou a expressão à redução de estrutura, o que demonstra a forte vinculação de suas subpartes, com perda de composicionalidade e analisabilidade. Efetivamente, em (23), taí, em posição inicial de sequência expositiva, tem destacada sua função eminentemente mostrativa ou processual, distante do que seria um predicado prototípico.
Tal como a LocVct, consideramos que a VLocmd se origina, na trajetória do português, de contextos oracionais transitivos, formados por verbo de sentido mais referencial, de deslocamento (ir, vir) ou de estado (estar, ficar), acompanhado por complemento locativo (Oliveira e Teixeira, 2014). Assumindo que o tipo de ordenação motivadora da VLocmd é aquele em que Loc se encontra posposto a V, consideramos que essa macroconstrução resulta de processo de construcionalização mais recente na língua em relação a LocVct, uma vez que a posposição do locativo em relação ao verbo passa a ser efetivamente mais frequente, como ordem não-marcada na sintaxe do português, a partir da fase moderna da língua, mais especificamente dos séculos XVIII e XIX, conforme defendido em Martelotta (2006. 2011) e em Oliveira e Cezario (2012).
Em termos de frequência e possibilidades de instanciação, assumimos que a VLocmd é mais recorrente em ambas as variedades do português agora abordadas e se articula a partir de combinações mais variadas de subpartes verbais. Ou seja, defendemos que a VLocmd é mais esquemática e produtiva do que a LocVct. O Quadro 2, extraído e adaptado de Oliveira e Teixeira (2014: 126), com base nos dados do PB, ilustra o comentário:
Quadro 2: Distribuição da macroconstrução VlocMD em níveis de esquematicidade no PB - [10]*
De acordo com o Quadro 2, constatamos a diversidade semântica do primeiro constituinte da VLocmd, na formação de um conjunto variado de mesoconstruções, em contraste com o uso exclusivo de verbos de referência espacial na LocVct. Essa condição ratifica a produtividade da VLocmd. De outra parte, verificamos também que esse elemento verbal se apresenta não flexionado, o que evidencia a perda de propriedades de sua categoria-fonte, dado que uma das marcas prototípicas da classe dos verbos é justamente a flexão. Em função do verbo utilizado – classe semântica e tipo morfológico (regular ou irregular), se convencionalizam os usos: 2a pessoa do singular para a maioria das microconstruções, 1a pessoa do singular para os cognitivos e volitivos e 3a pessoa do singular para os elocutivos irregulares. Assim, no PB, tal como exemplificamos a seguir, nas instanciações de VLocmd, o primeiro constituinte se apresenta morfologicamente fixo:
24. Sim, há uma pedra no caminho da revolução. É uma má notícia para a popularização da tecnologia em mercados estrangeiros. Vá lá, para animações, até dá certo. Mas já pensou o que acontecerá quando a maior parte das produções for feita com a técnica?(Reportagem por Haidi Lambauer, revista do grupo Globo: Galileu)
25. Quando abro o Google e procuro o que procuro, no mundo inteiro ou aqui na esquina, fico besta com os robôs que sabem tudo, encontram tudo, traduzem tudo. Traduzem, ah! Peraí, já vivi muito disso. Não vão tirar de mim uma atividade da qual ainda posso precisar num amanhã qualquer, ou mesmo amanhã de manhã.(Revista Veja)
Nos fragmentos (24) e (25), as expressões em destaque marcam discursivamente as sequências em que inserem, sugerindo ao interlocutor a partilha do sentido em articulação. Trata-se de usos que concorrem para a marca intersubjetiva geral instaurada. Em formação altamente integrada, cada subparte destitui-se das propriedades originais de sua categoria-fonte, em prol da composição de arranjo cumpridor de nova função no uso linguístico. Em (25), o nível de integração é tal que verificamos um só termo – peraí, fruto da erosão estrutural e semântica das subpartes envolvidas, o que tende a ocorrer em registros mais informais do PB.
Por outro lado, a segunda subparte das instanciações de VLocmd, como observamos no Quadro 2, apresenta menor diversidade. O Loc nesses usos é precipuamente lá ou aí, na referência a espaço mais distante em relação ao locutor. Consideramos que tal restrição seletiva de Loc é motivada pelo traço intersubjetivo de que se reveste a função marcadora discursiva desses arranjos, voltados para a ação sobre o interlocutor. Assim posto, os referidos pronomes, pelo sentido de maior distanciamento que veiculam, são recrutados para as distintas instanciações da VLocmd.
No que concerne ao PE, a pesquisa empreendida no jornal O Público também ratifica algumas tendências apontadas pelo PB. Uma das correspondências está na maior diversidade de microconstruções e de frequência de constructos da VLocmd face à LocVct, conforme se demonstra no Quadro 3:
Quadro 3: Microconstruções do padrão VLocmd em O Público (PE)
Os 444 registros gerais apresentados pelo Quadro 3 se referem aos contextos isolados (Diewald 2002, 2006), classificados a partir do levantamento total de 1.476 expressões envolvendo o pareamento de V e Loc. Tal situação revela a forte tendência à gramaticalização dessas expressões em ambas as variedades do português pesquisadas.
Outra correlação estabelecida entre os dados do PB e do PE nesses usos é a diversidade semântica do primeiro elemento da VLocmd. Assim, formações envolvendo verbos cognitivos e perceptivos também são registradas no PE, como em:
26. Muito se fala no estímulo devido à construção de casa própria e raro é o dia em que se não proclamam novas facilidades de empréstimo, maiores bonificações de juros, isenções de siza, condições mais vantajosas para a juventude, sei lá: um rol de tentações que a realidade desmente. (par=ext94620-nd-95a-2)
27. Mas, olhe lá, você é do povo, como nós. (. ed=1297 id=9703=h1)
Em (26), ilustra-se um tipo de uso dos mais recorrentes de sei lá em O Público, num total de 40,3% de ocorrências, na articulação de sentido negativo, como elemento finalizador de enumeração. Na investigação do PB contemporâneo, na modalidade falada (Oliveira e Santos 2011), também foram registrados padrões da VLocmd como esse, embora com frequência menor face a outras funcionalidades[11]. Consideramos que esse uso mais frequente nos dados do PE possa ser associado ao gênero discursivo pesquisado. Em textos jornalísticos, nas sequências articuladoras de opinião, voltadas para a expressão de valores e crenças do locutor, que procura, de outra parte, agir sobre seu interlocutor, é frequente a apresentação de séries enumerativas, que concorrem para ratificar pontos de vista, atuando como forma de convencimento.
Outra tendência correspondente entre as duas variedades é a recorrência de lá como segunda subparte preferencial nessas formações, seguida por esporádicos casos de aí e aqui. O total de ocorrências formadas pelo locativo lá no PE é de 80,05%. Como mencionamos em relação ao PB, também no PE tal preferência tem a ver com a orientação intersubjetiva da função de marcação discursiva. Nesse sentido, como traço pragmático constitutivo dessa categoria funcional, observam-se usos semelhantes nas duas variedades linguísticas. Essa grande frequência de lá nas expressões pesquisadas é interpretada como resultado de um conjunto de motivações: a) A orientação espacial de lá, voltada para um lugar mais distante em relação aos interlocutores, tornando o locativo um eixo importante na articulação da inferência sugerida e da intersubjetivação (Traugott 2012; Traugott e Dasher 2005), ou seja, resultante do pacto que os usuários estabelecem nas situações interativas, no sentido de veicularem sentidos mais subjetivos, voltados para a expressão de desejos, valores, insinuações ou mesmo pressões uns sobre os outros, como em desculpa/ -e / -em lá e veja/ -m lá; b) A granulidade vasta do locativo (Batoréo 2000), que confere a lá a articulação de sentido impreciso e vago, fazendo ainda deste constituinte candidato à expressão, junto a verbos cognitivos e volitivos de referência negativa, como em sei lá e quero lá; c) A natureza interativa de determinadas sequências tipológicas do gênero jornalístico, principalmente as injuntivas e expositivas, localizadas muitas vezes em trechos de reprodução de discurso direto, em artigos de opinião, entre outros, o que faz com que o locutor, com o uso de lá, estabeleça maior interatividade e informalidade, na perspectivização de um espaço mais amplo e vasto.
No caso do locativo cá, o Quadro 3 aponta que não foi levantado no PE como participante da VLocmd. Esse resultado é interpretado como traço mais específico da variedade europeia do português, uma vez que o cá funciona aí na referência ao espaço da primeira pessoa do singular. Já, no PB, o locativo aqui cumpre de modo mais exclusivo tal papel, ficando o cá para esporádicos e específicos usos, igualmente observados no PE, como de lá pra cá, cá entre nós ou o marcador vem cá, não encontrado em O Público.
No que diz respeito à expressão do espaço relativo ao locutor, enquanto no PB é o locativo aqui usual na referência a esse espaço, no PE, tal locativo compete/varia com cá na articulação de tal referência. Se o foco recai num local específico ou delimitado, usa-se via de regra aqui; se o espaço é tomado como generalização, como ambiente mais amplo, usa-se cá. Ilustramos tal distinção a seguir, em excerto do PE falado, extraído do corpus Esteves (2012):
28. Inq: Como é que se chama cá... nós aqui não dizemos os cereais, dizíamos que vínhamos a trazer os cereais para a eira, mas não era cereais que nós dizíamos, cá na terra, pois não? Como é que se chamava cá aos cereais?
No fragmento (28), o espaço em que se situa o locutor é referido a partir de duas estratégias: se chama(va) cá e nós aqui. Ao mencionar genericamente a região em que se encontra, o locutor lança mão de cá, mas logo a seguir usa nós aqui, equivalente àquela. Em ambas as declarações, estamos diante de contexto típico, marcado por frame espacial, em que tanto V como Loc cumprem funções ao nível de suas categorias-fonte.
Em termos cognitivos, esse resultado sugere que, enquanto no PB o lugar do locutor é mais específico, pontual e espacialmente delimitado, o que é manifestado pela granulidade fina de aqui, no PE, esse lugar pode se apresentar mais difuso e vago, quando é recrutado o locativo cá, de granulidade vasta, para sua expressão. Essa distinção de uso pode estar ligada ainda a rumos específicos que cada variedade do português tomou ao longo de sua trajetória. Assim, enquanto o PB neutraliza o contraste original aqui x aí e aí x ali, cá x lá, o PE mantém o referido contraste. Tal rumo diverso se reflete em usos linguísticos mais específicos de cada variedade, tanto ao nível da gramática quanto da pragmática, como no caso da VLocmd aqui analisada.
Ressalvamos que, para testar a afirmação acima, é preciso levar em conta que as fontes pesquisadas, da modalidade escrita e pertencentes ao gênero jornalístico, configuram-se como usos mais específicos e condicionados da língua, ensejando, assim, que essa interpretação seja ratificada posteriormente a partir do levantamento de outras e distintas fontes do PE.
No tocante à seleção verbal no âmbito da VLocmd, a pesquisa do PE apresenta como traço mais específico e distinto do PB a instanciação da microconstrução desculpa/ -e / -em, com 4,5% de ocorrências. Trata-se de uso motivado por contextos marcados por injunção e grande interatividade. Hipotetizamos que a motivação para essa convencionalização seja a grande frequência de uma estratégia retórica, característica do PE, ligada à expressão de polidez e à preservação de face, em que pedir desculpa(s) e desculpar são muito recorrentes, enquanto, no PB, é mais utilizada para tal fim somente a forma nominal desculpa, por exemplo, ou outro modo variante de dizer, como a expressão popular foi mal, frequente no Rio de Janeiro.
Em O Público, foram levantados 465 ocorrências de pedir desculpa(s) com suas respectivas formas flexionadas, enquanto foram registrados também 171 usos somente da forma flexionada de 3a pessoa do singular desculpe. No PE, detecta-se o uso de pedir desculpa(s) em sequências como (29):
29. Face às notícias sobre esta matéria, nomeadamente sobre os elevados custos do aluguer de jactos particulares, Attali limitou-se a comentar o seguinte: «peço desculpa, mas não posso passar sem isso». (par=ext397769-eco-93a-2)
Assumimos que, dada a variedade da morfologia flexional do PE face ao PB, devido à efetiva distinção das segunda e terceira pessoas gramaticais daquela variedade, temos no PE, a partir da alta recorrência de desculpar, os tokens desculpa lá, desculpe lá e desculpem lá como instanciações da VLocmd, conforme observado em:
30. Lady Montdore leva o livro, mas daí a uns tempos devolve-o com o comentário: «desculpa lá, só consegui ler metade disto; nunca cheguei à tal parte sobre a senhora da alta sociedade». (par=ext1278997-clt-92a-1)
31. A requalificação passa também pela melhoria de todos os acessos nesta zona e passa, desculpem lá, pelo facto de o metro não ser feito para a Expo: é feito para a eternidade, para as pessoas que vivem aqui. (par=ext1147187-nd-98a-3)
32. Já no final do dia, Sampaio desafiou a secretária de Estado da Educação e Inovação, Ana Benavente, a falar do relatório que já existe sobre esta matéria: «Talvez possa desvendar alguma coisa e falar de algumas das suas impressões, desculpe lá, mas talvez seja a altura», solicitou Sampaio. (par=ext860194-soc-98a-1)
Em (30), em sequência de discurso direto, altamente injuntiva e intersubjetiva, a personagem se dirige ao seu interlocutor iniciando a declaração com desculpa lá. Nas sequências (31) e (32), prevalecem também as marcas intersubjetivas e injuntivas. Nos três fragmentos, as referidas expressões se encontram altamente entrincheirada em suas subpartes e desvinculadas, do ponto de vista semântico-sintático, da sequência em que se inserem. Em contextos assim organizados, não mais se detectam os argumentos verbais – sujeito e complemento – ficando apenas o pareamento de forma e sentido desculpa/ -e / -em a marcar discursivamente o fragmento em que se insere.
Ao contrário do que se observa no PB, a ocorrência de flexão foi registrada também em outras instanciações da VLocmd no PE. A pesquisa em O Público levantou ainda usos como os seguintes:
33. - Não, não, espere lá, ele estava mesmo mal-disposto! (par=ext1554160-soc-97a-1)
34. Concertos no Ritz de Nova Iorque ou no Parque Gorky em Moscovo tornaram a banda célebre e a imprensa italiana, vejam lá, considerou Tracy a «dona da mais bela voz da pop britânica». (par=ext424042-clt-94b-2)
Dados como os apresentados em (33) e (34), bem como os exemplificados de (30) a (32), demonstram como um traço específico da configuração gramatical do PE, isto é, o da distinção no uso das pessoas gramaticais, e as características atinentes a marcas retóricas culturais, acabam por influenciar as instanciações diversas da VLocmd nessa variedade.
Assim, em termos cognitivos, consideramos que, nas duas variedades do português pesquisadas, se trata de scripts culturais distintos (Batoréo no prelo), que acabam por ensejar e rotinizar modos de codificação gramatical também distintos. Nessa perspectiva, ainda como Batoréo (no prelo), assumimos que a especificidade cultural dos contextos de interação e sua repercussão na seleção e organização lexical, pode, via frequência em determinados contextos, se expandir e atingir o domínio gramatical, o nível estrutural da língua. Estabelece-se, portanto, a correlação entre cultura e gramática, no entendimento de que a sistematização de modos de dizer deriva de práticas socioculturais, forjadas, rotinizadas e expandidas via interação.
Conforme observado nesta seção, no que concerne às instanciações de VLocmd, o PB e o PE apresentam pontos de correlação e de distinção. Os aspectos distintivos são mais salientes aqui do que os referentes aos tokens da LocVct.
5. Conclusões e encaminhamentos de pesquisa
Com base nos resultados obtidos a partir do levantamento e da análise dos dados extraídos do PB e do PE, na pesquisa das instanciações da LocVct e da VLocmd, chegamos às seguintes considerações, à guisa de conclusão:
A. No padrão LocVct, em ambas as variedades, V mantém a propriedade semântica espacial – seja estativa (estar), seja dinâmica (ir, vir). A persistência dessa propriedade está ligada ao estatuto mais gramatical da LocVct, com base em sua função de elemento de conexão textual, como categoria sintática da língua.
B. De outra parte, o V na VLocmd, tanto no PE quanto no PB, apresenta mais diversidade em sua seleção lexical. Atribuímos tal diversidade de sentido ao nível mais avançado de gramaticalização dessa macroconstrução, localizado na pragmática, para além, portanto, do plano estrita ou categoricamente mais gramatical da língua.
C. O destaque ou fator distintivo nesse quesito fica por conta do uso sistemático de desculpar (e suas flexões) + lá, nos tokens da VLocmd no PE. Hipotetizamos que se trata de um tipo de convencionalização, via analogização com base no modelo Vespacial+ lá, como vá lá ou anda lá. A motivação para o recrutamento de desculpar seria de natureza pragmático-discursiva, atinente à recorrência de um tipo de estratégia retórica nas interações do PE, nas quais pedir desculpas ou desculpar, com suas flexões e combinações, são muito recorrentes. Assim, de um uso de motivação pragmática, motivado por circunstâncias mais específicas e pontuais, o PE desenvolveu um marcador discursivo, regular e produtivo nas interações.
D. Ainda com relação ao V nos padrões pesquisados, as duas variedades revelam outra distinção saliente, esta relativa ao quadro das pessoas gramaticais. Enquanto no PB a flexão reduz-se majoritariamente à 2a pessoa (espera aí, vê lá), ou então à 3a pessoa (vá lá, veja lá, diga lá), em função do tipo semântico do verbo e de sua classe morfológica, o PE mantém a distinção original do quadro, indicando especificamente a segunda e a terceira pessoas. Tal diferença paradigmática tem reflexos principalmente nos tokens da VLocmd. Assim, enquanto no PB usos como, por exemplo, espera aí, veja lá e olha lá são praticamente invariáveis, no PE as mesmas expressões, no cumprimento da função de marcador discursivo, podem estar flexionadas, como espera/ -e/ -em aí, veja/ -m lá e olha/-e lá. Esse quadro permite postular que a gramaticalização de tais expressões se comporta de modo e ritmo distintos: enquanto no PB está em fase mais avançada, pela redução do quadro de referência pronominal e consequente fixação da 2a ou 3a pessoa como forma não-marcada de expressão, no PE a mudança gramatical tem outro ritmo, já que, via flexão verbal, se mantém a vinculação do V a sua categoria-fonte (o que já foi perdido no PB).
E. A respeito do locativo, outra subparte das construções aqui pesquisadas, observam-se tendências específicas, em termos do padrão construcional em que figuram. No caso da LocVct, a diversidade é maior, com tendência de uso de aí e aqui, na referência ao espaço específico da segunda e primeira pessoas, respectivamente; o locativo lá ocupa a terceira posição, em termos de frequência, na perspectivização de lugar distante e vago. Na instanciação da VLocmd, detectamos o uso de lá como expressão não-marcada, seguida por aí e aqui, com usos esporádicos. Comparando-se o PE e o PB, esse tipo de distribuição do Loc é verificado em ambas as variedades e pode, assim, ser interpretado como um traço específico de cada construcionalização processada. Nesse sentido, como a LocVct cumpre papel no nível sintático-textual, os locativos têm mais preservadas suas propriedades da categoria-fonte, na manutenção de traços das pessoas gramaticais; já a VLocmd, em estágio mais avançado na escala da gramaticalização, localizada no nível da pragmática, é mais esquemática, selecionando em suas instanciações, quase exclusivamente, o locativo lá.
F. No que concerne ao constituinte locativo, a par das tendências correspondentes apontadas em E, registra-se um traço distintivo interessante relativo ao elemento cá. Como, no PB, a referência dêitica da primeira pessoa é articulada prototipicamente por aqui, o locativo cá tem seu uso restrito e especializado em determinadas expressões, aí incluídas as instanciações de VLocmd, como vem cá, por exemplo, muito produtiva no Brasil. Já no PE cá e aqui competem pela referência à primeira pessoa, o que faz com que, nessa norma do português, não se registrem usos mais entrincheirados de cá em instanciações da VLocmd.
Assim posto, no contexto dos fundamentos teóricos que nos orientam, consideramos que o quadro distintivo aqui apresentado se torna importante e relevante aspecto a ser investigado no âmbito dos estudos de mudança gramatical em termos mais amplos. Assumimos que a gramaticalização de construções no português, a depender da variedade – PE ou PB – pode assumir traços mais específicos, com distinção de visibilidade e de ritmo ao nível das mudanças construcionais. As diferenças no uso, que motivam as diferenças na sistematização gramatical, têm a ver com motivações pragmáticas (como no caso da seleção de desculpar no PE) e motivações estruturais (como em relação ao quadro de referência das pessoas do discurso).
As considerações aqui apresentadas, no tocante a nossos objetos de pesquisa, permitem que postulemos a seguinte sumarização, como apresentada na figura seguinte:
Na perspectiva da gramaticalização de construções, levando em conta as condições específicas de cada variedade de uma dada língua (socioculturais, cognitivas, estruturais), consideramos que uma mesma mudança linguística pode ocorrer segundo motivação, velocidade e modo distintos. Assim, para além das questões eminentemente teóricas que orientam a pesquisa no âmbito da linguística centrada no uso, é preciso levar em conta, quando se trata da situação de língua usada em variedades distintas, tal como no caso do PB e do PE, que as rotas da mudança construcional ou construcionalização podem assumir contornos mais específicos, ainda que se trate do processamento do mesmo fenômeno. Por fim, resultados como os aqui apresentados, que ainda devem ser testados em outras fontes empíricas, devem ser levados em conta no próprio refinamento dos pressupostos teóricos que nos orientam.
Referências bibliográficas
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[1] Este artigo é fruto de projetos acadêmicos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Estudos Discurso & Gramática – UFF, com apoio do CNPq, da Capes e da Faperj, instituições as quais agradecemos a parceria.
[2] Todos os excertos relativos ao jornal português O Público provêm do site da Linguateca (http://www.linguateca.pt/cetempublico/)
[3] Ana Claudia Machado Teixeira dá continuidade à sua pesquisa sobre a VLocmd, agora sob forma de tese de doutoramento, no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF, em que examina tal construção em perspectiva histórica.
[4] Termo traduzido do inglês usage based language, como assumido no Brasil por Martelotta (2011).
[5] Termo usado no âmbito do Grupo de Estudos Discurso & Gramática como tradução do original invited inference, proveniente de Traugott e Dasher (2005).
[6] Termo usado na linguística centrada no uso (Traugott 2012) em referência a uma classe matriz, que se convencionaliza, via gramaticalização, e passa a funcionar como modelo para a criação de novos usos.
[7] A respeito da distinção entre frequência type e token, orientamo-nos por Bybee (2003), no contraste, no caso de type, entre um padrão de frequência, um tipo de arranjo em recorrência total, e, no caso de token, a frequência de cada instanciação, em seu uso específico.
[8] A autora estabelece distinção entre contextos somente atípicos, como ambientes marcados apenas por ambiguidade semântica, e outros nomeados de críticos, nos quais, a par dessa ambiguidade, há fatores estruturais que ensejam novos sentidos e funções. Essa distinção não será aqui tratada em maiores detalhes.
[9] Rossana Alves Rocha dá continuidade à sua pesquisa sobre a LocVct, agora sob forma de tese de doutoramento, no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF, em que examina tal construção em perspectiva histórica.
[10]As siglas referem-se, respectivamente, às seguintes mesoconstruções: Vmovimento Locativo VestativoLocativo, VprocessoLocativo, VpercepçãoLocativo, VcogniçãoLocativo, VvolitivoLocativo e VelocuçãoLocativo.
[11] Na pesquisa dos usos de sei lá no PB, Oliveira e Santos (2011) identificaram a enumeração como função de marcação discursiva de menor frequência face à de hesitação, perfazendo cerca de um quarto das ocorrências da marcação.