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Lingüística
On-line version ISSN 2079-312X
Lingüística vol.30 no.2 Montevideo Dec. 2014
Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 45-80
ISSN 1132-0214 impresa
ISSN 2079-312X en línea
A FONOLOGIA EM DADOS DE ESCRITA INICIAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS
PHONOLOGY IN DATA ON EARLY WRITING PRODUCED BY BRAZILIAN CHILDREN
Ana Ruth Moresco Miranda
Universidade Federal de Pelotas
Neste artigo, são analisados dados de escrita inicial com o objetivo de promover discussões acerca das relações entre as escolhas gráficas das crianças e o conhecimento linguístico, especialmente, o fonológico. O foco incide sobre a fonologia das consoantes palatais, as soantes, /ʎ/ e /ɲ/, e as fricativas, /ʃ/ e /ʒ/, ambas consideradas complexas em estudos do português. Os argumentos para a caracterização desses segmentos como complexos ao serem confrontados com dados de escrita inicial mostram que as grafias das crianças estudadas, no que diz respeito às soantes, corroboram a idéia de consoante complexa acrescendo evidências às discussões. No que tange às fricativas, especificamente, em relação aos ditongos fonéticos, os dados de aquisição da linguagem não trazem evidências referentes à constituição complexa das consoantes, mas revelam o efeito da apropriação do sistema alfabético sobre a produção dos ditongos, o que pode ser interpretado como indício de mudança representacional das fricativas palatais.
Palavras-chave: aquisição da linguagem; fonologia e ortografia; soantes palatais; ditongos fonéticos
In this paper, data on early writing are analyzed in order to promote discussions about relations among children’s spelling choices and their linguistic knowledge, mainly the phonological one. Emphasis is given to the phonology of palatal consonants, the sonorants, /ʎ/ and /ɲ/, and the fricatives, /ʃ/ and /ʒ/, which have been considered complex in studies of the Portuguese language. Arguments used to characterize these segments as complex ones, when they are compared with data on early writing, have shown that these children’s spelling, regarding sonorants, agrees with the idea of complex consonant and provides evidence to the discussions about the issue. Concerning fricatives, especially in terms of phonetic diphthongs, data on language acquisition have not provided any evidence of the complex constitution of consonants. However, they have revealed the effect of the appropriation of the alphabetic system in the production of diphthongs, a fact that may be interpreted as a clue to the representational change of the palatal fricatives.
Keywords: language acquisition; phonology and written; palatal sonorants; phonetic diphthongs
1. Introdução
A relação entre a escrita inicial e a fonologia tem sido abordada a partir de diferentes perspectivas, dentre as quais três principais podem ser mencionadas: estudos que visam analisar os erros de escrita produzidos pelas crianças com base na idéia de que eles são reflexos de processos fonológicos, como aqueles encontrados na aquisição da linguagem e descritos por Stampe (1973) (Varella 1993; Ilha 2003); outros que enfocam o papel da consciência fonológica para o desenvolvimento da escrita, largamente desenvolvidos após o estudo inaugural de Bradley e Bryant (1983); (Cardoso-Martins 1991; Freitas 2004; Rigatti-Scherer 2008); e por fim, os que, na trilha de Abaurre (1988, 1991), abordam o dado de escrita como fonte para reflexões acerca da fonologia da língua e/ou do conhecimento fonológico construído pelas crianças ao longo do desenvolvimento (Miranda 2005, 2009, 2012; Cunha 2004, 2010; Adamoli 2012).
Neste estudo[1], os dados de escrita inicial serão analisados na linha da terceira vertente de estudos recém referida. O erro (orto)gráfico[2] é tomado pelas investigações desenvolvidas pelo GEALE[3] como um dado capaz de revelar as hipóteses das crianças sobre o sistema que elas estão a adquirir e, sobretudo, como um elemento revelador do conhecimento linguístico construído desde os primeiros anos de desenvolvimento da linguagem até o momento em que elas ingressam no processo de escolarização.
A fonologia nos/dos dados de escrita inicial será explorada, neste artigo, com o objetivo de fomentar duas discussões principais: a primeira referente à compatibilidade de um modelo teórico da fonologia não linear, especificamente a autossegmental, com dados de escrita inicial que revelam aspectos do processo desenvolvimental; a segunda, ao efeito de reciprocidade entre as duas modalidades da língua, isto é, entre fala e escrita. As grafias da soante líquida palatal serão tematizadas com o objetivo de subsidiar a primeira discussão; e dados de fala e de escrita de crianças dos anos iniciais referentes aos ditongos fonéticos, a segunda.
A abordagem aos dados de escrita inicial tem como pressupostas três idéias centrais: i) a aquisição da linguagem é um processo de descoberta orientada, guiada pela capacidade que as crianças têm para construir gramáticas (Kiparsky e Menn 1977); ii) aquisição da escrita é parte do processo de aquisição da linguagem (Abaurre 1991); iii) a aquisição de um sistema de escrita alfabética cria as condições necessárias para a atualização do conhecimento fonológico já adquirido (Miranda 2012).
O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução. Na primeira, são tecidas considerações sobre a aquisição da fonologia e da escrita bem como sobre o modo como o conhecimento fonológico se manifesta em dados de escrita inicial. Em seguida, são focalizadas as consoantes palatais, as quais são contextualizadas do ponto de vista da diacronia, da sincronia e da aquisição da linguagem. Por fim, são apresentadas as considerações finais.
2. Apontamentos sobre a aquisição da linguagem: fonologia e escrita
Autores que se voltam para questões desenvolvimentais, tais como Kiparsky e Menn (1977), Karmiloff-Smith (1986, 1992) e Macken (1992), por exemplo, concordam com a visão segundo a qual há uma capacidade humana específica para a construção de gramáticas, sendo o processo de aquisição da linguagem resultado da integração de princípios gerais e padrões de línguas particulares sob o controle de um mecanismo central de aquisição, responsável pela formação de hipóteses por parte das crianças desde uma idade muito precoce. Esse mecanismo promove e restringe as hipóteses que possibilitam à criança a descoberta dos padrões de sua língua e também a criação de regras que atuam no sistema em aquisição. Assumir uma abordagem como essa implica em preservar a ideia de desenvolvimento cognitivo que, intrinsecamente, pressupõe mudança, bem como valoriza a variação e a presença de diferenças individuais, notável no processo de desenvolvimento da linguagem, sem que seja necessário, para isso, abrir mão de estruturas universais e padrões gerais de aquisição.
Para pensar no surgimento da fonologia, Macken (1992) argumenta em favor da idéia de que as primeiras produções das crianças apresentam uma configuração que explora mais a prosódia do que o segmento e sua estruturação interna. Para a autora, templates de palavras, segmentos e traços são adquiridos de forma simultânea, mas com predomínio dos primeiros. Aos poucos, a palavra deixa de ser o elemento nuclear e os segmentos e os traços ganham centralidade. Assim, pode ser explicada a presença de formas não condizentes com o que se observa em termos da constituição dos inventários segmentais e prosódicos, observados nas etapas bem iniciais do desenvolvimento fonológico. Tais formas estariam sendo produzidas como blocos, ainda sem análise fonológica de unidades mais básicas tais como traços, segmentos e sílabas.
Exemplos da aquisição do português podem ilustrar o fato. Em estudos desenvolvidos sobre aquisição das róticas e das fricativas, Miranda (respectivamente, 1996 e 2009) observou que a variável posição na palavra tem efeito sobre a produção do ‘r-fraco’, e da fricativa coronal anterior. A rótica é produzida de maneira consistente pelas crianças estudadas primeiramente na posição de coda final, em palavras com ‘flor’ e ‘tambor’, e somente dez meses depois na posição de coda medial, em palavras como ‘por.ta’ e ‘mar.te.lo’, por exemplo. Em relação à fricativa, ao tratar de dados de aquisição de uma menina acompanhada longitudinalmente desde as primeiras palavras, a autora constatou que a fricativa de final de sílaba, assim como a rótica, apresenta comportamento distinto em razão da posição que ocupa na palavra, isto é, se medial, ‘pas.ta’ ou final, ‘três’. Enquanto a fricativa de coda dentro da palavra somente começaria a ser produzida pela criança na sessão realizada aos três anos e um mês, no final de palavra a produção já era consistente desde um ano e onze meses. Uma interpretação plausível para as assimetrias na produção de segmentos pertencentes à mesma posição silábica, se consideramos a existência de relação entre os níveis melódico e prosódico no processo de aquisição[4], seria a de que a fricativa de final de palavra não é computada pela criança como uma coda, mas sim como parte integrante da palavra, conforme postulado por Macken (1992).
A aquisição fonológica, numa perspectiva distinta daquela adotada pela Fonologia Natural[5], tem sido tratada como um processo de constante incrementação das representações lexicais, as quais vão se tornando mais complexas e completas ao longo do desenvolvimento linguístico (Matzenauer 1996; Lleó 1997; Matzenauer e Miranda 2012; entre outros). Especificamente, em se considerando a fonologia da língua, pode-se pensar que o conjunto de segmentos, preferencialmente não marcados no início da produção fonológica, vai sendo ampliado por meio da especificação de traços mais marcados até que o inventário da criança assemelhe-se ao da língua alvo. Tal evolução é observada também em relação à prosódia, à medida que sílabas canônicas CV desdobram-se em estruturas mais complexas tais como CVC e CCV, por exemplo.
Seguindo essa linha de raciocínio, entende-se que o input tem papel relevante no processo desenvolvimental, uma vez que funciona como gatilho para a construção do conhecimento linguístico que vai sendo internalizado. Há um jogo de interação entre mecanismos gerais de apreensão da gramática e o input linguístico de que a criança dispõe.
No que diz respeito à aquisição da escrita, considerada parte integrante do processo de desenvolvimento da linguagem, conforme mencionado anteriormente, é importante fazer referência às conquistas cognitivas necessárias para que uma criança ou mesmo um adulto se aproprie de um sistema que, diferentemente da fala, pressupõe instrução sistemática e explícita para que possa ser apreendido. As crianças aprendem a falar naturalmente em um ambiente no qual a linguagem esteja disponível, mas não a ler espontaneamente, apesar de fazerem parte de uma sociedade grafocêntrica, onde, em maior ou menor grau, materiais de leitura povoam o cotidiano.
De acordo com a perspectiva psicogenética (Ferreiro e Teberosky 1984), a criança deverá compreender que letras simbolizam algo e que este algo é a língua em sua dimensão sonora, ou seja, são os elementos da segunda articulação, aqueles não significativos, que deverão estar sob análise. Essa não é, portanto, uma tarefa trivial e vai exigir um grande esforço cognitivo da parte do aprendiz acostumado a prestar atenção no significado linguístico, em primeiro plano nas situações comunicativas de uso da língua[6]. Haverá, no processo de aquisição da escrita, a necessidade de os aprendizes perceberem que a cadeia sonora produzida e compreendida não é apenas conteúdo, mas também forma. Isso implica dizer que terão de perceber que a linguagem escrita é um modo de representação da língua, não apenas em seus aspectos significativos, mas também em seu aspecto sonoro. Assim, segmentos e sílabas, antes subsumidos no fluxo da fala, deverão ganhar contornos conceitualmente acessíveis.
Em referência ao sistema linguístico, Saussure (1916: 87) diz que os falantes, diante de mecanismo tão complexo, somente poderão compreendê-lo pela reflexão, pois mesmo fazendo uso cotidiano dele, ignoram-no profundamente. Tal observação remete à diferença entre o “saber a língua”, no sentido de utilizá-la apropriadamente nos mais distintos contextos comunicativos e o “saber sobre a língua”, tomando-a como objeto de conhecimento. “Uma afirmação como essa pode ser associada a uma reflexão acerca do efeito da apropriação da escrita sobre o processamento linguístico, o qual será inexoravelmente modificado após a compreensão dos princípios de um sistema como o alfabético, já que as unidades de segunda articulação adquirem novo estatuto e passam a ser computadas como unidades de processamento da linguagem[7].
Assume-se, neste artigo, que condições propícias para a retomada de conhecimentos linguísticos já construídos são com o advento da aquisição da escrita e inicia-se assim um período que se caracteriza por uma ‘atualização’ desses conhecimentos, especialmente aqueles concernentes à fonologia. O termo ‘atualização’, neste artigo, é empregado em sua acepção linguística e corresponde à ideia de emprestar expressão física a uma unidade abstrata. Lyons (1968), faz referência à visão saussureana segundo a qual uma unidade formal do plano da expressão, uma forma subjacente, possui uma atualização correspondente em substância: fonemas são atualizados em fones e morfemas em morfes. Note-se que tais constructos pertencem à fala, considerada substância primária do plano da expressão. A escrita, por seu turno, é a substância secundária que se manifesta em traços visíveis, as letras, tornando possível outro tipo de atualização, pois usuários da língua podem revisitar o conhecimento já construído.
Neste sentido, é possível pensar que o conhecimento fonológico é atualizado tanto na produção oral como na escrita. As unidades sonoras formais da língua são expressas por meio de sons e de letras, realizações substanciais de unidades abstratas que independem da substância em que se atualizam. Na aquisição da escrita, porém, a atualização ocorrerá de modo distinto, uma vez que tal processo está associado a uma reflexão mais sistemática sobre a estrutura formal da língua, criando assim uma oportunidade concreta para que a criança (re)atualize o conhecimento linguístico já adquirido de maneira natural e espontânea em seus primeiros anos de vida.
O diagrama, apresentado a seguir, em (1), ilustra a relação entre o conhecimento fonológico e o processo de aquisição da escrita:
(1) relações entre o conhecimento fonológico e a aquisição da escrita
Fonte: Elaboração própria
A representação em (1) procura captar o conjunto de idéias expressas nesta seção, a saber: princípios gerais em contato com o input linguístico redundam em um conhecimento sobre a fonologia da língua específica que inclui tanto informações segmentais como prosódicas. Esse conhecimento funciona como insumo para a escrita alfabética inicial e, nesse processo, cria-se o contexto para uma nova atualização do conhecimento já adquirido. Ao voltar-se para a língua neste outro momento do desenvolvimento, contemplando-a em sua dimensão formal, o aprendiz pode reestruturar suas representações, especialmente nas situações em que houver discrepância entre aspectos de sua fonologia e a da língua alvo, o modelo adulto. É necessário referir que esta formulação, derivada da abordagem adotada neste texto e de seu escopo, não pretende reduzir o complexo processo de aquisição da escrita apenas aos efeitos do conhecimento linguístico. Tem-se em mente que a experiência derivada das práticas de letramento exercem papel relevante durante a aquisição da escrita. O foco do artigo, no entanto, incide basicamente sobre aspectos linguísticos relacionados ao processo.
3. Fonologia e (orto)grafia
Nesta seção, serão trazidos resultados de estudos que enfocam os dois fenômenos em destaque neste artigo: as soantes palatais e os ditongos fonéticos. Nas subseções desenvolvidas a seguir, será feita a caracterização deste tipo de segmento para, logo após, ser apresentada a contextualização dos fenômenos fonológicos abordados. A apresentação dos dados de aquisição fonológica descritos na literatura antecederá a análise dos dados de escrita inicial, a fim de que a fonologia que deles emerge possa ser discutida.
Antes de desenvolver os tópicos específicos anunciados, é importante, porém, destacar a relevância do dado de escrita que está sendo tratado como relacionado à fonologia, uma vez que os estudos realizados pelo GEALE, a partir da análise de dados do Banco de Textos sobre Aquisição da Linguagem Escrita (BATALE)[8], mostram que há grande incidência de erros relacionados a aspectos da fonologia da língua. A computação dos erros encontrados em aproximadamente duas mil produções escritas, os quais foram extraídos dos textos pertencentes ao primeiro estrato do Banco (cf. nota 8), mostra que erros do tipo fonológico são encontrados sempre em maior número que aqueles referentes à ortografia[9], em ambas as escolas estudadas (cf. Miranda 2013).
3.1. A fonologia das consoantes palatais: diacronia, sincronia e aquisição da linguagem
Com base em parâmetros articulatórios, sons palatais são definidos como aqueles produzidos pela aproximação ou contato da parte anterior da língua com o palato duro (Crystal 1985:192). No português, a classe das palatais inclui as consoantes /ʃ, ʒ, ʎ, ɲ/, todas elas envolvidas em discussões fonológicas produzidas tanto por indagações acerca de sua configuração interna como no que diz respeito a seu modo de funcionamento na diacronia, na sincronia e no processo de aquisição da linguagem.
Estudos diacrônicos mostram que, na evolução do sistema consonantal latino, as soantes palatais que hoje integram o inventário do português derivam de suas contrapartes alveolares, /l/ e /n/, tendo passado por várias modificações.
De acordo com Câmara Jr:
A molhada /ʎ/ é o reflexo – 1) ou de um grupo de constritiva labial ou oclusiva surda seguida de /l/, em posição intervocálica (speculum >speclum > espelho, scopulum > scoplum > escolho; 2) ou de /l/ seguido de um secundário /i/ assilábico (palea> palia> palha). A nasal /n/, por sua vez, provém: 1) do grupo /gn/ (agnum> anho, ligna > lenha); 2) de /l/ seguido de um secundário /i/ assilábico (linea> linia> linha); 3) da nasalação de /i/ tônico, proveniente da redução de /n/ entre esta vogal e /a/ ou /o/ (pinum > pio > pinho) (Câmara Jr 1975: 55).
As soantes palatais, que não estavam presentes no sistema consonantal do latim, foram introduzidas no português a partir de mudanças fônicas ocorridas na passagem do latim para o português. De acordo com Silva (1996), o étimo da nasal é, preponderantemente, a sequência ‘ni’, enquanto a lateral palatal teria derivado de sequências mais variadas como ‘li’, ‘lli’, ‘cl’, ‘gl’, e ‘pl’, por processos amplos de palatalização. Tais processos ocorreram exclusivamente na posição intervocálica, o que pode ser uma das explicações para a restrição posicional que sofrem essas consoantes no que diz respeito à posição que podem ocupar na palavra. Formas iniciadas por ‘nh’ e ‘lh’ são verdadeiras exceções, constam apenas em alguns poucos empréstimos e, não raro, recebem uma vogal epentética, como ilustram os exemplos [i]nhoque e [li]ama, para ‘nhoque’ e ‘lhama’, respectivamente.
As fricativas, como as soantes, não faziam parte do inventário latino, tanto a sonora, /ʒ/, quanto a surda, /ʃ/, surgem a partir de um processo condicionado por ambientes fonológicos específicos. Em (2), estão sistematizados o casos que, de acordo com Williams (1973: 109-110), explicam o surgimento dessas palatais na passagem do latim clássico para o português:
(2) o surgimento das palatais no sistema de consoantes do português[10](Tabla)
Fonte: Elaboração própria a partir de Wiliams (1973)
A evolução do sistema consonantal latino, ainda de acordo com o autor, evidencia a influência da vogal alta coronal no surgimento das consoantes palatais na língua portuguesa. Em razão da história dessas consoantes e também de seu funcionamento particular, estudiosos do português atual têm argumentado em favor da idéia de que as palatais são consoantes complexas, no que tange à sua constituição interna (Wetzels 1992, 1997 e Matzenauer 2000).
Uma consoante complexa é assim definida por Clements e Hume (1995: 253), com base na geometria de traços, como “um nó de raiz caracterizado por ter ao menos dois traços de diferentes articuladores orais, o qual representa um segmento com duas ou mais constrições simultâneas no trato oral”.
Há duas interpretações para as palatais pela geometria de traços: elas podem ser consideradas complexas como mostra (3) ou simples, conforme (4):
(3) Representação da líquida palatal – consoante complexa
Na composição interna de /ʎ/, em (3), é possível observar a presença do articulador secundário, formalizado como um nó vocálico em cujo domínio estão o traço de ponto, [coronal], e o nó de abertura responsável pela expressão da altura vocálica[11]. Seguindo-se a proposta de segmento simples para esta consoante, tem-se (4).
Em (4), o traço [-anterior] é o responsável pela diferenciação, necessária às consoantes do português, entre a lateral alveolar /l/ e a palatal /ʎ/. Essa mesma oposição entre os valores do traço [anterior] será decisiva para as oposições entre /n/ e /ɲ/, /s/ e /ʃ/ e /z/ e /ʒ/, no sistema. A repercussão da adoção de uma ou outra estrutura poderá ser melhor observada adiante, quando os fenômenos fonológicos que envolvem as palatais forem analisados.
O comportamento das soantes palatais, seja da líquida, seja da nasal, além de motivar a proposta de complexidade segmental, alimenta uma linha de argumentação referente à sua complexidade prosódica, o que levou Wetzels (1997) a posicionar-se em favor de uma estrutura geminada para as soantes palatais. Os fatos sincrônicos utilizados pelo autor como evidência de geminação podem ser assim sintetizados: i) restrição posicional, que impede soantes palatais de ocuparem posição de borda na palavra, ambas somente podem ocupar posição intervocálica (‘malha’ e ‘manha’); ii) restrição quanto à passagem do acento prosódico, palatais bloqueiam a passagem do acento, que somente pode incidir sobre a sílaba imediatamente anterior (‘baralho’ mas não ‘baralho’); iii) restrição à presença de ditongos precedendo palatais, sequências vocálicas são silabificadas como hiatos (‘fu.i.nha’ mas não ‘fui.nha’). A postulação de uma estrutura geminada explica essa série de bloqueios, uma vez que pressupõe a existência de uma coda preenchida pela soante que ocupa duplamente coda e ataque, como mostra a representação em (5), na qual se pode observar a linha dupla que liga a mesma raiz a dois tempos fonológicos, ocupando a posição de coda e a de ataque:
Na representação em (5), pode ser observada a presença de dois tempos fonológicos na camada CV. Por esta proposta, há dois tipos de complexidade envolvendo as palatais: uma melódica, observada no nível segmental pela presença do nó vocálico, e outra prosódica, concernente à presença de estrutura geminada, existente no sistema latino, mas não consensual para o português.
As palatais na aquisição da fonologia são, de modo geral, apontadas como consoantes de domínio mais tardio. Um panorama geral dos estudos desenvolvidos no Rio Grande do Sul apresentado por Lamprecht et al. (2004) revela resultados como os que estão sumariados no quadro em (6)[12]
Fonte: Elaboração própria, seguindo Lamprecht et al. (2004)
O quadro em (6) mostra um ordenamento que, em se considerando as classes naturais, é condizente com estudos sobre aquisição fonológica em línguas diversas: plosivas e nasais são as primeiras classes a compor o inventário das crianças. Essa constatação converge para a tendência universal já explicitada por Jakobson ([1941] 1968) em seu estudo seminal sobre universais linguísticos, aquisição e perda de linguagem. Com base no ordenamento apresentado, pode-se observar que as palatais são aquelas de aquisição mais tardia dentro das classes a que pertencem. Dentre as soantes, a nasal estará estabilizada por volta dos dois anos e a líquida somente será consistentemente produzida a partir dos quatro anos; já as fricativas estarão estáveis depois de dois anos e seis meses. A diferença no tempo de aquisição das consoantes em foco neste estudo está relacionada ao fato de ser a nasal palatal pertencente a uma classe que, juntamente com a das obstruintes, é adquirida precocemente, enquanto as líquidas integram a classe de aquisição mais tardia.
3.2. A consoantes palatais e os dados de aquisição da linguagem
O estudo de Matzenauer (2000), específico sobre as soantes palatais, abrangeu os dados de fala de 130 crianças falantes do português brasileiro, as quais estavam dispostas em 13 faixas etárias que compreendem idades entre dois anos e quatro anos e dois meses. As estratégias utilizadas pelas crianças para ocupar o espaço da consoante alvo que, como mencionado recém, é de aquisição mais tardia foram sumariadas pela autora, como mostram os exemplos em (7).
Fonte: Matzenauer (2000: 304)
Nos dados estudados pela autora, há maior número de variantes na produção da líquida, mas isso tem menos a ver com restrições fonotáticas do que com o fato de a faixa etária inicial de seu corpus ser a de dois anos, período em que a aquisição da nasal está concluída para muitas crianças. Em (8), são apresentados dados produzidos por duas crianças acompanhadas longitudinalmente: Laís e Valentin[13], para que as tendências gerais explicitadas em (7) possam ver verificadas em universos mais particulares[14].
As estratégias utilizadas pelas crianças para os contextos de soante palatal exemplificadas em (8) mostram que, nas produções bem iniciais tanto de Laís como de Valentin, a líquida palatal é produzida como plosiva e como nasal, possivelmente por efeito de harmonia[15]. De modo geral, pode-se observar exemplos que correspondem àquelas formas encontradas por Matzenauer (2000): semivogal palatal, [j], ou ainda a lateral alveolar [l] e a sequência [lj]. A emergência da lateral palatal somente se verifica ao final dos períodos exemplificados em (8), aos três anos para a menina e aos dois anos e dez para o menino.
Vale a pena comentar o primeiro dado de Valentin, [ʎu’ʎu] para ‘lulu’, uma vez que se configura como uma forma inusitada, em se considerando o desenvolvimento do inventário consonantal, pois, no início do desenvolvimento fonológico, líquidas não são produzidas e, quando o são, a que emerge é a alveolar, [l], definida por Matzenauer-Hernandorena (1990) como a líquida prototípica. Um olhar sobre os dados de Valentin, em (8), revela que a alveolar já é produzida por ele desde as primeiras faixas etárias, porém, no lugar da palatal, [‘bila] para ‘pilha’. Nas palavras em que deveria produzir o [l], o menino produz, na mesma entrevista, um zero fonético ou um [j], em [to’etʃi] e [po’jenta] para ‘colete’ e ‘polenta’, respectivamente. A idéia de que a fonologia segmental emerge gradativamente, como referido no início deste artigo, e que, portanto, formas não analisadas podem surgir nas etapas bem iniciais da produção linguística das crianças, pode ser a interpretação adequada para um dado como este, em que um segmento tardio emerge precocemente e, ainda mais, em posição não licenciada pela fonologia da língua. Esta pode ser considerada uma forma produzida como um bloco, sem que sua estruturação interna esteja sendo levada em conta (cf. Macken 1992).
Os dados de aquisição de escrita referentes à grafia das soantes palatais, discutidos neste artigo, pertencem a três amostras compostas por erros ortográficos extraídos: i) de textos que integram o primeiro estrato do BATALE; ii) textos coletados com estimulação para a grafia das soantes palatais (cf. Nota 8); iii) palavras isoladas cuja grafia foi obtida por meio da aplicação de um instrumento preparado especialmente para o estudo das soantes palatais (nasais e laterais). O instrumento utilizado para obtenção dos dados foi um ditado de imagens[16] composto por vinte e três figuras (que correspondem a itens lexicais supostamente pertencentes ao léxico infantil), dentre as quais cinco são distratoras.
O levantamento realizado por Teixeira e Miranda (2010) nos textos do BATALE, a fim de verificar quantas vezes houve possibilidade para a grafia de soantes palatais, resultou na computação de 7291 contextos para ‘lh’ e ‘nh’ dos quais foram extraídos 416 erros, o equivalente a 5.7%, sendo o percentual de erros da líquida responsável por dois terços do total. Índice um pouco mais alto foi encontrado na análise de dados controlados, 13%, ou 413 ocorrências em um universo de 3202 contextos. Em todas as amostras, a maior incidência de erros foi observada nas duas primeiras séries e incidiu mais sobre a grafia da líquida.
Os erros encontrados nos textos das crianças foram divididos em dois grandes grupos, de acordo com a natureza da motivação, conforme interpretação adotada nos estudos do GEALE, exemplificada no quadro em (9):
No cômputo geral, em se considerando os dados extraídos dos textos pertencentes ao primeiro estrato do BATALE, a maior ocorrência de erros é relativa a troca interpretada como decorrente da motivação ortográfica, 60% dos casos, e os 40% restantes correspondem àqueles classificados no grupo dos fonológicos. Nos dados oriundos da aplicação de instrumentos, tendência semelhante foi observada.
Em (10), é apresentado um conjunto de exemplos que ilustram os erros do tipo fonológico, aqueles nos quais podem ser observados indícios de conhecimentos das crianças acerca da fonologia das soantes palatais.
De modo geral, todos os erros na grafia das soantes palatais parecem convergir para a idéia de que soantes palatais são consoantes complexas, conforme proposto por Matzenauer (2000) que, seguindo a análise de Bisol para as fricativas palatais (1994), formaliza os processos que envolvem essas consoantes, com o auxílio da geometria de traços, como mostra (11): uma representação em (a) que ilustra o processo de espraiamento e em (b), a estrutura resultante:
Em (11), a representação à esquerda, (a), é referente ao espraiamento do nó vocálico em direção ao Ponto de Consoante (PC) da vogal seguinte e o resultado desse procedimento é uma estrutura em (b), a qual fere a Condição de Ramificação[17]. O passo seguinte para solucionar a configuração mal formada é a aplicação da Fissão de Nós, processo cujo resultado é o descolamento do nó Vocálico de PC, o qual passa a ocupar um slot próprio na camada temporal. Assim as operações envolvidas na passagem de um /ʎ/ para [li] ou para [lj], formas observadas nas produções das crianças, puderam ser formalizadas. Caso tivesse se aplicado apenas o processo de Desligamento sobre o nó vocálico, o resultado seria a produção de um [l]. (cf. Matzenauer 2000).
Levando-se em conta o fato de as relações entre as soantes palatais e o sistema ortográfico serem biunívocas, isto é, soantes palatais do nível fônico corresponderem, via de regra, aos grafemas ‘lh’ e ‘nh’, não havendo, portanto, complexidade ortográfica, pode-se pensar que dados de escrita, como os que estão em (10), guardam relação estreita com o processo de aquisição da fonologia dessas consoantes, pois, no processo de atualização do conhecimento que possuem sobre a estrutura segmental, as crianças se deparam com a complexidade representacional inerente às soantes palatais do português e têm, diante de si, um problema a ser resolvido.
Porém, mais do que constatar a semelhança entre processos observados nas primeiras produções orais com aqueles presentes nas grafias iniciais, interessa chamar atenção para um aspecto em especial, o uso do ‘r’ para a grafia da líquida palatal, como mostram exemplos em (10) e em (12).
Dados como estes são interessantes primeiro por que não são comumente observados na fala – talvez pelo fato de r-fraco e /ʎ/ serem as duas últimas líquidas adquiridas no processo de desenvolvimento fonológico – e segundo por que se manifestam na escrita de modo episódico. São dados difíceis de serem capturados e têm o estatuto de um dado singular que pode dar subsídio a argumentação fonológica, constituindo-se em uma evidência para sustentação da proposta relativa à constituição interna da rótica alveolar como complexa, conforme postulou Matzenauer-Hernandorena (1996), ao estudar aquisição das líquidas, e Bisol (2012), ao retomar seu estudo sobre os ditongos fonéticos.
Para Matzenauer-Hernandorena (1996: 74), a aquisição segmental, que pode ser modelada pela geometria de traços de Clements e Hume (1995), é resultado da definição das linhas de associação entre traços e nós que compõem a estrutura interna dos segmentos. Assim, processos tais como a semivocalização de líquidas e a produção de [l] em vez de [l], [pa’jasu] ou [pa’lasu] para ‘palhaço’, por exemplo, seriam resultantes da ligação apenas do nó Vocálico, no primeiro caso, e do nó Ponto de C, no segundo (cf. figura (3)). A autora, no referido estudo, atribui estatuto de consoante complexa às líquidas de modo geral.
Também Bisol (2012), ao retomar a discussão sobre os ditongos fonéticos implementada em artigos de 1989 e 1994, nos quais tratou do efeito das fricativas palatais sobre o surgimento do ditongo em palavras como ‘caixa’ e ‘queijo’, defende, assim como havia sido proposto para as fricativas palatais, a idéia de que o ‘r-fraco’ é também uma consoante complexa, utilizando com exemplo para sua argumentação produções de Laís, cujos dados estão em (8), as quais evidenciam a presença do nó vocálico na classe das líquidas, pois a menina sistematicamente durante alguns meses semivocalizou todas as líquidas.
Também nas produções de Valentin, com idade de um ano e nove meses, são encontrados exemplos, reproduzidos em (13), que podem corroborar a proposta referente à presença de um nó vocálico nas líquidas.
A produção de [‘bejla] para ‘pera’ e [‘lajla] ‘arara’, casos nos quais a líquida não-lateral é produzida como [jl] são exemplos que vão ao encontro da proposta que expande a caracterização de segmento complexo ao ‘r-fraco’. A pergunta a ser feita, no entanto, é referente ao motivo por que o glide palatal [j] aparece à esquerda quando a sequência está no lugar da rótica, [jl], e à direita quando no lugar da líquida palatal, [lj]. Uma interpretação para essas diferentes configurações poderia encontrar apoio na idéia de consoantes geminadas, conforme proposto por Wetzels (1997) e mencionado anteriormente neste artigo (cf (5)), não fosse o exemplo referente à produção pela criança da forma [‘ɡojla] para ‘rolha’. No caso de serem geminadas, cria-se uma linha dupla de associação que por princípio não pode ser alterada[18], e isso bloquearia a presença do glide à esquerda da líquida lateral (cf. argumentos de Wetzels (1997) citados neste artigo). Entende-se que tal proposta, adequada à fonologia adulta, não pode ser diretamente adotada para que se pense a gramática sonora da criança, não só pelo contraexemplo apresentado, mas por que há uma pergunta anterior que precisa ser feita: como e quando uma representação de geminada poderá ser constituída em um sistema no qual geminadas não ocorrem, exceto para soantes palatais?
Miranda (2012), ao tratar das assimetrias observáveis entre a fonologia da criança e a do adulto, argumenta em favor da necessidade de que se leve em conta aspectos desenvolvimentais e, sobretudo, a presença de um input compatível com as formas postuladas pelas análises da fonologia da língua-alvo. Considerando-se esta argumentação, pode-se pensar que, apesar de terem existido no latim e persistirem em línguas como o italiano[19], por exemplo, não há base empírica para a criança falante de português construir uma representação geminada de consoante. Por outro lado, a ideia de que a soante palatal, no nível melódico, é uma consoante complexa encontra apoio nos dados, visto que as formas produzidas pelas crianças, assim como as que elas ouvem, podem apresentar alternâncias. Exemplos de produções como [pa’lasu], [pa’jasu], [pa’ljasu] e [pa’ʎasu], embora pertençam, algumas delas, a estratos sociolinguísticos distintos, estão presentes no português falado no Brasil e, portanto, configuram-se em inputs possíveis.
Nos dados de escrita, são encontradas algumas grafias que podem também ser interpretadas como indícios de que as crianças brasileiras não dispensam às soantes palatais estatuto de geminadas, pontualmente, casos em que a grafia da vogal alta palatal, que corresponde ao glide no nível fônico, antecede o grafema ‘lh’ ou ‘nh’, como nos exemplos, ‘abeilha’ e ‘vermeilho’.
Os estudos sobre a fonologia do português prevêem a existência de outros segmentos complexos no sistema, dentre os quais se incluem as oclusivas palatalizadas, [tʃ] e [dʒ][20], as fricativas [-anteriores], /ʃ/ e /ʒ/[21] (Matzenauer 1994 e Bisol 1994), e as líquidas, /l/ e /ɾ/ (Matzenauer 1996 e Bisol 2012). A abordagem das fricativas palatais neste artigo estará restrita à discussão presente na literatura sobre a influência destas consoantes no surgimento dos ditongos fonéticos tratados por Bisol (1989, 1994, 2012), fenômeno estudado por Adamoli (2006, 2012) e Adamoli e Miranda (2009), com base em dados de escrita.
Bisol (1989) divide os ditongos decrescentes do Português em duas classes, ditongos fonológicos e ditongos fonéticos. Os primeiros são responsáveis por contrastes na língua (‘p[aw]ta’ versus ‘p[a]ta’ e ‘t[ej]ma’ versus ‘t[e]ma’) enquanto os últimos não o são (‘p[ej]xe’~ ‘p[e]xe’ e ‘c[aj]xa’~ ‘c[a]xa’). Para a autora, existe uma diferença estrutural entre as formas em que o glide não pode ser dispensado e aquelas em que há alternância entre presença e ausência do glide. A representação do verdadeiro e do falso ditongo, seguindo a autora, está em (14):
Fonte: Adamoli (2006)
No primeiro caso, a forma fonológica da palavra é /kauda/, duas posições do esqueleto silábico são ocupadas e, no segundo, a forma é /kaʃa/, sendo preenchida apenas uma posição esqueletal. De acordo com a autora, “a pressuposição de que provêm de uma estrutura subjacente de uma vogal só as variantes peixe~pexe, assim como faxina~faixina, tem o suporte na teoria fonológica: o glide se forma por espraiamento dos traços vocálicos da palatal, uma consoante complexa” (Bisol 1989:133).
O espraiamento do nó vocálico é formalizado por Bisol (1994) conforme já mostrado em (11) com a diferença de que, neste caso, o espraiamento ocorre para o lado esquerdo, como predominantemente acontece na língua[22]. Assim como mostrado em (11) a e b, em consequência do espraiamento, a vogal passa a ter dois nós vocálicos, o que viola a Condição de Ramificação, e força a CFN (cf. nota 15), operação que depois de alguns passos, resulta em uma divisão melódica no nível da raiz. Com essa elegante explicação, embasada nos pressupostos da Teoria Autossegmental, Bisol dá conta do fato de tais ditongos sofrerem variação sistemática na língua e, principalmente, de não terem papel contrastivo. A questão que se coloca para os estudiosos do desenvolvimento fonológico é, no entanto, relativa à constituição interna das fricativas palatais, consideradas complexas pela autora. Este será o tema sobre o qual se pretende refletir com base em dados de aquisição.
No tocante à aquisição dos ditongos, Bonilha (2000) mostra que as crianças, desde as primeiras etapas do desenvolvimento fonológico, produzem ditongos fonológicos. A autora registra produções para este tipo estrutura, a partir de um ano de idade, enquanto os ditongos fonéticos não constam em seu corpus, composto por dados de 86 crianças com idades entre 1:00 e 2:06. Tal resultado converge para aqueles expressos em estudos variacionistas, tais como os desenvolvidos por Meneghini (1983), Cabreira (1996) e Paiva (1996), segundo os quais a produção apenas da vogal ocorre em taxas que ficam em torno de 90% dos casos em que há contexto para a produção do ditongo fonético. Essa informação vai ao encontro dos resultados apresentados por Bonilha, pois a criança parece não ter evidência suficiente na língua para produzir a estrutura de vogal seguida de glide nessas palavras, cuja característica comum é ter na forma ortográfica uma vogal alta seguindo a vogal núcleo, em contexto de fricativa palatal no ataque da sílaba subsequente (‘beijo’ e ‘caixa’).
Os dados de aquisição da escrita estudados por Adamoli (2006), todos pertencentes ao primeiro estrato do BATALE, receberam tratamento estatístico a fim de que se pudesse verificar o efeito das variáveis linguísticas sobre a grafia dos ditongos fonéticos. Assim como ocorre com os dados referentes à grafia das soantes palatais, pôde-se verificar que os erros não são quantitativamente abundantes. Possivelmente, porque a saliência gerada pela discrepância existente entre as formas orais e escritas chama a atenção da criança que, muito de forma precoce, passa a registrar o grafema correspondente ao glide, até mesmo nos contextos em que ele não deveria, pela norma, estar presente. Dados como os que estão exemplificados em (15) ilustram este fato:
Nos dados estudados, ainda que o predomínio de casos em que a grafia da vogal é escolhida para palavras nas quais o ditongo deveria estar registrado (‘bejo’ e ‘caxa’ em vez de ‘beijo’ e ‘caixa’, por exemplo), há vários casos de inserção do grafema que representa o glide e isso ocorre sempre nos contextos previstos na língua, a saber, antes de fricativas palatais e de ‘r-fraco’. Os dados em (15) foram produzidos por crianças da 2a série e fornecem indícios que apontam para o efeito do contexto seguinte, pois as fricativas e o ‘r-fraco’ são os gatilhos para o surgimento do ditongo, na mesma linha de raciocínio desenvolvida por Bisol (1989, 1994).
Adamoli (2012), a fim de dar continuidade ao estudo sobre a grafia dos ditongos fonéticos, desenvolvido a partir dos dados do BATALE, realizou pesquisa longitudinal junto a quinze crianças que, no início da investigação, cursavam o primeiro ano do fundamental. Ao longo de dois anos, os alunos participaram de atividades propostas pelo pesquisador, as quais tiveram o objetivo de coletar dados de fala e de escrita referentes ao ditongo fonético, a fim de que pudessem ser descritas e analisadas as mudanças ocorridas em razão da compreensão dos princípios do sistema de escrita alfabética. O estudo visou obter informações acerca da representação dos ditongos bem como dos efeitos da aquisição da escrita sobre as produções orais das crianças estudadas. Os resultados encontrados e a discussão proposta pelo autor contribuem para a reflexão relativa ao funcionamento das fricativas palatais na fonologia das crianças.
O estudo de Adamoli (2012) mostrou uma conexão clara entre o aumento gradativo das realizações ortográficas dos ditongos ‘ai’ e ‘ei’, praticamente estabilizadas ao final do segundo ano – com índices de acerto de 80% – e o surgimento de produções fonéticas dos ditongos, fato que não foi observado nas primeiras coletas realizadas e que, de acordo com Bonilha (2000), também não se verificou no período inicial do desenvolvimento linguístico. Os dados de Adamoli (2012) mostram que, ao final do primeiro ano, as crianças produziam ditongos fonéticos na fala em 5% dos contextos e essa taxa, ao final do segundo ano, passou para 63% e 44%, para ‘ai’ e ‘ei’, respectivamente.
Seguindo a idéia de que as representações fonológicas se configuram a partir de interação entre mecanismos internos e o input disponível, o autor propôs uma discussão a respeito da estruturação interna das fricativas palatais com base em dados de aquisição da fonologia disponíveis na literatura. Diferentemente do que se observa no processo de aquisição das soantes palatais, cujos exemplos estão em (7), os dados das crianças relativos às produções das fricativas palatais restringem-se a trocas no valor do traço [anterior] que está sob o [coronal]. Há registro nos dados de Laís que ilustram este tipo de ocorrência, conforme (16).
Interessante notar que os dados da menina, os quais são representativos de suas produções referentes às fricativas palatais, mostram que, às vezes, esses segmentos emergem, talvez como forma não analisada, pois, na maioria das produções de Laís, a produção é de uma fricativa coronal. O mesmo ocorre nos dados da menina com a sonora, /ʒ/, e este tipo de troca, envolvendo o valor do traço [anterior], se estende até depois dos três anos.
São dados como estes, os quais revelam ausência de elementos em dados de aquisição para que uma estrutura complexa às fricativas seja postulada, que levam Adamoli (2012) a sugerir que as crianças interpretam as fricativas como segmentos simples no período inicial do desenvolvimento fonológico e que a reestruturação segmental deverá ocorrer, tornando-as complexas, a partir do contato com os ditongos na escrita, o que explicaria o surgimento do glide [j] nas produções orais das crianças por ele estudadas, assim como os dados apresentados em (15).
4. Considerações Finais
Neste estudo, cujo objetivo foi discutir a fonologia que emerge dos dados de aquisição da linguagem oral e escrita, tomou-se como base a classe das palatais, segmentos que têm suscitado discussões acerca de sua representação interna. As produções das crianças referentes às soantes palatais, a nasal e, especialmente, a líquida - (/ɲ ʎ/), ofereceram um campo fértil para revelar a adequação de um modelo fonológico como o autossegmental bem como trouxeram evidências para a discussão referente ao estatuto das líquidas de modo mais geral, no caso específico, a rótica que apresenta indícios na fonologia das crianças, seja nos dados de fala seja nos de escrita, de estar sendo interpretada como uma consoante complexa, à moda da líquida palatal. Procurou-se ainda, problematizar a transposição pura e simples de análises que se baseiam em fenômenos da língua alvo para dados de aquisição da linguagem, como seria o caso da postulação de geminadas para o português. Proposta que pode ter apoio em dados do sistema adulto, mas não o tem em dados produzidos por crianças e, tampouco, parece ser adequada em se considerando o input de que elas dispõem.
Já no que diz respeito às fricativas palatais (/ʃ, ʒ/), a discussão proposta teve o intuito de oferecer elementos para uma reflexão acerca dos ditongos fonéticos que, de acordo com a literatura, se formam por efeito de um espraiamento da parte vocálica dessas consoantes que, assim como as soantes, teriam estatuto de consoante complexa. Com base em resultados das análises de dados de aquisição, procurou-se discutir esta proposta seguindo a mesma linha adotada para a discussão das soantes e concluiu-se que não há evidências para que as fricativas sejam consideradas complexas. No entanto, os dados de fala de crianças em fase alfabetização, relativos aos ditongos fonéticos, mostram que pode ser este o período em que surgem tais estruturas. Numa via de mão dupla, pode-se pensar então que haveria contexto para a mudança relativa à estrutura interna das fricativas que passariam, por efeito da escrita, a contar com um nó vocálico em sua constituição.
Por fim, é importante salientar que, embora neste estudo a discussão tenha se pautado por questões relacionadas ao conhecimento linguístico e por suas relações com a escrita inicial, não se quer desconsiderar ou diminuir o efeito de outras influências que entram em jogo no complexo processo de aquisição de escrita.
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[2] O uso de parênteses tem como objetivo demarcar a diferença existente entre erros relacionados às regras do sistema ortográfico propriamente dito, os quais envolvem as relações múltiplas entre fonemas e grafemas, definidas contextual ou arbitrariamente, e aqueles produzidos na fase inicial do desenvolvimento da escrita, muitas vezes motivados por questões representacionais ou ainda por influência da fala, isto é, referentes ao funcionamento fonológico da língua.
[3] O Grupo de Estudos sobre Aquisição da Linguagem Escrita (GEALE), em funcionamento desde 2001, desenvolve estudos sobre os erros (orto)gráficos produzidos por crianças das séries/anos iniciais.
[4] Por esta perspectiva, além do segmento, é necessária a emergência do padrão silábico, para que a criança produza as formas-alvo da língua. Por exemplo, a produção precoce de [s] em uma palavra como ‘sapo’ não implica sua produção em ‘pasta’, já que para produzir esta última palavra conforme o alvo adulto, a criança precisa ter à sua disposição a estrutura CVC.
[5]A Fonologia Natural proposta por Stampe (1973 [1969]) considera que o processo de aquisição fonológica decorre da supressão de Processos Fonológicos (operações mentais inatas). As representações fonológicas já estão constituídas desde o início e a diferença entre a produção do adulto e da criança somente será superada à medida que tais processos sejam suprimidos.
[6] Rigatti-Scherer (2011: 230), durante a realização de um teste de consciência fonológica no início do primeiro ano escolar, pergunta a uma criança em idade escolar: “Se eu tirar o ‘pi’ de ‘piolho’, como fica? A criança responde: ‘lêndea’. Tal exemplo, assim como muitos outros mencionados pela autora, ilustra o fato de o foco da criança não estar na forma, mas no significado.
[7] Conferir Firth (1998).
[8] O BATALE começou a ser criado em 2001 e é composto por vários estratos: (i) textos narrativos produzidos, entre os anos de 2001 a 2004, por crianças de 1ª a 4ª série de duas escolas, uma pública e outra particular, da cidade de Pelotas-RS; (ii) textos narrativos de 1º a 4º ano produzidos por crianças portuguesas da região de Lisboa, em 2008; (iii) textos narrativos produzidos por crianças de 1º a 4º ano de duas escolas públicas, da cidade de Pelotas-RS, coletados em 2009; (iv) textos longitudinais de 15 alunos de EJA, coletados em 2009 em escola pública da cidade de Pelotas-RS; (v) textos narrativos de 1º a 3º ano produzidos por crianças portuguesas da região do Porto, em 2009; (vi) textos narrativos produzidos a partir de estimulação para a grafia das soantes palatais, ‘lh’ e ‘nh’ por crianças de 1a a 4a série de uma escola Pública da cidade de Pelotas, em 2009; (vii) textos narrativos, descritivos e argumentativos produzidos por crianças de 1º a 4º ano de uma escola pública, da cidade de Pelotas-RS, coletados em 2013.
[9] A classificação utilizada para categorizar os erros divide-os em dois grandes grupos: erros motivados por questões ortográficas (arbitrariedade e contextualidade do sistema) e erros relacionados a questões fonéticas e/ou fonológicas (motivação fonética, fonologia da sílaba e do segmento, segmentação não-convencional e acento gráfico, sendo híbridas estas duas últimas categorias, uma vez que informação gráfica e fonológica interagem claramente ali). O resultado da análise do primeiro estrato mostra a seguinte distribuição entre os dois grandes grupos, conforme Miranda (2013), 36.7% e 62.7%, respectivamente.
[10] Os grupos consonantais, nem sempre derivaram em fricativas palatais, houve caso em que eles permaneceram e outros em que resultaram em encontros com gr, fr, pr.
[11] Os três valores negativos caracterizam a vogal alta.
[12] É importante salientar que estudos com base em outros corpora mostram sequências distintas internas às classes naturais, nomeadamente nas plosivas e nas fricativas. Lamprecht (1990) apresenta uma sequência para as plosivas na qual labiais e coronais são adquiridas antes das dorsais; e Matzenauer (2003), por sua vez, coloca a fricativa coronal [+anterior] dentre as primeiras a serem adquiridas. Tais variações, exemplificadas por estes dois estudos específicos, não afetam, porém, o que se está discutindo neste artigo.
[13] Laís e Valentin tem seu processo de aquisição da linguagem acompanhado longitudinalmente desde suas primeiras palavras. Os registros dos dados foram feitos por meio de anotações, gravações de áudio e de vídeo. As coletas de Laís tiveram início na faixa etária de 1:07;14, e foram realizadas mensalmente até a menina completar 4 anos.Os dados de Valentin, nascido em 2009, começaram a ser coletados quando ele completou 1:06;10, e foram registrados com periodicidade mensal até 4 anos 6 meses.
[14] O acompanhamento longitudinal oferece, ao pesquisador, a oportunidade de trabalhar sobre dados mais espontâneos, uma vez que a coleta costuma ocorrer em ambiente familiar às crianças. Amostras de fala desse tipo permitem a captura de formas episódicas, as quais são importantes como indiciárias do modo de funcionamento das gramáticas em desenvolvimento. É interessante para os estudos em aquisição da linguagem que dados resultantes de acompanhamentos longitudinais sejam tratados de forma complementar àqueles obtidos por meio da análise de amostras transversais.
[15] Miranda (2005) argumenta em favor da existência de dois tipos de harmonia na fala infantil: um motivado paradigmaticamente e outro, sintagmaticamente. O primeiro tipo, no qual se enquadram estes exemplo, caracterizam-se por envolverem segmentos que ainda não estão totalmente estabilizados; o segundo engloba assimilações que envolvem segmentos já estabilizados no sistema e que necessitam informação de borda (do pé ou da palavra).
[16] O ditado de imagem tem o objetivo de evitar que a referência auditiva influa na escolha gráfica da criança. A preparação do instrumento e sua aplicação esteve a cargo da bolsista Shimene de Moraes Teixeira que, durante a Iniciação Científica (2008-2010), tratou do tema das soantes palatais. O ditado foi aplicado em turmas de 1a a 4a série de uma Escola Pública da cidade de Pelotas.
[17] A Condição de Ramificação proíbe que o nó não-terminal ramifique e se associe a nós pertencentes a mesma camada autossegmental e a Convenção de Fissão de Nós (CFN) prevê que nós irmãos ligados a um mesmo nó de camada mais alta devem ser separados, retendo todas as associações prévias (Clements 1989:7-11) No caso da ilustração em (b), os nós irmão que estão sob PC sofrem fissuras até produzirem duas raízes e, no caso em estudo, dois segmentos
[18]De acordo com Clements e Hume (1995: 260), consoantes geminadas, subjacentes ou criadas por assimilação, possuem ligações múltiplas entre camadas autossegmentais, as quais não podem ser atravessadas por outras linhas de associação, por efeito de um princípio da teoria chamado No-crossing Constraint (cf. Goldsmith 1976).
[19] Estudo em desenvolvimento por Ruvolleto (2014) mostra que as crianças pré-escolares tratam as consoantes geminadas do italiano como uma única unidade temporal, isto é, não dispensam a elas tratamento de geminada e interpretam como homófonas formas que se opõem na gramática adulta pela presença de consoantes geminadas versus não geminadas, cane-canne e capello-cappello, por exemplo (comunicação pessoal)
[20] As oclusivas palatalizadas (‘tia’ e ‘dia’) não fazem parte do inventário de fonemas do português, são formas resultantes da aplicação de regras pós-lexicais. Bisol e Hora (1993: 32) interpretam a palatalização como um espraiamento do nó vocálico da vogal /i/ que carrega consigo o [+coronal] que é redundantemente [-anterior]. O resultado da operação é uma consoante complexa, uma palatalizada que se constitui de uma articulação primária e outra secundária.
[21] Esta não é uma idéia de consenso entre os estudiosos do Português. Para Mateus (2000: 151) tais consoantes não possuem constrições simultâneas e, portanto, não devem ser consideradas complexas. Matzenauer (1994) e Bisol (1994), no entanto, consideram-nas complexas com base no funcionamento fonológico dessas consoantes na aquisição e na gramática adulta, respectivamente.
[22] A pergunta que fica é referente ao motivo por que no caso das soantes palatais o nó vocálico espraia para a direita. Como referido anteriormente, uma explicação possível para a gramática adulta, mas que não será explorada aqui em razão do escopo do trabalho, é a presença de estrutura geminada nas soantes como propõe Wetzels (1997, 2000).