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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.30 no.2 Montevideo dic. 2014

 

Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 9-15

ISSN 1132-0214 impresa

ISSN 2079-312X en línea

 

 

APRESENTAÇÃO

 

 

Este número da revista Lingüística da Alfal é dirigido à descrição do português, em especial às variedades de além e aquém-mar. Esse tema claramente dialoga com o texto “Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-mar ao final do século XIX”, escrito por Fernando Tarallo e publicada em 1996, como capítulo do livro Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, organizado por Ian Roberts e Mary Kato.

 

A principal questão que aquele texto levantava é se já poderia comprovar a emergência de uma língua brasileira em oposição à língua portuguesa tradicional, ou se a língua aqui falada permaneceria lusitana, especialmente num contexto, digamos assim, ideológico, em que, muitas vezes, o perfil da gramática normativa praticada no Brasil vinha sendo ditado (e talvez venha sendo ainda), em grande parte, pela tradição portuguesa.

 

Em sua discussão do assunto, Tarallo argumenta que, no final do século XIX, a gramática do Português Brasileiro exibe diferenças estruturais em relação à do Português Europeu. Evidências quantitativas apontam para a ocorrência de “mudanças dramáticas” na virada do século XIX para o XX, deixando claro, então, que uma gramática brasileira, ou uma variedade especificamente brasileira, de fato emergiu com sua própria configuração, diferenciando-se radicalmente da variedade lusitana.

 

Conquanto não pareça pairar quaisquer dúvidas sobre a emergência de uma gramática brasileira específica, a discussão desse assunto tem se polarizado em torno da defesa da chamada hipótese da deriva e da defesa da chamada hipótese do contato. Os defensores da primeira posição sustentam que todas as marcas gramaticais do Português Brasileiro já existiam na língua falada em Portugal. Já os defensores da segunda posição sustentam que as características gramaticais do Português Brasileiro, especialmente das variedades populares, emergiram em consequência de contato do Português com as línguas indígenas e africanas.

 

Um dos objetivos deste número monográfico é traçar um panorama tão geral quanto possível, em face das limitações naturais do espaço, da descrição de variedades do mundo lusófono, retomando alguns aspectos que comprovam diferentes gramáticas de um e de outro lado do Atlântico e retomando outros que apontam para aspectos inovadores que possam motivar essa diferenciação em função do contato linguístico do Português Brasileiro com línguas indígenas e africanas.

 

O outro objetivo deste número está vinculado à aplicação de aspectos variados da descrição à formulação de princípios que possam guiar uma gramática de referência do português, questionando-se, por um lado, como a análise cientificamente fundamentada pode se converter num discurso sobre as regras efetivamente em uso e, por outro, o grau em que aspectos relevantes da descrição do fenômeno abordado estejam próximos ou distantes do modo como o mesmo fenômeno é apresentado nas gramáticas prescritivas.

 

Esse segundo tipo de objetivo responde por um anseio de revisão do conceito tradicional de gramática, iniciada no Brasil, principalmente na década de 80, com a Nova gramática do português contemporâneo de Cunha & Cintra (1985), com a Gramática descritiva do português de Perini (1996), com a Moderna Gramática Portuguesa de Bechara (1999) e, em Portugal, com Gramática da língua portuguesa de Mateus et al. (1983); seus reflexos mais recentes se fazem sentir na Gramática de usos de Neves (2000), na Gramática da língua portuguesa de Vilela & Koch (2001), na Nova gramática do Português Brasileiro de Castilho (2010), na Gramática do Português Brasileiro de Perini (2010), na Gramática pedagógica do Português Brasileiro de Bagno (2012) e no debate organizado por Neves & Galvão no livro Gramáticas contemporâneas do português: com a palavra os autores (2014).

 

Estabelecidos esses dois eixos principais, diferentes, mas inter-relacionados, convidei especialistas com suficiente prestígio científico e acadêmico na pesquisa em língua portuguesa, que, em sua maioria, aceitaram participar fornecendo contribuições diversas, que, desde já, reputo extremamente relevantes.

 

Com efeito, basta um rápido olhar nos textos, para perceber que, além de certa diversidade temática, estão contemplados os diferentes níveis de análise. Os textos de Mateus e de Miranda, que abrem o número, tratam da Fonologia; a contribuição de Vieira & Brandão, de uma perspectiva variacionista, e as de Avelar & Galves e Negrão & Viotti, de uma perspectiva formal e diacrônica, cada qual a seu modo, tratam de aspectos diversos da Morfossintaxe. Já a perspectiva funcional e a funcional-cognitivista identifica as contribuições de Neves, Pezatti & Câmara para o estudo da junção entre orações e a de Oliveira & Batoréo para o estudo de construções oracionais. O texto de Lucchesi se aplica à defesa de uma hipótese sociolinguística geral de transmissão linguística irregular do tipo leve com base em processos derivados do Léxico.

 

O eixo descritivo conta com contribuições que contemplam uma comparação entre as variedades brasileira e europeia do português, como os de Mateus, Vieira & Brandão e Oliveira & Batoréo, e outros, como os de Miranda, Neves e Pezatti & Câmara, que se restringem ao tratamento de diferentes aspectos da gramática do Português Brasileiro; o mesmo se aplica às resenhas de Corrêa e Dall’Aglio-Hattnher. Já o eixo das possíveis influências de línguas africanas na formação do Português Brasileiro conta com as contribuições de Lucchesi, Avelar & Galves e Negrão & Viotti.

 

A ordenação dos artigos se apoia numa perspectiva nitidamente ascendente de gramática, que parte das unidades fônicas, em relação com as gráficas, para, passando pelas unidades morfossintáticas em si mesmas, atingir um nível de formulação descritiva em que a Morfossintaxe acaba necessariamente por incorporar as motivações discursivas emanadas da própria situação de uso.

 

Assumindo a perspectiva teórica da fonologia gerativa, Mateus analisa as vogais do Português Europeu e do Português Brasileiro, tanto em sílaba tônica como átona, distinguindo as vogais resultantes da aplicação de regras que atuam nas duas variedades (como a harmonização vocálica nos verbos) das vogais que apresentam variações, sobretudo em sílaba átona. Todas as explicações ali desenvolvidas contribuem, por um lado, para advogar uma clara distinção entre as duas variedades de aquém e de além-mar e, por outro, para servir de apoio ao ensino do Português como língua segunda ou estrangeira.

 

Miranda traz um estudo descritivo com base na aquisição de grafia por crianças brasileiras em fase escolar. A autora analisa dados de escrita inicial para discutir as relações entre a seleção de elementos gráficos e o conhecimento fonológico, com incidência especial sobre as consoantes palatais, as soantes, /ʎ/ e /ɲ/, e as fricativas, /ʃ/ e /ʒ/, consideradas complexas em estudos do português. A grafia que as crianças selecionam para representar as soantes traz evidências que corroboram o conceito de consoante complexa, mas não a grafia das fricativas: ao revelar a apropriação do sistema alfabético, projetada sobre a produção dos ditongos, esse tipo de grafia pode ser interpretado como indício de mudança representacional das fricativas palatais.

 

Vieira & Brandão abordam a concordância de número nominal e verbal, em diferentes estruturas, no Português Europeu e no Português Brasileiro, cujas bases se assentam nos pressupostos quantitativos e qualitativos da sociolinguística variacionista. Os resultados a que chegam as autoras permitem delinear diferenças nítidas entre os padrões de concordância das variedades d’aquém e d’além-mar. São justamente essas diferenças que lhes permitem demonstrar que a aplicação de uma tipologia de regras em três instâncias - categórica, semicategórica e variável - representa um recurso metodológico eficaz para avaliar perfis tipológicos linguísticos em relação aos diversos fenômenos gramaticais.

 

Passando, agora, para os estudos funcionalistas, o artigo de Neves contempla a expressão da causalidade na junção oracional em português, considerando o encadeamento entre o desempenho na sociointeração e o gatilho cognitivo, arraigado nas relações intersubjetivas. Com base no pressuposto de que é o nível morfossintático, o responsável pela organização funcional dessas relações, o estudo se debruça sobre os juntivos tradicionalmente considerados “causais”, mas se dedica especialmente às construções investidas de efeitos de sentido que extrapolam a estrita direção causa-consequência.

 

Pezatti & Câmara, por seu lado, analisam o modo como os livros didáticos, voltados para o nível fundamental de ensino no Brasil, tratam as construções do domínio funcional da relativização - orações adjetivas restritivas e explicativas - com base na seleção de cinco livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático. Os resultados mostram que o ensino dessas construções ainda reflete os postulados da gramática tradicional, na medida em que se baseia em atividades puramente metalinguísticas de identificação e classificação de unidades morfossintáticas, desconsiderando aspectos semânticos, pragmáticos e prosódicos que sobressaem da descrição do uso real que as autoras desenvolvem com base numa perspectiva teórica discursivo-funcional.

 

Sob uma orientação funcional e cognitiva, própria da perspectiva da Linguística Baseada no Uso e da Gramática das Construções, Oliveira & Batoréo analisam expressões verbais do Português Brasileiro e do Europeu, formadas por pronomes locativos (Loc), interpretadas como instanciações de dois padrões construcionais, conforme a posição do pronome em relação ao verbo (V), LocV e VLoc, que atuam, respectivamente, na conexão textual e na marcação discursiva. As autoras deduzem que, embora as duas variedades trilhem caminhos análogos, não deixam de apresentar também distinções de uso. Nesse caso, a gramaticalização dessas construções, a depender da variedade, pode assumir traços mais específicos, com distinção de visibilidade e de ritmo no nível das mudanças construcionais, diferenças essas que se acham vinculadas a motivações pragmáticas, cognitivas e estruturais específicas.

 

Encerrado aqui o elenco dos trabalhos descritivos e, em alguns aspectos, também voltados para o ensino, restam por apresentar os três artigos que se debruçam sobre a história do Português, especialmente do Português Brasileiro, em relação à língua da metrópole colonizadora, o Português Europeu, e as línguas africanas aportadas na América em razão do tráfico, motivado pelo sistema escravocrata de economia implantado nas colônias.

 

O trabalho de Lucchesi discute a transferência de estruturas das línguas indígenas e africanas para a formação da gramática de variedades do português popular brasileiro. O estudo se baseia na hipótese do substrato, segundo a qual é o contato um fator preponderante na história linguística do país, por permitir acentuar o paralelismo entre a origem do português popular brasileiro e a formação de línguas crioulas. O artigo defende uma formulação substratista, em pauta na pesquisa de várias línguas crioulas, baseada no conceito de relexificação, para examinar as possibilidades de sua aplicação ao estudo da história sociolinguística do Brasil, dentro da visão adotada de que as variedades populares do Português Brasileiro passaram, em sua formação, por um processo de transmissão linguística irregular de tipo leve.

 

O trabalho de Avelar & Galves se situa também entre os que advogam a hipótese do contato, explorando a ideia de que certas marcas gramaticais, que singularizam o Português Brasileiro no conjunto das línguas românicas, se devem à ação dos contatos interlinguísticos estabelecidos entre falantes de português e de línguas africanas. Os autores defendem a hipótese de que as línguas africanas, faladas pelos escravos introduzidos no Brasil colonial, desempenharam um papel significativo na emergência da gramática do Português Brasileiro. Explorando um viés teórico mentalista, de base gerativa, o estudo se debruça sobre paralelismos morfossintáticos entre o Português Brasileiro e o Português Africano, bem como entre essas variedades e as línguas bantas. Como resultado, os autores defendem que a aquisição do português como segunda língua pelos africanos produziu mudanças em duas direções: (i) a transferência de propriedades sintáticas de suas línguas maternas para o português em formação no Brasil e (ii) a reestruturação desencadeada pela dificuldade no aprendizado de marcas gramaticais específicas do português.

 

Negrão & Viotti também se alinham à hipótese de contato na busca de uma explicação, também de fundo gerativo, para a emergência de estratégias de passivização, entendidas como construções de impessoalização, nas variedades brasileira e angolana do português, com marcas que as distinguem de construções similares na variedade europeia. As autoras postulam que essas construções emergiram do contato entre o Português Clássico e uma língua banta, o Quimbundo, com base em um espaço transatlântico construído na época colonial decorrente de interações intensivas, primeiramente, entre europeus e africanos e, posteriormente, entre mercadores brasileiros e angolanos. Foi nesse espaço, que se teria formado um banco de dados linguísticos a partir de características morfossintáticas das línguas em contato.

 

Por fim, as duas resenhas, que fecham esse número, tratam exatamente do segundo eixo organizador, a revisão de conceitos tradicionais e a formulação de princípios que possam guiar uma gramática de referência do português, que se sustente na descrição linguística. O texto de Corrêa se debruça sobre a gramática de Bagno (2012) e o de Dall’Aglio-Hattnher, sobre a obra organizada por Neves & Galvão (2014), em que os próprios autores discutem os princípios estruturadores de seu fazer gramatical.

 

Este breve relato mostra que as contribuições priorizam resultados de pesquisas sobre as variedades da América, da Europa e da África, fornecendo, desse modo, um painel, senão exaustivo, pelo menos muito relevante, de aspectos cruciais da organização gramatical do português, assim como da emergência de uma gramática específica para a variedade brasileira. Como pode testemunhar o leitor, o presente número apresenta também um conjunto potencialmente inovador de contribuições, especialmente em função da diversidade teórica das propostas, da variedade dos fenômenos envolvidos e dos níveis metateóricos a que se aplicam as análises. Como organizador, deixo registrada a esperança de que a leitura dos artigos aqui enfeixados estimule um debate com outras propostas e com outras posições teóricas, que possa fornecer as sementes de uma reflexão sempre crítica e fecunda, razão de ser da pesquisa linguística.

 

 

Roberto Gomes Camacho

Organizador

 

 

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