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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.27 no.1 Montevideo jun. 2012

 

Lingüística

Vol. 27, junio 2012: 221-240

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

NOTAS

 

Estudos variacionistas pautados em cartas: reflexões teórico-metodológicas

 

Variational STUDIES based IN LETTERS: Theoretical and methodological reflections

 

Talita de Cássia Marine

Universidade Federal de Uberlândia (UFU, Uberlândia)

talitamarine@ileel.ufu.br

 

Juliana Bertucci Barbosa

Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM, Uberaba)

juliana@ielachs.uftm.edu.br   

 

Este trabalho reflete sobre questões discursivas de ordem teórico-metodológica na definição de critérios de seleção de fontes para o estudo da língua. Discutimos a utilização de cartas como fonte para pesquisas variacionistas – sincrônicas e diacrônicas –, destacando a importância do gênero textual no processo de construção de corpora.

 

 

This papers deals with theoretical and methodological problems concerning the definition of criteria for the selection of sources for the study of language. Our work discussed the use of letters as sources of variation search - synchronic and diachronic - and it highlights the importance of genre in the process of corpora construction.

 

 

Palavras-chaves: carta - corpus - variação e mudança linguísticas - gênero textual

 

Keywords: letter - corpus - variation and change linguistics - textual genre

 

 

(Recibido: 22/12/11; Aceptado: 08/03/12)

 

 

1. Primeiras palavras: gêneros textuais e estudos variacionistas, uma interface possível?

 

Coadunando-se com Sinclair (1991)Barbosa e Marine (2007) acreditam que um estudo baseado em corpus proporciona novas descrições e hipóteses teóricas, fortalecendo e tornando mais críveis as pesquisas linguísticas desenvolvidas. Por isso, é inquestionável o fato de que o uso de corpus favorece as pesquisas linguísticas, sobretudo as de viés sociolinguístico, na medida em que sua utilização proporciona a realização de descrições linguísticas de base empírica, além de permitir a reflexão de questões teóricas fundamentadas em contextos de usos reais da língua.

Todavia, ao optar pela pesquisa linguística baseada em corpus, é imperativo ao linguista conhecer o tipo de texto e/ou gênero textual com o qual irá trabalhar, visto que cada tipo e gênero textuais apresentam peculiaridades que implicam não apenas em aspectos estruturais caracterizadores, mas também em tipos de tema mais recorrentes, grau de formalidade, estilo, intenção, entre outros. O conhecimento dessas características conduz o pesquisador a um caminho mais adequado no tratamento do texto utilizado como corpus, seja este oral ou escrito, o que, por sua vez, garantirá uma análise mais fiel do objeto de estudo do linguista (Barbosa e Marine 2007).

Como se sabe, os estudos variacionistas amparados pelo modelo da Teoria da Variação e Mudança Linguísticas (Weinreich, Labov e Herzog 1968), (Labov 1972, 1982, 1994, 2002), que concebe a mudança como um conjunto de processos lentos e graduais que atingem seu “término” de variação entre as formas alternantes após um intervalo de tempo por vezes longo, privilegia o estudo da modalidade falada da língua, em contextos de menor formalidade - daí o recurso às narrativas pessoais - já que esta, em geral, é vista como menos formal, ou seja, menos preocupada com a norma padrão e, por isso, mais vulnerável a variações de uso. Isso porque a escrita, por muito tempo, foi vista como uma manifestação mais formal da linguagem, estritamente ligada às normas ditadas pela Gramática Tradicional.

No entanto, embora seja geralmente vista como uma manifestação da linguagem mais formal, que utiliza recursos que obedecem mais estritamente às normas desta gramática, é importante salientar que, com frequência, a escrita se utiliza de recursos geralmente associados à linguagem oral.

Por isso, acreditamos que estudar a língua é estudar os processos de variação e/ou mudança pelos quais passa, a fim de se ajustar aos novos contextos de uso determinados pelas intenções sóciodiscursivas dos falantes, seja em textos escritos ou falados. E, sob essa ótica, consideramos elemento essencial a qualquer pesquisa que tenha como objeto de estudo a língua entendida como um fato social, o descarte da visão estanque e dicotômica das relações estabelecidas entre fala e escrita que ainda influenciam alguns estudos linguísticos. Afinal, além dessa visão se mostrar alheia aos fenômenos discursivos, considera a fala como o “lugar do erro” e do “caos gramatical”, tomando a escrita como o “lugar da norma” e do “bom uso da língua”, tal como destaca Marcuschi (2007: 28).

As relações entre fala e escrita devem, sim, serem vistas dentro de um quadro mais amplo no contexto das práticas comunicativas realizadas pelos gêneros textuais, já que, coadunando-nos com Marcuschi (2007: 9), acreditamos que “em certos casos, as proximidades entre fala e escrita são tão estreitas que parece haver uma mescla, quase uma fusão de ambas, numa sobreposição bastante grande tanto nas estratégias textuais como nos contextos de realização”.

A esse respeito, Bezerra (1998: 27) afirma que a língua falada e a escrita devem ser consideradas como “um continuum, em cujas extremidades encontramos os textos típicos de cada uma dessas modalidades, incluindo uma escala gradativa de formalismo. Assim, parece não serem as modalidades de língua, mas os tipos de textos e suas situações que determinam esse formalismo gradativo”.

É importante observar, todavia, que diferente do que se pode equivocadamente pensar, a questão da formalidade é apenas um dos elementos que integram o continuum fala-escrita dentre tantos traços típicos de ambas as modalidades da língua e, não, o único elemento responsável para a construção e entendimento desse continuum referido por (Bezerra 1998) e por tantos outros estudiosos da língua, como (Marcuschi 1995, 2003, 2005, 2007), (Urbano 2000), (Berlinck, Barbosa e Marine 2008), (Marine 2009), por exemplo. Se acreditarmos no traço “formalidade” como elemento único da caracterização de textos escritos e falados, acabaremos por assumir uma dicotomização que acabará por apresentar uma visão estanque acerca da fala e da escrita, já que se tenderá a atribuir à fala os contextos menos formais de produção textual e, à escrita, os mais formais.

Partindo dessas reflexões e ressaltando o fato de que os estudos variacionistas privilegiaram e ainda privilegiam o estudo da modalidade falada da língua, em contextos menos formais, a fim de focarem suas pesquisas em textos menos preocupados com a norma padrão, tida como a de “prestígio”, neste artigo propomos alguns questionamentos acerca desta “predileção”. Além disso, estabelecemos uma discussão sobre o uso de um gênero textual bastante rico sob diversos aspectos - e complexo - e que pode ser utilizado para a análise de fenômenos linguísticos: a carta. Tal gênero textual, além de servir como meio de comunicação entre pessoas espacialmente distantes, registra as memórias e os aspectos históricos e sociais de uma época, servindo como fonte de estudos sócio-históricos e/ou linguísticos (Portelli 1989), (Gibelli 2002), (Castillo Gómez 2006), (Petrucci 2006). Outra característica peculiar da carta é o fato de o seu nível de formalidade poder variar do menos ao mais formal, dependendo da situação enunciativa em que se encontra o emissor e, principalmente, de quem será o seu destinatário.

 

 

2. O gênero textual “carta”

 

Sobre a origem das cartas, Vives (1978) afirma que elas surgiram para que o homem pudesse transmitir aos “outros” suas próprias ideias e pensamentos. Como “fiel intérprete e mensajera entre los hombres” (Vives 1978: 559), a carta surgiu como um meio de comunicação à distância antes da era dos telefones, transmitindo informações essenciais, não apenas pessoais, mas também sociais, relacionadas ao trabalho, ao cotidiano etc. (Castillo Gómez 2006).

Assim, o texto epistolar pode ser definido como um texto escrito, enviado por um remetente a um destinatário, marcado, portanto, pela interação, pela comunicação entre um emissor e um receptor. Sua feitura pode ter diferentes finalidades, entre elas, informativa, afetiva, argumentativa, de discussão, de polêmica, de acusação, entre outros. Isso porque cada carta tem uma motivação própria para ser escrita, entretanto, todas elas possuem, de acordo com Castillo Gómez (2006), uma mesma característica, que define e marca essa modalidade da escrita: “a complementaridade entre a ausência e a presença” (Castillo Gómez 2006: 29). De acordo com tal autor, no momento em que um indivíduo escreve uma carta, ele pensa em quem será o “outro”, ou seja, em quem será o destinatário com quem manterá um diálogo.

Como podemos observar, as cartas sempre incorporam a presença de um leitor, isto é, de um destinatário, o que Guillén (1998: 190-191) denomina como “interpersonalidade imaginada”, ou seja, a imaginação do “tu leitor” por parte do “eu autor” (o emissor sempre pensa em quem será o seu “outro”). A carta, acrescenta Violi (1999), baseia-se num efeito simultâneo de presença e ausência em que, embora o receptor esteja sempre presente no texto, sua presença continuamente nos sugere um outro lugar. Coloca-se em um tempo presente frágil, marcado pela nostalgia da presença perdida e a ansiosa espera da volta, de tal modo que a ausência pode fazer dela uma escritura de ficção.

É evidente, portanto, que a carta é o lugar onde se encontram/conflitam várias estratégias comunicativas, constituindo-se uma fonte promissora para pesquisas de variação e mudança linguísticas, já que a “movimentação linguística”, nos seus mais diferentes níveis, mostra-se como fator essencialmente necessário para que locutor e interlocutor possam estabelecer um contato eficiente aos seus interesses comunicativos. Essa “movimentação linguística”, inerente ao processo constitutivo do gênero “carta”, nada mais é do que a língua em uso. A língua como fato social, dinâmica e multifacetada.

 

 

3.  A “carta” como corpus

 

Em concordância com Barbosa e Marine (2007), acreditamos que a utilização de corpus favorece diversas pesquisas linguísticas e, portanto, deve ser apoiado pelas novas tecnologias, sobretudo aquelas vinculadas ao universo digital, visto que sua utilização possibilita a realização de descrições linguísticas de base empírica e permite a reflexão de questões teóricas fundamentadas em usos reais da língua.

Entretanto, além desses novos recursos tecnológicos - sejam eles utilizados para a elaboração de corpus ou corpora, ou ainda, para a pesquisa propriamente dita -, não podemos nos esquecer da necessidade de o pesquisador conhecer, efetivamente, o gênero textual com o qual está trabalhando ou pretende trabalhar. Afinal, cada um deles apresenta características específicas, que vão desde questões concernentes à sua estrutura formal até, por exemplo, o tipo de sequência tipológica mais recorrente (descritiva, narrativa, argumentativa, expositiva ou injuntiva), os temas mais comuns, o grau de formalidade, a intenção, entre outros.

É por isso que consideramos altamente relevante o conhecimento dessas características, pois elas podem conduzir o pesquisador a um caminho mais seguro no tratamento do texto utilizado como corpus - seja este oral ou escrito. E isso, por sua vez, possibilitará uma análise mais confiável do objeto de estudo pesquisado.

Assim, a fim de discutirmos tais questões, e pautando-nos por uma perspectiva sociolinguística do estudo da Língua, neste artigo daremos ênfase ao uso do gênero “carta” como corpus para pesquisas linguísticas, tal como sugerem Berlinck, Barbosa e Marine (2008), pois acreditamos que a carta - nas suas mais diversas facetas - mostra-se como um gênero textual bastante pertinente aos estudos de diversas áreas das Ciências Humanas, especialmente os de variação e mudança linguísticas, tal como mencionamos anteriormente.

Sob esta égide, percebemos a utilização da língua como um processo múltiplo e heterogêneo de realização, e, de certa forma, aproximamo-nos das ideias de Bakhtin (2000) no que diz respeito às suas reflexões e conceituação de gênero do discurso. Para ele, dentro de uma dada situação linguística, o falante/ouvinte produz uma estrutura comunicativa que se configura em formas-padrão, relativamente estáveis, de um enunciado, pois são formas marcadas a partir de contextos sociais e históricos. Segundo, ainda, o filósofo da linguagem, essas formas estão sujeitas a alterações em sua estrutura, pois, dependendo do contexto de produção e dos falantes/ouvintes que a produzem, para cada discurso são atribuídos diferentes sentidos.

Considerando tal concepção de gênero textual, focalizaremos nossas discussões no gênero “carta”, também conhecido como gênero epistolar. Como já ressaltado anteriormente neste artigo, uma carta, além de servir como meio de comunicação entre pessoas distantes, conserva memórias, bem como aspectos históricos e sociais de uma determinada época. Cabe ressaltar, novamente, que nas cartas podemos encontrar diferentes graus de formalidade, dependendo da situação enunciativa em que ela foi produzida - Quem a escreveu? Onde? Quando? - e, principalmente, de quem será o seu destinatário.

Cabe ressaltar que tais características possibilitam ao sociolinguista a realização de pesquisas que levem em conta o grau de formalidade ou estilo, fator cuja relevância para o estudo da variação e mudança já está bem estabelecida na literatura (Labov 1972), (Trudgill 1974).

 

3.1. Estudos sincrônicos pautados em cartas

 

Partindo de todas as reflexões já propostas neste artigo, e relembrando o fato de que os estudos variacionistas[1] privilegiaram e ainda privilegiam o estudo da modalidade falada da língua em contextos menos formais, propomos alguns questionamentos acerca desta “predileção”, já que, como se sabe, existem muitos contextos em que a modalidade escrita da língua é marcadamente menos formal que a da fala, como um bilhete trocado entre amigos ou cartas pessoais em que locutor e interlocutor se “enxergam” como pares. Nesse sentido, será que modalidades escritas menos formais e menos preocupadas em seguir os preceitos da norma culta, não merecem atenção por parte de estudos variacionistas?

Pensamos que sim e, para justiçar tal postura, focaremos nossas discussões no conceito de “língua oral-escrita”, proposto por Marine (2004, 2009), definido como uma face da linguagem verbal escrita, marcada por traços típicos da fala menos formal (Marine 2004). Como exemplário desse tipo de escrita, apresentaremos as cartas das leitoras da revista brasileira “Capricho”, do final do século XX. Cabe ressaltar que se trata de uma revista feminina, destinada ao público jovem. Como poderá ser observado mais adiante, a escolha das cartas das leitoras desta revista se justifica pelo tipo de linguagem que podemos identificar nelas, notoriamente marcada, por exemplo, por traços típicos da oralidade menos formal.

Diante das características desse tipo de carta, cabe ressaltar o que Marcuschi (2007: 37) afirma em relação à escrita e à fala: “as diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois pólos opostos”. Abaixo, apresentamos o gráfico 1 proposto por Marcuschi (2007: 38) e que ilustra uma noção esquemática dessa postura:

 

Gráfico 1

 

Neste gráfico, Marcuschi (2007) demonstra que entre os dois domínios linguísticos - fala e escrita - se encontram os gêneros textuais (G), os quais se dão em dois contínuos, a saber: i) na linha dos gêneros textuais (GF1, GF2... GFn e GE1, GE2... GEn) e ii) na linha das características específicas de cada modalidade.

Assim, segundo o linguista, o GF1 representaria uma espécie de protótipo da modalidade “fala”, como, por exemplo, uma conversa espontânea e, o GE1, por sua vez, uma espécie de protótipo da escrita, como um artigo científico, por exemplo. De acordo com Marcuschi (2007: 38), existe uma série de textos produzidos em condições naturais e espontâneas nos mais diversos domínios discursivos das duas modalidades e, muitas vezes, esses textos se entrecruzam sob muitos aspectos, chegando, por vezes, a constituírem “domínios mistos”.

A fim de explicitar as relações mistas dos gêneros textuais, o autor, a partir de alguns postulados como “meio” e “concepção”, apresenta o seguinte o gráfico, tendo em vista que a fala é de concepção oral e meio sonoro, enquanto a escrita é de concepção escrita e meio gráfico:

 

Gráfico 2

 

Ao analisarmos este gráfico, podemos observar que os domínios “a” e “d” são prototípicos, já “b” e “c” são mistos, pois neles a concepção e o meio são de modalidade diversa. Segundo Marcuschi (2007: 38), “há gêneros que se aproximam da oralidade pelo tipo de linguagem e pela natureza da relação entre os indivíduos, por exemplo, as cartas íntimas e pessoais”. Marine (2004, 2009), por exemplo, compõe e utiliza em parte de suas pesquisas de mestrado e doutorado, um corpus formado por cartas de leitoras de revistas femininas, denominando a linguagem observada nestas cartas como “língua oral-escrita”, definindo-a como uma modalidade intermediária entre a escrita e a fala, caracterizada por uma escrita fortemente marcada por traços típicos da fala menos formal.

Observando o gráfico 2, percebemos que essa “língua oral-escrita”, proposta por Marine (2004), pode ser considerada um exemplo do que Marcuschi (2007) denomina como “gêneros mistos”, já que, dentro do que propõe a autora, as cartas das leitoras de determinadas revistas femininas seriam textos de concepção oral - dado o caráter fortemente interlocutório travado na relação revista-leitora e vice-versa[2] - e meio gráfico, já que se concretizam, ou seja, materializam-se por meio da escrita, podendo enquadrar-se no domínio “b” do gráfico 2. Por outro lado, acreditamos que um discurso político, por exemplo, possa também ser considerado como um gênero misto, já que representa uma modalidade intermediária entre fala e escrita, caracterizando-se, entretanto, por sua concepção escrita e meio sonoro, enquadrando-se no domínio “c” do gráfico 2.

Como pode ser observado, é evidente que o contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos (Marcuschi, 2007: 42).

Assim, compartilhando das ideias de Marcuschi (2007) quanto ao fato de que tanto a fala quanto a escrita apresentam um continuum de variações que deve ser considerado a partir de um continuum dos gêneros textuais, acreditamos que recorrer à escrita em estudos variacionistas apenas quando se propõe a pesquisar sincronias passadas, acaba preterindo modalidades de escrita menos formais por conta de tendências ultrapassadas; devemos estar cientes de que novas formas de nos relacionar com a escrita estão surgindo - basta lembrarmos, por exemplo, da diversa gama de gêneros digitais que não param de surgir, como os “bate-papos” on line - e devemos lançar nosso olhar a elas.

 

3.1.1. Os estudos baseados em corpus e as cartas das leitoras de revistas femininas

 

Partindo das discussões já expostas sobre o gênero textual “carta”, nesta subseção focalizaremos o uso de cartas, em especial, as cartas das leitoras de dadas revistas femininas, em estudos variacionistas sincrônicos.

Desde que surgiu, a seção de cartas acabou se cristalizando na maior parte das revistas, apresentando-se ora mais, ora menos formal. Todavia, dada a natureza deste artigo e ao modelo teórico-metodológico que o norteia, evidentemente, nosso interesse está nas cartas que se apresentam de modo menos formal e, por isso, centraremos nossas considerações apenas nelas.

Partindo do pressuposto de que as cartas de leitores com características menos formais estariam em revistas cuja linguagem fosse também menos formal e que abordassem temas mais relacionados a questões pessoais e do cotidiano, percebemos que algumas revistas femininas se encaixavam perfeitamente dentro deste padrão. É o caso, por exemplo, da revista brasileira “Capricho”. Destinada ao público jovem, essencialmente feminino e de “classe média”, a revista aborda temas bastante atrelados a questões de relacionamento amoroso, angústias, curiosidades e aventuras da adolescência: primeiro beijo, primeira relação sexual, namoros, traições, amizades, menstruação, dietas etc.

Tais características, associadas ao ponto de vista dos critérios para seleção de fontes para o estudo histórico da língua, conduzem-nos para a observação de um aspecto inestimável deste tipo de carta: as cartas das leitoras da revista “Capricho” não passam por um processo de edição relacionado à maneira como foram escritas. O que há é o “corte” de alguns fragmentos, visto que, geralmente, as cartas não são publicadas na íntegra. Nelas nos vemos diante de um texto escrito profundamente marcado por uma oralidade menos formal, inserido num continuum entre a escrita e a fala que, como já destacado na seção 3.1, pode ser denominado como língua oral-escrita (Marine 2004, 2009). Vejamos os dois exemplos que seguem abaixo, atentando-nos, em especial, para os trechos em destaque:

 

1. Uma menina deve contar ao garoto que ela nunca beijou antes?/ N.Z.P., 14 anos.// Deve sim. Se ele realmente estiver a fim, não vai fazer diferença se ela nunca beijou antes... não tem aquela história de que o primeiro beijo a gente nunca esquece? Agora, se você ficar sem coragem não conte e nem fique com medo de ele falar alguma coisa, porque essa é uma coisa que não dá pra perceber (...). (“Capricho”, Março de 1994)

 

2. Meu namorado, o Maurício, vivia inventando jogos de futebol à noite, jantares inadiáveis. Eu nem sou superciumenta, mas também não consigo ficar achando que isso é normal. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Cada vez que aparece uma história dessas eu fico morrendo de ciúme. Não falo nada, mas acabo investigando. Já descobri duas mentiras, e aí rodei a baiana. Ele jurou que nunca mais ia mentir, eu fingi que acreditei e a gente fez as pazes.// Maria Luíza, 17 anos (“Capricho”, Fevereiro de 1996).

 

Como pode ser observado, os trechos sublinhados demonstram claramente diversos e diferentes traços de oralidade[3] e o baixo grau de formalidade desses textos, já que muitas expressões, marcações discursivas e a própria escolha do léxico são típicas da fala coloquial.

No exemplo (1), por exemplo, o trecho posterior à barra dupla, que representam a resposta da Revista à pergunta da leitora, além de contemplar todas as características anteriormente mencionadas, demonstra que a maneira pela qual a resposta é construída, mostra-se muito semelhante a um diálogo do cotidiano, ou seja, a um texto de interlocução presencial e pouco formal; daí, mais uma vez, a marcação menos formal desse tipo de texto que se apresenta como uma espécie de diálogo entre amigas, mais preocupadas com “o que dizem” do que “como dizem”. Sobretudo por isso, as variações linguísticas, em diferentes níveis da língua, aparecem de modo expressivo nesse tipo de carta.

A esse respeito, Marine (2004, 2009) afirma que a preocupação das revistas femininas em interagir com suas leitoras fica evidente justamente na seção de cartas, pois nela pode ser observada uma verdadeira relação de confiança e amizade entre a leitora e a revista. Mira (2001) comenta que na França, por exemplo, as revistas femininas do século XX - principalmente a partir dos anos de 1950 - que publicavam trechos de cartas e suas respectivas respostas faziam muito sucesso, enchendo a redação de tormentos e pedidos de ajuda de toda a espécie.

É importante destacar uma característica bastante interessante da seção de cartas deste tipo de revista: a interação "leitora-revista" não ocorre apenas entre uma dada leitora, ou seja, aquela que envia a carta, e a revista, pois as cartas lidas retratam situações que estão acontecendo ou poderiam acontecer com qualquer uma das leitoras. Logo, segundo Marine (2004, 2009), a seção de cartas constitui-se como uma espécie de "reunião entre amigas", na qual essas amigas trocam entre si confidências, desabafos, dúvidas, aflições, momentos de alegria e de tristeza, pedem conselhos e sabem que, na "voz" da revista e nas das suas outras "amigas" leitoras, podem ser encontradas respostas, pois lá está a seção de cartas, toda semana (ou mês) para as “escutar”, dar-lhes conselhos e, até mesmo, solução para seus problemas, medos e ansiedades

 

3.2. Estudos diacrônicos pautados em cartas

 

Os estudos de fenômenos de mudança, em uma perspectiva de longo prazo, vão, naturalmente, exigir a ampliação do estudo para momentos anteriores na história da língua, períodos em que não é possível recorrer à análise da língua falada. Fica, assim, destinada, para os estudos diacrônicos, a pesquisa dos fenômenos de variação e mudança linguísticas em textos escritos.

Acreditando, como já dito anteriormente, que o uso de corpus favorece a realização de descrições linguísticas de base empírica, permitindo a reflexão sobre questões teóricas fundamentadas em usos reais da língua, concordamos com Berlinck, Barbosa e Marine (2008), quando as autoras chamam a atenção para o fato de que a busca pelo texto que represente o menor grau de formalidade, aquele que mais se aproxima da fala, leva à exclusão de “textos tradicionalmente considerados mais formais”, como editoriais, documentos oficiais, textos pertencentes à literatura oratória, entre outros. As autoras propõem, então, que para auxiliar os estudos de caráter variacionista deve haver, também, um maior refinamento nos critérios de seleção e avaliação das fontes, permitindo, assim, uma ampliação de possibilidades de manifestações linguísticas investigadas em estudos de variação e mudança.

Dessa forma, a fim de discutirmos tais questões, focalizaremos nesta subseção o uso de cartas em estudos diacrônicos, visando a abordar a relevância do conhecimento dos gêneros textuais como suporte teórico-metodológico ao estudo da variação e da mudança em sincronias passadas.

Como já ressaltado anteriormente, o nível de formalidade em uma carta pode variar do mais ao menos formal. Se, para os textos atuais parece não haver tantas dúvidas quanto à identificação desses diferentes graus de formalidade, ao trabalharmos esse gênero como corpus em pesquisas de linguística histórica, deparamo-nos com uma questão de difícil resposta: como saber o que, nas cartas produzidas em períodos antigos, pode ser considerado mais ou menos formal? Em suma, como definir o grau de formalidade de cartas escritas em épocas passadas?

Esse é um dos desafios metodológicos enfrentados por aqueles que utilizam materiais não-literários para as investigações sobre a história da língua. Para enfrentar esse desafio, vimos a necessidade de discutir critérios que nos auxiliassem a distinguir o “mais formal” do “menos formal” em textos antigos. Nas cartas, para tentarmos estabelecer essa distinção, acreditamos ser preciso nos basear, por exemplo, na sua estrutura formal e em seu conteúdo, ou seja, em aspectos tais como: introdução (saudações iniciais), desenvolvimento (assunto) e despedida (saudações finais).

Discutindo sucintamente alguns exemplos, ressaltaremos que, para enfrentar o desafio da identificação da escala de formalidade no texto escrito, é necessário estabelecer - e descrever - um referencial que nos oriente a distinguir o “mais formal” do “menos formal”. Nesse sentido, de acordo com Barbosa (2008), quatro pontos são essenciais para a elaboração desse referencial: (a) reunir informações sobre o perfil sóciocultural de cada autor das cartas; (b) examinar gramáticas e manuais de cada período para sabermos o que a norma culta previa no período analisado; (c) analisar o assunto das cartas e, por fim, apoiando-se em pontos anteriores, (d) verificar e analisar a relação entre o emissor e o receptor das cartas, por meio, por exemplo, da observação das formas de tratamento, do modo como eram marcadas as despedidas etc.

            Cabe ressaltar que, neste artigo, discutiremos apenas alguns desses referenciais, buscando provar a importância de se conhecer o gênero textual com o qual trabalhamos, a fim de que possamos, por exemplo, utilizar o fator “estilo linguístico” em pesquisas diacrônicas. Para tanto, a partir das características do gênero textual “carta”, visamos a ilustrar como distinguir as cartas mais formais, das menos formais, escritas em sincronias passadas, tal como fez Barbosa (2008), ao montar o seu corpus com textos escritos no Brasil, no século XVI.

É importante destacarmos, também, que coadunamos com Bell (1984, 2001) ao assumirmos que características linguísticas, como a escolha de pronomes pessoais e de tratamento, estratégias de polidez e o uso de elementos pragmáticos devem ser observados quando analisamos o fator estilo[4]. Segundo o autor, o falante pode realizar mudanças em seu texto, ou seja, realizar ajustes dentro do seu repertório linguístico, de acordo com o seu interlocutor, a fim de ganhar a aprovação deste.

Seguindo essa perspectiva, nas cartas, como já mencionado, a presença de um determinado destinatário condiciona o momento da sua produção. Quando aquele que escreve escolhe aquele para quem escreve, o emissor, consequentemente, molda o seu discurso de acordo com esta escolha. Nesse sentido, uma das estratégias que pode nos auxiliar na percepção do grau de formalidade nas cartas é, por exemplo, o estudo dos pronomes e expressões de tratamento, uma vez que estes exprimem o grau de distanciamento e a subordinação que uma pessoa, voluntariamente, põe-se em relação à outra, a fim de agradá-la e ensejar um bom relacionamento.

De acordo com Castillo Gómez (2006) - que estudou cartas escritas por espanhóis, durante o descobrimento e a colonização da América -, as cartas “informais” iniciavam-se com: hermanos, amadas hijas, señora madre, señores padres, hermanos de mi corazón etc. (Castilho Gómez 2006: 45). Já as cartas oficiais, memoriais e outras variantes de cartas consideradas formais, adotavam um tom mais solene e de distanciamento, e, ao serem encaminhadas a seus receptores, eram iniciadas com: ilustrísimo señores, muy poderosos señores, muy magnífico e reverendo señor etc. (Castilho Gómez 2006: 45-46).

A influência do “outro” nas correspondências do século XVI e XVII no Brasil, por exemplo, pode ser percebida pela escolha das formas de tratamento encontradas nas cartas, como ilustramos nos fragmentos abaixo:

 

3. Pax Christi: Depois da chegada do Bispo aconteceram algumas coisas, de que darei breve conta a Vossa Reverendíssima para saber o que passa, para tudo encomendar a Nosso Senhor e nos avisar sempre no que poderemos errar (Nóbrega, M. Carta ao Mestre Provincial, 1552, grifo nosso).

 

4. Razão hé que, Vossa Mercê, por sua boa condição se tanto comunica comigo tam yndigno, e me dá conta com tanto amor de sy, de seus gostos e desgostos, por suas cartas (...) (Nóbrega, M. Carta a Tomé de Souza, 1559, grifo nosso)

 

Nas cartas destinadas ao Mestre Provincial, superior de Nóbrega dentro da Igreja, a formalidade, tal como pode ser observado no exemplo (3), é marcada pelo emprego do pronome “Vossa Reverendíssima”[5]. Por outro lado, em outras cartas desse mesmo autor, como as enviadas ao o ex-governador geral, Tomé de Souza (4), um grau menor de formalidade é marcado pelo uso de outras formas de tratamento, como, por exemplo, o pronome “Vossa Mercê” (V. M.).

Nos círculos fechados, como o do clero, existe o emprego codificado de pronomes de tratamento laudatório, hierarquizados pela importância oficialmente atribuída a cada cargo. “Vossa Reverendíssima”, por exemplo, emprega-se, no meio oficial, para se dirigir a Arcebispos e Bispos. É respeitando essa hierarquia que Nóbrega emprega, em sua carta, tal pronome de tratamento, pois ele seleciona o pronome de tratamento, respeitando o seu destinatário.

Por sua vez, o pronome “Vossa Mercê” - que deu origem ao atual “você” -, utilizado por Nóbrega várias vezes ao longo de sua carta para se dirigir a Tomé de Souza, indica-nos o tipo de relação existente entre esse jesuíta e o ex-governador geral. “Vossa Mercê” era título dado originalmente ao rei, mas que, assim como “Vossa senhoria” e “Vossa Excelência”, acabou se vulgarizando. Cintra (1972) afirma que o “atual” sistema de tratamento difere daquele encontrado nos primórdios de nossa língua, em que não havia tratamentos do tipo nominal - pelo menos, não localizáveis nos textos[6].

Faraco (1996) afirma que a alteração do valor social da forma “Vossa Mercê” - e variantes - é resultante da rápida expansão dessas formas em Portugal. Inicialmente utilizada como tratamento ao rei, a forma “Vossa Mercê” - além de “Vossa Senhoria” - passa a ser empregada no tratamento não íntimo entre iguais na aristocracia, e começa, aos poucos, a ser utilizada por pessoas de status social inferior (criados, subordinados, entre outros) ao se dirigirem a membros da aristocracia. Em um estágio final, já com menor grau de formalidade, vamos encontrar “Vossa Mercê” e “Vossa Senhoria” sendo utilizados como diferentes variantes sociais em oposição a “tu”, que era usado no tratamento mais íntimo.

Sendo assim, segundo Faraco (1996), a partir do século XVI, período em que os portugueses começaram a ocupar o Brasil, a degradação semântica sofrida por “vós”, a simplificação fonética de “Vossa Mercê” e o seu uso como “você” já se encontravam em uma etapa bastante avançada.

Podemos observar, com base nesses estudos, que Nóbrega, ao dirigir-se a Tomé de Souza usando a forma de tratamento “Vossa Mercê”, expressa seu respeito em relação ao seu destinatário, empregando-a como mero tratamento de cortesia, mais generalizado. Isso sugere que entre Nóbrega e Tomé de Souza, provavelmente, havia uma relação mais próxima, de duas pessoas que já se conheciam há mais tempo, não existindo, assim, a necessidade de um tom de solenidade entre eles. É importante destacar que Serafim Leite, ao fazer seus comentários na obra “Cartas do Brasil e mais escritos do P. Manuel da Nóbrega” (Nóbrega 1955), já afirmava, em nota de rodapé, que esta carta do jesuíta ao ex-governador Geral, era uma “correspondência epistolar afectuosa”.

Com base nessas discussões em torno das expressões de tratamento nas cartas analisadas, podemos observar que, nas relações da vida cotidiana ou oficial, a situação, a posição e a importância social do destinatário influenciam na comunicação verbal de forma bastante relevante.

Para tentar identificar o grau de formalidade de uma carta, também podemos analisar uma marca formal presente no gênero textual carta: suas formas de despedida. De acordo com Castillo Gómez (2006: 49), ao terminar uma correspondência, o emissor também adapta o seu texto - a sua despedida - de acordo com seu destinatário, tal como ocorrem nos seguintes fragmentos de cartas escritas no século XVI no Brasil:

 

5. Desta Baya a 5 de julho de 1559.

Orador e servo de V. M. em Christo, Manuel da Nóbrega (Nóbrega, M. Carta a Tomé de Souza, 1559).

 

6. Tu autem, Pater, ora pro omnibus et presertim pro filiis quos enustristi. Lance-nos a todos a benção de Christo Jseu dulcíssimo. Desta Baya, 1549. Padre Manuel da Nóbrega (Nóbrega, M. Cartas ao Mestre Provincial de Lisboa, 1549).

 

Como podemos observar, no exemplo (5), Nóbrega, ao se despedir de Tomé de Souza: (i) não usa termos em latim, (ii) não elabora uma despedida cerimoniosa (longa), como costuma aparecer em suas cartas enviadas a seus superiores e (iii) utiliza a forma de tratamento “Vossa Mercê” para se referir ao seu receptor. Essas marcas demonstram que essa carta de Nóbrega possui um menor grau formalidade.

Já no exemplo (6), Nóbrega, ao se despedir de seu superior, o Mestre Provincial Simão Rodrigues, emprega vários termos em latim, dando um tom de solenidade à despedida; isso nos indica que esse texto possui um grau de formalidade maior, se comparado com a carta de Nóbrega a Tomé de Souza.

           

 

4. Palavras Finais

 

O grande objetivo deste trabalho foi o de destacar o quanto o uso de corpus favorece as pesquisas linguísticas, sobretudo as de caráter sociolinguístico, visto que proporciona a realização de descrições linguísticas de base empírica e permite reflexões de questões teóricas fundamentadas em contextos de usos reais da língua. A partir de tal perspectiva, ressaltamos o quão relevante e essencial é o estudo dos gêneros textuais em pesquisas que optem pela utilização de corpus. 

Somadas a estas reflexões, questionamos a predileção das pesquisas variacionistas pelo uso de corpus representativo da fala, defendendo a ideia de que pesquisas de variação e mudança linguísticas não devem ser realizadas apenas em amostras da língua falada, mas também em textos escritos. Para isso, concentramo-nos em um gênero textual que acreditamos ser promissor para pesquisas em diversas áreas, sobretudo na linguística: a carta.             Buscamos atentar para o fato de que o estudo do gênero textual e das suas peculiaridades é fundamental para a seleção de fontes de estudos linguísticos, visto que tais questões, além de demonstrarem se dado texto pode ou não ser adequado ao estudo de determinados fenômenos linguísticos, acabam por se relacionar diretamente ao “grau de formalidade ou estilo”, indispensável a estudos da língua, sobretudo os de viés sociolinguístico.

Para ilustramos nossa proposta, concentramo-nos no uso de cartas em duas situações: a) em estudos sincrônicos, por meio de cartas das leitoras da revista “Capricho” e b) em estudos diacrônicos, valendo-nos de cartas escritas no século XVI. A partir delas, propomos algumas reflexões sobre alguns problemas teórico-metodológicos enfrentados pelo linguista, apontando e discutindo alguns critérios para se estabelecer/descrever um referencial para o grau de formalidade em sincronias passadas.

Em cada gênero textual, o grau de formalidade é resultado da combinação de vários fatores, tais como: “quem fala com quem”, "o assunto”, "o lugar", a “finalidade”, entre outros. Conjuntamente, esses fatores vão favorecer o aparecimento ou a omissão de determinados fenômenos linguísticos. Assim, partimos do princípio de que, ao considerar esse conjunto de fatores - que definem as condições de produção do texto -, o pesquisador disporá de recursos mais confiáveis para auxiliá-lo na tarefa de determinar o grau de formalidade presente em seu corpus, inclusive, em sincronias passadas. Cabe ressaltar, mais uma vez, que esta avaliação é muito relevante ao estudo da variação e da mudança linguística, na medida em que, como se sabe, os fenômenos variacionistas da língua nascem em contextos de menor formalidade.

Por fim, o que tentamos propor neste artigo é que o linguista pode - e deve - fazer pesquisas variacionistas em interface com o estudo dos gêneros textuais e, para exemplificar nossa proposta, utilizamos o gênero textual “carta” como corpus. Assim, propomos que o linguista deva buscar recursos dentro da própria língua para disponibilizar os resultados de sua pesquisa da maneira mais confiável possível, sejam estes frutos de estudos sincrônicos ou diacrônicos.

 

 

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[1] Referimo-nos ao modelo teórico-metodológico da Variação e Mudança Linguísticas proposto por Weinreich, Labov, Herzog, 1968; Labov, 1972, 1982, 1994, 2002.

[2] Para maiores detalhes ver Marine (2004).

[3] Isto é, marcadores discursivos, segundo Marcuschi (2003), bem como características típicas de conversações menos formais.

[4] Para maiores informações, ler sobre Audience Design (Bell 1984, 2001).

[5] Abreviado com V. R. ao longo da carta.

[6] As formas nominais de tratamento sofrem um processo de especialização, já no século XIV. Cintra (1972) descreve esse processo de mudança, relacionado-o a um processo de hierarquização cada vez maior da sociedade. “Vossa Mercê”, por volta de 1460, aparece como tratamento para o rei e deixa de ser usado com esta função em 1490. A degradação hierárquica é gradual e essa expressão passa a ser empregada quando se referiam a duques, depois a infantes, a fidalgos e, no século XVI, já é utilizada por Gil Vicente para patrões burgueses. A forma de tratamento “Vossa Senhoria” também sofre, em escala menor, o mesmo processo de perda gradativa de reverência: começa como tratamento ao rei, passa a ser empregado para fidalgos da nobreza e se estabelece num nível superior a “Vossa Mercê”.

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