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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.27 no.1 Montevideo jun. 2012

 

Lingüística

Vol. 27, junio 2012: 47-76

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

TRANSPARÊNCIA E OPACIDADE NA SELEÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE RELATIVIZAÇÃO NO PORTUGUÊS

TRANSPARENCY AND OPACITY IN THE CHOICE OF RELATIVIZATION STRATEGIES IN PORTUGUESE

 

Roberto Gomes Camacho [1]-

Universidade Estadual Paulista

camacho@ibilce.unesp.br  

 

 

O objetivo deste trabalho é examinar a hipótese de que a seleção entre as diferentes estratégias de relativização disponíveis na gramática do português é motivada por um grau maior ou menor de transparência entre forma e conteúdo, o que implica, correlativamente, grau maior ou menor de facilidade no processamento cognitivo. Além disso, o grau maior ou menor de transparência permite postular uma ordenação das estratégias correspondente a uma escala hierárquica em termos de maior ou menor grau de facilidade de processamento cognitivo.

 

 

This paper aims at examining the hypothesis that the choice among the different strategies of relativization available in the Portuguese grammar is motivated by a lesser or greater degree of transparency between form and meaning, which implies, correlatively, lesser or greater degree of ease in cognitive processing. In addition, the lesser or greater degree of transparency allows to postulate a hierarchical ordering for the strategies in correspondence to a greater or a lesser degree of ease in cognitive processing.

 

 

Palavras-chave: estratégias de relativization; transparência; iconicidade; economia

 

Key words: relativization strategies; transparency; opacity; iconicity; economy.

 

(Recibido: 31/01/12; Aceptado: 28/02/12)

 

 

 

0. Palavras iniciais

 

De um ponto de vista tipológico, Keenan (1985) e Comrie (1989) reconhecem quatro estratégias usadas para codificar a modificação complexa realizada pela relativa, conforme o tipo de relação de correferência entre o núcleo e a variável relativizada: (i) de lacuna (gap), (ii) de retenção pronominal (pronoun-retention), (iii) de pronome relativo (relative pronoun) e (iv) de não-redução (non-reduction). O português dispõe da estratégia de pronome relativo como formas padrão (1a) e duas alternativas não-padrão, que poderiam, talvez, ser ambas identificadas como variantes da estratégia de retenção pronominal, identificadas como copiadora e cortadora, conforme aparece em (1b) e (1c), respectivamente.

 

1

a

A menina [de quem você gosta] mora na casa da esquina.

 

b

A menina [que você gosta dela] mora na casa da esquina

 

c

A menina [que você gosta] mora na casa da esquina

 

Na relativa de lacuna (gap type), o elemento introdutor é um complementador (COMP), expresso ou não, e é vazia a posição do elemento relativizado no interior da oração relativa. Segundo Comrie (1989), o tipo de lacuna é o menos explícito por não fornecer nenhuma indicação do papel do núcleo dentro da oração relativa. Brito (1991) admite haver o tipo lacunar de relativização em português, apenas nas posições de sujeito e de objeto, com a posição de COMP obrigatoriamente realizada, conforme (2ab) e, em inglês, nas mesmas posições sintáticas, mas com realização opcional do COMP na relativa de objeto, conforme (2c).

 

2

a

fiquei ali durante... todo o tempo que pude, a assistir àquele espectáculo de água [que caía], depois acabei por apanhar sono, e eu estava um pouco deslocado, eh, em relação à porta. (Moç86:Chuva)

 

b

hoje, acho que se, muitas coisas [que eu fiz], talvez não fizesse, se voltasse ao ensino. (To-Pr96:SerProfessor)

 

c

The girl [Miss Edge coached] won the game. (Adaptado de SONG, 2001, p.216)

 

A estratégia de retenção pronominal envolve o uso, na oração restritiva, de um pronome pessoal correferente ao núcleo nominal antecedente, como se vê no exemplo (3).

 

3

Gilbertês (Song 2001: 216)

 

te

mane

are

oro-ia

te

aine

 

the

man

that

hit-him

the

woman

 

‘o homem em quem a mulher bateu’

 

            Pode aproximar-se dessa configuração o uso de pronomes pessoais em associação a um complementador invariante no PB. Com efeito, na interpretação gerativa de Tarallo (1983) e Brito (1991), a relativa copiadora (resumptive pronoun), que se vê em (4a), é justamente uma combinação da estratégia de retenção pronominal com um complementador, não com um verdadeiro pronome relativo, cujo emprego ficaria restrito ao uso normativo. Ocioso dizer que, como construção alternativa, essa estratégia dispõe de uma relativa cortadora (chopped preposition), ilustrada por (4b).

 

4

a

e é por isso que o nosso mar já não tem... tubarão. e então, peixe que ficou hoje [que o pescador luta com ele], mesmo que for um dia, dois, três dia é coiso, é agulha-sombra. porque a agulha-sombra... (To-Pr96:Pesca).

 

b

e transferi-los para uma zona ecológica [que eles não estão habituados], a primeira coisa que eles vão fazer é pôr em prática aquilo que estão habituados a fazer.(Ang97:Guerra e Ambiente)

 

A estratégia de não-redução, inexistente no português, refere-se à expressão completa do núcleo nominal no interior da oração relativa. Já a estratégia de pronome relativo é empregada quando pronomes especiais, os pronomes relativos, que em geral são formalmente relacionados a expressões demonstrativas e interrogativas, são usados para representar o papel do núcleo nominal na oração relativa. Na interpretação gerativa[2], o pronome relativo, que é precedido ou não de preposição, encontra-se ligado a uma categoria vazia deixada na posição de origem do movimento-Q[3]. Essa estratégia é mais frequentemente encontrada em línguas europeias. É o caso do português, pelo menos, no uso padrão de (5a-b).

 

5

a

quem é que vai realizar esses estudos? ah, Lavoisier, [de quem já vos falei,] o francês que foi considerado o, o pai da, da nutrição, e que morreu na revolução francesa... (PT89:PaiMedicina)

 

b

se eu vivesse com mais alguém acho que esse dinheiro, di(...), dinheiro não chegava. Nem para mim, nem para a pessoa [com quem eu vivesse] e para o meu filho.(Ang97:O Jovem Gaspar)

 

A estratégia padrão contida em (5a-b) é conhecida na literatura como relativa “prepositional pied-piping. Línguas como o inglês, que admitem a ocorrência de preposições “encalhadas” (preposition stranding), sem o movimento consequente do SP em sentenças com palavras-Q, dispõem ainda de uma estratégia adicional contida em (6-c). Essas construções, possivelmente variantes da estratégia de retenção pronominal, em que o complementador pode manifestar-se (6b) ou não (6c), contrastam, ambas, com a relativa pied-piping contida em (6a), que ocorre apenas em situações incomuns, muito especiais de uso no inglês.

 

6

a

This is the book [about wich I told you.]

 

b

This is the book [that I told you about.]

 

c

This is the book [I told you about. ]

 

As estratégias de lacuna, quando aplicadas às posições de sujeito e de objeto, sem pronome-lembrete adicional, e a de pronome relativo, quando aplicadas especialmente a posições relativizadas de objeto indireto (7a), oblíquo (7b), e genitivo (7c) são identificadas com alternativas formais, próprias da gramática normativa.

 

7

a

Esta é a pessoa [a quem Maria deu o dinheiro.]

 

b

eh, que receptividade é que você tem com a família, com a, [a que esteve ligado,] (Ang97:O Jovem Gaspar)

 

c

e fica mais fácil para o próprio empresário também trabalhar dentro de um orçamento cujos, [cujos índices de inflação são extremamente menores do que daqueles,] ah, que nós encontrávamos antes do plano real. (Bra95:PlanoReal)

 

Uma comparação entre a estratégia de pronome relativo e a estratégia copiadora revela que esta é mais eficaz do que aquela nas línguas que a contêm, em virtude de licenciar um conjunto muito maior de posições relativizadas da Hierarquia de Acessibilidade (doravante HA) de Keenan e Comrie (1977) contida na Figura 1.

 


.

Essa hierarquia foi originalmente proposta para apreender a distribuição tipológica das possibilidades sintáticas de relativização. Da esquerda para a direita da HA, a relativização se torna mais restrita e mais rara tipologicamente.

Comrie (1989) postula que, se uma língua dispõe de uma estratégia mais explícita e de uma estratégia menos explícita para a formação de relativas, a mais explícita seria empregada para relativizar as posições mais baixas e a menos explícita, para relativizar as posições mais altas. Essa generalização tem fundamento funcional, já que a relação entre o grau de dificuldade de relativizar uma posição e a necessidade correlativa de fornecer mais informação sobre a posição relativizada serve justamente para facilitar a retomada dessa informação (Comrie 1989: 163).

Tendo esse fenômeno como objeto de estudo e essas premissas como possíveis hipóteses explicativas, este trabalho pretende examinar se a seleção entre essas diferentes estratégias no português seria motivada por um grau maior ou menor de transparência entre forma e função e que o grau maior de transparência facilitaria o processamento cognitivo. Assenta-se justamente na gradação de transparência a possibilidade de postular uma ordenação das estratégias correspondente a uma escala correlativa de gradação na facilidade de processamento.

Outra hipótese relevante baseia-se no fato de que, na variedade padrão, a estratégia de lacuna com que complementador ficaria reservada para as posições mais altas da HA e a estratégia de pronome relativo com marcação explícita de caso ficaria reservada para as posições sintáticas mais baixas. Já na variedade não-padrão, a estratégia copiadoras de retenção pronominal, com caso explícito, também se aplicaria às posições mais baixas da HA.

Os dados de base foram recolhidos da amostra do Projeto Português Falado - Variedades Geográficas e Sociais, desenvolvido pelo Centro de Linguística da Universidade de Lisboa - CLUL (2009). Os materiais estão publicados em CD-ROM, com o apoio editorial exclusivo do Instituto Camões, sob o título Português Falado - Documentos Autênticos: Gravações áudio com transcrição alinhada. São textos exemplificativos do português falado em Portugal, no Brasil e nos demais países africanos de língua oficial portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. O corpus oral é essencialmente constituído por discurso informal - conversas espontâneas, mas também por algum discurso formal - entrevistas de rádio e discursos políticos. Contém transcrições de 80 gravações, 45 de homens e 35 de mulheres. Do total deste corpus, 80% dos informantes têm um nível de escolaridade médio ou superior e 20% um nível de escolaridade primário (Bacelar do Nascimento 2006).

Os dados de base sobre as relativas extraídas dessa Amostra compreendem um total de 916 ocorrências, que foram estatisticamente processadas pelo pacote estatístico GoldvarbX (Sankoff, Tagliamonte e Smith 2005). Como nem sempre os dados da Amostra cobrem todas as possibilidades de relativização, a discussão tratará também de dados construídos.

Sobre esse caráter híbrido, digamos assim, dos dados, vale a pena discutir aqui a distinção que Butler (2004) faz entre dois diferentes enfoques para o uso de corpus: o enfoque baseado em corpus (corpus-based) e o enfoque dirigido por corpus (corpus-driven). O primeiro se refere a uma metodologia que se beneficia do corpus principalmente para interpretar, testar ou exemplificar teorias e descrições que já foram formuladas antes de grandes corpora se tornarem disponíveis ao estudo linguístico. Já em um enfoque dirigido por corpus (corpus-driven), o compromisso do linguista é com a integridade dos dados como um todo, e as descrições abrangem somente as evidências emanadas do corpus.

Um problema natural com o qual se depara quem trabalha com amostra de dados reais de fala em situações reais de interação é a possibilidade de não aparecerem nela todos os tipos de construções possíveis; no caso específico deste trabalho, é a possibilidade de não figurarem nos dados do CLUL-2009 construções reconhecidas como realmente existentes nas variedades do português. O procedimento metodológico mais eficaz, para superar esse tipo de limitação próprio de dados emanados de corpora, é misturar o levantamento de dados com a construção de exemplos baseados na intuição.

A distinção entre as duas diferentes perspectivas permite enquadrar este trabalho no enfoque baseado em corpus. Se por um lado, a análise da amostra CLUL-2009 tem o intuito de fornecer frequências de ocorrência para as estratégias de relativização e para as posições relativizadas, por outro, a análise qualitativa se vale também do conhecimento intuitivo para discutir outras possibilidades devidamente licenciadas pela gramática do português.

Este trabalho se organiza da seguinte maneira: a seção 1 fornece um esboço ligeiro do da organização em níveis e camadas do arcabouço teórico, a Gramática Discursivo-Funcional; em seguida, a seção 2 mostra a distribuição das estratégias pelas variedades de acordo com a Hierarquia de Acessibilidade de Keenan e Comrie (1977); a seção 3 discute especificamente a relativização das posições preposicionadas para mostrar que o português dispõe de uma estratégia de encalhamento de preposições, restrita, porém à regência de preposições lexicais; em continuação, a seção 4 extrai dessa discussão algumas implicações teóricas derivadas da relação de transparência e de opacidade entre forma e conteúdo, o que significa fornecer uma explicação funcionalmente consistente para a escolha entre as estratégias de relativização do português.

 

1. Suporte teórico: a Gramática Discursivo-Funcional

 

            A GDF consiste num modelo descendente (top-down), o que significa que um a construção de um enunciado se inicia com a intenção comunicativa de uma mensagem no Componente Conceitual; ainda nessa forma pré-linguística, a mensagem passa para o Componente Gramatical, onde é formulada em unidades de conteúdo pragmático e semântico e codificada em unidades formais de natureza morfossintática e fonológica.

Essa direção descendente é motivada pela suposição de que um modelo de gramática é tanto mais eficaz quanto mais sua organização se assemelhar ao processamento linguístico no indivíduo. O Componente Conceitual é a força motriz do Componente Gramatical como um todo, uma vez que é responsável pelo desenvolvimento tanto da intenção comunicativa relevante para o evento de fala corrente, quanto das conceitualizações associadas a eventos extralinguísticos relevantes. O Componente de Saída gera as expressões acústicas ou escritas com base na informação fornecida pelo Componente Gramatical. O Componente Contextual contém, por sua vez, a descrição da forma e do conteúdo do discurso precedente, do contexto real do evento de fala e das relações sociais entre os participantes.

Todos os níveis do Componente Gramatical são organizados em camadas, em si mesmas hierarquicamente ordenadas, que constituem as categorias próprias de cada um. A Figura 2 fornece uma representação linear do nível mais alto do Componente Gramatical, o Nível Interpessoal, em que a mensagem recebe informação tipicamente pragmática.


 

Quanto mais à esquerda, mais alta hierarquicamente é a unidade. As unidades entre colchetes angulares estão na mesma camada de organização, isto é, não são hierarquicamente ordenadas entre si. O Movimento (M1), a maior unidade de interação relevante para a análise gramatical, pode ser definido como uma contribuição autônoma para a interação em desenvolvimento. Um Movimento pode conter dois ou mais Atos Discursivos (A1), cuja relação entre si pode ser de dependência ou de equipolência. Um Ato Discursivo típico contém categorias não-hierárquicas, que são a Ilocução (F1), os Participantes do Ato de Fala (P1, P2) que se alternam como Falante e Ouvinte, e um Conteúdo Comunicado (C1), que contém, por sua vez, a totalidade do que o Falante deseja evocar na sua comunicação com o Ouvinte. Cada (C1) contém um ou mais Subatos, assim chamados porque são hierarquicamente subordinados aos Atos Discursivos. O Subato Atributivo (T1) representa a evocação de uma propriedade, enquanto um Subato Referencial (R1), a evocação de um referente.

O Nível Representacional trata dos aspectos semânticos de uma unidade linguística. Enquanto o Nível Interpessoal cuida da evocação, o Nível Representacional é responsável pela designação, o que restringe o uso do termo "semântica" aos meios pelos quais uma língua se relaciona com os mundos possíveis que ela descreve. O Nível Representacional é também organizado em camadas hierarquicamente ordenadas conforme mostra a representação da Figura 3.

.

 


 

Conteúdos Proposicionais (p1), as mais altas unidades do Nível Representacional, são construtos mentais (conhecimentos, crenças e desejos) e por isso podem ser factuais, quando correspondem a conhecimentos ou crenças sobre o mundo real, ou não-factuais, quando correspondem a desejos ou expectativas em relação a um mundo imaginário.

Conteúdos Proposicionais contêm Episódios (ep1), que são conjuntos de Estados de Coisas tematicamente coerentes, isto é, com unidade ou continuidade de tempo, de lugar, e de indivíduos participantes. Estados-de-Coisas (e1), por seu lado, são caracterizados pelo fato de poderem ser localizados no tempo e poderem ser avaliados em termos de seu estatuto de realidade.

Propriedades Configuracionais (f1) são construídas mediante o uso de categorias semânticas que estabelecem uma relação não-hierárquica entre si, incluindo Indivíduos (x1), ou seja, objetos concretos que podem ser localizados no espaço, e Propriedades Lexicais (f2), que não têm existência independente e só podem ser avaliadas em termos de sua aplicabilidade a outros tipos de entidade.

Os níveis responsáveis pelas unidades formais são o Morfossintático e o Fonológico. As camadas contidas no Nível Morfossintático acham-se representadas na Figura 4.

.

 


 

A representação simplificada na Figura 4 contém Expressões Linguísticas (Le1), Orações (Cl1), Sintagmas Morfossintáticos (Xp1), Palavras Morfossintáticas (Xw1), Raízes (Xs1) e Afixos (Aff1). Essas últimas três unidades podem ser de diferentes tipos, como Palavra Nominal (Nw) para unidades morfossintáticas reconhecidas como nome. Uma Expressão Linguística (Le1) representa qualquer conjunto de uma ou mais unidades, que compartilham as mesmas propriedades morfossintáticas. As unidades que se combinam em uma Expressão Linguística podem ser Orações, Frases ou Palavras. A introdução da Expressão Linguística como a categoria mais alta cria a possibilidade de lidar diretamente com expressões não sentenciais.

O Nível de expressão do Componente Gramatical, o Fonológico, contém, por sua vez, as camadas contidas na Figura 5.

.

 


 

O Enunciado (U1) é o maior trecho de discurso abrangido pelo Nível Fonológico. Um Falante tenderá a usar pausas mais substanciais para separar Enunciados de Sintagmas Entonacionais (IP1), que se caracterizam por conter um núcleo ou movimento tonal localizado em uma ou mais sílabas, essencial para a interpretação do Sintagma Entonacional como um todo. O Sintagma Fonológico (PP1) contém, em línguas acentuais, uma sílaba nuclear mais fortemente acentuada, que é geralmente o local principal para a queda ou subida global dentro do Sintagma Entonacional. A Palavra Fonológica (PW1), para as línguas em que é relevante, exibe pelo menos um traço característico, que pode estar relacionado ao número de segmentos, aos recursos prosódicos ou ao domínio das regras fonológicas. As Palavras Fonológicas dividem-se em Sílabas (S1), que, em línguas acentuais, agrupam-se em Pés.

Para finalizar esta seção, pode-se dizer que a Gramática Discursivo-Funcional (GDF) é, uma teoria de base tipológica que, ao assumir uma organização descendente, atinge adequação psicológica e que, ao assumir o Ato Discursivo como unidade básica de análise, atinge adequação pragmática. Embora seja estritamente um modelo de gramática, a GDF é projetada para interagir com os Componentes Conceitual, Contextual e de Saída, de modo a aumentar sua compatibilidade com uma teoria mais ampla da interação verbal, o que lhe imprime um formato teórico que é, ao mesmo tempo, estrutural e funcional (Hengeveld e Mackenzie 2006, 2008).

 

2. As estratégias de relativização nas variedades lusófonas

 

Das quatro estratégias reconhecidas por Keenan (1985) e Comrie (1989), o português dispõe das de pronome relativo e de retenção pronominal, que, por sua vez, ramifica-se em duas outras, a copiadora e a cortadora. A variedade brasileira acusa ainda casos muito específicos da estratégia de preposição encalhada, que, todavia, não aparecem na amostra. A tabela 1 mostra a distribuição das três estratégias pelas variedades lusófonas em relação às posições relativizadas.

 

.

Inicialmente, a incidência de relativas copiadoras na amostra é irrisória e extremamente elevada a média percentual da estratégia padrão. É curioso observar que em três variedades - Cabo Verde, Guiné-Bissau e Timor Leste - todos os casos encontrados são da estratégia padrão. Uma explicação possível, mas especulativa, para esse comportamento se assenta no fato de que os falantes cultos dessas variedades, historicamente situados à margem da norma padrão, herdada do europeu colonizador, sentem-se mais impelidos a usar a norma de prestígio para diferenciarem-se internamente de outros falantes da mesma variedade (Labov 1972).

As demais variedades, inclusive a europeia, incluem a estratégia cortadora, cuja frequência é comparativamente mais significativa na variedade brasileira. De qualquer modo, esses dados gerais mostram que a predominância da estratégia cortadora, se comparada à copiadora, deve ter motivação social por ser fortemente estigmatizado o fenômeno de retenção pronominal (Tarallo 1983).

Se considerarmos a distribuição de cortadoras na amostra, tomando por parâmetro o número total de estratégias não-padrão, o índice atinge o patamar de 92,5% (49/53) contra apenas 7,5% % (4/53) de copiadoras. Esses resultados fornecem evidência adicional para os dados diacrônicos de Tarallo (1983), que apontam para um grande avanço da estratégia cortadora no PB do fim do século XIX, se consideradas todas as posições sintáticas, e paralelamente para um significativo recuo da estratégia copiadora.

A baixa incidência de cortadoras e copiadoras na amostra pode estar associada ao fato de a maioria dos informantes da amostra CLUL ter curso superior ou escolaridade de grau médio; há um número muito reduzido de informantes analfabetos ou com escolaridade de até 4 anos. Para verificar se elas não teriam algum reflexo direto na codificação morfossintática, além de indicar alternâncias possíveis de natureza sociolinguística, é necessário examinar a distribuição das estratégias por posição relativizada na HA (Keenan e Comrie 1977).

Considerando os casos quantitativamente mais significativos, as posições mais suscetíveis de relativização compõem uma hierarquia de frequência do seguinte formato: SU (59,4%-544/916) > OD (23,2 -213/916) > OBL (17,0% - 156/916), o que dá um quadro extremamente comparável à HA de Keenan e Comrie (1977).

A posição preposicionada mais frequentemente relativizada é a de oblíquo, totalizando 17,0% de casos na amostra (156/916). Do total de oblíquos 66,0% (103/156) são ocorrências de relativa padrão ou pied-piping, 31,5% (49/156) são ocorrências da estratégia cortadora e apenas 2,5% (4/156) são ocorrências da estratégia copiadora. Esses dados confirmam a hipótese de que as posições mais baixas da HA requerem estratégias mais explícitas. De qualquer modo, é consideravelmente elevada a incidência de estratégias não-padrão se for levado em conta a característica formal da amostra.

Os dados aqui analisados parecem confirmar a adequação da HA de Keenan e Comrie (1977). A grande maioria das relativas de lacuna relativiza as posições de sujeito e de objeto direto. Se a inserção de pronome-lembrete (resumptive pronoun) tem a função de reduzir o esforço de processamento, é mais justificável que ocorra nas posições menos acessíveis.

Em geral, a incidência majoritária da forma padrão sobre as posições de SU e OD indica uma tendência, ainda embrionária, para uma provável distribuição funcional das estratégias nas variedades lusófonas, paralelamente ao que foi detectado acima sobre o uso de cortadoras e copiadoras com sintagmas preposicionais: o uso da estratégia de pronome relativo serve para selecionar as posições de SU e OD, enquanto o da cortadora e da copiadora serve para selecionar a posição de OBL.

Como as estratégias copiadora e cortadora incidem majoritariamente sobre posições preposicionadas, é relevante discutir se o estatuto lexical ou gramatical das preposições exerce alguma influência sobre o licenciamento dessas alternativas. É justamente o que se passa a fazer na seção seguinte.

 

3. Posições preposicionadas nas estratégias cortadora e copiadora

 

Conforme já mencionado, um fenômeno amplamente relacionado a relativas é o que se conhece por “encalhamento de preposições”, expressão que traduz aproximadamente preposition stranding, tal como ele ficou conhecido na literatura linguística depois de ter sido assim batizado por Ross (1967).

Por encalhamento de preposições, entende-se um fenômeno sintático extremamente investigado na gramática gerativa, segundo o qual uma preposição regente ocorre em outra posição que não seja adjacente ao núcleo regido. Esse processo, extremamente raro em línguas românicas, é muito comum em línguas da família germânica como o inglês, em que se aplica a três tipos de construções: as interrogativas parciais ou interrogativas-Q (8a), pseudopassivas (8b) e orações relativas (8c).

 

8

a

Whati are you talking about vi?

 

b

This chairi was sat on vi

 

c

This is the booki thati I told you about vi

This is the booki I told you about vi

 

Em interrogativas-Q (8a) e em relativas (8c), o objeto da preposição é uma palavra-Q fronteada em razão de movimento-Q (Wh-movement). Como é comumente postulado na Teoria da Regência e Vinculação da gramática gerativa (Chomsky 1977), o movimento para a posição inicial, deixa um vestígio (trace) na posição original do constituinte movido, que pode ser interpretado como uma lacuna, isto é, uma cópia não-pronunciada do elemento que sofreu movimento na formação de interrogativas (8a) e de relativas (8c)[4].

No entanto, o pied-piping é opcional quando uma palavra ou sintagma-Q é o objeto de uma preposição e as sentenças resultantes são ambas gramaticais, conforme se vê em (9a-b).

 

9

a

To whom did she talk t?

 

b

Who did she talk to t?

 

A alternativa em (9b) consiste, portanto, no já mencionado fenômeno de encalhamento de preposição (preposition-stranding), possível em inglês e línguas germânicas, mas não em latim e, de um modo geral, nas línguas românicas. Na descrição formal da relativa padrão preposicionada, ou pied-piping, os gerativistas postulam a aplicação sistemática da regra de movimento a um constituinte relativo, seja ele um pronome relativo (Wh) ou um operador nulo, situação defendida por quem interpreta o elemento que como um complementador gerado em COMP (Brito e Duarte 2003; Peres e Móia 1995)[5].

A obrigatoriedade do movimento, que aproxima construções relativas e construções interrogativas, foi postulada por Chomsky (1977) com base na gramática do inglês, e, desde então, vem sendo amplamente assumida pelos adeptos da teoria gerativa na descrição de inúmeras línguas naturais. Com divergências pouco significativas, é esse tratamento que a linguística do português tem dado às relativas (Tarallo 1983; Brito 1991; Kato 1996; Peres e Móia 1995; Galves 2001; Brito e Duarte 2003).

Como o modelo aqui adotado, a GDF, repele transformações, desde a versão de Dik (1989; 1997), este trabalho procurará fornecer uma explicação alternativa, funcional, para o chamado “movimento" nas relativas, especialmente para o fato de ser aceitável o encalhamento de preposição em (10a), mas não em (10b):

 

10

a

Essa é a mesa [que todo mundo bota o chapéu em cima (dela)]. (PERINI, 2010, p. 192)

 

b

(*) Essa é a mesa [que todo mundo gosta de]

 

Ao tratar das preposições no português falado, Ilari et al. (2008) preferem classificá-las como mais e menos gramaticalizadas, o que pressupõe dispô-las numa escala, em que contra é a preposição menos gramaticalizada e de, a mais gramaticalizada, com base nas seguintes propriedades de de: (i) pode ser facilmente amalgamada a outros elementos linguísticos; (ii) dispõe de valor semântico de difícil apreensão; (iii) pode funcionar como introdutora de argumentos e de adjuntos; (iv) tem maior frequência de uso.

Similarmente, Keizer (2007) também fornece critérios para distinguir entre formas gramaticais ou gramaticalizadas e formas lexicais ou menos gramaticalizadas de preposições. Os critérios mais relevantes envolvem redução/generalização semântica e crescente dependência do contexto. Esse critério assenta-se na ideia de que a gramaticalização implica perda parcial ou total de significado lexical.

Ao investigar as preposições locativas no inglês, Mackenzie (1992), por seu lado, distingue um pequeno conjunto de preposições gramaticais de tempo e lugar, que codificam as funções semânticas de Locação (at), Origem (from), Percurso (via, for), Alativo (to, till/until) e Aproximação (towards); todas as demais preposições, segundo ele, constituem preposições lexicais, isto é, predicados de um lugar, estocados no léxico.

Por essa razão, Mackenzie (1992) introduz uma nova classe de predicados às quatro classes lexicais tradicionalmente reconhecidas (nome, verbo, adjetivo e advérbio), que ele denomina “adposição” (formalizada como P subscrito) para abranger tanto os casos de preposição, como em (11), que contém uma representação para o caso de on do inglês, quanto os de posposição, para as línguas que deles dispõem.

 

11

onP (xi)Ref[6]

(Mackenzie 1992: 8).

 

O conceito de adposição foi depois incorporado por Hengeveld e Mackenzie (2008) e tratado como um caso de Propriedade Configuracional similar a fond of chocolate (“atraído por chocolate”). Construções como essas contêm um Subato Atributivo encaixado dentro de outro Subato Atributivo[7], noção relevante para a análise de lexemas que ocorrem dentro de moldes de lexemas com um argumento interno, como a representação contida em (12).

 

12

(fi: [ (fj: fond (fj)) (xi: -chocolate- (xi))) Ref] (fi))

(Hengeveld e Mackenzie 2008: 223).

 

Essa formulação, em que a Propriedade (fj) fond (“atraído”) toma o argumento interno chocolate (xi), representa uma combinação de elementos, identificada por Hengeveld e Mackenzie (2008) como uma Propriedade Configuracional (fi). Uma variedade de elementos pode ocupar a posição de (fj), incluindo uma adposição lexical tomando um item lexical como casa como argumento interno em dentro da casa, representada em (13), cuja combinação representa uma categoria semântica complexa de lugar.

 

13

(li: [ (fi:[(fj : dentroAdp (fj)) (xi: [(fk : casaN (fk)) (xi) Φ ]) Ref)] (fi)) (li) Φ ]

(Hengeveld e Mackenzie 2008: 251).

 

Algumas adposições simples, como contra, sem, sobre, sob etc e sintagmas adposicionais, como dentro de, constituem, portanto, predicados monovalentes, enquanto outras, como de, em, com etc funcionam como marcadores de funções semânticas. Aquelas constituem palavras lexicais, que são inseridas no Nível Representacional, e estas, palavras gramaticais, que sinalizam, no Nível Morfossintático, as funções semânticas argumentais e não-argumentais do Nível Representacional[8].

Como interpretar a relação entre a distribuição categorial das preposições e a distribuição de estratégias cortadoras, copiadoras e de encalhamento de preposição? Antes de discutir essa questão, é necessário verificar o que ocorre nos dados da amostra.

Cumpre destacar, logo de início, que o uso indiferente de cortadoras e copiadoras de OI e de OBL se aplicam, na amostra, a SPs regidos pelas preposições em, de, a e com. Esses SPs exercem funções prototipicamente argumentais de Essivo, Ablativo e Alativo e a função não-argumental Comitativo, mais especificamente Companhia, Instrumento e Modo, conforme mostram os exemplos contidos em (14a-d) respectivamente. A sentença contida em (14a) constitui um exemplo de função argumental, gramaticalização de um caso residual de Modificador Comitativo.

 

14

a

a água da chuva, é, são, zonas [que continua a chover intensamente.] (Ang97:Guerra e Ambiente)

 

b

aí, quando e[...], ela escolhia a roupa [que eu gostava na minha frente], eu ficava brava, porque eu queria aquela e eu não podia ter aquela que ia ser igual, (Bra95:MuitoIguaisDiferentes)

 

c

e transferi-los para uma zona ecológica [que eles não estão habituados],.(Ang97:Guerra e Ambiente)

 

d

sim, depende, da maneira [que elas têm tratamento... ] [que apanham no prado. ](PT97:SerPastor)

 

e

peixe que ficou hoje [que o pescador luta com ele,] mesmo que for um dia, dois, três dia é coiso, é agulha-sombra (To-Pr96:Pesca)

 

Em termos de frequência, é a preposição em que encabeça a lista em termos de incidência com uma média de 58,3% (21/36), seguida de de, com uma média de 25,0% (9/36). Não aparece em nenhuma construção relativa da amostra a preposição por, que exerce a função de Perlativo. Na falta de dados, inseri os exemplos construídos[9] de (15) para mostrar que essa função pode aparecer preservada mesmo na estratégia cortadora de (15c), provavelmente em virtude de seu alto grau de dependência contextual em relação ao verbo passar do qual estrada é argumento locativo e, consequentemente, com alto grau de previsibilidade semântica, o que permite mesmo não exprimi-la.

 

15

a

A estrada [pela qual/por que você passou ontem] leva ao litoral.

 

b

A estrada [que você passou por ela ontem] leva ao litoral.

 

c

A estrada [que você passou ontem] leva ao litoral.

 

Parece haver restrição semântica ao emprego da estratégia cortadora em relação ao uso de preposições lexicais, que, por definição, dispõem de um valor semântico muito específico, como por exemplo, contra e sobre, conforme mostram (16c) e (17c).

 

16

a

O advogado [contra o qual/quem você se posicionou no tribunal] desistiu do processo.

 

b

O advogado [que você se posicionou contra (ele) no tribunal] desistiu do processo.

 

c

(*) O advogado [que você se posicionou no tribunal] desistiu do processo.

 

 

 

17

a

O armário [sobre o qual João deixa o trabalho inacabado] não tem mais espaço.

 

b

O armário [que João deixa o trabalho inacabado sobre (ele /Ø)] não tem mais espaço.

 

c

O armário [que João deixa o trabalho inacabado Ø ] não tem mais espaço.

 

A estratégia copiadora de preposição não sofre restrição semântica, e é sintaticamente aceitável mesmo a alternativa com encalhamento, conforme atestam (16b) e (17b). A especificidade do valor semântico dessas preposições bloqueia automaticamente a estratégia cortadora em função da ambiguidade resultante em (16c). Como armário consiste numa entidade locativa tridimensional, é difícil saber, em relação a (17c), se João deixa o trabalho inacabado dentro ou sobre o armário ou mesmo ao lado dele. Também não fica muito óbvio o significado de relativas com locativos bidimensionais, como mesa, se, por exemplo, alguém tem o costume de deixar sapatos sobre ela, não sob como seria de esperar.

As mesmas restrições que envolvem as preposições lexicais se aplicam às assim chamadas preposições “acidentais” como durante, que consiste na gramaticalização do particípio presente do verbo durar, e conforme, consoante segundo, que são conjunções conformativas em processo de gramaticalização, como se vê em (18a-c) e (19a-c).

 

18

a

A sessão da Câmara [durante a qual João leu o relatório] foi muito maçante.

 

b

A sessão da Câmara [que João leu o relatório durante (ela /Ø)] foi muito maçante.

 

c

(*)A sessão da Câmara [que João leu o relatório] foi muito maçante.

 

 

 

19

a

O autor [segundo o qual o vencedor deve receber as batatas] é Machado de Assis.

 

b

(*) O autor [que o vencedor deve receber as batatas segundo (ele /Ø)] é Machado de Assis.

 

c

(*) O autor [que o vencedor deve receber as batatas] é Machado de Assis.

 

Sintagmas preposicionais, representadas por Propriedades Configuracionais, como em cima/embaixo de, ao lado de, atrás de etc, que também representam valores semânticos muito específicos, licenciam a alternativa copiadora com ou sem cópia pronominal, como mostram (20a) e (20-b), mas não a cortadora, pelo menos com a preservação do mesmo valor semântico; note-se que (20c) é possível, mas com um significado muito mais genérico do que (20a-b). Esse comportamento mostra certo grau de especialização funcional do uso das estratégias.

 

20

a

A mesa [em cima /embaixo da qual João deixa o trabalho inacabado] não tem mais espaço.

 

b

A mesa [que João deixa o trabalho inacabado em cima/embaixo dela/Ø] não tem mais espaço.

 

c

(*) A mesa [que João deixa o trabalho inacabado] não tem mais espaço.

 

Observem-se, agora, os exemplos contidos em (21a-d).

 

21

a

A mesa [sobre/sob a qual as crianças deixam os sapatos] não tem mais espaço.

 

b

A mesa [que as crianças deixam os sapatos sobre/sob (ela /Ø)] não tem mais espaço.

 

c

(*) A mesa [que as crianças deixam os sapatos] não tem mais espaço.

 

d

o povo perdeu esperança no Estado, perdeu confiança do Estado porque trabalha um ano, dois, fica sem receber, e isso são problemas sérios [que... o governo deve...debruçar-se.] (GB95: Democracia)

 

Todos os casos em que a preposição tem um valor semântico específico e, como tal, independente do contexto imediato, licenciam uma alternância entre copiadora com ou sem preposição encalhada, mas nunca de cortadora. Observe-se, no entanto, (21d), um exemplo da variedade da Guiné-Bissau, em que a preposição sobre não é lexical, mas gramatical, por codificar uma função semântica não-argumental de locativo. Esse caso específico licencia a estratégia cortadora porque o valor semântico da preposição está pressuposto no conteúdo do verbo debruçar-se.

Como se vê, o caráter lexical ou gramatical de uma preposição não pode ter um valor definitivo, pois qualquer definição é válida até que surja um caso em que não ela se sustente. É preferível, portanto, defender que as definições sejam prototípicas, já que é o uso que define o estatuto lexical ou gramatical das preposições. De qualquer modo, a possibilidade de relativas com preposições encalhadas depende do caráter lexical ou gramatical delas.

Kenedy (2007) sugere ser esse o traço que permite o licenciamento de encalhamento de preposições em português, mas atribui esse caráter a um comportamento sintático. Em português e nas línguas românicas de uma maneira geral, os traços de P podem ser amalgamados aos do DP por incorporação de núcleo, do que resultam as contrações morfofonológicas do, das, nas etc. É, portanto a existência desse núcleo composto [P + DP] que torna impossível apagar os traços do DP, mas não os de P, de que resulta a relativa cortadora, como em [PP [deP [DP as casas]]] para o PP das casas.

Minha hipótese explicativa coincide em parte com a de Kenedy (2007), mas inverte as relações de causa e efeito. Por um lado, uma preposição com uma carga semântica própria e, por isso, sujeita a uma escolha no processo de Formulação (Hengeveld e Mackenzie 2008), é representada como item lexical no Nível Representacional; por outro, uma preposição destituída de conteúdo semântico, só pode ser representada no Nível Morfossintático, uma maneira de tornar visíveis as funções semânticas argumentais e não-argumentais. É esse estatuto funcional que permite, no segundo caso, a perda de material fonético e o amálgama da preposição com o determinante do SN seguinte, que Kenedy (2007) rotula DP. Nesse caso, é muito simples a solução da GDF: basta que, na representação semântica, seja assegurada a inserção apropriada do item lexical. Vejamos a representação semântica de um caso de preposição lexical (sobre) e de um caso de preposição gramatical (de) em (22a-b) e (23a-b).

 

22

a

A reunião [sobre a qual/que  conversamos sobre [ela/Ø] ]durou um hora.

 

b

(1ei: [(fi: reuniãoN (fi)) (ei)Ø]: (past epj: [(fj: conversarV (fj)) (xi)(fk: sobreAdp (fk)) (ei)) Ref)] (epj))

 

 

 

23

a

A roupa [de/Ø que eu gosto dela/Ø] descosturou.

 

b

(1xi: [(fi: roupaN (fi)) (xi)Ø]: (pres epi: [(fj: gostarV (fj) (xj)U (xi)L)]

 

O Nível Representacional contempla a entrada das categorias lexicais, isto é, nome (N), verbo (V), adjetivo (Adj), advérbio (Adv) e, finalmente, adposição (Adp) que identifica a preposição do SP sobre a reunião de (21a), que aparece na representação de (22b) como uma propriedade configuracional (fk: sobreAdp (fk)) (ei)) Ref) em que reunião (ei) é argumento na função de Referente[10]. Já categorias gramaticais como a preposição de só aparecem inseridas no Nível Morfossintático, restando ao Nível Representacional atribuir uma função L (Locativo) a (xi) de (23b) para SP de roupa de (23a), que atua como argumento Locativo (Ablativo) do verbo gostar.

 

4. Generalizações e implicações teóricas: transparência e opacidade

 

É agora o objetivo desta seção discutir que tipo de generalização é possível fazer sobre a distribuição de estratégias, incluindo os casos atestados de encalhamento de preposição. Recorde-se que, o português dispõe de quatro estratégias, considerando principalmente as posições relativizadas regidas por preposição: padrão ou pied-piping, a copiadora ou resumptive pronoun, a de encalhamento de preposição ou preposition stranding, e a cortadora ou preposition chopping. Apenas para refrescar a memória, vejamos exemplos de alternância em (24a-d), das quais (24d) leva um sinal de interrogação por não constituir uma alternativa com o mesmo significado das demais.

 

24

a

A reunião [sobre a qual conversamos] fica adiada até o próximo mês.

 

b

A reunião [que conversamos sobre ela] fica adiada até o próximo mês.

 

c

A reunião [que conversamos sobre] fica adiada até o próximo mês.

 

d

(*) A reunião [que conversamos] fica adiada até o próximo mês.

 

O alto custo cognitivo da alternativa padrão ou pied-piping é que pode determinar a quase exclusão de seu uso no registro informal, interpretação que credito a Kenedy (2007). Com efeito, esse autor procura demonstrar que, apesar do grande esforço descritivo que a linguística do português tem despendido na análise dessa estrutura, o fenômeno pied-piping em relativas não pode existir naturalmente na gramática de nenhuma variedade do português, e, possivelmente, na opinião do autor, de nenhuma outra língua humana.

A razão da antinaturalidade dessa construção se assenta no fato de ela envolver operações computacionais que violam certas Condições de Economia da Faculdade da Linguagem (Kenedy 2007:6). De acordo com essa hipótese, o aprendizado de relativas pied-piping deve ser necessariamente artificial, mediado pelo contato com a língua escrita formal, e as estratégias cognitivas que essa aquisição demanda se chocam com a natureza minimalista da Faculdade da Linguagem - razão por que Kenedy (2007) nomeia sua hipótese “Antinaturalidade de pied-piping em orações relativas (APP)”.

É instigante essa hipótese de antinaturalidade, mas talvez haja dois problemas com ela que é necessário considerar. O primeiro é que a universalidade que o autor a ela atribui se baseia em evidências experimentais indiretas e não suficientemente abrangentes, já que se restringem a resultados de trabalho psicolinguístico realizado com crianças em idade pré-escolar (ou nos anos iniciais da escolarização), falantes do inglês, do francês canadense, do espanhol e do servo-croata; a esses estudos experimentais adiciona o trabalho descritivo de Brito (1995) sobre relativas preposicionadas nas línguas românicas. Evidências psicolinguísticas diretas abrangem apenas o PE e o PB.

O segundo problema que essa hipótese coloca para uma suposta universalidade é o de que uma língua como inglês, que licencia mais naturalmente a relativa de preposition stranding, dá um tratamento diferencial à relativa de genitivo com whose, em que se admite o pied-piping. Esse comportamento não tem simetria com línguas como o PB: devido ao franco processo de desaparecimento do relativo de posse cujo da língua falada, as estratégias copiadora e cortadora se aplicam a todas as posições relativizadas da HA. Isso significa que, se em inglês a antinaturalidade da pied-piping é parcial, por aplicar-se somente a posições preposicionadas, que explicação seria possível dar ao fato de ser a relativa pied-piping de genitivos admitida na aquisição?

A hipótese explicativa que se fornece aqui, de natureza funcional, tem a ver também com uma característica universal da linguagem, a relação entre transparência e a opacidade entre forma e conteúdo, mas tem o vetor apontado para outra direção, já que assenta suas bases em relações de alinhamento entre os entre o Nível Morfossintático e os Níveis Interpessoal e Representacional da gramática, tal como postulados pela GDF (v. seção 1).

Sabe-se que, em função de seu caráter simbólico, a linguagem humana é capaz de tolerar um grau muito elevado de arbitrariedade; sabe-se também, entretanto, que há uma quantidade considerável de fenômenos que mostram certa homologia entre forma e conteúdo, um dos quais é a iconicidade. Em termos de GFD, pode-se perceber a atuação do Princípio de Iconicidade no modo como a ordem de codificação morfossintática reflete a ordem das categorias das dimensões interpessoal e representacional.

Há uma relação competitiva entre transparência e opacidade, que se acha ligada, ao Princípio de Economia, em contraposição ao de Iconicidade (Givón 1980, 1990; Haiman 1985), duas motivações funcionais em competição (Du Bois 1985) extremamente reconhecidas pela pesquisa tipológica. A iconicidade é a tendência para a relação de conformidade entre a estrutura linguística e a estrutura da experiência conceitual, traduzida por Haiman (1985: 11) como motivação icônica.

A transparência se aplica às interfaces entre o nível pragmático e o semântico, por um lado, e entre esses dois níveis e os dois níveis formais, por outro. Desse modo, é possível distinguir um conjunto diversificado de fenômenos que violam a transparência, tornando mais opaca a relação entre unidade formais e unidades de conteúdo e, por conseguinte, ativando ausência de paralelismo entre os diferentes níveis da gramática.

Leufkens (no prelo) aponta três possibilidades de violação da transparência linguística: redundância, desintegração de domínio e forma formalmente motivada. A redundância compreende relações entre uma unidade de significado e duas ou mais unidades formais. Uma das unidades formais é redundante porque poderia ser deixada de fora sem perda de significado.

Ocorre desintegração de domínio quando se viola a integridade das unidades formais, nas situações, por exemplo, em que a fusão de duas unidades formais implica um tipo de relação em que mais de uma unidade de conteúdo converge para uma única unidade formal. Outro fenômeno típico de desintegração de domínio - a descontinuidade - ocorre quando uma unidade formal se divide, resultando novamente num alinhamento não-paralelo entre os níveis interpessoal e representacional e o morfossintático.

O terceiro tipo de violação de transparência - forma formalmente motivada - inclui todas as formas e relações formais que são complemente destituídas de motivação pragmática ou semântica. Elementos expletivos, por exemplo, são unidades puramente formais sem motivação pragmática ou semântica, uma vez que nada significam e a nada se referem; consistem em formas não-funcionais ou morfossintaticamente autônomas.

Se considerarmos a tensão entre transparência e opacidade, a existência de um grau máximo de transparência numa gramática chega a ser uma vantagem de um ponto de vista cognitivo, já que projeções biunívocas de forma e conteúdo e, portanto, transparentes, são mais fáceis de aprender do que projeções opacas. Leufkens (no prelo) lembra a aquisição tardia de gênero gramatical em holandês, que, devido à opacidade. é apenas completamente dominado pelas crianças em volta de 8 anos (Blom et al. 2008 apud Leufkens no prelo). Evidências desse tipo indicam que relações de transparência constituiriam o ponto de partida da aquisição, e as relações de opacidade seriam adquiridas mais tardiamente.

Um estudo sobre a aquisição de relativas, desenvolvido no Brasil, por Perroni (2001) mostra que as posições relativizadas por crianças entre os 2;0 e os 5;0 de idade são as mais altas na HA: as de sujeito e objeto, justamente as mais frequentes e também as que não envolvem nenhuma preposição. Nos dois casos registrados de relativas com posição preposicionada, a estratégia empregada é a copiadora, em que, também para a autora, a presença do pronome-lembrete indica mitigação de esforço de processamento (Perroni 2001).

Feita essa digressão, voltemos aos casos de (24), para tentar responder à questão do que acontece com a produção de uma oração relativa padrão, ou pied-piping como a de (24a). Do ponto de vista das relações de transparência, implica um alinhamento interpessoal, já que, em sentenças simples a posição inicial (PI), onde se insere na relativa o adjunto de Assunto em (24a), é especificamente reservada para as funções pragmáticas de Tópico, Foco e Contraste (Hengeveld e Mackenzie 2008).

A razão para inserir um constituinte preposicional na posição PI da relativa padrão tem o mesmo alinhamento pragmático, já que a relativa dá continuidade ao tópico da principal - a reunião - que é retomado sob a forma de PP com pronome relativo em vez de um núcleo nominal na subordinada sobre a qual conversamos[11].

Apesar dessa função tópica, não é necessária a estratégia pied-piping utilizada, justamente porque o português dispõe de uma posição preferencial em PI para Tópico, mas não necessariamente obrigatória, como ocorre, por exemplo, com línguas de proeminência de tópico, como o Mandarim. Observe-se que a estratégia copiadora de (24b) mantém a mesma relação de continuidade tópica, inserindo a segunda instância na posição pós-verbal.

A sintaxe das interrogativas também sugere o uso da posição PI, mas, ao contrário das relativas pied-piping, o esforço cognitivo de formulação, e de decodificação subsequente, tem um valor pragmático obrigatório, que é realçar um constituinte, fortemente correlacionado à informação nova. A posição PI , nesse caso, é usada para foco marcado, já que a informação nova do tipo não-marcado tem posição preferencial na região pós-verbal de uma predicação em português. Embora represente uma descontinuidade que viola o Princípio de Integridade de Domínio, uma oração interrogativa viola esse princípio em função de outra estratégia funcional, a atribuição de Foco.

Parece, então, que o uso da alternativa padrão ou pied-piping tem uma finalidade praticamente estrutural[12], o que significa, despender esforço cognitivo desnecessário, já que o falante pode ativar a mesma função tópica ativando uma codificação morfossintática com esforço reduzido de produção e de processamento.

Uma copiadora registra menor custo de processamento por questões de transparência entre forma e conteúdo. Cada SN aparece em sua posição canônica, no esquema S-V-O/OB preferencial do português, de acordo com o Princípio de Integridade de Domínio[13] o que implica alinhamento entre o Nível Interpessoal e o Nível Morfossintático. Essa relação não se aplica do mesmo modo à estratégia padrão ou pied-piping, que, justamente por violar o Princípio de Integridade de Domínio, representa grau ainda menos elevado de transparência.

A solução mais imediata para o problema cognitivo que provoca a escolha da alternativa pied-piping seria optar por uma construção copiadora, tal como representada em (24b). Tarallo (1983) lembra que construções similares eram comuns nos textos do português medieval e o que provavelmente determinou seu quase completo desaparecimento é o valor de estigmatização social que ela ativa especialmente em falantes com ensino médio e superior. Os dados aqui discutidos mostram que seu uso persiste, ainda que com uma frequência menor de ocorrência.

Nesse caso, o último recurso que resta ao falante é apelar para duas outras alternativas, a de preposição encalhada, órfã de seu SN, de (24c) ou a cortadora de (24d), ambas com um grau muito baixo de estigmatização, que são, por isso, empregadas com frequência elevada mesmo por falantes escolarizados. O problema da continuidade tópica e da quase-opacidade entre unidades formais e unidades de conteúdo fica para segundo plano, quando a escolha recai sobre uma relativa com preposição encalhada ou sobre uma relativa cortadora. O português admite ausência de manifestação fonológica de argumentos nas situações em que as informações contextuais são suficientes, caso em que o princípio de economia, ativador de mais transparência, sobrepuja o principio de iconicidade, ativador de mais opacidade.

Em contraste com a iconidade, que torna a estrutura linguística tão transparente quanto possível, a economia sintagmática representa uma pressão para o mínimo esforço e para a simplificação máxima da expressão, uma tendência para reduzir o comprimento ou a complexidade de qualquer enunciado, de modo que a informação redundante e/ou recuperável no contexto comunicativo tende a ser omitida (Haiman 1985: 158).

Uma explicação possível para a alta taxa de não-especificação formal de argumentos nas nominalizações do PB é a de que não haveria relevância discursiva para expressar valência, que é, em geral, suprida pela organização do discurso. Se já há informação contextual e cotextual suficiente sobre os argumentos, é descabido expressá-los na estrutura interna do predicado nominal. Nesse caso, a ausência de expressão formal não significa redução argumental no processo de derivação do verbo para o substantivo; ao contrário, significa competição entre expressão por anáfora zero e por sintagma preposicional (Camacho 2011).

O mesmo se aplica às relativas de preposição encalhada (23c) e cortadora (23d). O constituinte tópico da principal - reunião - a que a relativa dá continuidade referencial, pode ser omitido sem perda visível de informação. O apelo ao princípio de Economia, correlato direto da opacidade, é a motivação que sobrepuja a tendência para o Princípio de Iconicidade, correlato direto da transparência entre forma e conteúdo.

Outras motivações contextuais que ativam a seleção das formas emanam das relações sociais. Parece que o último reduto da resistência da relativa pied-piping é mesmo o caráter normativo da gramática escrita, caro ao falante culto e, especialmente, na variedade europeia, que consiste também na norma padrão para a gramática culta das variedades africanas, como também para o português do Brasil.

 

Palavras finais

 

Das quatro estratégias reconhecidas por Keenan (1985) e Comrie (1989), as variedades lusófonas dispõem da estratégia de lacuna, nas posições de sujeito e de objeto, de pronome relativo, entendida como a variante-padrão nas posições preposicionadas alternando com estratégia de retenção pronominal, representada pelas variantes copiadora e cortadora. Nessa situação, é possível ainda contar com uma variante com preposição encalhada, restrita, todavia, a preposições lexicais simples e complexas e, provavelmente à variedade brasileira.

Esse leque de alternativas disponíveis depende de três aspectos distintos, relacionados à construção de uma relativa: (a) da seleção do conectivo; (b) do emprego ou não de preposições nos casos de oblíquos e dativos em que elas seriam requeridas; (c) da marcação adicional de caso semântico, que se torna visível na ordem de palavras ou no uso de preposições.

Quanto à seleção do conectivo (a), é possível generalizar a distribuição entre pronome relativo ou complementador pelas posições relativizadas da HA de Keenan e Comrie (1977). Uma distribuição viável nas variedades do português é que, nas funções de SU e OD e nas construções não-padrão, copiadora e cortadora, que relativizam as posições mais baixas da HA, ou seja, OI, OBL, GEN, o conectivo invariável que seria identificado como um a categoria que Dik (1997) chama marcador de relativização ou complementador na visão gerativista.

            Quanto ao emprego de preposições (b) e, por extensão, à marcação de caso (c), é possível concluir que, quando relativa estiver envolvida com as funções sintáticas de objeto indireto e de oblíquos, a escolha da preposição torna visível, simultaneamente, a marcação dessas funções sintáticas e respectivas funções semânticas em posição pré-verbal. Essa situação, que viola o Princípio de Integridade de Domínio, identifica a variante-padrão ou estratégia de pronome relativo.

Alternativamente, as preposições podem ser apagadas com a inserção simultânea de um marcador de relativização, já que a relação anafórica própria do relativo é operada por um pronome-lembrete na posição canônica pós-verbal, ou elipse completa do antecedente na relativa, identificando, no primeiro caso, uma estratégia copiadora e, no segundo caso, uma estratégia cortadora.

Em geral, a incidência majoritária da forma padrão sobre as posições de SU e OD indica uma tendência para uma provável distribuição funcional das estratégias nas variedades lusófonas, paralelamente a uma tendência que se detectou sobre o uso de cortadoras e copiadoras com sintagmas preposicionais: o uso da estratégia de pronome relativo pode vir a especializar-se nas posições de SU e OD, enquanto o da cortadora e da copiadora, na de OBL.

E, nesse caso, a seleção da estratégia copiadora em detrimento da estratégia de pronome relativo é de fato funcionalmente mais eficaz em virtude de licenciar um conjunto muito maior de posições relativizadas, incluindo a de objeto de comparação[14]. A razão disso reside no fato de a estratégia copiadora explicitar todas as posições sintáticas, permitindo a reprodução da ordem canônica SVO dos constituintes. Essa explicitação torna a estrutura linguística mais transparente. Entretanto, a reduzida incidência da estratégia copiadora, observada nesse recorte sincrônico, revela ser dotada de forte sentimento de estigmatização social, certamente em virtude de seu caráter redundante.

Já a estratégia cortadora é, de fato, cognitivamente menos explícita, por implicar a omissão de uma informação de curtíssimo prazo no polo da produção, que deve ser preenchida pelo interlocutor no polo da interpretação. Como esse elemento equivale a um tópico reiterado, a omissão dele se ajusta ao Princípio de Economia, não ao de Iconicidade, tornando a estratégia cortadora a menos transparente. Por conseguinte, a seleção entre as estratégias obedece, por um lado, a princípios conflitantes, como motivações em competição (Du Bois 1985) e, por outro, a preferência por uma estratégia na relativização de posições preposicionadas indica graus diferentes de transparência conforme mostrado na Figura 6.

.

 


 

            Quanto mais clara a relação entre os Subatos de Referência e a Codificação Morfossintática maior o grau de iconicidade e, portanto, de transparência. O grau maior de transparência é atributo da estratégia copiadora, como um reflexo da ordem S-V-O/OB, que ocorre canonicamente em construções declarativas simples. Na posição média aparece a relativa padrão, justamente por codificar morfossintaticamente todos os dois Subatos de Referência que a constituem, mas numa sequência que viola a ordem canônica. As menos transparentes são a relativa de preposição encalhada e justamente a estratégia não-padrão mais frequente no uso, a estratégia cortadora. Nesses dois casos, o Princípio de Economia acaba sendo mais relevante que o de Iconicidade, já que a codificação morfossintática da cortadora elimina um constituinte pragmática e semanticamente redundante.

 

 

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[1] Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (proc. 301386/2008-0); bolsista CAPES de Estágio Sênior no Exterior (proc. 5787/2010-6).

[2] Aplica-se a interpretação gerativa às estratégias do português por razões de coerência com o enfoque original de Keenan (1985) e Comrie (1989) que serve de suporte teórico para este trabalho.

[3] O fato de só poder ocorrer que nas relativas restritivas de sujeito e de objeto, independentemente da natureza humana ou não do antecedente, ao contrário do que se dá quando que é precedido por uma preposição, levou autores, como Brito (1991) a proporem, nesse tipo de relativas, que não é mais que um complementador, basicamente gerado em COMP. As relativas de sujeito e de objeto envolveriam, nesse caso, não movimento-Q, mas movimento de operador nulo para junto de que. Para outros, o que em relativas de sujeito e de objeto é um morfema-Q, ainda que desprovido de traços de concordância e uniforme em relação ao traço [+/- humano] (Brito e Duarte 2003: 662).

[4] Na análise gerativa, a palavra-Q se move para o início da sentença, levando consigo seu complemento, exatamente como o flautista de Hamelin seduz, com sua música, ratos e crianças, que passam a segui-lo; é em razão disso que se usa a expressão metafórica “pied-piping”, tal como foi cunhada por Ross (1967), quando ainda imperava o modelo transformacional na sintaxe gerativa.

[5] Nessa fórmula, ‘on’ representa o item, ‘p’ subscrito, representa preposição, ‘xi’ uma entidade e, finalmente, Ref representa a função semântica Referência.

[6] Nessa fórmula, ‘on’ representa o item, ‘p’ subscrito, representa preposição, ‘xi’ uma entidade e, finalmente, Ref representa a função semântica Referência.

[7]. O Conteúdo Comunicado, que contém, no Nível Interpessoal, a totalidade do que o Falante deseja evocar, contém, por sua vez, dois tipos de Subatos, os Subatos Referenciais e os Atributivos. O Subato Atributivo representa uma tentativa do Falante de evocar uma propriedade, enquanto um Subato Referencial, uma tentativa do Falante de evocar um referente.

[8] Cf. Pezatti et al (2010) para uma interpretação exaustiva das preposições no português sob a ótica da GDF.

[9] Ao longo de toda a discussão seguinte, mantêm-se exemplos construídos própria que permitem discutir o assunto mesmo na ausência desse tipo de dados reais na Amostra CLUL.

[10] A representação de reunião como (e) significa tratar-se de um Estado de Coisas, enquanto a de roupa como (x) significa tratar-se de um indivíduo.

[11] O Tópico se correlaciona fortemente com informação dada e com a noção de identificabilidade para o Ouvinte, entendida como definitude (Hengeveld e Mackenzie 2008, p. 94). Esses dois traços aplicam-se a reunião em (24a).

[12] O uso da expressão ‘praticamente estrutural’ se deve ao fato de ser a posição PI também reservada para uma função pragmática, a de Tópico em relativas. Mas a topicidade se dá por relação anafórica com o antecedente, que já é Tópico na oração principal.

[13] Segundo o Princípio de Integridade de Domínio se refere a uma preferência para que as unidades do mesmo estatuto funcional no Nível Interpessoal e no Nível Representacional sejam também justapostos no Nível Morfossintático.

[14] Uma alternativa copiadora como Aquele menino que o pai dele é mais alto que o meu não conseguiu entrar no time de basquetebol amplia o ponto de corte da HA no português.

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