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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.28 no.1 Montevideo dic. 2012

 

Lingüística

Vol. 28, diciembre 2012: 41-56

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

 

O TEATRO DAS IDENTIDADES NO DISCURSO POLÍTICO-ELEITORAL

 

THE THEATER OF IDENTITIES IN POLITICAL-ELECTORAL DISCOURSE

 

José Simão da Silva Sobrinho

Universidade Federal da Fronteira Sul

jose-simao@uol.com.br

 

 

Neste trabalho, analisamos, na perspectiva da Análise de Discurso, os processos de subjetivação instaurados nas propagandas eleitorais veiculadas pelas emissoras de televisão, nas campanhas para vereador e prefeito de Cuiabá, em 2004. Elegemos, para investigação, as propagandas nas quais se formula, pelo funcionamento das formações imaginárias, o pertencimento à cuiabania. Compreendemos que essa afirmação da cuiabanidade é um efeito da interpelação-identificação ideológica, que produz, para o sujeito, a evidência da unidade identitária. Nas propagandas eleitorais, sujeitos e sentidos se constituem no espaço da contradição entre diferentes e divergentes posições-sujeito. O que se observa na constituição das posições-sujeito, em algumas propagandas, é um feixe, por vezes difuso, de filiações ideológicas.

 

Palavras-chave: discurso político-eleitoral; processo de subjetivação; identidade.

 

Key-words: political-electoral discourse; subjective processes; identity.

 

In this study, we analyzed, from the Discourse Analysis perspective, the subjective processes found in the electoral advertisements transmitted by the television broadcasting stations, in the campaigns for city council and mayor of Cuiabá in 2004. We have chosen for investigation the advertising campaigns, where, through the functioning of imaginary formations, the feeling of belonging to the cuiabania (Cuiaba(na) community) is formulated. We understand that this cuiabanidade affirmation is an effect of ideological interpellation-identification, which produces in the subject the affirmation of identitary unity. In the campaign advertisements, subjects and meanings constitute themselves in a space of contradiction between different and divergent subject positions. What can be observed in the constitution of the subject positions, in some advertisements, is a web, at times diffused, of ideological filiations.

 

 

(Recibido: 31/01/12; Aceptado: 29/03/12)

 

 

1. Introdução

 

Nas propagandas eleitorais para prefeito e vereador de Cuiabá[1], pleito de 2004, um enunciado insistiu em se repetir: ''eu sou cuiabano''. Essa insistência chamou-nos a atenção. Quisemos, então, compreender como os sujeitos e os sentidos estavam sendo constituídos nas propagandas eleitorais veiculadas pelas emissoras de televisão[2]. Nessas propagandas, enxergamos a espetacularização da política de que fala Courtine (2003), para quem o discurso político encontra-se em crise nas sociedades ocidentais, produzindo ''estilos de comunicação radicalmente novos''. Transformada em espetáculo, a política passou a ser tratada como mercadoria e o cidadão, como consumidor. De acordo com o autor, a partir da segunda metade do século XX, produziu-se ''no mecanismo do ‘Estado-espetáculo’, uma perversão e uma deformação da democracia, uma perigosa confusão de gêneros em que a política se deteriora em uma teatralidade mercantil''.

Da ''teatralidade'' referida por Courtine, buscamos analisar os gestos de interpretação, definidos como ''indícios da inscrição do sujeito em diferentes formações discursivas'' (Orlandi 2001: 123), constitutivos da formulação do pertencimento à cuiabania[3]. Em outros termos, procuramos compreender os processos de interpelação-identificação que ''causaram'' sujeitos e sentidos nas propagandas eleitorais, tomando como corpus seqüências discursivas nas quais os candidatos formulam, de diferentes modos, o pertencimento à cuiabania.

Para os fins propostos nesse trabalho, mobilizamos os dispositivos da interpretação fornecidos pela Análise de Discurso. A partir desses dispositivos, analisamos os processos de subjetivação nas propagandas eleitorais, entendendo a subjetivação como o processo de constituição dos sujeitos e dos sentidos pela interpelação-identificação ideológica. Compreendemos a ideologia como linguagem, como prática significante que ''aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido'' (Orlandi 1999: 48).  Nessa perspectiva, o conceito de ideologia não se confunde com conjunto de ideias ou de representações, nem com visão de mundo ou ocultação da realidade. A ideologia não é, tão pouco, entendida como ''sistema cognitivo'' ou ''representação mental'' usada pelos membros de um grupo social, como propõe van Dijk (1980: 37). A ideologia é uma estrutura-funcionamento sócio-histórica relacionada ao trabalho de interpretação, tendo como uma de suas características fundamentais a naturalização dos sentidos, a produção da evidência da significação. Como o entendemos, portanto, o sujeito não é origem nem de si, nem dos sentidos. Ele também não é origem da ideologia, é efeito dos processos de interpelação-identificação ideológica e dos processos do inconsciente.

Assim, quando falamos em processos de subjetivação, estamos nos referindo aos processos de constituição do efeito-sujeito pela inscrição do indivíduo, ''sempre-já sujeito'' (Pêcheux 1997a), na língua e na história, definida, aqui, como rede de sentidos fazendo sentidos para os acontecimentos (Henry 1997). Nessa inscrição, podem ocorrer falhas, restos, parcelamentos, porque na relação necessária da língua com a história pode produzir-se o equívoco. Disso se tira que o sujeito, na perspectiva que subsumimos, é itinerante e os sentidos, moventes. Os processos de interpelação-identificação ideológicos não são rituais sem falha, logo, a subjetivação ''não se trata de uma repetição ad infinitum, que seria resultante de determinações inconscientes e ideológicas feitas em um encadeamento mecânico e previsível de causas e efeitos'' (Mariani 1998: 93).

Sustentados nessa teoria materialista dos sujeitos e dos sentidos, compreendemos as propagandas eleitorais analisadas como acontecimentos, ou seja, como práticas linguageiras que se constituem nos ''pontos de encontro de uma atualidade e uma memória'' (Pêcheux 1997b: 17). Nas seqüências discursivas nas quais se formula o pertencimento à cuiabania, entendemos que se atualiza uma memória sobre o cuiabano produzida no final do século XIX e início do XX, memória com deslocamentos e transferências produzidos pelos movimentos identitários implementados em Cuiabá na década de 1980, sobretudo.

 

 

2. A espetacularização da política na contemporaneidade

 

Courtine assinala algumas das mudanças ocorridas na política a partir do século XX. Segundo ele, a eloqüência política mudou profundamente,

 

uma forma de fala pública, constituída com a Revolução Francesa, fundada sobre os antigos oradores, concebida sobre o modelo do teatro e que até há pouco tempo fazia a ligação entre o homem político e o cidadão, acabou por se apagar sob nossos olhos, não sem nostalgia nem desequilíbrio. Ela cede seu lugar a estilos de comunicação radicalmente novos

                                                                                        (Courtine 2003: 22).

 

Em outras palavras, a política vem se transformando cada vez mais em uma ''teatralidade mercantil''. Courtine aponta algumas características dessa espetacularização da política. De acordo com o autor, ''a fala pública conhece uma profunda transformação enunciativa, que a torna uma fala breve, interativa, descontínua, fragmentada''. Com essa transformação da fala pública, ''ressurgiria enfim o indivíduo falante, enquanto o aparelho político se apagaria: as vozes não seriam mais anônimas, cada um falaria em seu nome''.

Nessa nova fala pública, com os aspectos teatrais apontados acima, conforme Courtine, ''trata-se menos de explicar ou de convencer do que de seduzir ou de arrebatar''. Nela ''as formas didáticas da retórica política clássica [...] são substituídas por formas novas, que submetem os conteúdos políticos às exigências das práticas de escrita e de leitura próprias ao aparelho audiovisual de informação''. Trata-se de uma fala pública na qual se pode observar ''os efeitos, no campo do discurso, de uma racionalização do espaço político, totalmente causada pelo uso de técnicas de comunicação de massa''.

Uma das críticas essenciais contra essa ''mercantilização da política'', segundo o autor, é a de que ''a coisa pública não seria ali mais do que uma simples aparência, puro espetáculo, vã comédia com inserções publicitárias às quais ela acaba se assemelhando''. Nesse espetáculo, os políticos oscilariam ''entre heróis de novela e mercadorias à venda, teriam um papel incerto''. Nas propagandas eleitorais que estamos analisando, os candidatos se apresentam conforme posições-sujeito, efeitos das relações do sujeito com a língua e a história, a serem, presumivelmente, reconhecidas pelos eleitores: mãe, médico, contador, professor, servidor público, evangélico, etc., como se vê na apresentação que a candidata faz de si:

 

1. Isabel Cristina, mãe, professora e enfermeira, moro em Cuiabá 24 anos, me considero cuiabana (Candidata Isabel Cristina).

 

No teatro da identidade visto em (1), funciona o que Orlandi (1999: 39-42) designa como mecanismo da antecipação. Segundo a autora, ''todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras''. Dessa forma, ''esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte''. Não apenas esse mecanismo de antecipação, mas todos os mecanismos de funcionamento do discurso, de acordo com Orlandi, ''repousam no que chamamos de formações imaginárias'', definindo-se o discurso como efeito de sentidos entre posições-sujeito, não se equiparando à fala, ao texto, à informação, ao processamento ou a ''um significado global ou macroestrutura'' (van Dijk 1996). Dessa maneira, o que funciona no discurso das propagandas eleitorais não são os lugares ''ocupados'' pelo falante (mãe, professora, enfermeira, médico, evangélico, etc.), mas o imaginário desses lugares, que resultam de projeções, e que ''significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória (o saber discursivo, o já-dito)''. Como o estamos entendendo, o imaginário ''condiciona os sujeitos em suas discursividades''. Argumentamos com Orlandi que

 

o imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não ‘brota’ do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. A imagem que temos de um professor, por exemplo, não cai do céu. Ela se constitui nesse confronto do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições

                                                                                        (Orlandi 1999: 42).

 

 Nessa perspectiva, no funcionamento discursivo instaurado nas propagandas eleitorais, o que conforma sentidos são as posições-sujeito, efeitos da inscrição do falante na língua e na história, e não os lugares ''empíricos'' ''ocupados'' pelos candidatos na formação social. Trata-se, aqui, de uma compreensão não-subjetiva do sujeito e dos sentidos. Como formula a autora,

 

 atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário, o sujeito só tem acesso a parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua e à história ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos

                                                                                        (Orlandi 1999: 48-49).

 

As posições-sujeito definem-se, dessa forma, como pontos do assujeitamento do indivíduo ''sempre-já sujeito'' à língua e à história. Assim, o que chamamos de ''sujeito'' é uma dispersão de posições-sujeito, de pontos de interpelação-identificação ideológica, pontos com unidade apenas imaginária, pois ''a ideologia é um ritual com falhas'' e ''a língua não funciona fechada sobre si mesma: abre para o equívoco'', definido como ''a falha da língua, na história'' (Orlandi 2002: 68-69).

Nas propagandas eleitorais, como se verifica em (1), há uma dispersão de posições-sujeito (mãe, professora, enfermeira, migrante). Dispersão regulada, contudo, pelas formações discursivas em seus vínculos com as formações ideológicas. Em nenhuma das propagandas eleitorais que analisamos, formulam-se enunciados como, por exemplo, ''sou garota de programa'', ou ''sou pai-de-santo'', profissões arroladas na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) do Ministério do Trabalho e Emprego, mas interditadas pelas formações ideológicas judaico-cristãs.

 

 

3. O jogo da memória na propaganda eleitoral

 

As propagandas eleitorais, como práticas simbólicas inscritas na história, (re)produzem, assim, a memória que constitui a nossa formação social. Compreendemos a memória, juntamente com Orlandi (1999: 31-32), como ''o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra'', afetando o modo como o sujeito (se) significa. Dessa forma, a memória é tratada como interdiscurso, ou seja, como ''aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente''. Ele ''disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada''. A partir dessa concepção de memória, formula-se que ''o dizer não é propriedade particular'', que ''as palavras não são só nossas'', que ''elas significam pela história e pela língua'', que ''o sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele''.

Nessa perspectiva discursiva, a formulação do dizer, nas propagandas eleitorais, resulta do trabalho da memória discursiva. Mais especificamente, observamos que, nas propagandas eleitorais que estamos analisando, funciona uma dada memória sobre a cuiabanidade, ou seja, atualizam-se, sob a forma de pré-construídos, dizeres sobre o que significa ser cuiabano. Atualiza-se um já-dito sobre a cuiabania produzido historicamente na relação do cuiabano com o ''outro'' (o viajante, o imigrante, o migrante, etc.).

Galleti (2000) analisa, na perspectiva da História, a produção dessa memória. Ela investiga o olhar dos viajantes estrangeiros, dos brasileiros de outras regiões e do próprio mato-grossense sobre Mato Grosso e sua gente, olhar produzido entre meados do século XIX e início do XX. Nesse período, assinala a autora, o território mato-grossense e seus habitantes foram significados na perspectiva de noções como ''civilização'', ''nação'', ''sertão'', ''fronteira'' e ''progresso'', noções desenvolvidas segundo o ideário liberal burguês, que teve seu apogeu no século XIX.

À época, as nações européias, se colocando como modelos de civilização, consideraram a América Latina como atrasada, com baixo grau de civilização, e suas populações, significadas como raças inferiores, foram vistas como indolentes e apáticas. Apenas as elites escaparam dessas interpretações, pontua a autora. Essas elites inventaram, afirma Galetti, ''para consumo interno'', a ''figura de um outro geográfico dentro de seus próprios países''. As imagens que as elites produziram desse outro foi de ''regiões bárbaras e atrasadas''. Da mesma forma que, na ideologia liberal burguesa, cabia à Europa civilizar a América Latina, a ''outra parte do país, em geral aquela onde os efeitos da modernização capitalista eram mais visíveis e que, portanto, representavam a sua face ocidentalizada, podia e devia exercer a sua própria missão civilizadora''. No Brasil, à semelhança do que aconteceu nos demais países da América Latina,

 

uma parcela significativa de intelectuais e dirigentes políticos, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, passaria a perceber os sertões da pátria como uma fronteira entre civilização e barbárie dentro do próprio território nacional, que urgia fosse superada a fim de acelerar o progresso do país

                                                                                        (Galetti 2000: 26-27).

 

A historiadora demonstra, em seu trabalho, que os viajantes estrangeiros, os brasileiros de outras regiões e os mato-grossenses ''enxergaram Mato Grosso pela mesma matriz das concepções ocidentalistas de progresso e civilização e pelas mesmas lentes das teorias evolucionistas e raciais'' que predominaram no pensamento científico ocidental entre o final do século XIX e princípio do XX. Os viajantes estrangeiros significaram Mato Grosso como

 

uma região ainda próxima da barbárie: abundante em recursos naturais, seu imenso território encontrava-se quase vazio, dominado por indígenas e por uma população mestiça, indolente e sem espírito empreendedor, razão pela qual seu progresso só seria possível com a introdução de imigrantes e capitais europeus

                                                                                       (Galetti 2000: 27).

 

Por sua vez, os brasileiros de outras regiões, do ''litoral civilizado'', tendo como referência o modelo europeu, significaram Mato Grosso, de forma ambígua, negativamente, como confins do mundo civilizado e da nação brasileira, em função ''das distâncias geográficas, históricas e culturais que o separavam do mundo e do Brasil civilizado'', e, positivamente, como ''locus de sua verdadeira identidade cultural''. Conforme a autora, os mato-grossenses ''compartilhando desta visão ambígua sobre a terra natal, manifestaram um profundo mal estar cultural face a uma identidade estigmatizada pela barbárie''. Em resistência a essa identidade, investiram na ''construção de uma memória histórica fundada nas origens bandeirantes do povo mato-grossense, em um passado de lutas pela ampliação e defesa do território brasileiro'' e para manter acesa ''a chama da civilização''. É o que depreendemos em Silva (1976)[4], que ensaia descrever a origem de algumas diferenças lingüísticas de Mato Grosso. Antes, porém, de entrar nas questões propriamente lingüísticas, o autor narra a épica ''descoberta'' desse Estado:

 

os bandeirantes fazendo as suas entradas pelos sertões, em procura de pepitas de ouro, repetiam, nos reconcavos profundos das nossas florestas desconhecidas, a epopéa escripta pelos portugueses na vastidão dos ‘mares nunca dantes navegados’. E desta lucta hercúlea e consciente do homem contra a natureza, resultou a expansão do territorio brasileiro até então adstricto ao littoral. Da floresta gigantesca, aquelles super-homens, numa lucta variada, ora com a propria natureza revoltada, ora com o homem selvagem, faziam surgir, como tocados por varinhas magicas, florescentes povoados que eram logo depois cidades. O conhecido combate do Rio das Mortes, entre portugueses e paulistas, fez com que estes voltassem as suas vistas para Oeste e viessem desvendar aos olhos do mundo civilizado o territorio matogrossense

                                                                                        (Silva 1976: 103)[5].

 

Como assinala Galetti (2000: 33), os mato-grossenses, nas primeiras décadas do século XX, se apropriaram das imagens produzidas pelos viajantes estrangeiros e pelos brasileiros de outras regiões ''para contrapor a elas um discurso que redefine a identidade regional estigmatizada pela barbárie''. Nas condições desse movimento pela redefinição da identidade mato-grossense, foi criado o Instituto Histórico de Mato Grosso, em 1919, ''destinado a preservar a memória e as tradições locais''. Nesse movimento, a elite de Mato Grosso produziu um ''outro'' mato-grossense, a quem atribuiu os estigmas produzidos pelo viajante estrangeiro e pelos brasileiros de outras regiões:

 

os intelectuais mato-grossenses reservaram aos índios e à população pobre mestiça, aqueles mesmos atributos raciais e a mesma avaliação negativa sobre seus hábitos e costumes que permitiram aos viajantes estrangeiros considerá-la como uma gente indolente, falta de espírito empreendedor, numa palavra, incivilizada

                                                                                        (Galetti 2000: 33).

 

Muitos dos elementos da interpretação de Mato Grosso como ''fronteira do mundo civilizado'', produzida pelos viajantes estrangeiros, e como ''sertão'', produzida pelos brasileiros de outras regiões, repetiram insistentemente ao longo do século XX, analisa a autora. Enxergamos o retorno de elementos dessas interpretações, constituindo sujeitos e sentidos, nas propagandas eleitorais que estamos analisando, em recortes como:

 

2. Eleitor e eleitora amigo de Cuiabá, sou Ronald [...] cuiabano com orgulho (Candidato Ronald).

 

O retorno do qual estamos falando pode ser depreendido, na superfície lingüística dessa seqüência, por meio do sintagma ''com orgulho'', que determina o predicativo ''cuiabano''. Na ótica da Linguística, a determinação consiste na saturação de um nome por um determinante. Conforme Indursky (1997), ''os determinantes lingüísticos saturam o nome, dando-lhe uma referência atual que o qualifica a ocupar uma posição lexicalmente identificada com um lugar referencial e a exercer funções semânticas e sintáticas no enunciado''. Essa operação de determinação lingüística, porém, como assinala a autora, não consegue saturar a significação de um nome. A determinação lingüística ''é insuficiente para saturar um nome, habilitando-o a ocupar um lugar em uma seqüência discursiva''. Torna-se necessário, assim, pensar a determinação numa outra ordem - a discursiva, na qual a determinação de um nome ''consiste em saturar-lhe o significado para qualificá-lo a integrar seqüências discursivas afetadas por determinadas formações discursivas''.

Na operação de determinação lingüística, o nome ou expressão nominal é levado a ocupar um lugar específico na estrutura da frase. Já na operação de determinação discursiva, o nome ou expressão nominal, na categoria de enunciado, é remetido a uma formação discursiva por seu determinante. Como analisa Indursky, a determinação discursiva ''consiste em saturar uma expressão nominal para limitar sua extensão e dotá-la de referência atual, para que se qualifique como elemento de dizer ideologicamente identificado à formação discursiva que afeta o discurso'' em que essa expressão se realiza. Dessa forma, a determinação discursiva, ou saturação do significado de um nome ou expressão nominal, ''consiste em um efeito de sentido onde intervêm conjuntamente fatores sintáticos, semânticos e ideológicos''.

Na seqüência discursiva (2), o sintagma ''com orgulho'' satura o significado do predicativo ''cuiabano'' inscrevendo-o na discursividade dos movimentos identitários por meio dos quais a elite cuiabana buscou redefinir sua identidade em face do discurso dos viajantes. A discursividade produzida por esses movimentos, bem como o discurso-outro que a constitui (aquele que significa o cuiabano como indolente, sem espírito empreendedor, etc.), pode ser depreendida, também, na predicação da cidade de Cuiabá e do povo cuiabano em:

 

3. Cuiabá é uma boa cidade, de um povo trabalhador e hospitaleiro, mas precisa mudar o seu quadro político (Candidato Júlio César).

 

As propagandas eleitorais não só repetem essa memória sobre o cuiabano, sobre a cuiabanidade, também produzem memória discursiva. Elas propõem uma agenda do que é assunto da política. Fazendo um levantamento dos assuntos abordados pelos candidatos, verificaremos que os assuntos se repetem, são sempre os mesmos: cuiabanidade, emprego, transporte coletivo, saúde, escola, creche, saneamento básico, etc. Para compreender como as propagandas eleitorais funcionam produzindo memória, precisamos indagar que assuntos foram delas excluídos ou interditados. Em nenhuma delas encontramos formulada a defesa da legalização do aborto, da adoção de crianças por casais homossexuais, do casamento de homossexuais ou da legalização da maconha, entre outros. Esses assuntos são silenciados nas propagandas eleitorais que, dessa forma, circunscrevem, para o eleitor-telespectador, o que pode e o que não pode ser dito. Mesmo silenciadas, porém, as discursividades que constituem esses temas continuam significando.

Desse modo, as propagandas eleitorais intervêm nos processos de subjetivação, definindo ou reforçando quais posições-sujeito são permitidas e quais são interditadas na formação social brasileira. Por esse trabalho da memória, em seus vínculos com a ideologia, são interditadas, entre outras, posições-sujeito como ''garota de programa'', ''pai-de-santo'', ''bicheiro'', etc. As propagandas eleitorais contribuem, assim, para a produção do discurso social, entendido aqui como ''consenso posto em funcionamento em um estado da formação social'' (Orlandi 1995: 113).

 

 

4. Memória e interlocução discursiva nas propagandas eleitorais

 

O trabalho da memória conformando sentidos e posições-sujeito pode ser observado, ainda, no processo de interlocução que se instaura nas propagandas eleitorais. Com Indursky (1997), compreendemos que o processo de interlocução se realiza em dois níveis diversos, interdependentes e simultâneos: a interlocução enunciativa e a interlocução discursiva. No nível da interlocução enunciativa, os candidatos estão na instância de locutor e os eleitores na de interlocutor. Nesse nível de interlocução, há, no corpus de nossa pesquisa, bastante clareza quanto a quem ''ocupa'' cada uma das instâncias da interlocução, como se vê em:

 

4. Sou [EU = CANDIDATO] cuiabano, professor e economista, peço seu [TU = ELEITOR] voto (Candidato Vantuil).

 

Pode-se depreender de (4) que, ao se constituir, a interlocução enunciativa instaura uma cena enunciativa composta pelos dois pólos interlocutivos: o eu (locutor – candidato) e o tu (interlocutor – eleitor), não havendo reversibilidade entre os pólos, ou seja, os interlocutores ficam fixados aos mesmos papéis enunciativos durante toda a alocução. Já no nível da interlocução discursiva, os participantes da alocução não possuem a mesma visibilidade. Nesse nível, instauram-se, nas propagandas eleitorais, interlocuções menos explícitas. Esse nível de interlocução, como formula Indursky, ''caracteriza-se por uma interlocução opacificada''.

Nas propagandas eleitorais, como vimos em (4), no nível da interlocução enunciativa, há um candidato que assume a posição daquele que diz ''eu'', instituindo, com isso, um ''tu'' eleitor. Tudo isso num espaço e num tempo definidos, numa situação específica. Por outro lado, no nível da interlocução discursiva, ao tomar a palavra, assumindo a posição daquele que diz ''eu'', o candidato o faz como sujeito do discurso afetado pelas formações discursivas. Como sujeito, aquele que diz ''eu'', nas propagandas eleitorais, o faz pela inscrição nas formações discursivas e ideológicas. Quando o candidato toma a palavra, na qualidade de locutor, na instância de interlocução enunciativa, o faz, na verdade, como sujeito, efeito da relação da língua com a história. Como sujeito, não se dirige a um grupo indistinto de eleitores, como se nota em:

 

5. Esta é a nossa Cuiabá, Cuiabá daqueles que aqui nasceram, como eu, e daqueles que pra cá vieram e criaram suas raízes, e amam esta cidade tanto quanto nós (Candidato Carlos Haddad).

 

Os eleitores estão, na interlocução discursiva que se desenvolve nessa seqüência, divididos em dois grupos, os ''que aqui nasceram'', ou seja, os cuiabanos, e ''aqueles que pra cá vieram'', os migrantes, designados pejorativamente pelos cuiabanos, sobretudo na década de 1980, de ''paurrodados''[6]. O pronome ''nós'' (eu candidato + ''daqueles que aqui nasceram''), no enunciado, sugere que apenas os cuiabanos participam da interlocução. Os migrantes, porém, participam da interlocução discursiva como um outro (''daqueles que pra cá vieram''). Como teoriza Indursky, na instância discursiva de interlocução

 

o sujeito do discurso, ao interpelar o outro, pouco definido e até ausente, instaura a cena discursiva que não é espacialmente determinada pelo espaço físico em que a alocução está ocorrendo nem pela presença física do interlocutor. A cena discursiva remete para o cenário discursivo que não possui materialidade física e que é mobilizado pelo imaginário social do sujeito do discurso

                                                                                        (Indursky 1997: 137).

 

Desse modo, ''a interlocução discursiva consiste, pois, na interlocução entre sujeitos de discursos dispersos em espaços discursivos diferentes, afetados possivelmente por formações discursivas igualmente diversas''. Nas propagandas eleitorais que estamos analisando, verificamos essa dispersão do sujeito do discurso. A separação feita entre cuiabanos e migrantes, na seqüência (5), permite-nos depreender que, nelas, o sujeito do discurso se constitui pela inscrição na discursividade dos movimentos identitários cuiabanos engendrados, principalmente, na década de 1980. 

Como vimos anteriormente, o discurso-outro que constitui a discursividade dos referidos movimentos identitários foi produzido no final do século XIX e início do século XX, como assinala Galetti (2000). A separação entre cuiabanos (''daqueles que aqui nasceram'') e migrantes (''daqueles que pra cá vieram'') foi, portanto, produzida antes desses movimentos. Esse discurso-outro, relativo às imagens de Mato Grosso como atrasado e do mato-grossense como preguiçoso, imagens que (em)forma(ra)m o ''olhar'' do estrangeiro e de brasileiros de outros Estados ''mais desenvolvidos'', é, assim, constitutivo, também, da interlocução discursiva em (5), produzindo a dispersão do sujeito do discurso. 

Os migrantes participam, desse modo, pela inscrição dessas discursividades, da interlocução discursiva que se instaura em (5), como uma terceira-pessoa discursiva (''daqueles que pra cá vieram''). O mesmo se verifica na seqüência abaixo, em que se opera a mesma separação entre cuiabanos e migrantes, sendo esses interpelados, na superfície lingüística, pelo pronome demonstrativo de terceira pessoa ''aqueles'':

 

6. Eleitor amigo, queremos uma sociedade mais justa, sou filho desta terra e recebo de braços abertos aqueles que aqui buscam dias melhores (Candidato Prof. Pinheiro).

 

Benveniste (1995) exclui a terceira-pessoa da interlocução enunciativa, chamando-a de não-pessoa. Como a tomamos, a terceira-pessoa discursiva não se confunde com a não-pessoa de que fala esse autor. A terceira-pessoa discursiva é a instância da alteridade: ''aparentando ser aquele de quem se fala e localizado na exterioridade, constitui-se, de fato, naquele a quem se fala, pólo de interlocução em função do qual o sujeito do discurso efetivamente se constitui'' (Indursky, 1997: 131).

Os sujeitos referidos por ''aqueles'' em (6) participam da interlocução discursiva. Como pontua Indursky, ''sob a aparência da não-pessoa, encontra-se a terceira-pessoa discursiva, dotada de traços de pessoalidade''. A terceira-pessoa discursiva é o outro ''na qualidade de interlocutor indeterminado, o qual participa, a esse título, da interlocução discursiva''. Essa instância da interlocução discursiva, a terceira pessoa, não deixa de ser determinada para o sujeito do discurso, ''sua indeterminação é um efeito que se constrói através do trabalho discursivo'', afirma a autora.

 

 

5. Considerações finais

 

As análises realizadas possibilitaram-nos compreender que, nas condições de produção das eleições de 2004, em Cuiabá, os sujeitos se constituíram pela inscrição de duas discursividades sobre o cuiabano, sobre a cuiabania. A discursividade produzida pelos viajantes estrangeiros e por brasileiros do litoral, no final do século XIX e início do XX, significando o cuiabano como atrasado, preguiçoso, etc. E, no espaço da contradição, a discursividade produzida pela elite cuiabana, sobretudo na década de 1980, em resistência a essa identidade estigmatizada do mato-grossense. Essas discursividades que incidem sobre a identidade do sujeito cuiabano, produzindo efeitos nas propagandas eleitorais investigadas, são conformadas pelo discurso civilizador e colonizador europeu.

As propagandas eleitorais analisadas produzem uma insistência nesses discursos identitários. É o que depreendemos da recorrência de enunciados como ''me considero cuiabana'' (1), ''cuiabano com orgulho'' (2), ''Cuiabá é uma boa cidade, de um povo trabalhador e hospitaleiro'' (3), ''sou cuiabano'' (4), ''sou filho dessa terra'' (6). As relações de forças, em parte alteradas pelas mudanças políticas ocorridas em Mato Grosso a partir da década de 1990, conformam esses discursos e produzem a necessidade da formulação desse pertencimento à cuiabania. Essas mudanças políticas, significadas como uma necessidade em (3) - ''Cuiabá é uma boa cidade ... mas precisa mudar o seu quadro político'' - conformam sentidos em (5) e em (6), na formulação do pertencimento condicional dos migrantes à cuiabania – o migrante pode pertencer à cuiabania, desde que tenha criado ''raízes'' em Cuiabá, ame essa cidade, queira ''uma sociedade mais justa'', busque ''dias melhores''. Em (5) e em (6) observam-se deslocamentos nos discursos identitários cuiabanos.

 A insistência nos discursos identitários, no teatro da identidade, produz como um de seus efeitos a identificação dos eleitores. Como todo investimento político no discurso identitário, produz, também, a separação, a segregação, o apagamento do político. Veja que não estamos tratando da identidade, que é ''um movimento na história'' (Orlandi 1995, 2001). Entendemos que a identidade é uma dimensão da subjetividade, ilusão necessária produzida pelo funcionamento da língua na história. Não é disso que estamos tratando. Quando falamos em insistência nos discursos identitários, estamos nos referindo aos processos discursivos que, justamente, produzem a homogeneidade, a imobilidade, põem empecilhos ao movimento na história, à historicização.

 

 

6. Referências bibliográficas

 

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[1] Capital do Estado de Mato Grosso, localizado no oeste do Brasil, fazendo fronteira com a Bolívia.

[2] Agradecemos a interlocução da Dra. Maria Inês Pagliarini Cox na produção da primeira versão deste trabalho.

[3] O neologismo ''cuiabania'', aqui empregado, segundo Guimarães (2002: 13), foi criado entre as décadas de 1970 e 1980 para designar a elite social nascida em Cuiabá. Por deslizamentos de sentidos, esse nome passou a designar, também, conforme a autora, ''o jeito e os costumes das pessoas que vivem aqui, uma certa visão cuiabana de mundo, uma ‘cuiabanidade’''.

[4] A primeira edição desse texto é de 1921.

[5] Preservamos a ortografia do texto citado.

[6] Lembramos que os fluxos migratórios para Mato Grosso se intensificaram a partir da década de 1960, fortemente cimentados nas discursividades do empreendedorismo, do desenvolvimentismo, fazendo ressoar os sentidos para o mato-grossense analisados por Galetti (2000). As transformações políticas produzidas nesse Estado, sobretudo a partir da década de 1990, potencializaram esses discursos do progresso e do empreendedorismo, discursos com fortes filiações ao discurso do ''viajante civilizado'' e do ''Brasil desenvolvido'' sobre o mato-grossense.

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