O estudo da relação entre o exercício físico e o bem-estar começou a ser explorado mais amplamente a partir da segunda metade do século (Romano, da Silva, Peixoto, y Valentini, 2023). Uma parcela significativa das pessoas que se exercitam hoje em dia o faz não apenas pela promoção da saúde física, mas também em busca de bem-estar pessoal (Peixoto, 2021). Isso sugere que a prática de atividades físicas não é apenas vista como uma maneira de manter a saúde do corpo, mas também como uma forma de melhorar o bem-estar emocional e mental (Rocha, Romano, y Peixoto, 2023). Nesse sentido, eudaimonia e hedonia são dois conceitos importantes relacionados ao bem-estar. Eudaimonia refere-se a um senso mais profundo de bem-estar, relacionado ao propósito, enquanto hedonia refere-se ao prazer imediato e à busca de experiências positivas (Huta, 2016). Ambas as orientações na prática de exercício físico implicam na busca por objetivos significativos (como saúde a longo prazo, autoconhecimento e crescimento), bem como à sentimentos positivos durante e após o treino (Romano et al., 2023). Portanto, focar em como o exercício contribui para o desenvolvimento pessoal pode aumentar a motivação e a satisfação, assim como sentir prazer na atividade física pode aumentar a adesão e a motivação. Desta forma, a presente pesquisa objetiva validar a versão brasileira da escala de Motivos Hedônicos e Eudaimônicos (HEM; Nascimento, 2023) para o contexto da prática de exercício físico, estimando as evidências de validade de estrutura interna e precisão, assim como a relação com variáveis externas.
O bem-estar está relacionado com os indivíduos sentirem-se bem e funcionar de forma eficaz em suas vidas. Desta forma, não é necessariamente a sensação de estar bem o tempo todo, mas também de terem as habilidades de experienciar e gerenciar emoções negativas (Nascimento, 2023). Neste sentido, a Teoria da Autodeterminação investiga como as condições biológicas, sociais e culturais influenciam positiva ou negativamente as habilidades humanas imprescindíveis para o desenvolvimento psicológico, engajamento e o bem-estar, tanto de forma global quanto em contextos específicos (Ryan y Deci, 2017). A teoria também explora a conexão entre as Necessidades Psicológicas Básicas e o bem-estar psicológico. Segundo esta teoria, existem três Necessidades Psicológicas Básicas, a saber: competência, autonomia e relacionamentos, as quais podem ter implicações no bem-estar, o qual é compreendido a partir de duas perspectivas: hedonismo e eudaimonismo (Asano, Igarashi, y Tsukamoto, 2020; Ryan y Deci, 2017)
Segundo a abordagem de Huta, a hedonia e a eudaimonia podem ser concebidas como direcionamentos que influenciam o comportamento humano (Huta, 2016). A orientação hedônica está centrada em buscar satisfação imediata e bem-estar de curto prazo, enquanto a eudaimonia se concentra no crescimento pessoal e na busca por significado em experiências vividas com propósito. Nesta última, é dada importância ao processo em si e não apenas aos resultados, diferenciando-se da orientação hedônica que tem uma visão mais imediatista (Braaten, Huta, Tyrany, y Thompson, 2019).
Nesse sentido, Huta e Ryan (2010) estruturaram a escala de Motivos Hedônicos e Eudaimônicos para Atividades (HEMA) com o objetivo de mensurar as concepções hedônicas e eudaimônicas de bem-estar. A escala foi adaptada para vários idiomas, como sueco, alemão, polonês, italiano e japonês (ver Huta, 2016). Entretanto, estudos posteriores demonstraram evidências de que a orientação do tipo hedônica pode ser dividida em dois componentes (Braaten et al., 2019): relaxamento hedônico e prazer hedônico, enquanto a orientação do tipo eudaimônica diz respeito a fazer aquilo que é significativo, mesmo diante das dificuldades para alcançar.
Asano et al. (2020) identificaram, em uma amostra de estudantes japoneses, que um modelo de três fatores demonstrou melhor ajustamento quando comparado ao modelo de dois fatores. As análises fatoriais exploratórias e confirmatórias, indicaram correlações entre as subescalas do HEMA, para orientações de prazer hedônico e relaxamento hedônico (r = 0,58), para hedônico e orientações eudaimônicas (r = 0,56), por fim, para relaxamento hedônico e orientações eudaimônicas (r = 0,26; Asano et al., 2020). A consistência interna do instrumento foram αs > 0,80 para todas as subescalas (orientação hedônica para o prazer, orientação hedônica para relaxamento e orientação eudaimônica). As três subescalas do HEMA apresentaram correlações teste-reteste com uma média r s = 0,51, indicando uma estabilidade temporal significativa dessas orientações ao longo do tempo (Asano et al., 2020).
Em relação a adaptação da HEEMA para o português brasileiro, Nascimento (2023) realizou o processo de adaptação transcultural e avaliou evidências de validade com base na estrutura interna, precisão e relação com outras variáveis em uma amostra de estudantes universitários no contexto de atividades acadêmicas. Os resultados corroboraram a estrutura interna composta por três fatores, em acordo com o modelo teórico, bons níveis de precisão (ω variando entre 0,790 e 0,814). As relações com as variáveis externas indicaram que a motivação hedônica apresentou relação significativa com os fatores de bem-estar psicológico, exceto relação positiva com outros e menor significância em autonomia, mostrando que mesmo não valorizando conexões positivas, reconhece a importância das interações sociais que enfatizam a busca por prazer. A motivação eudaimônica obteve correlações positivas e significativas com todas as dimensões do bem-estar psicológico, o que indica a forte correlação desta motivação para realizar atividades e crescimento pessoal, propósito na vida e autoaceitação (Nascimento, 2023).
Quanto a aplicação do instrumento no contexto do exercício físico Silva (2020), que contou participantes portugueses, buscou compreender a relação entre motivações hedônicas, eudaimônicas e extrínsecas e a regulação comportamental para a prática de exercício físico. Os resultados mostraram que quanto maior a motivação eudaimônica, menor são os níveis de motivação intrínseca, identificada e integrada. Por outro lado, quanto maior os níveis de motivação hedônica, maiores serão os níveis de motivação intrínseca, identificada e integrada. O estudo também indicou que quanto maior o índice de motivação extrínseca, menor o índice de motivação introjetada. Adicionalmente, o fator motivação extrínseca apresentou níveis mais elevados entre não praticantes de exercício físico.
Desta forma, autores têm apontado o bem-estar como um construto multifatorial, o qual têm influência de fatores como: autoaceitação, relações positivas com outras pessoas, autonomia, domínio, sobre o ambiente, propósito na vida e crescimento pessoal (Machado y Bandeira, 2012). Diante disso, o exercício físico é tido como um importante gerador de bem-estar nos indivíduos, uma vez que a prática de atividade física contribui para maior satisfação com a vida, emoções positivas, autoeficácia, autoconfiança e competência física (Trajković, Mitić, Barić, y Bogataj, 2023). Sendo assim, faz-se relevante a existência de um instrumento que avalie os fatores de bem-estar como as motivações hedônicas, eudaimônicas e extrínsecas no contexto esportivo, uma vez que este é um contexto que pode ser usado como potencializador da qualidade de vida dos indivíduos.
Embora a literatura demonstre a importância dos conceitos avaliados pela HEEMA ao contexto do exercício físico, ainda são escassos estudos que explorem as potencialidades do conceito na realidade brasileira. A fim de oferecer contribuições para o preenchimento desta lacuna a presente pesquisa teve como objetivo estimar evidências de validade baseadas na estrutura interna e precisão da Escala de Motivações Hedônicas, Eudaimônicas e Extrínsecas aplicada ao contexto do exercício físico brasileiro, bem como investigar redes nomológicas com variáveis externas, a saber: mindfulness, satisfação de frustração das necessidades psicológicas e paixão pelo exercício. Espera-se, portanto, que os indicadores da HEEMA, especificamente a motivação hedônica e eudaimônica, se relacionem positivamente com mindfulness na prática de exercício físico, paixão harmoniosa pela atividade, bem como a satisfação de necessidades psicológicas básicas, visto que dizem respeito a busca por experiências significativas na prática do exercício físico (ver Vallerand y Verner-Fillion, 2020; Rodrigues et al., 2019; Ryan y Deci, 2017; Ullrich-French, Cox, y Huong, 2022). Enquanto a motivação extrínseca deve relacionar-se positivamente com a frustração das necessidades psicológicas básicas e a paixão obsessiva, já que pressões externas podem prejudicar a manutenção da prática (ver Vallerand y Verner-Fillion, 2020; Rodrigues et al., 2019; Ryan y Deci, 2017).
Método
Participantes
A amostra foi composta por 232 participantes, com idades entre 18 e 67 anos (M= 29,5, DP = 11,2), sendo que destes 75,9% identificaram-se como mulheres cisgênero (21,1% homens cisgênero, 2,2% não-binários e 0,9% preferiram não informar). Dentre os respondentes, 67,2% eram brancos, 21,6% pardos, 7,3% pretos e 3,0% amarelos, sendo que 76,3% destes residiam na região Sudeste. Em relação ao estado civil, 65,1% indicaram ser solteiros, 29,7% casados/união estável, 4,7% divorciados/desquitados. No que tange a formação, 35,8% indicaram estar cursando o Ensino Superior, 25,9% Pós-Graduação completa, 15,5% Ensino Superior completo, 10,3% Pós-Graduação incompleta, 9,5% Ensino Superior incompleto e 3,0% Ensino Médio completo. Sobre a renda familiar, 25,9% indicaram renda familiar de 1 a 3 salários-mínimos, 20,3% de 5 a 7 salários-mínimos, 20,3% acima de 10 salários-mínimos, 19,0% de 3 a 5 salários-mínimos, 10,8% de 7 a 10 salários-mínimos e 3,9% até 1 salário-mínimo. Por fim, 53,9% afirmaram indicar praticar exercício físico com outras pessoas.
Instrumentos
Questionário sociodemográfico. O questionário foi desenvolvido especificamente para a presente pesquisa com o intuito de reunir informações pertinentes sobre os participantes, como sexo, idade, nível educacional, região em que habita e exercício físico praticado.
Escala de Motivações Hedônica, Eudaimônica e Extrínseca no Exercício (HEEMA; adaptada deNascimento, 2023). A escala tem como objetivo avaliar motivações do tipo hedônica, eudaimônica e extrínseca para prática de exercícios físicos. A HEEMA é composta por 15 itens que são dispostos em três fatores: hedônico (5 itens - “Buscando relaxar?”), eudaimônico (5 itens - “Procurando desenvolver uma habilidade, aprender ou obter conhecimento sobre algo?) e extrínseco (5 itens - “Buscando ser popular e ter uma imagem social atraente?). Os itens são respondidos por meio de uma escala tipo Likert de sete pontos (variando entre 1 = “Nada” e 7 = “Muito”. Os motivos são compreendidos orientados ao bem-estar, sendo assim, a escala é dividida em 3 fatores: No estudo conduzido por Nascimento (2023), a escala demonstrou bons índices de precisão (ômega: hedônica = 0,849; eudaimônica = 0,829; extrínseca = 0,829), semelhantes aos encontrados no presente estudo (ômega: hedônica = 0,849; eudaimônica= 0,827; extrínseca = 0,867).
State Mindfulness Scale for Physical Activity (SMS-PA2,Ullrich-French et al., 2022). A escala tem como objetivo avaliar o estado de atenção plena durante a prática de exercício físico e esportes, que são mensurados a partir de 19 itens que são distribuídos em quatro fatores: monitoramento da mente (6 itens - "Eu estava ciente das diferentes emoções que surgiram em mim"), monitoramento do corpo (6 itens - "Eu me concentrei no movimento do meu corpo"), aceitação da mente (3 itens - "Eu deixei meus pensamentos/emoções apenas serem sem me fixar neles") e aceitação do corpo (4 itens - "Eu estava bem com as sensações físicas em meu corpo"). Os itens são respondidos por meio de uma escala Likert de cinco pontos (variando entre 1 = “discordo totalmente” e 5 = “concordo totalmente”). A versão adaptada para o Brasil (Peixoto et al., 2024) demonstrou bons indicadores de precisão para todos os fatores (ômega variando entre 0,731 e 0,899), semelhantes aos resultados encontrados no presente estudo (ômega: MM = 0,870, MF = 0,898, AM = 0,717, AF = 0,830).
Basic Psychological Need Satisfaction and Frustration Scale in Exercise (BPNSFS-E;Rodrigues et al., 2019). A escala tem como objetivo avaliar a satisfação e a frustração das necessidades psicológicas básicas no exercício físico. A BPNSFS-E é composta por 24 itens dispostos em 6 fatores: satisfação de autonomia (4 itens - “Tenho uma sensação de escolha e liberdade nas coisas que eu faço”), frustração de autonomia (4 itens - “Sinto que a maioria das coisas que faço é por ‘obrigação”), satisfação de competência (4 itens - “Sinto-me confiante que posso fazer as coisas bem”), frustração de competência (4 itens - “Na maioria das vezes, sinto-me desapontado com o meu desempenho”), satisfação de relacionamento (4 itens - “Sinto que as pessoas com quem eu me preocupo também se preocupam comigo”) e frustração de relacionamento (4 itens - “Sinto-me excluído do grupo ao qual eu quero pertencer”). A escala é respondida a partir de uma escala Likert de cinco pontos (variando entre 1 = “discordo totalmente” e 5 = “concordo totalmente”). A versão adaptada para a população brasileira suportou a aplicação da escala, demonstrando bons indicadores de precisão (ômega variando entre 0,79 e 0,89) (Romano et al., 2024).
Escala de Paixão pelo Exercício Físico (EP,Vallerand et al., 2003). A escala tem como objetivo mensurar a paixão a partir de dois fatores: paixão harmoniosa (6 itens - “A prática deste esporte se harmoniza bem com as outras atividades em minha vida”) e paixão obsessiva (6 itens - “Tenho dificuldades em controlar meu desejo de praticar meu esporte”), que são baseados no Modelo Dualístico da Paixão (MDP, Vallerand et al., 2003) que são respondidos a partir de uma escala do tipo Likert de sete pontos (variando entre 1 = “não concordo” e 7 = “concordo plenamente”. Em relação as propriedades psicométricas da escala, a versão brasileira apresentou estrutura interna correspondentes a versão original, assim com bons indicadores de precisão para ambos os fatores, a saber: Alfa de Cronbach PH= 0,810 e PO= 0,750 (Peixoto, Nakano, Castillo, Oliveira, y Balbinotti, 2019), resultados que são corroborados no presente estudo (ômega: PH = 0,849, PO = 0,828).
Procedimentos
Aspectos éticos. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-USF) sob número (CAAE: 31959220.6.0000.5514) e seguiu os preceitos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD nº 13.709/1819 - BRASIL, 2018). Os participantes foram orientados em termos de objetivos do estudo, confiabilidade dos dados coletados e utilização em pesquisas, tendo sido solicitados em confirmar sua participação via aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A coleta dos dados foi realizada por meio de questionário online na plataforma Google Forms, sendo divulgada em redes sociais e lista de contato dos autores. Ao concordar com a participação os sujeitos eram direcionados aos instrumentos na seguinte ordem: Questionário sociodemográfico, Escala de Motivação Hedonica, Eudaimônica e Extrínseca (HEMMA), State Mindfulness Scale for Physical Activity (SMS-PA2), Escala de Satisfação e Frustração das Necessidades Psicológicas Básicas no Exercício (BPNSFS-E) e Escala de Paixão pelo exercício (EP). O tempo médio de resposta aos instrumentos foi de 20 minutos.
Análise de dados
Inicialmente, para avaliar a estrutura interna da HEEMA, foi empregada uma Análise Fatorial Confirmatória (AFC), com método de estimação robusto Weighted Least Square Mean and Variance Adjusted (WLSMV), em função do nível ordinal das variáveis e distribuição não normal. Foram adotados os seguintes indicadores para avaliar o ajuste de dados: χ2, graus de liberdade (gl), Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA), Comparative Fit Index (CFI) e Tucker-Lewis Index (TLI), empregados comumente pela literatura (Muthén y Muhtén, 2017). E para interpretação dos resultados, utilizou-se como valores de referência: χ 2 /df < 5, RMSEA < 0,08, CFI e TLI > 0,90 (Tabachnick y Fidell, 2019). Para verificar a consistência interna, foi estimado os coeficientes alfa de Cronbach e ômega de McDonald e, valores iguais ou superiores a 0,7 foram considerados como bons (Tabachnick y Fidell, 2019) Por fim, com o intuito de reunir evidências de validade baseada na relação com outras variáveis, foi realizada a análise de correlação de Pearson, e as interpretações dos resultados foram baseadas na classificação proposta por Cohen (1988): -0,09 a 0,09 descritas como nulas, 0,1 a 0,29 pequenas, 0,30 a 0,49 médias e 0,5 a 1 grandes. O conjunto de dados que suporta os resultados deste estudo está disponível mediante solicitação.
Resultados
Inicialmente para estimar evidências de validade baseada na estrutura interna da Escala de Motivações Hedônicas, Eudaimônicas e Extrínsecas no exercício físico na população brasileira, foi realizada uma análise fatorial confirmatória. Os resultados indicaram bons índices de ajustes (χ 2(gl) = 331,428(87)* RMSEA = 0,108 I.C. 90% (0,096 - 0,120); CFI = 0,945; TLI = 0,933) para o modelo. Como é possível observar na Tabela 1, as cargas fatoriais variaram entre 0,571 e 0,937. As médias dos itens variaram entre 2,07 e 5,90, sendo que os itens 4 e 9 apresentaram as médias mais altas, mostrando-se itens mais facilmente endossados pela amostra. Enquanto o item 13 apresentou a média mais baixa, e portanto, menos endossado. A assimetria dos dados variou entre -1,56 e 1,64, com a maior parte dos itens apresentado valores negativos, os quais indicam que a maioria dos escores está concentrada à direita da distribuição. A curtose variou entre -1,50 e 2,26, com maior parte dos itens apresentando valores positivos, sugerindo uma distribuição levemente leptocúrtica. A discriminação dos itens, que variou de 0,46 a 0,85, reflete a capacidade de cada item de diferenciar entre participantes com diferentes níveis de habilidade. Ademais, foram verificados bons índices de precisão para os fatores (ver Tabela 1).
Tabela 1: Modelo fatorial confirmatório da HEEMA.

Nota: * p< 0,05. Fatores HEEMA: Hed = hedônica, Eud = eudaimônica, Ext = extrínseca.
No que diz respeito a correlação entre os fatores, a correlação entre os fatores Hedônico e Eudamônico assim como Eudaimônico e Extrínseco foram positivas e estatisticamente significativas (p<0,05), com magnitudes que variaram entre moderadas a fortes. As médias das dimensões variaram entre 32,7 e 16,7. Os indicadores de assimetria e curtose das distribuições sugerem distribuição com aderência a normalidade, permitindo a utilização de análises de correlação paramétricos (ver Tabela 2).
Tabela 2: Correlação entre os fatores e análises descritivas

Nota: *p < 0,05. Fatores HEEMA: Hed = hedônica, Eud = eudaimônica, Ext = extrínseca.
Em seguida, para investigar as redes nomológicas estabelecidas entre motivação hedônica, eudaimonica e extrínseca e outras variáveis, foi realizada uma análise de correlação com índice de Pearson (r) e os resultados são expostos na Tabela 3. Nota-se que a dimensão hedônica se relaciona significativa e positivamente com a dimensão eudaimônica, demonstrando alta magnitude nesta relação. A dimensão extrínseca relaciona-se significativa e positivamente com as dimensões hedônica e eudaimônica com magnitudes pequenas. As dimensões de motivações com orientação hedônica e eudaimônica relacionaram-se significativa e positivamente, com magnitudes pequenas e moderadas, com as variáveis que compõe o mindfulness (monitoramento mental, monitoramento físico, aceitação mental e aceitação física), bem como os fatores que compõe as necessidades psicológicas básicas (satisfação da autonomia, satisfação de relacionamentos, satisfação da competência, e os indicadores de paixão pelo exercício (paixão obsessiva e paixão harmoniosa). Entretanto, a dimensão eudaimônica relacionou-se significativa e negativamente, com magnitudes pequenas com frustração da autonomia e frustração de competência. Por fim, a dimensão extrínseca associou-se significativa e positivamente, com magnitudes pequenas, com frustração da autonomia, frustração de relacionamentos e paixão obsessiva.
Tabela 3: Correlação entre as escalas de Motivação Hedônica, Eudaimônica e Extrínseca, Mindfulness, Satisfação das Necessidades Psicológicas Básicas e Paixão pelo Exercício Físico.

Nota: . * p < .05; HED = Hedônica; EUD = Eudaimônica; EX = Extrínseca; MM = Monitoramento Mental; MF = Monitoramento Físico; AM = Aceitação Mental; AF = Aceitação Física; SATAUT = Satisfação da Autonomia; FRUAUT = Frustração da Autonomia; SATREL = Satisfação de Relacionamento; FRUTREL = Frustração de Relacionamento; SATCOM = Satisfação da Competência; FRUCOM = Frustração da Competência; PO = Paixão Obscessiva; PH = Paixão Harmoniosa.
Discussão
No presente estudo foram investigadas evidências de validade com base na estrutura interna, nas relações com outras variáveis e na confiabilidade para a versão da Escala de Motivações Hedônicas, Eudaimonicas e Extrínsecas (Huta, 2016) no contexto do exercício físico em uma população brasileira. De forma geral, os resultados demonstraram a adequação do instrumento em sua versão brasileira e corroboram o estudo proposto por Nascimento (2023). Os resultados encontrados confirmaram as hipóteses iniciais, visto que as motivações com orientação hedônica e eudaimônica relacionaram-se positivamente com indicadores de mindfulness, satisfação das necessidades psicológicas básicas e paixão harmoniosa pelo exercício, e a motivação extrínseca relacionou-se positivamente com frustração das necessidades psicológicas básicas e paixão obsessiva.
Os resultados do estudo contribuem, a partir dos dados empíricos, demonstrando que o modelo de três fatores avalia de forma adequada o construto, bem como apresenta índices de consistência interna adequados para todos os fatores. Esses resultados indicam que o instrumento pode estimar os escores dos fatores que compõem as motivações para prática de exercício com um baixo nível de erro associado à medição (Tabachnick y Fidell, 2019). Resultados semelhantes foram encontrados para versão original em inglês (Huta, 2016), em português brasileiro (Nascimento, 2023), em grego (Koumantarou et al., 2021), chinês (Lin y Chan, 2020), japonês (Asano et al., 2020).
Quanto a investigação das redes nomológicas, as dimensões de motivações com orientação hedônica e eudaimônica relacionaram-se significativa e positivamente, com magnitudes pequenas e moderadas, com as variáveis que compõe o mindfulness (monitoramento mental, monitoramento físico, aceitação mental e aceitação física). Contudo, a motivação hedônica apresentou correlação de maior magnitude com a aceitação física. A literatura tem identificado relevância da aceitação das experiências e sensação física para o estabelecimento de uma relação saudável com o exercício físico (Ullrich-French et al., 2022; Peixoto et al., 2024). Especificamente, a motivação hedônica está associada a recompensas imediatas e prazer, dessa forma, quando os indivíduos se engajam em exercícios físicos por prazer intrínseco (como a sensação de bem-estar durante a atividade), eles tendem a estar mais presentes no momento (Ullrich-French et al., 2022). Portanto, a busca por experiências agradáveis e a conexão com o próprio corpo durante o exercício podem aumentar a atenção plena. Nesse sentido, em consonância com a perspectiva teórica (Huta, 2016) os resultados da presente pesquisa sugerem a maior potencialidade deste tipo de relação quando a motivação está orientada para experiências de prazer durante a prática de exercícios.
Quanto aos fatores que compõem as necessidades psicológicas básicas (satisfação da autonomia, satisfação de relacionamentos, satisfação da competência), observa-se correlações de magnitude mais elevadas para relações com a motivação eudaimônica. Tais resultados são coerentes com o modelo teórico do bem-estar eudaimônico que está baseado na concepção de autorrealização (Braaten, et al., 2019). Sabe-se que a motivação eudaimônica está relacionada ao crescimento pessoal, propósito e significado, e envolve a busca por atividades que contribuam para o desenvolvimento do indivíduo e estejam alinhadas com seus valores e aspirações (Nascimento, 2023). Já a teoria da autodeterminação (Ryan y Deci, 2017) sugere que a satisfação das necessidades psicológicas básicas (autonomia, competência e relacionamento) está ligada ao bem-estar. Desse modo, a relação positiva entre esses fatores está enraizada na busca por experiências significativas, autênticas e alinhadas com os valores pessoais durante a prática de exercícios físicos, que contribuem para a sensação de bem-estar a longo prazo (Ryan y Deci, 2017).
Em relação as frustrações das necessidades básicas, a autonomia se relacionou de forma significativa e negativa com a motivação eudaimônica e de forma positiva e significativa com motivação extrínseca. Ainda, a frustração dos relacionamentos se relacionou de forma positiva e significativa com motivação extrínseca. Por fim, a frustração da competência se relacionou de forma significativa e negativa com a motivação eudaimônica. Sendo assim, os achados do presente estudo estão de acordo com a literatura que sugere que frustrações nas necessidades psicológicas básicas podem conduzir a menores indicadores de bem-estar relacionados à autorrealização (Martela y Sheldon, 2019). Quando essas necessidades não são atendidas ou são frustradas, o indivíduo pode experimentar insatisfação e dificuldade em alcançar seus objetivos a longo prazo (Rodrigues et al., 2019). Nesse sentido, é possível hipotetizar que a falta de autonomia pode levar a sentimento de impotência e diminuir a motivação para buscar metas pessoais, bem como a falta de competência pode levar a baixa autoestima e desencorajar o desenvolvimento pessoal. Ademais, sabe-se que a motivação extrínseca envolve a busca por recompensas externas, e essas recompensas não estão intrinsecamente ligadas à atividade em si (Huta, 2016). Quando as pessoas se concentram excessivamente nas recompensas externas, podem negligenciar suas necessidades psicológicas básicas (autonomia, competência e relacionamento) (Nascimento, 2023).
Por fim, destaca-se a relação com os indicadores de paixão pelo exercício (paixão obsessiva e paixão harmoniosa), onde se observa que as motivações hedônicas e eudaimônicas se relacionam com magnitudes mais altas no fator de paixão harmoniosa, quando comparado os índices de correlação de paixão obsessiva, uma vez que estas variáveis estão mais relacionadas com o engajamento autônomo e intrínseco dos indivíduos (Vallerand y Verner-Fillion, 2020). Nesse sentido, as motivações do tipo eudaimônicas e hedônicas desempenham um papel importante na construção da paixão harmoniosa e vice-versa, visto que esse tipo de paixão pela prática de exercícios físicos é nutrido pela combinação de prazer imediato e significado pessoal a longo prazo (Vallerand et al., 2003).
Por outro lado, a paixão obsessiva teve correlação mais alta com a motivação extrínseca, o que corrobora com os dados da literatura, uma vez que essas variáveis estão relacionadas com fatores extrínsecos aos indivíduos (Vallerand y Verner-Fillion, 2020). A paixão obsessiva é caracterizada por um foco intenso e compulsivo por uma atividade ou objetivo. Essa busca por resultados pode estar alinhada com a motivação extrínseca, que é impulsionada por recompensas externas, visto que a paixão obsessiva muitas vezes está ligada a pressões sociais e expectativas, seja do próprio indivíduo como daqueles que o cerca (Vallerand et al., 2003; Vallerand y Verner-Fillion, 2020).
Vale ressaltar que a dinâmica das estimativas de relação com variáveis externas à HEEMA é relevante para compreensão da própria estrutura interna do instrumento observada na presente pesquisa, em especial no que diz respeito as correlações entre os fatores motivação hedônica e eudaimônica. Pois embora os dois fatores guardam forte relação entre si, podendo levar a compreensão de se tratar do mesmo construto, a maneira como essas variáveis fatores se relacionam com as variáveis externas corrobora a perspectiva teórica (Huta, 2016) e achados de pesquisa (Nascimento, 2023) de se tratar de variáveis distintas. Pois, foi possível observar associações de maior magnitude da orientação hedônica com indicadores de satisfação e prazer, ao passo que a orientação eudaimônica mostrou-se mais fortemente associada aos indicadores de autorrealização e engajamento com o exercício.
A partir do exposto, sugere-se que a HEEMA, escala empregada na presente pesquisa, demonstrou evidências de validade para a aplicação no contexto do exercício físico. A escala investiga a motivação para a prática de exercícios e, configura-se como uma importante ferramenta para a compreensão, e ampliação da literatura empírica, de como as motivações influenciam o engajamento das pessoas no exercício físico. E, consequentemente, como os tipos de motivação podem estar relacionados positivamente com outros fatores que são eliciados no ambiente de prática, como o contato com o momento presente, a satisfação das necessidades psicológicas básicas e o tipo de paixão que é desenvolvida pela prática, variáveis investigadas no presente estudo.
Investigar os diferentes tipos de motivação para prática de exercício físico é fundamental para compreender como as pessoas se engajam nessa atividade e quais fatores influenciam seu comportamento (Rocha et al., 2023). Os diferentes tipos de motivação (hedônica, eudaimônica e extrínseca) refletem os aspectos que levam as pessoas a se exercitarem e, ao entender esses fatores, podemos projetar intervenções mais eficazes para promover o exercício físico. A motivação intrínseca (hedônica e/ou eudaimônica) está associada a uma maior adesão e persistência na prática de exercícios (Asano et al., 2020; Huta, 2016). Compreender como essas motivações influenciam o engajamento a longo prazo é crucial para desenvolver estratégias que mantenham as pessoas ativas (Romano et al., 2023). Ademais, compreender como fatores externos (como metas de desempenho ou aprovação social) afetam a saúde física e mental dos sujeitos é importante para orientar estratégias de promoção do exercício de forma real e saudável (Peixoto, 2021).
Por fim, investigar como outras variáveis se relacionam com os diferentes tipos de motivação é crucial para obter uma compreensão ainda mais abrangente do comportamento humano na prática de exercícios (Peixoto, 2021). De forma geral, explorar essas variáveis em conjunto, como o mindfulness, satisfação das necessidades psicológicas e paixão pelo exercício, permite compreender os processos que impulsionam o comportamento de exercício físico e, além disso, capacita o desenvolvimento de estratégias mais eficazes para promover a saúde e o bem-estar das pessoas por meio da prática do exercício físico.
Considerações finais
O constante aprimoramento das pesquisas em Psicologia Positiva tem impulsionado uma compreensão mais aprofundada acerca do bem-estar. Nesse contexto, este estudo oferece contribuições ao reunir evidências de validade para a Escala de Motivações Hedônica, Eudaimônica e Extrínseca no Exercício (HEEMA) que operacionaliza os diferentes tipos de motivação para a prática de exercício físico. A partir dos resultados obtidos na presente pesquisa é possível inferir que os objetivos estabelecidos, de estimar evidências de validade, foram alcançados e, ainda, as hipóteses elencadas, a partir da proposta teórica foram confirmadas. Sugerindo a potencialidade do instrumento que pode ser utilizado por pesquisadores e profissionais brasileiros no contexto do exercício físico. Contudo, limitações do estudo podem ser indicadas, como a amostra por conveniência e pouco representativa, já que foi composta majoritariamente por pessoas cisgênero e residentes da região Sudeste do Brasil. Ainda, como direcionamentos futuros, sugere-se que novas evidências de validade sejam investigadas, como a verificação das propriedades dos itens via TRI, bem como novos modelos conceituais sejam testados.