O trabalho pode ser compreendido como uma categoria estrutural do ponto de vista individual e social, um elemento basal para o entendimento da esfera econômica e social. A atividade permite a integração do ser humano à natureza, sendo que, por meio desta atividade, o ser humano se envolve em sociedade e na produção de elementos que garantam suas necessidades (Satuf y Neves, 2021; Vieira y Costa, 2024). O trabalho possui um papel essencial na geração de valor social, visto que, além de propiciar a subsistência econômica, é um meio pelo qual as pessoas constroem suas identidades e atribuem sentido às suas existências.
O mundo do trabalho passou por diversas modificações ao longo das últimas décadas, tendo sido marcado por fatores como a flexibilização e a precarização. A adoção de tecnologias na produção levou à substituição de mão de obra humana, aumento das taxas de desemprego e dualidade no mercado de trabalho, culminando em uma suposta crise do trabalho assalariado, em que se vislumbraria a perda do poder do trabalho como um elemento de integração do indivíduo à sociedade.
Contudo, em perspectiva contrária às teses sobre o fim do trabalho, ainda que estejamos diante da vivência de um “trabalho moribundo”, não é possível atestarmos o fim do trabalho, especialmente no que se refere à sua perspectiva ontológica (Filgueiras y Antunes, 2020). Mesmo diante de uma nova morfologia, fortemente permeada pela alienação, a centralidade do trabalho se faz presente. Pode-se afirmar que o cenário atual no mundo do trabalho é permeado de contradições: de um lado temos a perenidade do trabalho, atividade essencial para a produção de riqueza, do outro, ele revela uma face marcada pela precarização, que se manifesta pela “intensificação da desqualificação e até mesmo uma subproletarização em trabalhos precários” (Antunes, 2022, p. 35). Ainda assim, ele permanece como uma forma motriz da sociedade, sendo a principal mercadoria para geração de valor.
Diante dessas características, a maneira como o trabalho é vivenciado, bem como os significados atribuídos a ele, não se revelam da mesma maneira para todos. A relação que se estabelece com o trabalho, bem como a centralidade atribuída a essa categoria, podem se diferenciar diante de algumas características individuais e sociais. Ademais, as condições em que a atividade é realizada, bem como as alterações nas estruturas e processos de trabalho contribuem de maneiras distintas para a construção de seus significados (Satuf y Neves, 2021). Dentre essas características, podemos citar os diferentes níveis socioeconômicos, já que, segundo o MOW (1987), os fatores socioeconômicos correspondem a um dos antecedentes dos significados do trabalho.
Assim, em sociedades marcadas por elevados índices de desemprego, a percepção de justiça distributiva pode sofrer alterações, com tendência a atribuição de maior centralidade ao trabalho. Em contextos marcados por elevada desigualdade social e menor distribuição de riquezas, como é o caso do Brasil, percebe-se uma tendência à valorização dos elementos da vida que são mais carentes, e, somente a medida que as condições econômicas e sociais melhoram, as prioridades se alteram (Satuf y Neves, 2021). Deste modo, o trabalho seria mais valorizado por ser o principal meio de acesso e garantia a bens materiais e de subsistência.
Esse processo pode evidenciar até mesmo relações de poder envolvidas na delimitação dos requisitos e credenciais necessários para acesso aos trabalhos mais bem remunerados e mais valorizados no mercado de trabalho, e que fomentam a desigualdade social. Relações estas que não são naturais, mas estabelecidas socialmente em contextos de desigualdades.
Nota-se que, nesse processo, a escolarização, vista como uma ferramenta para mobilidade social, é utilizada como um requisito para seleção de profissionais no mercado de trabalho, constituindo um critério intimamente relacionado ao interesse dos dirigentes de garantir com que o capital cultural e simbólico seja distribuído prioritariamente entre ocupantes de posições mais altas, deixando as mais baixas desprovidas destes e, portanto, desbalanceadas em relação ao poder. Nesse sentido, a instituição escolar é marcada por uma característica de dualidade, em que se destaca um modelo educacional destinado às elites, com foco na formação intelectual e, de outro lado, uma escola para as massas de trabalhadores, destinada à formação de habilidades profissionais (Caffagni, 2024).
Deste modo, percebe-se que a função da escola é majoritariamente de cunho social, cujo intuito é capacitar trabalhadores de origem social mais baixa para que sejam dóceis e acatem ordens com naturalidade, cabendo a estes os cargos de base na hierarquia organizacional. Complementarmente, quando se trata de pessoas provenientes de classes sociais mais altas, a escola busca promover o autodirecionamento e a capacidade de tomada de decisão, características de posições hierárquicas mais elevadas, necessárias ao comando e gestão de pessoas. Esse modo de socialização é reproduzido pelas famílias, retroalimentando o processo (Caffagni, 2024). Por meio desse mecanismo, as classes dominantes conservam o monopólio de posições de prestígio.
Grande parte das publicações sobre os sentidos e significados do trabalho se concentram nas diferenciações neste processo de significação mediante categorias e áreas de atuação profissionais, deixando de lado outros elementos que podem contribuir na atribuição desses sentidos. Esta investigação se propõe a contribuir para a literatura científica ao buscar compreender como alguns fatores sociais reverberam na construção de representações partilhadas socialmente sobre os significados do trabalho, contribuindo para sua diferenciação. Assim, o objetivo central desta investigação é, por meio de uma pesquisa de natureza mista, analisar o modo como elementos sociais, em especial aqueles associados ao NSE, se relacionam com os sentidos e significados compartilhados sobre o trabalho.
O trabalho e seus significados
As concepções e os valores atribuídos ao trabalho sofreram diversas transformações ao longo de nossa história. Em períodos como a Antiguidade Clássica (Satuf, 2021), o trabalho, assim como o trabalhador, era desprezado e o ócio valorizado. Vigorava a ideia de que o excesso de trabalho tolheria a liberdade humana, que ficaria subordinada à pecúnia. A atividade, associada à punição ou à possibilidade de expiação de pecados, era avaliada de modo negativo e dotada de baixa centralidade, estando, portanto, desprovida de um sentido ontológico. Somente com a Reforma Protestante, que contribuiu para que o trabalho vocacionado fosse elencado como o principal meio para obtenção da graça divina, tal concepção negativa passa a ser superada. Neste sentido, o trabalho se consolida como instância primordial, atuando tanto na conformação de subjetividades quanto na legitimação do pertencimento (Satuf, 2021). Este aspecto reforça a percepção da ética racional do trabalho, tido como atividade essencial para garantia da dignidade (Weber, 2004).
Como reflexo deste ideário, dissemina-se a ideia de que aquele que não trabalha não tem utilidade para a comunidade, uma visão que se perpetua na atualidade. O trabalho é a atividade pela qual o ser humano se integra à natureza, transformando-a, de maneira intencional, conforme suas necessidades e objetivos. Na medida em que os indivíduos produzem os meios de sua subsistência, conformam, de maneira simultânea, a sua existência material. Este processo dialético implica na transformação da natureza humana, mediante o desenvolvimento das capacidades produtivas. Deste modo, a organização social deriva diretamente das forças produtivas disponíveis, em um movimento que tem o trabalho como instância fundamental de reprodução da sociedade (Marx y Engels, 2002).
No entanto, sob os moldes do capital, o trabalho é permeado pela desumanização, tornando-se estranho ao trabalhador, que encerra sua vida em um objeto que não lhe pertence. O modelo de produção capitalista se consolidou, a partir da divisão do trabalho, a dualidade entre a concepção e a execução do trabalho, fazendo com que “a atividade intelectual e a atividade material - o gozo e o trabalho, a produção e o consumo - acabam sendo destinados a indivíduos diferentes” (Marx y Engels, 2002, p. 27). É importante destacar que a distribuição generalizada do conhecimento constitui um forte entrave para o pleno funcionamento do capitalismo, e, neste sentido, a concentração deste saber nas mãos de poucos se fez fundamental para sua manutenção. Uma das instituições que se propõe a disseminar o conhecimento em acordo com as posições socialmente ocupadas é a escolar.
No contexto atual, tem-se uma realidade em que a centralidade do trabalho é permeada por ambiguidades. Embora esta centralidade se mantenha, esta categoria é marcada por uma morfologia permeada por formas de estranhamento e alienação (Antunes, 2022). Contudo, embora atravessado por contradições fundamentais, que oscilam entre a compulsão e a criação, entre mera subsistência e construção identitária, o trabalho persiste como categoria incontornável, inviabilizando qualquer prognóstico sobre o fim da sociedade do trabalho. Este cenário suscitou a emergência de estudos que visam identificar as diferentes percepções, valorações e significações atribuídas a esta categoria mediante tais transformações.
Os estudos sobre os significados do trabalho geralmente estão embasados em conceitos desenvolvidos nos campos da Psicologia e da Sociologia (Costa, Paiva, y Rodrigues, 2022). Na perspectiva psicológica, tem-se a ênfase no trabalho como alicerce identitário, cujos significados emergem de interpretações subjetivas das vivências laborais. Por outro lado, a vertente sociológica reconhece o trabalho como eixo estruturante da organização social, de modo que sua avaliação como mais ou menos significativa, resulta da influência de sistemas de valores sociais e culturais. Deste modo, o significado do trabalho, seu papel na estrutura coletiva e suas conexões com outras dimensões da vida, constituem a base sobre a qual os sentidos do labor são construídos. Nessa ótica, o trabalho adquire valor significativo quando inserido em contextos socioculturais que o reconhecem e legitimam como relevante (Costa et al., 2022).
Em síntese, a avaliação do trabalho é constituída a partir de um conjunto de cognições socialmente moldadas, desenvolvidas tanto na fase pré-laboral quanto durante o processo de socialização profissional. Essas percepções são dialeticamente influenciadas por fatores contextuais, como as normas sociais e os valores culturais, bem como subjetivos, pautados pelas experiências individuais, configurando-se como um fenômeno ao mesmo tempo coletivo e singular. Envolvem, portanto, representações sociais da atividade para o sujeito, sendo essas conformadas com base na percepção individual e social da categoria trabalho (Tolfo y Piccinini, 2007).
Dentre os estudos seminais sobre os significados do trabalho, destacam-se as pesquisas conduzidas pelo grupo Meaning of Work Research Team (MOW, 1987), que influenciaram uma série de investigações sobre esta temática (Vieira, Gomes Neto y Grangeiro, 2022). A equipe de pesquisadores do grupo MOW (1987), composta por pesquisadores de diversas áreas, como Psicologia, Sociologia, Economia e Gestão, buscou identificar e comparar os significados do trabalho entre participantes de oito países. O conceito de significados do trabalho adotado pelo grupo tem como elemento fundamental a centralidade do trabalho, mas também contempla as dimensões formadas pelas normas sociais e resultados valorizados no trabalho.
O modelo heurístico desenvolvido pelo MOW (1987) compreende que um conjunto de variáveis condicionais, como a situação pessoal e familiar, o contexto de trabalho e o ambiente socioeconômico influenciam os significados do trabalho, com consequências para as expectativas sobre esta categoria, bem como para o ambiente socioeconômico futuro. Segundo a perspectiva adotada pelo grupo, os significados do trabalho são construídos a partir das experiências e do contexto de trabalho. Por outro lado, as pessoas utilizam estes significados para moldar as estruturas sociais. Assim, as concepções construídas coletivamente sobre o trabalho emergem das interações entre indivíduos, inseridos em redes de interdependência, moldadas pelos habitus e campos que ocupam - os quais são delineados por traços socioeconômicos e estruturais distintos. Esses fatores, por sua vez, condicionam a maneira como os significados do trabalho são interpretados. Nesse processo dialético, essas representações não apenas moldam a construção da realidade social, mas também são por ela constantemente reinterpretadas. Desse modo, os sentidos atribuídos ao trabalho sofrem influência da estrutura social, ao mesmo tempo que a modificam, criando um movimento em que contextos culturais impactam sua interpretação, enquanto essas mesmas interpretações direcionam a organização coletiva e as transformações na sociedade (MOW, 1987).
Neste movimento complexo, a atribuição de significados ao trabalho tende a sofrer influência de aspectos econômicos, sociais e culturais, bem como de fatores individuais e estruturais, como a escolaridade, natureza da atividade desempenhada, experiências de desemprego e idade, dentre outros aspectos (MOW, 1987). Estes aspectos se articulam e refletem em diferentes interpretações sobre o trabalho, refletindo as desigualdades de acesso e condições de trabalho e remuneração patente em nossa sociedade, em que grande parte dos trabalhadores vivencia trabalhos precarizados e mal remunerados. As análises aqui conduzidas buscam integrar estes fatores, de modo a examinar e compreender o modo como influenciam a atribuição de significados ao trabalho.
Metodologia
Esta investigação foi conduzida a partir de uma metodologia mista, composta por análises quantitativas e qualitativas. Os dados utilizados na etapa quantitativa, de natureza secundária, foram obtidos através do projeto intitulado World Values Survey (WVS), em sua sétima onda e referem-se à população brasileira (Haerpfer et al., 2020). O projeto abrange informações sobre diversos valores, condições socioeconômicas e demográficas, bem como atitudes sobre vários domínios, incluindo o do trabalho. Os dados constituem uma amostra probabilística, representativa da população brasileira, constituída por 1762 sujeitos.
A medida do significado do trabalho foi mensurada por meio da variável centralidade absoluta, operacionalizada a partir da seguinte questão: "Qual o grau de importância do trabalho em sua vida?". As opções de resposta variavam de 1 (muito importante) a 4 (não é importante), mas, para fins analíticos, a variável foi transformada em dicotômica, de modo a sinalizar a valorização (ou não) do trabalho e viabilizar a aplicação da Regressão Binária. Segundo o MOW (1987), a centralidade do trabalho é um fator fundamental para compreensão do construto. Um conjunto significativo de investigações sobre a temática dos significados do trabalho (Hajdu y Sik, 2018; Mejía Reyes, 2017) buscou mensurar os significados do trabalho por meio desta variável com dados da WVS, destacando a viabilidade desta variável para aferição da centralidade do trabalho. Adotaremos, portanto, a medida de centralidade do trabalho como indicativo do construto, ainda que se possa discutir sobre suas limitações.
Segundo o MOW (1987), os significados do trabalho sofrem influência de um conjunto de fatores individuais e sociais. O modelo estatístico adotado nas análises quantitativas buscou analisar os efeitos de alguns destes fatores, como sexo, idade, grupo ocupacional, nível socioeconômico e cor ou raça na diferenciação dos significados do trabalho, por meio da Regressão Logística Binária. É importante salientar que, no modelo de questionário adotado na WVS, o sexo foi aferido pelo próprio entrevistador e classificado como masculino ou feminino. O mesmo procedimento foi adotado para classificação do grupo étnico, utilizando-se como referência os grupos indicados pelo IBGE, que utiliza a categorização de cor ou raça como branca, preta, amarela, parda e indígena. O nível socioeconômico e o grupo ocupacional foram informados pelos próprios entrevistados a partir do entendimento que estes possuíam acerca de seus rendimentos, bem como das atividades de trabalho realizadas.
A aplicação da Regressão Logística se faz útil quando o investigador pretende prever o resultado de um conjunto de variáveis preditoras (Field, 2024). Neste caso, a variável dependente deve ser dicotômica e os resultados mutuamente exclusivos e, além disso, as amostras devem ser consideradas de grande tamanho. As análises quantitativas foram realizadas com recurso ao SPSS.
De modo a aprofundar a compreensão sobre algumas diferenciações na construção dos significados do trabalho, o trajeto adotado nesta pesquisa envolve uma etapa qualitativa, o que permite complementar e aprofundar a interpretação dos resultados obtidos por meio das análises quantitativas. A etapa qualitativa foi composta por entrevistas semiestruturadas, conduzidas a partir de um roteiro que abarcou temas como: aspectos pessoais, trajetória laboral, contexto e condições de trabalho, sentidos e significados do trabalho, assim como a relação da categoria trabalho com outras esferas de vida. A definição dos perfis dos entrevistados se orientou conforme as características evidenciadas na etapa quantitativa, de modo a possibilitar a comparação dos significados atribuídos ao trabalho entre os sujeitos.
Para a análise dos dados das entrevistas, adotou-se a análise textual interpretativa, conforme proposta por Javier Gil Flores (1994), com o auxílio do software Atlas.ti. Essa abordagem prioriza a investigação qualitativa, fundamentando-se na premissa de que o significado essencial do discurso não pode ser capturado por meio de sua fragmentação em unidades ou de sua redução a critérios quantificáveis (Gil Flores, 1994). A técnica opera por meio de categorias analíticas, porém seu foco recai sobre o conteúdo semântico dessas categorias, e não sobre a recorrência estatística dos códigos.
Com a aplicação da metodologia mista pretende-se aprofundar a interpretação dos resultados verificados na etapa quantitativa, visando investigar as dimensões subjetivas presentes na relação entre os fatores elencados na Regressão Logística Binária e a atribuição dos significados do trabalho, elucidando o modo como o influenciam. Cumpre destacar que o desenvolvimento desta investigação obteve aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CEP-UFMG), instituição integrante do Sistema CEP-CONEP, que regulamenta os aspectos éticos das pesquisas envolvendo seres humanos no país. Destacamos que algumas análises incluídas neste artigo integram a tese de doutorado (Satuf, 2021), produzida pela autora deste trabalho.
Participantes da pesquisa
Em um primeiro momento, destaca-se a caracterização da amostra de participantes da etapa quantitativa, com dados secundários, oriundos da base de dados da World Values Survey. Quanto ao sexo, 52.6% dos participantes eram mulheres e 47.4% eram homens. Sobre a caracterização da variável cor ou raça, 43.2% eram pardos, 41.1% eram brancos e 14.2% eram pretos, sendo a média de idade de 42.61 anos (DP = 17.13). A maior parte informou pertencer à categoria ocupacional denominada Administração e Serviços (53.6%), os profissionais semiqualificados e não qualificados somaram 32.8%, sendo 13.6% pertencentes à categoria formada por profissionais de Superior e Gestão.
Em relação à situação funcional no momento da coleta dos dados, 33.6% dos participantes não trabalhavam no momento da pesquisa (eram aposentados, estudantes ou donas de casa que não exerciam função remunerada). Os trabalhadores em tempo integral somavam 27.3%, trabalhadores autônomos constituíam 16.3% da amostra e 5.8% eram trabalhadores em tempo parcial. Os desempregados compuseram 16.7% dos respondentes. Adicionalmente, 54.1% dos participantes relataram possuir nível médio de rendimentos, 40.2% indicaram possuir baixo e somente 5.7% dos participantes afirmaram possuir alto nível de rendimentos.
Em consonância com a metodologia proposta, foi aplicada a análise qualitativa, que contou com a análise de dados obtidos por meio de 22 entrevistas, realizadas em Belo Horizonte, Minas Gerais e Juazeiro do Norte, Ceará (JDN), entre outubro/2019 e fevereiro/2020, a partir de uma amostra por conveniência. A tabela 1 apresenta o resumo do perfil dos participantes.
Análise e discussão dos resultados
Inicialmente, são expostos os resultados das análises quantitativas, e, em seguida, os dados obtidos por meio da análise qualitativa. Contudo, em consonância com os objetivos e percurso metodológico adotado nesta investigação, a discussão integra os achados de ambas as análises, visando uma compreensão mais aprofundada sobre o fenômeno estudado.
Com o objetivo de analisar a influência (efeito preditor) do nível socioeconômico e de elementos estruturais em relação aos significados do trabalho, foi adotada a Regressão Logística Binária para as análises quantitativas. Deste modo, são apresentados os efeitos preditores das variáveis elencadas nesta pesquisa. Os resultados da Regressão Logística indicaram que as chances de que as mulheres avaliassem o trabalho como um elemento central foi 31% menor, em comparação aos homens, Exp(B) 0.69, p = .003, indicando menor centralidade do trabalho entre as participantes do sexo feminino. Ademais, quanto maior o nível socioeconômico, Exp(B) 0.86, p = .004, menores as chances de que os respondentes atribuíssem alta centralidade ao trabalho. Ao compararmos os grupos conforme a sua qualificação profissional, verificamos que os trabalhadores da categoria Administração e Serviços indicaram 21% menos chances de atribuir centralidade ao trabalho, Exp(B) 0.709, p = .03, quando comparados ao grupo de trabalhadores formados por profissionais semiqualificados e não qualificados. Já os trabalhadores da categoria ocupacional formada por profissionais de nível superior e gestão reportaram 42% menos chances de atribuir centralidade ao trabalho, Exp(B) 0.585 p = .02 (Cf. Tabela 2).
O modelo estatístico analisou, adicionalmente, o efeito preditor da idade em relação à centralidade do trabalho, indicando que as chances de atribuição de centralidade a esta categoria aumentavam em 3% a cada ano, Exp(B) 1.03, p < .001. Por fim, as análises se voltaram para os efeitos dos vínculos laborais. Neste sentido, tendo como referência os trabalhadores em tempo integral, os indivíduos que se encontravam desempregados no momento da pesquisa indicaram ter 51% vezes mais chances de atribuir centralidade ao trabalho, Exp(B) 1.51, p = .049. Os resultados não indicaram efeitos significativos da variável raça/cor na atribuição dos significados do trabalho. Convém destacar que essa variável, na World Values Survey, foi obtida por meio da heteroidentificação. Além disso, a avaliação do sucesso como resultado do esforço e trabalho duro ou meramente da sorte também não indicou potencial para diferenciação dos significados do trabalho.
Os resultados do Teste de Hosmer e Lemeshow apontam que o modelo com as variáveis independentes apresenta melhor ajuste que o modelo nulo. O modelo estimado reportou chi-quadrado (x2) de 8.52 e p-valor de .384. O teste de Hosmer e Lemeshow é considerado um dos principais testes para avaliação do ajuste geral do modelo, demonstrando maior robustez quando comparado ao teste qui-quadrado comum (Field, 2024).
Tabela 2: Regressão logística binária com a centralidade do trabalho como VD

Nota: *p <0.05; **p <0.01; ***p <0.001.
Posteriormente, passou-se para a segunda etapa, em que se aplicou a análise qualitativa. Foram realizadas 22 entrevistas, que foram gravadas e integralmente transcritas. As etapas de categorização, codificação e análise foram executadas com uso do software Altas.ti. Como critérios de inclusão, foram contempladas as categorias ocupacionais e níveis socioeconômicos indicados na etapa quantitativa.
Os dados quantitativos revelaram uma tendência de maior centralidade do trabalho entre os homens. Contudo, ao aprofundarmos a análise por meio da investigação qualitativa, foi possível perceber que as mulheres apresentavam menor valorização laboral apenas quando não atuavam como principais provedoras do núcleo familiar e nas situações em que foram socializadas predominantemente para funções de cuidado. Por mais que atribuíssem forte importância ao trabalho, algumas entrevistadas relataram que a atividade não ocupava um lugar central em suas vidas, pois não eram responsáveis pelo sustento financeiro da família. O relato da entrevistada E6 ilustra esta percepção:
... eu acho que talvez não seja, na minha situação, por conta que a base lá de casa, financeira, não depende totalmente de mim. Por isso eu não o julgo tão importante, porque não depende totalmente de mim. (...) Tem um grau de importância pelo fato de eu me sentir útil, de me dar uma estabilidade, mas a casa não depende de mim, então por isso que não é tão importante.
Foi possível identificar a reprodução de estereótipos de gênero que associam primordialmente aos homens a responsabilidade pelo provimento familiar. Essa construção social pode ter contribuído para que parte das mulheres entrevistadas não experimentasse cobranças significativas nesse aspecto, o que pode ter impactado sua percepção sobre a importância do trabalho. Os resultados revelam assim uma contradição: mesmo diante do crescente processo de emancipação feminina no mercado de trabalho brasileiro, ainda se verificam padrões de socialização familiar que direcionam as mulheres para atividades de cuidado doméstico, limitando em certa medida sua assunção de obrigações financeiras. Esta socialização reflete nos espaços ocupados no mercado de trabalho, que, no caso das mulheres, são geralmente marcados por condições mais precárias e desvantajosas em relação à remuneração e ao reconhecimento social. Perpetua-se, deste modo, a desigualdade entre gêneros na esfera laboral.
É importante destacar, contudo, que esta percepção não foi consenso entre as entrevistadas. Um conjunto dessas mulheres atribuiu forte centralidade e importância ao trabalho. Como pano de fundo, estava a socialização familiar, principalmente de influência materna, que pregava a valorização da independência e da emancipação por meio do trabalho. Nesta direção, o depoimento da participante E8 reflete a transmissão intergeracional de valores laborais, ao destacar como o exemplo de sua mãe, que defende a dedicação ao trabalho, influenciou na sua concepção sobre a importância do esforço profissional. Similarmente, a entrevistada E9 afirma que: “Essa questão de ser independente eu peguei muito da minha mãe”. O depoimento da entrevistada E11 reforça essa posição:
A família da minha mãe (...) são cinco irmãs que trabalham muito. Cinco irmãs que não precisam dos seus maridos para viver. (...) Na família do meu pai já é o contrário, as mulheres da família dele não trabalham, quem trabalha são os homens. Meu pai nunca foi um símbolo de trabalho, a família dele também, mas já a da minha mãe tem esse peso enorme, que é 'você precisa trabalhar para conseguir suas coisas' ... Cresci com isso (...) e até hoje, ela diz que a gente precisa trabalhar.
Percebe-se, assim, que a valorização da independência financeira entre algumas dessas mulheres emergiu como um elemento estruturante em suas vidas. Nestes contextos, o trabalho ascendeu a uma posição de destaque em suas hierarquias de valores, não sendo identificados indícios de menor centralidade nesta esfera. Verifica-se que a socialização familiar também atua como uma ferramenta para a reprodução das desigualdades no mercado de trabalho (Lucena, 2024). Este processo dissemina a imagem do homem provedor e da mulher cuidadora, o que implica na segregação do acesso a determinadas profissões e cargos, ficando o acesso feminino geralmente restrito a posições mais precárias, marcadas pela informalidade e por menor remuneração (Hirata y Kergoat, 2020), e destaca o aspecto sociossexual da divisão do trabalho (Nogueira, 2024).
Portanto, os resultados indicaram os reflexos de uma socialização familiar que ainda responsabiliza majoritariamente o homem pelo provimento das necessidades financeiras e de sustento familiar. Percebe-se que, mesmo quando inseridas no mercado de trabalho, algumas mulheres se mostravam divididas entre velhos e novos valores, o que reflete a construção de representações sociais do trabalho delimitadas pelo gênero (Lucena, 2024; Nogueira, 2024). Isso influencia na organização social do trabalho, contribuindo para a construção e reprodução de percepções desiguais sobre a qualificação profissional por gênero.
No entanto, os resultados permitiram sinalizar tendências para desconstrução desse estereótipo, principalmente nas famílias chefiadas por mulheres. Nesse contexto, não se verificaram diferenciações entre os significados do trabalho por parte de homens e mulheres. Nas últimas décadas, notamos uma crescente inserção da mulher no mercado de trabalho, no entanto, é importante frisar que a desigualdade ainda permanece, em uma realidade marcada por menores salários, menor jornada laboral, com acesso escasso a posições de maior hierarquia e remuneração. Essas transformações repercutem na centralidade do trabalho para as mulheres, tanto em aspectos quantitativos, em que pese a inserção no mercado de trabalho, como qualitativo, já que atuam majoritariamente em “profissões de produção da vida”, voltadas para a esfera do cuidado (Hirata y Kergoat, 2020, p. 29). Cabe lembrar que o trabalho doméstico tende a invisibilizado e, portanto, não remunerado.
O aprofundamento das análises por meio das entrevistas possibilitou identificar que, entre ocupantes do grupo ocupacional formado por trabalhadores semiqualificados e não qualificados, e, consequentemente com menor remuneração, o trabalho teve, principalmente, o significado de um meio de sustento, voltado para a manutenção e garantia da subsistência, ressaltando uma característica do trabalho assalariado que emergiu com o advento da sociedade capitalista (Vieira et al., 2022). Neste aspecto, pode-se apreender que o trabalho assume centralidade precisamente porque sua privação está substancialmente vinculada à insegurança alimentar e, em última instância, à própria negação da subsistência. O testemunho da entrevistada E12 retrata esta característica:
O que eu mais valorizo é... alimentação... porque, eu acho que é muito triste a pessoa não ter o que comer (...) então, o trabalho ajuda, porque de qualquer maneira a gente diz assim, tô trabalhando e posso comprar minha alimentação e no fim do mês eu tenho como pagar.
Na medida em que estão supridas as necessidades básicas, outros aspectos passam a ser exaltados, pois, nas palavras do entrevistado E17, é “preciso primeiro sobreviver, para depois pensar em doar alguma coisa”. Neste sentido, percebe-se uma significação intrínseca do trabalho, tido como uma atividade que propicia “satisfação, energia ... é uma coisa que me motiva, me desafia... faz sentir também que preciso melhorar sempre, estudar mais... (...) um desafio o tempo todo, tenho que usar minha criatividade, ler bastante, eu me realizo” (E20).
A comparação entre as classes socioeconômicas reforçou os entraves para o acesso a ocupações mais valorizadas socialmente e mais bem remuneradas. O depoimento da entrevistada E21 ilustra essa realidade. Ela iniciou sua trajetória laboral aos 11 anos, desempenhando principalmente funções como babá e empregada doméstica, em uma existência que descreve como “sempre trabalhando, uma vida só de trabalho, mas tem que ser, né?”. Quando indagada sobre seus objetivos e aspirações profissionais na juventude, sua resposta reflete as limitações impostas pelas circunstâncias: “Ah... na época, como não tinha muito estudo, eu sempre tive opção de trabalhar assim, igual eu te falei..., mas... faz parte, né? Eu não tive oportunidade de estudar na época”. Essa narrativa explicita a dicotomia existente entre o chamado "trabalho bom", de acesso restrito, e o "trabalho ruim", frequentemente imposto como única alternativa viável.
(...) tem trabalho que é mais importante que o outro, né? assim, que ganha mais, né? É mais... assim, mais tranquilo, sabe? Você estando trabalhando por exemplo no banco, é mais tranquilo, você tá ali sozinho, tá no computador, não tá no sol quente, não tá pegando peso, é um trabalho importante e ganha mais, né? Como tem trabalho sacrificoso também, né? De você tá trabalhando no sol, como de pedreiro, de servente, mais difícil... agora, vai fazer o quê? Se fosse pra escolher serviço assim era bom demais. (...) Como os meus estudos não eram bons também eu não tinha esse negócio de ficar escolhendo serviço. (E5).
Naturaliza-se uma diferenciação que, por vezes, é difícil de ser explicada, “mas é porque... acho que é... comum, não é não? Sempre uns tem mais que os outros” (E12). Assim, as limitações nas oportunidades de escolha conduzem a um sentimento de resignação, de modo que
a gente passa a gostar mais a partir da situação que a gente vive... se eu disser não, eu não quero o serviço não... então vai ser difícil pra mim, então, de tanto eu não ter mais o que fazer, outra situação ... eu tenho que me adaptar a isso aqui. Eu tenho que passar a gostar disso aqui (E3).
Uma resignação que se ‘justifica’ pela ideia de que os requisitos para acesso ao “trabalho bom” não foram cumpridos, principalmente pela baixa escolarização, e que atua como um meio para que possam lidar com tais “limitações”. Cabe aqui ressaltar a existência de uma narrativa ideológica que reforça as assimetrias sociais, em um mecanismo que confere a poucos as “credenciais” necessárias ao exercício das profissões e ocupações mais valorizadas socialmente (Bourdieu y Passeron, 1992). Mecanismo este que se dissemina também por meio das instituições escolares, em um movimento que busca expandir a escolarização e reprimir a educação da classe trabalhadora (Arroyo, 2012; Caffagni, 2024).
Entre aqueles com maior nível socioeconômico, caracterizados pelo acesso a ocupações de nível superior e gestão, foi ressaltada a importância de se fazer aquilo que gosta, no sentido de uma vocação. O trabalho vocacionado permite que se satisfaça a vontade pessoal por meio de uma atividade, “às vezes a pessoa pensa em trabalhar e esquece de sua vocação... A pessoa que tem o trabalho como hobbie, as coisas fluem... você não vai trabalhar, vai produzir... é muito diferente...” (E14). A mera possibilidade de exercer alguma atividade profissional que não gere satisfação pessoal soa como algo estranho. Neste aspecto, “o trabalho é uma coisa boa quando você faz aquilo que gosta, aquilo que quer. Agora, imagina, fazer uma coisa que você não gosta?” (E13).
Deste modo, o NSE evidenciou uma dualidade: de um lado, o trabalho vocacionado, em que a importância da satisfação pessoal se fez marcante. Entre esses participantes, nem sempre o retorno financeiro era o primeiro fator avaliado na escolha de um trabalho. No outro extremo, na realidade daqueles com menor NSE, a resignação era premente, destacando-se a necessidade de se aprender a gostar daquilo que faz, como estratégia para lidar com as mazelas do labor. É importante destacar que não foram identificadas diferenciações acerca do desejo de executar um trabalho mais valorizado socialmente, contudo, a possibilidade de materialização dessa escolha parece estar profundamente condicionada por determinantes estruturais, permanecendo como um privilégio acessível a grupos sociais específicos, delimitados pela condição socioeconômica.
Os participantes de menor NSE destacaram a diferenciação entre o “trabalho bom” e “ruim”. O “trabalho bom”, era, para eles, algo inacessível, o que se justificava pela menor qualificação formal, pois muitos deles abandonaram os estudos de maneira precoce para ajudar no sustento familiar. Para estes, a possibilidade de escolha profissional nem sempre foi uma realidade acessível. O trabalho, em qualquer uma de suas manifestações, era condição para sobrevivência, e não de escolha. Neste sentido, o trabalho vocacionado evidencia um privilégio de classes, uma realidade acessível somente para aqueles de classes mais altas. Nega-se, assim, a legitimidade do saber destes trabalhadores enquanto produtores de saber e cultura e reforça-se o ideário de que somente uma minoria culta, formada por trabalhadores intelectuais, produz saber, cultura e educação (Arroyo, 2012). Com isso, justificam-se as discrepâncias de salários e na valorização social, bem como a consequente desigualdade socioeconômica que se reproduz neste processo.
Quando se analisam os caminhos traçados por estes indivíduos, podemos perceber que algumas condições oriundas de suas trajetórias sociais foram introjetadas, condicionando as posições por eles ocupadas, bem como a percepção das possibilidades e constrangimentos inerentes a essas posições (Bourdieu, 1989). Neste sentido, a valorização de alguns fatores, como a obediência, entre aqueles com posição socioeconômica menos favorável, parece evidenciar processos de socialização familiar e escolar que retroalimentam esse sistema. No outro grupo, entre aqueles de maior nível econômico, a valorização da autonomia e da independência foi destacada. Esse mecanismo desnuda um conjunto de relações de poder e de dominação presentes no mundo do trabalho, em que os agentes dotados de maior volume de capital e poder simbólico não apenas estabelecem a hierarquia de valores entre diferentes ocupações, mas também controlam os mecanismos que regulam o acesso a essas posições privilegiadas. Como guardiões de um bem, determinam os parâmetros que legitimam os merecedores do “trabalho bom”, perpetuando-se um sistema em que os critérios de mérito são elaborados por aqueles que ocupam posições de poder.
Essa relação é construída em uma perspectiva sócio-histórica e tem, como um de seus produtos, a definição e manutenção das fronteiras simbólicas que operam dispositivos de distinção entre ocupações dotadas de prestígio e atividades marcadas pelo estigma social. O que reflete os interesses de alguns grupos socioeconômicos para a manutenção da valorização de determinadas ocupações, notadamente aquelas que denotam melhores condições de trabalho e de remuneração. Uma disputa de poderes que opera na preservação dos privilégios, acessados por uma minoria.
Os achados desta pesquisa permitiram também verificar a crescente centralidade do trabalho conforme o avançar da idade, o que pode ser reflexo da maior responsabilização financeira, mas também da disseminação da ética e normatividade do trabalho, já que, desde cedo, aprendiam que era preciso trabalhar para “crescer na vida, ser uma pessoa melhor (...), bem-sucedida” (E8). Com o passar do tempo, o desejo de contribuir para a sociedade por meio do trabalho se fazia mais presente. Essa percepção reforça a ideia de que o trabalho atua como um dos principais meios para inserção do indivíduo na esfera social, ao passo que o não-trabalho era vinculado à sensação de incapacidade (Martho y Messias, 2023).
A valorização do trabalho com o avançar da idade pode refletir o processo de internalização das normas sociais que têm no trabalho um elemento de valor, um imperativo moral, fruto de uma sociedade em que o acesso à cidadania, e até mesmo a construção da identidade, se vincula intimamente com a atividade laboral. Em nossa sociedade, o trabalho, independentemente de sua natureza, muitas vezes é visto como um elemento relacionado à construção da identidade pessoal e social, algo que confere a percepção de utilidade e senso de pertencimento às pessoas. Assim, em consonância com a percepção de Antunes (2022), o trabalho, mesmo nas condições atuais, ainda é tido como um elemento de valor em nossa sociedade, uma atividade que, mesmo degradada ou precarizada, ainda é vista, por mais controverso que isso pareça, como um fator capaz de conferir dignidade às pessoas (Vieira y Costa, 2024)
Por fim, salientam-se os reflexos do desemprego e a sua relação com os significados do trabalho. A entrevistada 18 está em situação de desemprego há 10 anos, atuando somente com atividades que classifica como ‘bicos’. Para ela, “sem trabalho você não faz nada, não consegue nada, entra em depressão, fica triste, fica sem alegria, fica sem amigos... não sei se você que afasta ou eles que afastam... colegas, né? (...) sem trabalho você não tem um horizonte”. Ao vivenciar essa situação, o entrevistado E17 afirma que o trabalho tem forte importância em sua vida e, devido à sua ausência, se sente
péssimo, o trabalho, na minha visão, ele é não somente uma fonte de se inserir em um grupo, o que já é uma coisa muito importante (...) não somente em questão de dignidade pessoal, mas também uma questão de sobrevivência. Na sociedade atual não existe a prerrogativa de eu ir para o interior e plantar meu sustento e viver disso... o homem moderno tirou o próprio ser humano de si mesmo... uma realidade: hoje, ou você está inserido no trabalho ou não tem maneira de subsistência.
A ausência de participação na esfera produtiva, bem como o provável isolamento relacional decorrente dessa situação, abre caminho para o sentimento de “desfiliação” (Castel, 1997) e, na avaliação do entrevistado E7, tem prejuízos para a autoestima e poder de decisão, causando desgaste emocional e do bem-estar. Para o entrevistado, “nós vivemos em uma sociedade capitalista que nós mesmos, só nos achamos importantes quando a gente tem. O ter pesa muito. Quando a gente trabalha e tem condição financeira boa, a gente se sente aparentemente bem, quando não tem, a gente se sente um lixo”.
O trabalho é um elemento que constitui a essência do ser humano e pode ser compreendido como um fator que intermedeia as esferas de vida marcadas pela necessidade e pela realização (Costa et al., 2022). Portanto, sua ausência pode ter um potencial significativamente negativo na vida daqueles que dele dependem. Os resultados aqui identificados reforçaram esta percepção, indicando que a vivência do desemprego trouxe consigo a sensação de uma desqualificação ou invalidação social, com efeitos que tendem a ser mais danosos entre aqueles com menor poder socioeconômico, com prejuízos que extrapolam a esfera econômica, refletindo também no campo social e psicológico. Neste sentido, reforça-se o papel do trabalho como uma obrigação social, em sintonia com os princípios da ética racional do trabalho analisada por Weber (2004).
Considerações finais
Esta investigação buscou compreender a influência de alguns elementos sociais no processo de diferenciação dos significados atribuídos ao trabalho, em especial, daqueles que se relacionam a aspectos socioeconômicos, ou NSE. Foi adotada uma trajetória metodológica mista, que envolveu o uso de análises quantitativas e qualitativas, com o intuito de identificar o potencial preditivo de alguns fatores sociais nos significados do trabalho para, em seguida e de modo complementar, aprofundar a análise de tais elementos por meio das entrevistas.
Os resultados permitiram evidenciar a manutenção da centralidade do trabalho em nossa sociedade, em acordo com a perspectiva de Antunes (2022), que se mostra contrária às teses sobre o fim do trabalho. Ademais, os achados demonstraram que aspectos sociodemográficos, e, principalmente socioeconômicos e estruturais, possuem potencial para influenciar o processo de atribuição dos significados do trabalho, reforçando o mecanismo de reprodução das desigualdades entre classes sociais.
Foi possível identificar a socialização de alguns estereótipos de gênero, que funcionam como dispositivos de manutenção de estruturas de poder e privilégios, e que podem atuar no sentido de limitar o acesso de mulheres a determinadas posições, bem como moldar a forma como valorizam o trabalho. No entanto, foram evidenciadas estratégias para a subversão desses padrões estruturais, principalmente através de processos de socialização primária que enfatizam o trabalho como instrumento de emancipação feminina. Este movimento pode contribuir para uma ocupação mais equilibrada do mercado de trabalho e favorecer uma percepção mais equânime da centralidade do trabalho.
A idade também se mostrou um fator relevante na conformação dos significados do trabalho. A percepção do trabalho como meio de inserção social e de contribuição para a sociedade se intensifica no decorrer do ciclo de vida, resultando em uma valorização do trabalho como elemento identitário, algo que permanece mesmo com o fim deste vínculo, como ocorre nos casos de aposentaria. Como reflexo desta valorização, em muitos casos, a ausência de trabalho, especialmente nas situações de desemprego, carrega não apenas um peso econômico, mas também um estigma social.
Embora os resultados tenham apontados indícios para a influência de elementos como sexo e idade, o NSE foi aquele que representou maior relevância na diferenciação dos significados do trabalho. Nesta direção, percebe-se que os agentes sociais tendem a valorizar aqueles elementos de vida que são mais carentes, indicando que as crenças e os valores associados à centralidade e importância atribuídas ao trabalho sofrem influência do aspecto socioeconômico. Assim, o trabalho seria mais central para aquelas pessoas com menor nível socioeconômico exatamente por ser uma categoria associada à sobrevivência, um elemento fundamental para a garantia do senso de segurança existencial (Mejía Reyes, 2017; Satuf, 2021). Isso nos leva a refletir que a estratificação de classes, enquanto estrutura objetiva de desigualdades materiais e simbólicas, atua como determinante na construção social das percepções sobre o trabalho. Ao mesmo tempo, reflete na construção de representações sociais sobre ele, contribuindo para moldar as estruturas sociais, em um processo de natureza relacional, em consonância com o modelo identificado pelo MOW (1987).
Entre os participantes com menor NSE, a inserção no mercado de trabalho ainda no início da adolescência era algo comum, ao passo que o ingresso na vida profissional para os participantes com maior condição socioeconômica ocorria no percurso da formação superior. Além disso, foram identificadas diferenciações entre o “trabalho bom” e o trabalho “ruim” ou “sacrificoso”, em um trajeto que tinha o elemento socioeconômico como pano de fundo.
Embora não tenham se verificado diferenças no desejo de desempenhar um trabalho “bom”, a operacionalização desta escolha se mostrou condicionada por determinantes econômicos, evidenciando que este tipo de trabalho se mostra como um privilégio para poucos. Enaltece-se assim que, em nossa sociedade, o fator socioeconômico ainda representa um aspecto determinante no acesso ao trabalho.
Embora acredite-se que a pesquisa aqui conduzida, ainda que de caráter descritivo, tenha contribuído para sinalizar alguns elementos presentes em mecanismos de socialização e reprodução de valores que, cada um a seu modo, reforçam estruturas de desigualdade social, com reflexos na diferenciação dos significados do trabalho, faz-se necessário destacar algumas de suas limitações. Dentre elas, sinalizamos o fato de que os fatores incluídos nas análises não são os únicos com potencial para diferenciação dos significados partilhados sobre o trabalho. Deste modo, pesquisas futuras devem ser desenvolvidas, no sentido de explorar a influência de outros fatores neste processo.
Além disso, salientam-se as limitações da base de dados secundária, que viabiliza a medida dos significados do trabalho apenas por meio de sua dimensão da centralidade. Portanto, essa discussão não se esgota aqui, havendo espaço para investigações futuras de modo que se possa compreender este fenômeno de maneira mais aprofundada.