Nos últimos anos, a Atenção Primária à Saúde (APS) do Brasil passou por desafios que ameaçam a sua existência no Sistema Único de Saúde (SUS) nos moldes desenhados desde o período conhecido por Reforma Sanitária em Saúde. A saúde como um direito de todos e dever do Estado passou a ser confrontada com a managerialização dos serviços de saúde em diversos países, assim como é proeminente a constante ameaça de sucateamento.
O modelo conhecido por New Public Management (NPM) passa a ser a representação dessa mudança na gestão de políticas sociais, entre as quais está a política de saúde e a APS e, orienta-se sob uma lógica de mercado, atribuindo à relação profissional-usuário um caráter clientelar amplamente adotado na rede privada (Tingvoll, Sæterstrand y McClusky, 2016). Neste mesmo caminho, através do NPM foram propostas estratégias de avaliação do trabalho prestado que condicionavam o pagamento, o chamado pay-for-performance (Mol, 2008). Abordagens resultantes deste modelo ficaram conhecidas em diversos lugares do mundo, como foi o caso da Nova Zelândia, Singapura e América Latina. Neste último caso, o Chile se destaca como referência na privatização dos serviços, com uma alta flexibilização dos vínculos, defesa da livre escolha e, implementação de inúmeros instrumentos para avaliação das políticas públicas através de indicadores (Goyenechea, 2019).
Por outro lado, no Brasil a aproximação da relação público-privado data dos anos 90, recebendo mais recentemente uma visualização maior por parte dos investigadores e profissionais da área. O primeiro grande impacto à saúde pública se deu através da aprovação da Emenda Constitucional nº 95 de 15 de dezembro de 2016, conhecida por PEC da Morte, logo do Impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a ascensão do Presidente Interino, Michel Temer (Almeida Cunha, 2017). Pouco tempo depois, motivo de diversas críticas ao Ministério da Saúde, foi publicada a revisão da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), em 2017, que promoveu uma série de transformações na organização da APS no país entre às quais destaca-se a abertura ao cuidado fragmentado e a tomada de decisões calcada em uma visão biomédica em saúde (Mario & Barbarini, 2020; Ministério da Saúde, 2017; Pinto, 2018).
Imbricado nessas transformações, em 2011 deu-se início a avaliação das equipes mediante o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), modelo que se assemelha às já conhecidas avaliações de desempenho propostas ao contexto organizacional privado, promovendo indicadores e metas às equipes e gestores municipais.
Frente ao exposto, este estudo se insere no contexto de managerialização da política de saúde no Brasil, que passa a adotar estratégias gerenciais conhecidas no setor privado alinhadas aos princípios do NPM, como é o caso da avaliação de desempenho das equipes de APS. De tal modo, o objetivo deste trabalho é compreender como a qualidade do acesso se define em termos práticos e que ações são promovidas aos trabalhadores da APS através da Portaria 1.645 que regulamenta o PMAQ-AB, assim como o Instrumento de Avaliação aplicado aos profissionais do NASF-AB. Para contextualizar a problemática central, a revisão da literatura apresenta um apanhado dos avanços neoliberais nas políticas de saúde, contextualizando alguns casos e situando a transformação ocorrida no Brasil nos últimos anos. Também se apresentam fragmentos da história da APS em uma linha do tempo que se conclui na execução do PMAQ-AB e o uso de instrumentos de gestão conhecidos do setor privado na saúde pública no Brasil. Por considerar a agência e caráter regulatório dos dados, o procedimento de análise se deu mediante à Análise Pragmática do Discurso (Prior, 2008).
Avanços do New Public Management nas políticas de saúde no Brasil
Nas últimas décadas, a APS passou por mudanças que impactaram a organização dos serviços e a qualidade da assistência (Tingvoll et al., 2016). Portanto, com o objetivo de aproximar a gestão pública da gestão privada, o NPM surgiu como um modelo de gestão que passou a ser predominante na maioria dos países da Organisation of Economic Co-operationand Development (OCDE) e tem orientado a gestão de recursos humanos no serviço público do ponto de vista empresarial, influenciando a adoção de políticas organizacionais com características do setor privado (Tingvoll et al., 2016).
Entre os componentes da reforma que o NPM causou nos sistemas de saúde, estão: descentralização; atenção aos recursos humanos; pay-for-performance; maior autonomia aos gestores; controle de produção; participação e disciplina. Abordagens orientadas ao mercado, contratos e estratégias de gestão de desempenho são igualmente enfatizadas. Assim como, uma das principais mudanças promovidas pelo NPM, o trato aos usuários passa a ser orientado através da nomenclatura "cliente".
Nessa lógica, os trabalhadores da saúde muitas vezes entram em um sistema de negociação, com um aumento significativo no exercício do trabalho e diminuição de recursos. Em resposta a essas maiores responsabilidades assumidas, há o aumento das expectativas que resultaria da alta produtividade e flexibilidade, como: atividade de comprometimento e confiança; compromisso do governo como empregador para o desenvolvimento de pessoal e menos demissões de funcionários públicos (Tingvoll et al., 2016).
Aos poucos, o discurso managerial é instalado nas políticas públicas de saúde com a defesa de que os trabalhadores recebem o que é merecido e resultante de seus esforços (Calderón Gómez et al., 2014). Por consequência, passa a substituir-se o lugar do estado de bem-estar social e impactar em diferentes realidades de saúde.
No Chile, essa alteração teve por marco a ditadura militar de Augusto Pinochet, quando os “Chicago Boys”, sob influência de Milton Friedman, mobilizaram-se em defesa da privatização das indústrias estatais (Sandall et al., 2009). Como resultado dessas mudanças, Sandall et al. (2009) revelam uma substituição gradual por um modelo de economia de mercado no sistema de saúde chileno. O Estado passou a desenvolver um papel subsidiário no financiamento, ofertando o acesso aos serviços de saúde sob regime público e privado através de Instituições de Saúde Previsional (Isapres) e/ou do Fundo Nacional de Saúde (Fonasa), distante de cumprir integralmente com o direito à saúde garantido na Constituição de 1980 (Goyenechea, 2019).
No Brasil, o caminho da APS tem sido diferente. Como resultado da VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS) e da Reforma Sanitária, foi criado o SUS, oficializado pela Lei Orgânica de 8.080, de 1990 (Agostini & Castro, 2019; Casa Civil, 1990). Outra conquista da VIII CNS foi a garantia da saúde como direito na Constituição Federal de 1988. O conceito de saúde proposto defende que “saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde” (Ministério da Saúde, 1986 p. 4). Essa lógica se vê alinhada aos preceitos da determinação social do processo saúde-doença da epidemiologia crítica de Jaime Breilh (2010), o qual afirma que a saúde não é produto exclusivo do determinismo biológico-psicológico-individual, mas que está relacionada ao cotidiano e às possibilidades, sejam físicas ou psicológicas dos usuários (Breilh, 2010).
Nesse contexto, o SUS nasceu apresentando como princípios doutrinários a universalidade, equidade e integralidade (Agostini & Castro, 2019; Casa Civil, 1990). Então, a APS conectada a essa imagem-objetivo de um conceito ampliado de saúde e determinação social, revela um papel central com sua atuação em conjunto com a comunidade, usuários do sistema e do território, difundindo a concepção da atenção longitudinal como fundamental em saúde e tornando-se um exemplo global (Minué, 2020; Santos, 2018).
Assim sendo, o modelo de APS aplicado no Brasil desafia a lógica de um exercício profissional que considera principalmente o corpo biológico e a aplicação do conhecimento, propondo o cuidado em saúde que vai ao encontro do outro, reconhece as histórias de vida dos usuários e permite o afetar-se no ato de cuidado (Franco & Hubner, 2019). Contudo, na última década, a APS passou por transformações profundas que representam risco às perspectivas histórias que a caracterizam.
Passou-se a revelar na política de saúde a abertura para terceirização de contratos de trabalho, a privatização de serviços, assim como tentativas de adesão aos planos populares e inserção de lógicas gerenciais conhecidas do setor privado (Diniz, 2018; Menezes, Verdi, Scherer, y Finkler, 2020). Neste andamento, surge um novo projeto de política de saúde que atende aos interesses do mercado e coloca os princípios do SUS em xeque, o que pode desqualificar a APS, não priorizar o financiamento, promover um acesso seletivo às populações mais pobres e apresentar a saúde como produto (Pinto, 2018).
Garrido-Pinzón e Bernardo (2017) destacam a Lei Complementar nº 101/2015, conhecida pela Lei das Organizações Sociais, como uma das ações que visam o desmantelamento do SUS ao reutilizar a legalidade para contratações terceirizadas no setor público, sob a organização das Organizações Sociais (OSS). No entanto, Almeida Cunha (2017) revela que no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, já existiam iniciativas para transferir o sistema de saúde a entidades privadas por meio da Norma Operacional Básica do SUS de 1996 (NOB/96). O NOB/96 passou a permitir a flexibilização dos contratos que poderiam ser tanto temporários como por concursos públicos, o que terminou por facilitar a contribuição público-privada.
Outra medida de proporções graves ao sistema de saúde brasileiro foi a publicação da Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, conhecida como PEC da morte, que declarou o congelamento de recursos públicos para políticas de saúde, educação e assistência para os próximos 20 anos (Almeida Cunha, 2017). Essa decisão político-econômica serve a um modelo de mercado - o qual considera os sistemas públicos universais como inviáveis - e ameaça diretamente a consolidação da universalidade do acesso como princípio doutrinário do SUS, abrindo espaço ao subfinanciamento e entrada de empresas privadas para cobrir com alguns custeios (Menezes et al., 2020). Da mesma forma, em 2017 é publicada a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), com mudanças que representam um estilo de pensamento em saúde altamente focado na atenção à população mais pobre, queda do aspecto vincular-relacional com os usuários e maior número de atendimento ambulatorial (Mario & Barbarini, 2020; Pinto, 2018; Ministério da Saúde, 2017).
Nesse emergente cenário do modelo managerial na política pública de saúde, este artigo apresenta um trabalho de análise sobre o PMAQ-AB, instituído mediante a Portaria GM/MS 1.654 de 19 de julho de 2011, com objetivo principal de ampliar o acesso e promover melhoria da qualidade da APS, alcançando um padrão de qualidade a nível local, regional e nacional através de avaliação das equipes de saúde em todo o território brasileiro (Fausto et al., 2017). O PMAQ-AB foi considerado um dos maiores programas de remuneração por desempenho na APS a nível mundial e logo passou a compor um dos critérios para o financiamento no Brasil no período em que foi executado (Massuda, 2020). As equipes de APS aderem voluntariamente ao PMAQ-AB e após as etapas de avaliação recebem incentivo referente ao desempenho alcançado.
Portanto, o PMAQ-AB se insere na política de saúde do Brasil como um instrumento que promove práticas e representa a possibilidade de tomada de decisão política com respeito aos investimentos que recebe a APS. Quanto ao seu papel quantificador, ele é responsável por gerenciar processos produtivos cuja contribuição é importante à gestão pública, como já apontava Sisto (2017) quanto às políticas públicas chilenas e, posiciona o país entre os países cujos avanços do NMP em saúde têm se destacado.
Método
Para ilustrar o modo como o PMAQ-AB define a qualidade do acesso na APS, este estudo utilizou uma metodologia qualitativa mediante Análise Pragmática do Discurso, a qual entende o texto como uma forma de ação social, sendo um agente ativo que em seu conteúdo (sejam palavras, imagens, planos, ideias, padrões, etc.) servem para o posicionamento e manipulação dos atores humanos (Prior, 2008). De caráter fundamentalmente pragmático, o foco da Análise Pragmática do Discurso debruça-se em descobrir e analisar como o texto funciona em função das realidades que dele emergem. Prior (2008) destaca a importância de dispensar a diferenciação tradicional que se faz entre sujeito e objeto, assim como a atitude de considerar os materiais analisados desde um lugar de passividade, em dependência da ação humana. Portanto, para o autor é valioso ter em conta que esses agentes não humanos desempenham “um papel nas configurações sociais em seu próprio direito” (p. 828).
No caso da avaliação externa do PMAQ-AB, nos é possível apreender este instrumento de gestão, desde sua centralidade para o funcionamento da engrenagem managerial e o modo como ela se instala na política pública de saúde no Brasil, tendo um importante papel na criação de uma nova realidade ao acesso e qualidade da APS. Igualmente, a escolha por trabalhar com a Portaria Nº 1.645 que dispõe sobre o PMAQ-AB e um dos instrumentos do Programa, possui extrema relevância frente às transformações que a APS vêm sofrendo nos últimos anos, o que pode ser representado por meio da avaliação de desempenho a crescente do NMP, o que acaba por ameaçar um modelo de saúde comunitário com a invasão de uma lógica individual e privatista.
Enquanto ferramenta de base à análise, optou-se por trabalhar com uma análise descritiva de caráter pragmático, proposta por Prior (2008). Devido ao caráter regulatório dos documentos e entendendo-o como um agente que estabelece mecanismos de obrigatoriedade em relação às formas determinadas de ação, esta análise buscou compreender possíveis tensões quanto ao impacto prático dos documentos sob a melhoria do acesso e qualidade da ABS.
Contou-se com o seguinte corpus documental: i) Portaria Nº 1.645 de 2 de outubro de 2015: Dispõe sobre o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB); ii) Instrumento de avaliação do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: Módulo IV - Entrevista com profissional do NASF e verificação de documentos na Unidade Básica de Saúde.
Cabe recordar que o PMAQ-AB foi lançado em 2011 e aplicado em três ciclos: 2011/2012, 2013/2014 e, 2016/2018.
Posteriormente foram realizadas leituras sucessivas e minuciosas utilizando o software Atlas.ti 8 para auxiliar na análise e o trabalho revisando as citações selecionadas previamente. Por fim, o material textual foi conduzido ao software Excel 2010, o qual facilitou a realização de leituras conclusivas e trabalho com categorias analíticas centrais, sendo: avaliação como processo para a melhoria da qualidade de acesso; qualidade versus padrões e indicadores; participação versus mudança organizacional; voluntariado e garantia de qualidade; estândares e indicadores de acesso e qualidade como focus e estímulo à participação do PMAQ-AB.
Resultados
A análise da Portaria Nº 1.645 e o Instrumento de avaliação do PMAQ-AB se fez sob o entendimento dos documentos frente ao seu caráter prático e regulatório, permitindo a identificação de duas categorias que foram nomeadas como: a) O próprio mundo está obrigando a gente a se fragmentar: Sobre os estândares e indicadores promovidos pelo PMAQ-AB e; b) Minha independência tem algemas: Gestores e profissionais de saúde como voluntário e proativo na APS.
O próprio mundo está obrigando a gente a se fragmentar: Sobre os estândares e indicadores promovidos pelo PMAQ-AB
O verso escolhido para abrir ambas as categorias são de autoria de Manoel de Barros, poeta brasileiro do pós-modernismo conhecido pela tão presente intertextualidade em sua escrita. “O próprio mundo está obrigando a gente a se fragmentar” foi escolhido em função do caráter individualista promovido pelos estândares e indicadores na gestão em saúde, e neste caso particular, a avaliação de desempenho realizada pelo PMAQ-AB na APS do Brasil. Enquanto que por um lado vemos a proposta do Programa com a melhoria do acesso e qualidade da APS, por outro o encontramos inserido como uma estratégia que serve ao livre mercado e a implantação do pay-for-performance, ou o pagamento pelo serviço prestado e nível de desempenho alcançado através do instrumento.
Esta categoria está composta por três extratos que buscam dar conta de como os indicadores em saúde se apresentam nos documentos analisados. O primeiro trata do Artigo 2º da Portaria:
O PMAQ-AB tem como objetivo induzir a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade da atenção básica (ênfase adicionado), com garantia de um padrão de qualidade comparável (ênfase adicionado), nacional, regional e localmente, de maneira a permitir maior transparência e efetividade (ênfase adicionado) das ações governamentais direcionadas à Atenção Básica em Saúde (Ministério da Saúde, 2015, p. 1).
O fragmento inicia revelando sua projeção com “induzir” a ampliação do acesso e melhoria da qualidade por meio do PMAQ-AB, verbo que nos fala do exercício do controle na gestão em saúde. Por outro lado, a intenção manifestada poderia revelar preocupação com o acesso universal dos usuários ao SUS, assim como a qualidade do serviço prestado, em uma perspectiva ampliada de saúde e conectada com os princípios de universalização, equidade e integralidade. A distância entre ambas as perspectivas nos revela a ambivalência presente nos documentos analisados, que nos apresentam objetivos coerentes com os princípios do SUS, assim como, assemelham-se às estratégias de avaliação adotadas por outros sistemas cuja lógica atende ao NPM.
Na sequência, o artigo 2º revela o conceito ao qual foi projetado o PMAQ-AB: atentar a um padrão de qualidade que possa ser comparável em nível local, regional e nacional e permita a transparência e efetividade de ações governamentais. Padrão de qualidade que desenha a nova política de saúde no Brasil e ganha impulso com a execução de um Programa a nível nacional, cujo intuito explicito é a melhoria da APS, e revela implicitamente as fragilidades de um sistema que não dá conta do financiamento dos serviços e deleita-se em estratégias conhecidas de políticas sociais neoliberais, que recebem o incentivo financeiro em resposta do cumprimento de metas (Sisto, 2017).
Com relacionar transparência ao verbo inicial “induzir”, assim como ao padrão de qualidade esperado e a entrada de um sistema de avaliação de desempenho na saúde primária brasileira, é possível entender transparência como ferramenta de controle sob as eESF, que serão expostas a uma série de instrumentos reguladores do seu fazer profissional, assim como terão o resultado da verificação sobre o seu trabalho expostas em modo aberto em página web. Com essa medida, o fragmento diz muito sobre o papel como agente ativo que o Instrumento de avaliação do PMAQ-AB possui em relação ao processo de trabalho in lócus, o que se percebe com maior impacto nos recortes que seguem.
As perguntas presentes na Tabela 1 apontam para as metas de atuação do NASF-AB como resultado da resolutividade das eESF apoiadas, ou seja, seu indicador de bom desempenho possui interdependência com o alcance de bons resultados de outras equipes. Esse fator revela-se delicado ao considerar a inserção recente dos NASF-AB na APS e a resistência, todavia encontrada, na realização do trabalho colaborativo entre equipes que pode impactar na possibilidade de atuação dos profissionais com os critérios avaliados pelo PMAQ-AB.
Cabe assinalar que as perguntas (Tabela 1) são realizadas aos profissionais das equipes NASF-AB, que por sua vez devem apresentar documento que comprove a informação, o que soma um questionamento ao parágrafo anterior: De que modo as equipes de NASF-AB que estão em um processo de construção de confiança e abertura ao processo de trabalho são avaliadas frente aos indicadores que não atendem à realidade vivida?
A palavra “evidências” (Tabela 1) dá conta de revelar a necessidade própria da medicina baseada em evidências em estabelecer uma atuação com garantias, que nesse caso versa sobre os documentos que comprovem a resolutividade da eESF a partir da atuação do NASF-AB e sua potência quanto intervenção em casos compartilhados, encaminhados ou concluídos. A Tabela 2 segue esta mesma linha, porém, inclui a comunicação como fator preponderante.
A centralidade do fragmento ilustrado pela Tabela 2 está na linha tênue do trabalho integrado entre NASF e eESF em qualificar os encaminhamentos a outros serviços de saúde e a participação/contribuição/elaboração de protocolos. Se, por um lado o instrumento apresenta a possibilidade de discussões de caso, análise da lista de espera e capacitação da equipe, por outro, apresenta os protocolos clínicos e de encaminhamento. Essas últimas ressaltam as tecnologias duras no cuidado em saúde e que abrem espaço a uma práxis padronizada, cerceada pelos papeis e que diminuem a potência de agir dos profissionais frente à necessidade que ocasionou os encaminhamentos dos usuários para outros serviços da rede de saúde (Merhy, 2002). O protagonismo do NASF-AB é crucial nesta perspectiva, como o responsável pela qualidade e direcionamento das estratégias adotadas.
O trecho em destaque na Tabela 2 dá conta de revelar a comunicação entre as equipes e a rede de atenção à saúde na coordenação do cuidado de usuários do território de referência. Nesse sentido, emerge um questionamento sobre como se avalia de fato a comunicação entre equipes, entendendo que os documentos avaliados deverão apresentar todo tipo de informação que comprove as ações realizadas, sejam: discussão de caso, capacitação, análise de lista de espera etc. Pode-se refletir, portanto, sobre a relevância destes registros para comprovar a comunicação efetiva.
O instrumento analisado instala uma ferramenta regulatória no fazer profissional do NASF-AB, que deve registrar desde telefonemas, e-mails, discussões informais, até reuniões em equipe ou de estudo. Esse controle da comunicação implica máxima atenção e responsabilidade da equipe, não somente na existência e qualidade da comunicação em si. De um lado vê-se o trabalho em rede e, de outro, o incentivo a atuação em APS desde a manutenção de práticas protocolizadas. O caráter ampliado do NASF-AB e de apoio técnico pedagógico demostra necessidade de maior espaço e possibilidades de respostas que evidenciem a prática realizada não somente como aquela que se enraíza em moldes biomédicos.
Minha independência tem algemas: Gestores e profissionais de saúde como voluntário e proativo na APS
Com sua manifestação logo ao início do documento, as palavras “voluntário” e “proativo” apresentam a ambivalência da APS no Brasil que, por um lado busca resgatar o conceito de saúde ampliada, vínculo comunitário e trabalho colaborativo e, por outro, abre espaços ao avanço do NPM na política de saúde no Brasil. Desse modo, se constrói a figura do profissional e gestor em saúde como aquele cuja adesão ao PMAQ-AB é voluntária e, contudo, lhe é depositada a responsabilidade de um atuar proativo com relação ao cargo ocupado - o que apresenta como implícito a alusão a esta independência cerceada pelas algemas de que nos falava o poeta.
“caráter voluntário para a adesão (ênfase adicionada), tanto pelas equipes de saúde da atenção básica quanto pelos gestores municipais, a partir do pressuposto de que o seu êxito depende da motivação e proatividade dos atores envolvidos (ênfase adicionada)” (Ministério da Saúde, 2015, p. 2).
A lógica, evidenciada neste fragmento, nos conta sobre duas problemáticas da APS no Brasil e que se fizeram mais presentes no cotidiano do trabalho na última década: i) o deficitário financiamento à saúde e a privatização dos serviços como estratégia para preencher as lacunas deixadas pelo Estado; ii) a avaliação de desempenho das equipes, então realizada através do PMAQ-AB. No entanto, com frisar que o “êxito depende da motivação e proatividade dos atores envolvidos” pode-se considerar o estabelecimento de um lugar regulador e aos profissionais o papel de empresário de si mesmo, como mencionava Wendy Brown (2015), papel este que pode-se vincular a relação daquele que deve ir em busca de sua realização e a de sua equipe para que o incentivo financeiro seja acessado.
Essa ambivalência entregue aos profissionais pode surtir em participações comprometidas tão somente com o valor a ser recebido, sem considerar o processo avaliativo, a melhoria do acesso e qualidade da APS que propõe o Instrumento, ou implementação do próprio serviço. O NASF-AB, de igual modo que a pactuação para avaliação da APS, possui repasse de verbas fundo a fundo (fundo federal repassa ao fundo municipal) a depender do tipo de equipe composta, fadado a este mesmo caminho de criação em função do incentivo por sob a necessidade das equipes e do território.
Os fragmentos seguintes se inserem nesse mesmo cenário e revelam interesses ocultos da “indução” e “estímulo” que conduz a algumas mudanças no modelo de saúde adotado no Brasil com a VIII CNS e a Lei 8.080.
Neste primeiro trecho se evidencia, como diretriz do PMAQ-AB, a inserção processual da avaliação de desempenho das equipes de APS:
“estimular processo contínuo e progressivo de melhoramento dos padrões e indicadores de acesso e de qualidade que envolva a gestão (ênfase adicionado), o processo de trabalho e os resultados alcançados pelas equipes de saúde da atenção básica” (Ministério da Saúde, 2015, p. 2).
Essa diretriz conta sobre uma inserção tênue de um instrumento tão comum às empresas privadas, agora no SUS, fomentando não a melhora na qualidade da saúde e acesso aos usuários, mas sim, em padrões e números, uma lógica competitiva de mercado. Aqui, outra vez, é possível explanar como o Instrumento de Avaliação do PMAQ-AB performa e afeta as decisões e práticas dos gestores e profissionais para alcançar o proposto pela Portaria Nº 1.645.
“envolver e mobilizar os gestores federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais, as equipes de saúde de atenção básica e os usuários em um processo de mudança de cultura de gestão e qualificação da atenção básica (ênfase adicionado)” (Ministério da Saúde, 2015, p. 2).
É certo que o documento analisado vai construindo um argumento em torno a mudança de cultura organizacional em serviços de APS, o que demonstra a inserção dos indicadores como peças-chaves, junto ao incentivo do Governo Federal referente ao índice de desempenho das equipes. O PMAQ-AB anuncia uma transformação que já vinha ocorrendo de modo mais sutil desde os anos 90.
Nesse sentido, o processo de mudança que salta aos olhos nos revela, sobretudo, o avanço da perspectiva do NMP. A adoção de conhecidas estratégias utilizadas com organizações privadas, como o caso de mudança de cultura, fundamentam essa análise e dialogam com o corpus exposto nessa seção de resultados, quando indicadores em saúde se sobressaem à qualidade do cuidado, e a perspectiva de atuação dos profissionais de saúde e gestão é atravessada por uma convocatória ao agir proativo quanto à adesão ao Programa.
Como plano de fundo ao PMAQ-AB, estão essas tomadas de atitude caracterizadas por decisões neoliberais que se apresentam nos últimos anos, com a adoção de medidas que refletem em prejuízo à continuidade do cuidado (Garrido-Pinzón & Bernardo, 2017). Nesse âmago, trabalhos recentes já apontavam para a transformação sofrida pelo SUS e APS no Brasil, bem como seus impactos no cotidiano do trabalho, na perspectiva do trabalhador e dos usuários (Menezes et al., 2020; Garrido-Pinzón & Bernardo, 2017; Minué, 2020).
Discussão e conclusões
O objetivo da presente investigação foi compreender como a qualidade do acesso se define em termos práticos e que ações são promovidas aos trabalhadores da APS através da Portaria Nº 1.645 que regulamenta o PMAQ-AB, assim como o instrumento de avaliação aplicado aos profissionais do NASF-AB. Os resultados obtidos revelam que o PMAQ-AB contribui para o desenvolver de práticas de avaliação que não se sustentam na promoção de melhorias ao acesso e qualidade da APS, senão que se detém sob o produto final, o alcance de padrões de desempenho e alcance de indicadores de saúde.
As duas categorias que emergentes sustentam que o PMAQ-AB ocupa um lugar de centralidade na política de saúde da APS brasileira quanto ao estabelecimento de estândares às equipes de APS, também revela ambivalência quanto à gestão em saúde e a adesão ao PMAQ-AB, indicando ora um caráter voluntário, ora referindo-se aos profissionais como proativos e que deles depende o seu próprio êxito, em diálogo com uma perspectiva mais bem de controle.
Nessa amalgama, Galavote et al. (2016) apontam que a gestão da saúde tem sido mediada por estratégias de controle e disciplina cujo propósito está nos resultados e, ao mesmo tempo, os trabalhadores são equiparados aos insumos para o funcionamento do serviço. A organização do trabalho passa a enfatizar um perfil individualizado no qual o profissional atua de forma fragmentada, reproduzindo conhecimento, atendendo a ferramentas de gestão e dispensando medicamentos.
O reflexo dessas mudanças no setor público submete os trabalhadores a uma forma de organização semelhante ao setor privado e, com isso, os sentidos de trabalho são intensificados e redirecionados, abordando uma realidade de saúde pública que já é conhecida na maioria dos países da América Latina como reformas do NPM (Garrido-Pinzón & Bernardo, 2017).
As ferramentas de gestão de desempenho e/ou competências adotadas pelo serviço público ao vincular o pagamento ao desempenho no exercício das tarefas e, classificar profissionais entre bons e maus, atende aos novos modelos de controle do NPM. Esses instrumentos de padronização e controle revelam relação com a ética do serviço público (Fardella, Sisto, Morales, Rivera, y Soto, 2016). Ademais, seu uso na gestão possui centralidade no funcionamento do modelo managerial ao contribuir para legitimar a quantificação do trabalho público (Sisto, 2017).
No centro dessas transformações encontram-se os sujeitos frente a uma competitividade por produção e em queda de braço entre o modus operandi de cunho privatista e individualista por um lado e, por outro, o projeto ético-político de saúde no Brasil em defesa dos princípios doutrinários do SUS: igualdade, integralidade e equidade (Agostini & Castro, 2019). Vai sendo moldado um perfil empreendedor tanto em gestores como profissionais das equipes de APS, os quais passam a investir na tentativa de alcançar os padrões traçados pelo Governo Federal em forma de bons indicadores, e deparam-se com o discurso da economia de livre mercado, que reforça que o desempenho dependerá do esforço e capacidades próprias, assim como o envolvimento com o trabalho (Calderón Gómez et al., 2014).
Deste modo, o PMAQ-AB se insere como central para pensar a transição de um modelo de acesso universal em saúde no Brasil, para a Cobertura Universal em Saúde (UHC - Universal Health Coverage), conhecida mundialmente como organizadora do acesso através de cestas básicas de serviço as quais cada usuário acessa conforme sua renda mensal. Com isso, o instrumento desenha uma nova perspectiva de organização e avaliação da APS no Brasil, podendo ser considerado peça-chave para uma mudança de cultura organizacional e a crescente managerialização do setor saúde no Brasil.
Finalmente, é válido frisar que este estudo apresentou como limitação o corpus de análise referente apenas ao eixo que correspondia ao NASF-AB, implicando que ao considerar a totalidade do Instrumento de Avaliação do PMAQ-AB pudessem emergir diferenças nos resultados. Contudo, este limitante foi também fortuito, uma vez que foi possível uma análise detalhada da avaliação de um dispositivo da APS no Brasil, a diferença de trabalhar com todo o instrumento e diferentes serviços. Como sugestão para futuros estudos, parece relevante analisar os manuais do PMAQ-AB, as orientações quanto ao processo de avaliação, assim como os Cadernos da Atenção Básica.
Por ora, a análise do instrumento revela um lento declínio do modelo de APS sob uma lógica comunitária, o qual cede espaço para uma abordagem de saúde como mercadoria e equipes de saúde cujos profissionais são conduzidos a atuarem em função de indicadores e a manutenção do financiamento do serviço. Assim, o papel do Estado na garantia do direito a saúde passa a ser minimizado, o que dá cada vez mais lugar a ocupação managerial em saúde.