É constante e recorrente o interesse pelo cuidado voltado ao cuidador, o qual orienta muitos dos trabalhos investigativos sobre a área de Enfermagem (Crivaro, Almeida & Souza, 2007; Kovács, 2010; Traesel & Merlo, 2009). É consenso entre esses estudos que a atividade de cuidar em Enfermagem extrapola a competência profissional e o preparo exclusivamente técnico para os atendimentos. A tarefa das equipes de Saúde consiste essencialmente em cuidar de alguém, entretanto, como alertam Crivaro et al. (2007), o cuidado em Enfermagem pode representar principalmente a engrenagem de uma máquina e tornar-se parte invisível de um fazer científico ao corresponder a um modelo tradicional de Saúde que prioriza os aspectos técnicos. Ressalta-se a necessidade de mudança na formação do profissional de Saúde, de modo a ampliar a perspectiva biologicista ainda vigente, visando a uma abordagem mais humanística que considere os aspectos afetivos implicados nas relações entre equipe e público atendido (Aredes & Modesto, 2016).
Dentre as dificuldades que caracterizam o contexto hospitalar de urgência e emergência, destacam-se a precariedade nas condições de trabalho e os entraves provenientes da complexidade estrutural (Dal Pai & Lautert, 2011). Trata-se de um somatório de desafios impostos aos enfermeiros nos serviços de urgência e emergência, como o déficit de trabalhadores nas equipes, recursos técnicos e materiais insuficientes e a superlotação de pessoas para serem atendidas (Magnago, Kirchhof & Beck, 2006).
É pertinente, ainda, ressaltar o interesse das pesquisas sobre o adoecimento de profissionais de Saúde (Dal Pai & Lautert, 2009) e a relevância da instituição promover medidas para o apoio às demandas dos profissionais e o alívio de tensão no trabalho (Quintana, Kegler, Santos & Lima, 2006). Portanto, torna-se imprescindível investigar a efetiva prática de cuidado exercida por enfermeiros em ambientes institucionais hospitalares marcados pela premissa de rapidez, precisão e assertividade.
Este artigo decorre de um estudo qualitativo realizado com profissionais da Enfermagem sobre o cuidado exercido em serviços de urgência e emergência, desvelando singulares elementos deste campo laboral. De modo geral, buscou-se compreender a experiência de profissionais de Enfermagem no exercício do cuidado e os efeitos no trabalhador decorrentes do atendimento à urgência e emergência do outro, considerando a implicação institucional e as especificidades das condições de trabalho oferecidas aos enfermeiros.
Os dados obtidos foram explorados com aportes teóricos relativos à área da Enfermagem e contribuições da Psicanálise, disciplina que oferece subsídios à imprescindível problematização dos aspectos subjetivos presentes no exercício de profissionais do cuidado.
Método
Participantes
O estudo realizou-se no período de março de 2015 a maio de 2017, sendo a etapa de coleta de dados realizada nos meses de maio e junho de 2016 e a de análise dos dados de maio de 2016 a maio de 2017. Participaram do estudo oito enfermeiros, sete mulheres e um homem (tabela 1), que trabalham em uma unidade de urgência e emergência de um hospital localizado na região Sul do Brasil. Na instituição, são realizados atendimentos públicos, privados e regidos por convênios. É importante assinalar que essa unidade hospitalar atende adultos e crianças e é dividida em setores de acordo com a demanda do paciente e a função a ser exercida pelos profissionais de Saúde. No setor Acolhimento acontecem as triagens com classificação de risco, feitas exclusivamente por enfermeiros. Os outros dois setores oferecem atendimentos realizados pela equipe multiprofissional e são denominadas Pronto Atendimento e Unidade de Cuidados Especiais (UCE), sendo que esta divide-se em Sala Laranja e Sala Vermelha, onde são realizados os atendimentos classificados como de risco grave.
A escolha dos participantes se deu por conveniência, a partir da disponibilidade dos profissionais. A fim de garantir o anonimato das identidades dos participantes, lhes foram atribuídos nomes relativos a personagens de balés de repertório, em decorrência da aproximação e semelhança entre características do fazer laboral mencionadas pelos participantes e as exigências atribuídas à profissão dos bailarinos. Segundo Anjos, Oliveira e Velardi (2015) é fundamental que as bailarinas se dediquem, senão sacrifiquem-se, por anos para o preparo e condicionamento físico exigidos no objetivo de alcançarem um corpo considerado apropriado e técnico, o qual ofereça a garantia da prontidão exigida para a representação dos papéis em cena. Assim como no fazer da Enfermagem, a profissão de bailarino requer um treino rigoroso, uma autoexigência exacerbada, uma prática marcada por sacrifícios, disciplina e extrema dedicação. Tais atributos garantem uma prontidão técnica para as demandas exigidas em ambas as profissões, porém será a sensibilidade do sujeito que fará a diferença quando o bailarino entra no palco ou quando o enfermeiro exerce o cuidado diante das urgências e emergências do outro.
Instrumentos e Procedimentos
Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a qual se vinculava o estudo, sob o parecer de número 1.463.961, contatou-se a instituição hospitalar para apresentação do Projeto e solicitação da autorização para realização das entrevistas. Buscou-se, então, a adesão e a participação voluntária dos enfermeiros, conforme disponibilidade da equipe. Os participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O instrumento utilizado para coleta de dados foi a entrevista semidirigida, que possibilitou a exploração dos seguintes eixos temáticos: percepções acerca da escolha da profissão; significado e importância do trabalho; funções desempenhadas; sentidos atribuídos às práticas de cuidado; impasses, oportunidades e desafios enfrentados no trabalho; impactos emocionais e efeitos do cuidado exercido; motivação e permanência no trabalho; situações consideradas marcantes na trajetória profissional; aspectos relativos às transformações pessoais decorrentes do trabalho; percepção sobre a valorização social e institucional da profissão. As entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. Ao final das entrevistas, foi preenchida uma Ficha de Dados Pessoais e Sociodemográficos, elaborada para este estudo.
A análise dos dados foi realizada por meio da Análise Interpretativa de Erickson (1997), permitindo a construção de duas Asserções que ensejam a reflexão e a compreensão aprofundada acerca da prática laboral dos participantes. Apresentam-se a seguir as Asserções, que decorreram dos dados obtidos nas entrevistas, e os aportes desenvolvidos nos Comentários Interpretativos visando à articulação entre os conteúdos presentes nas entrevistas e as reflexões teóricas pertinentes.
Resultados e Discussão
Primeira Asserção: O Trabalho da Enfermagem na Emergência: Ritmos do Impasse de Cuidar
A análise dos dados obtidos indicou o estabelecimento de “diferentes ritmos” no campo laboral, instaurados por meio da relação que cada enfermeiro constrói com os pacientes e seus familiares, com os profissionais da equipe da qual participa e com a instituição hospitalar. O ritmo do sujeito é constituído a partir do efeito em si mesmo das relações que estabelece em seu contexto de trabalho. A participante Quitéria sintetiza a temática desta Asserção ao descrever sobre a dinâmica na Sala Vermelha (onde são atendidos os pacientes que estão em estado grave para os quais as intervenções profissionais são classificadas como de urgência):
Vais ganhando uma dinâmica mais... é quase uma dança, assim, né? (...) Já vai botando pra monitorizar e já vamos perguntando pro paciente o que aconteceu: ‘o senhor está respirando? O que houve?’ (...) tem um ritmo.
Na narrativa de Quitéria sobre os ritmos da intervenção voltada ao paciente, o cuidado se ancora no importante reconhecimento, por parte do profissional, da convivência paradoxal entre o saber e o não-saber durante os atendimentos. Percebe-se o estabelecimento de um ritmo atrelado à combinação de dois movimentos - o saber prévio e o ainda não conhecido -, dos quais dependem a condição de atender a urgência da demanda e, também, o estabelecimento da comunicação com o paciente. Assim, a qualidade e a eficácia do cuidado a ser prestado decorrem da habilidade de conciliar a técnica "ensaiada" e o improviso na performance a ser criada no singular contato com o paciente.
O compasso do cuidado ao outro regula a cadência rítmica dos profissionais deste estudo, combinando a sensibilidade própria a cada um e o cumprimento das normas exigidas pela instituição hospitalar. Constatou-se que na relação estabelecida pelos profissionais, os diferentes ritmos vivenciados são sempre voltados para a demanda de outro, resultando no fato de se sentirem expostos e, constantemente, avaliados pelo público atendido e pelos demais funcionários do local. A participante Odete refere como o exercício de triagem precisa corresponder às diretrizes protocolares estipuladas para a classificação de risco e às possibilidades de assistência do local, estabelecendo intensa rotina para ser cumprida pelo profissional:
E a gente não acompanha essa melhora, né? O pessoal do andar já acompanha, cria mais vínculo. Aqui ele tá grave, tu corre, corre, corre, tu faz, faz, faz. Às vezes, chega no final do dia tu tá escabelada, tu fez tudo aquilo e o paciente morreu. No início, foi muito difícil lidar com esse sentimento de faz, faz, faz e o paciente morre (...) nós não somos deuses, né? Aí tu vai te trabalhando, mas te dá uma sensação de impotência de tipo: “Pra que eu fiz tudo isso, então, né?” Porque tu tem que fazer, porque a pessoa tá ali pra isso.
Conforme Dal Pai e Lautert (2011), a triagem visa a organizar a ordem dos atendimentos para que os usuários dos serviços de Saúde não sejam encaminhados conforme a ordem de chegada, mas, sim, de acordo com os parâmetros que avaliam a gravidade do estado clínico e identificam situações em que não é possível aguardar o atendimento. Trata-se de um recurso para garantir a assistência imediata de quem está com a vida em risco e, também, prever e orientar o tempo para atendimento daqueles que não apresentam tal demanda Dal Pai e Lautert (2011). A repetição das palavras “corre” e “faz” na fala de Odete explicita o ritmo acelerado e repetitivo do cotidiano do setor e vem acompanhada da constatação da exaustão provocada pelo tensionamento desta tarefa. Ela nomeia a impotência de seu desempenho profissional, especialmente em situações nas quais exerce extremo empenho e dedicação no cuidado aos pacientes em risco, priorizando a tentativa de salvamento de suas vidas.
Independentes do ritmo acelerado, da frenética e exaustiva repetição de intervenções realizadas pelos enfermeiros e técnicos no contexto de urgência e emergência, são recorrentes a piora e a morte de quem ali é cuidado. Há, então, a constatação de que não são “deuses” e que, portanto, o profissional precisa estar ali para fazer incansavelmente o que lhe cabe, sem a certeza de êxito como desfecho. A condição da finitude da vida e o encontro entre vida e morte, na temporalidade da existência humana, são aspectos que também permeiam a fala de Odete:
Então, pra mim, no hospital... talvez te surpreenda, mas a morte é muito constante. É como se ela dançasse todo dia um pouquinho pra ti, porque eu levo o paciente da triagem pra Sala Vermelha (...) e a chance dele morrer é muito grande. Então, é como se a vida e a morte estivessem de mãos dadas, assim, e dançassem no meio da gente... a gente nunca sabe qual é o corpinho em que ela vai entrar (...) E mostra que a gente não tem poder sobre absolutamente nada.
A construção da imagem na qual a morte se movimenta de forma regular e imperativa naquele espaço deflagra o árduo reconhecimento dos limites nas condições humanas e nos cuidados ali prestados. Vida e morte dançam juntas e o ritmo técnico, mesmo coreografado e controlado, desvela a fragilidade humana daquele que ali desempenha seu trabalho e não pode oferecer a garantia de proteção dos “corpinhos”, nos quais a morte sempre pode entrar. A enfermeira Clara reconhece suas limitações e a fragilidade inerente ao fazer do cuidador em ambiente hospitalar. Ao discorrer sobre seu “dever”, Clara identifica a diferença entre curar e cuidar:
Nem sempre a gente salva todo mundo (...) Eu não cumpri com o meu dever que é salvar, que é dar saúde. Mas, ao mesmo tempo eu fiz o meu dever, né? O que podia eu fiz, não vou curar todo mundo, não é meu papel curar, mas ninguém sai daqui sem ser cuidado. Isso aí, às vezes, desmotiva, mas, no outro dia, já tá tudo melhor, o andamento das coisas acontece de uma maneira melhor e aquele gás volta de novo.
Percebe-se que é apenas a partir do reconhecimento das diferentes faces do cuidado que a sensação de insucesso pode se dissipar. É preciso repensar o objetivo de seu fazer e desvinculá-lo de um ideal inatingível para que Clara possa atribuir valor àquilo que, efetivamente, pode fazer: cuidar. A diferença entre cuidar e curar permite-lhe continuar trabalhando. Neste sentido, o reconhecimento do limite por parte do cuidador é salientado por Figueiredo (2007) como a necessidade do sujeito se deixar ser cuidado por um terceiro elemento. Ao ilustrar a relação primeira de cuidado, Figueiredo (2007) retoma a importância de uma mãe permitir-se, por exemplo, receber cuidados do pai do seu bebê. Essa condição de abertura ao cuidado que lhe é oferecido passa, inquestionavelmente, pela possibilidade de reconhecer limites, podendo ser transposta para relação entre profissional e paciente. Portanto, quando o cuidador assume que não sabe e não pode lidar com tudo, há a possibilidade de reconhecimento de seus limites e de sua finitude, condição fundamental para que realize um cuidado mais sensível voltado ao outro, com menos propensão a uma atuação tirânica, de exageros e exercício de domínio (Figueiredo 2007).
A necessidade de defesa do psiquismo frente aos excessos experienciados no ambiente de trabalho pode ser associada à construção de uma “crosta protetora” como denominado por Figueiredo e Coelho Junior (2008). Os autores articulam a analogia proposta por Freud (1920/1996), no texto “Além do princípio do Prazer”, mediante a imagem de uma vesícula de matéria viva submetida às ameaças de aniquilamento, por parte de altas intensidades energéticas oriundas do meio externo, para afirmarem a relevância da constituição de uma crosta protetora ao psiquismo. Os autores retomam a concepção de que a sobrevivência da vesícula está sujeita à produção de um invólucro que sirva de proteção e delimite um território próprio, de modo que amorteça e selecione as energias que a acometem, invadem e alimentam. Ressaltam Figueiredo e Coelho Junior (2008) que a defesa por meio desta crosta não seria suficiente, considerando a possibilidade de esta romper-se na iminência de um episódio traumático. É exigida a proteção proveniente de uma segunda defesa, uma “retaguarda” constituída por uma “quantidade de energia posta em reserva”, acessível para reagir frente à invasão de um excesso. Os autores enfatizam que a inexistência do invólucro não viabiliza a retenção de reservas, assim como uma excessiva densidade da crosta não possibilita a entrada de energia, ou seja, o acúmulo de reserva se dá por meio de uma “porosidade necessária”. É imprescindível que haja um equilíbrio na constituição do organismo, capaz de proteger a si próprio retendo um acúmulo de reserva suficiente para sua proteção via constituição da crosta, combinada com o estabelecimento de uma porosidade da pele que permita o fluxo e a liberação de energia, sem o predomínio de invasão ou de traumatismo. A referência à criação de uma “armadura” pela participante Lise oferece uma ilustração precisa desses recursos frente a suas vivências laborais:
Não tenho muitos problemas com a parte de óbito, criei uma... sei lá, uma armadura... Que tu fica mal na hora, é uma pessoa que acabou de morrer ali na tua mão, tentou salvar e não deu, mas que tu consegue sair dali e fazer as tuas coisas super de boa.
Os recursos defensivos, nomeados por Lise como armadura, cumprem uma importante função protetiva. Em “Análise Terminável e Interminável”, Freud (1937/1996) afirma que o Eu faz uso dos mecanismos de defesa para evitar o perigo, a ansiedade e o desprazer. Uma vez que, segundo o autor, todos os sujeitos lançam mão de defesas ao longo da vida, o discernimento sobre o uso dos mecanismos de defesa implica considerar a complexidade de seus efeitos sobre o sujeito. Assim, a qualidade dos recursos defensivos, sua intensidade e a frequência de uso, por sua função protetiva, tornam-se elementos fundamentais para a dinâmica do aparelho psíquico, não devendo ser tomados como equivalentes ao estabelecimento de uma patologia. Muitas vezes, a condição de patologia surge aliada exatamente à impossibilidade de o sujeito lançar mão de recursos de enfrentamento e de metabolização da dor psíquica.
Segundo Dejours e Abdoucheli (1994), para a psicopatologia do trabalho, as reações de defesa são singularizadas, conforme a historicidade do sujeito e sua estrutura de personalidade. Dessa forma, as estratégias defensivas dos trabalhadores são defesas que proporcionam a modificação e a atenuação da percepção dos profissionais em relação à realidade que lhes gera sofrimento (Dejours e Abdoucheli 1994).
Os dados obtidos nesta investigação permitiram constatar que os recursos a serem empregados na regulagem do ritmo no exercício laboral estão, fortemente, influenciados por questões institucionais. Nos dados obtidos, destaca-se a essencial reflexão acerca das condições de trabalho oferecidas aos enfermeiros e o fundamental acolhimento aos aspectos emocionais mobilizados no exercício de suas funções. A próxima Asserção desenvolve reflexões relativas à organização estrutural dos serviços de urgência e emergência, suas fragilidades e potencialidades, bem como sobre o postulado "perfil" profissional para a realização do cuidado.
Segunda Asserção: A Implicação Institucional na Efetivação do Cuidado ao Cuidador
As diferentes modalidades de ritmos, inerentes ao trabalho em contexto hospitalar de urgência e emergência, são permeadas por questões institucionais que qualificam e legitimam condições pelas quais os sujeitos se relacionam e realizam sua prática laboral. Para além da discussão sobre os diferentes ritmos característicos do trabalho de enfermeiros, a análise do material obtido nas entrevistas desvelou, também, a existência de questões institucionais que balizam e prescrevem o compasso de como acontecem esses ritmos na atuação do cuidado.
Ao considerar os entraves estruturais, dificuldades e os atributos do trabalho, referidos pelos participantes, busca-se compreender a importância do engajamento institucional a fim de viabilizar-se a mutualidade do cuidado no contexto de urgência e emergência. Para tanto, recorre-se aos significados do trabalho para a Psicanálise em prol de uma necessária reflexão sobre a relevância do cuidado voltado ao cuidador.
O trabalho constitui um elemento importante de intersecção entre a realidade psíquica e a realidade externa. Segundo Dejours (2004), a Psicodinâmica do Trabalho busca contribuir para a análise das relações entre trabalho e subjetividade. Segundo o autor, o trabalho constitui o saber-fazer, por meio da capacidade de reagir às situações e de poder pensar, sentir, inventar e ampliar a própria subjetividade, como realização de si mesmo, diante das resistências impostas pelo real (Dejours 2004; Dejours 2012a).
No cenário laboral investigado neste estudo, parece haver uma convocatória e uma concordância, por parte da instituição hospitalar, à prontidão dos enfermeiros para os atendimentos de urgência e emergência, de modo que o atributo de ser um serviço de portas abertas impõe a movimentação tensa e frenética dos profissionais. Para Mello e Lima (2010), é intrínseco ao exercício de cuidar em Enfermagem o caráter relacional e contingencial, considerando o constante estabelecimento de relações entre diferentes identidades e historicidades dos indivíduos em situações frequentemente imprevisíveis. Segundo Dejours (2012a), as situações no trabalho são sempre marcadas por eventos inesperados, sendo impossível obter qualidade na realização das tarefas se as prescrições forem cumpridas minuciosamente. Ou seja, há sempre uma disparidade entre o que foi prescrito e a realidade da situação, já que “trabalhar é preencher a lacuna existente entre o prescrito e o efetivo” (Dejours 2012a, p. 38).
No estudo sobre o exercício do cuidado desempenhado por militares bombeiros, Dal Forno e Macedo (2019) propõem que o protocolo constitui uma ferramenta voltada a excluir a subjetividade de quem a utiliza, atribuindo o salvamento às normas técnicas que operacionalizam a ação. Segundo os autores, a operação prescrita pelo protocolo tem a pretensão de tentar proteger o profissional das experiências de desamparo no trabalho, o que também pode ser associado à tentativa de controle do envolvimento subjetivo na execução das atividades em Enfermagem, conforme narrado por Quitéria:
Aqui, desde que eu entrei, a gente é muito focado na tarefa, no atendimento assim, sabe? E a gente até tenta, procura ter um atendimento mais humanizado, mas não é o foco maior, né? A gente foca mais... pelo menos aqui na emergência, a gente foca mais na técnica. Na tarefa, na falta de erro.
O foco na tarefa e na técnica para a busca de uma ausência de erros, sem a efetiva condição de um atendimento mais humanizado, parece estar a serviço não somente de uma cobrança produtiva da assistência como também da execução rigorosa de um protocolo que tenta excluir a parte emocional do desempenho profissional. Entretanto, para Dejours (2012a), o trabalho se apresenta numa situação real e não pode ser previsto pela elaboração, planejamento e organização das tarefas. Considerando não ser possível prever o que é necessário fazer para preencher esta lacuna, o caminho a ser percorrido entre o prescrito e o real deve ser constantemente inventado ou descoberto por quem realiza o trabalho (Dejours 2004). Segundo o autor, o trabalho implica o que é acrescentado pelo sujeito às prescrições para o alcance dos objetivos, os quais lhe são determinados, e, ainda, o que o sujeito acrescenta de si mesmo para dar conta do que não funciona, quando a execução das prescrições é por ele realizada de forma escrupulosa (Dejours 2012a)).
Conforme Rossetti, Gaidzinsk e Fugulin (2013), para dar conta das adversidades características do cenário laboral, é exigido do profissional enfermeiro um desempenho ancorado em conhecimento, rapidez de raciocínio e prontidão durante o processo de tomada de decisão nos atendimentos. Para Copélia existe um perfil de profissional para atuar no contexto de emergência:
Quem trabalha na emergência, trabalha em qualquer lugar (...) Pela demanda de pacientes, por aquele raciocínio rápido que tu tem que ter... agilidade, sabe? Pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. É o perfil de profissional da emergência... Que nem eu digo, eu trabalho em qualquer lugar.
Conforme Dejours e Abdoucheli (1994), os trabalhadores elaboram “regras de ofício”, as quais não são apenas macetes ou habilidades pontuais de determinada função, mas, sim, resultantes da articulação de coerência entre as regras, resultando na construção de princípios reguladores para a gestão de desafios no curso do trabalho. Nesse sentido, Copélia considera existir regras de ofício compartilhadas e validadas por quem trabalha na emergência, que normatizam um funcionamento exigido para a agilidade que o contexto demanda. Para Souza e Lisboa (2005), a intensidade com que profissionais da Enfermagem desenvolvem tarefas corresponde a uma exigência de elevação na produtividade do trabalho, em que as atividades a serem cumpridas tornam-se cada vez mais densas e executadas em um ritmo frenético. Questiona-se se há um preparo prévio suficiente que dê conta dessas exigências, voltado não somente aos aspectos técnicos e protocolares, mas, para os efeitos da permanente disponibilidade subjetiva. O risco se anuncia quando exercer, vertiginosamente e sem reflexão, o ritmo laboral frenético se transforma em atributo virtuoso.
Dejours (2012a) considera que em Enfermagem, assim como em Medicina, são ensinados apenas "conhecimentos", pois não é possível ensinar o trabalho propriamente dito. Como o trabalho sempre desafia a subjetividade, a qual pode tornar-se acrescentada, enaltecida ou, de modo oposto, apresentar-se diminuída, mortificada pela atividade realizada, afirma o autor que “trabalhar não é somente produzir; é, também, transformar a si mesmo” (Dejours 2004, p. 30).
Segundo Traesel e Merlo (2009), o atravessamento afetivo no trabalho de Enfermagem é marcado por contradições e pela doação ilimitada no cuidado ao outro, o que pode acarretar em efeitos deletérios para a saúde do trabalhador. Para os autores, há uma excessiva cobrança por perfeição, inclusive por parte dos próprios profissionais, neste contexto de trabalho no qual se constata ser profundamente complexo sentir-se reconhecido. A busca pela perfeição é considerada como uma obrigação e algo intrínseco à profissão, como refere Clara:
A unidade lotada, a gente não tem técnicos suficientes, e não é que a instituição não tenha um quadro, mas é muito atestado, o pessoal falta. Não consigo entender o que desmotiva, porque é um trabalho. (...) nem passa pela minha cabeça relaxar com meu trabalho (...) Tu faz, faz e as coisas não mudam, não melhoram.
A frustração decorrente da impotência diante das dificuldades e a cobrança, em relação a si mesma e aos colegas, somam-se ao julgamento relativo a um esforço insuficiente no desempenho do trabalho, a falta de apoio ao profissional e o excesso de exigência que recai sobre eles. Outra importante dificuldade enfrentada pelos enfermeiros, situados na porta de entrada dos serviços de emergência, refere-se à constatação da vulnerabilidade e do risco ao qual estão expostos. Giselle relata:
Então, além do momento estressante de tu estar cuidando da doença de alguém, da fragilidade de alguém (...) tu tem que te preocupar com a família, se tem alguém agressivo, se tem alguém armado, se pode invadir a unidade, porque vários já invadiram (...) Essa função de emergência, que é porta aberta, então, aí tu acaba ficando vulnerável a isso. Se eu tivesse numa UTI, é muito mais fechado, é muito mais seguro. Aqui não. Eu estou bem na porta.
Desse modo, é pertinente preocupação acerca da exposição de profissionais de Saúde ao risco de agressão por parte dos usuários dos serviços (Dal Pai & Lautert, 2009). A angústia por não ser capaz de corresponder ao ritmo exigido e às imposições, exercidas pelas relações de dominação e de hierarquia no ambiente onde atuam, e o medo frente à possibilidade de acidente laboral e de agressões, dos pacientes e seus familiares, são algumas das situações destacadas por Dal Pai & Lautert, (2009) como enfrentadas na rotina dos enfermeiros. Conrado exemplifica tais aspectos ao expor sua circunstância de submissão, ao realizar a triagem de pacientes, na medida em que deve deliberar o direcionamento das demandas de atendimento em conformidade com as expectativas institucionais, numa condição de “falso” controle das situações e sem exercer uma verdadeira autonomia em suas decisões:
É, porque tu que tria, tu que passa ali. Aí fica “ah, eu posso decidir”, mas não posso, “sou eu que decido”, mas eu tenho que pensar que tem uns quinze atrás ali que podem me questionar (...) Tu tem o controle, mas não tem.
Kovács (2010) destaca a situação específica da equipe de enfermagem encarregada do contato mais direto e contínuo com o sofrimento do paciente e seus familiares, a qual, muitas vezes, não possui autonomia suficiente para tomar decisões necessárias e sofre muitas pressões. Carmen descreve a cobrança de produtividade no trabalho:
É, tipo em forma de produção. Que daqui a pouco só falta trocar a fralda em que não tem que trocar (...) E a emergência te faz isso, te cega (...) Pela quantidade de pacientes que a gente tem, pelo mecanismo que a gente tem dentro da instituição, pelo manejo, pelo trabalho, pelas horas... que conta cada segundo de trabalho.
A combinação entre a excessiva quantidade de pacientes e o mecanismo institucional de controle e de cobrança de número de atendimentos resulta em um modo de trabalho que parece uma linha de produção. Segundo Guedes e Torres (1984), a partir do avanço da ciência e das tecnologias da Saúde no funcionamento do hospital, instalou-se a falácia de que é possível a instituição comprometer-se exclusivamente com os processos de cura, tratamento e recuperação dos pacientes. O ônus de tal conjuntura é a redução das condições humanas de dignidade e de individualidade para a garantia da realização da eficiência técnica (Guedes e Torres 1984). Nesse sentido, parece haver uma idealização e consequente expectativa social, e institucional, sobre o desempenho do profissional de Saúde, mediante a cobrança de não se deixarem afetar pelas vivências do trabalho, como garantia de objetividade e de assertividade no manejo técnico. Dessa exigência pode derivar o entendimento de que o profissional de Saúde não deve se deixar afetar pelas intensidades de sua atuação, tornando desnecessárias as práticas voltadas ao seu próprio cuidado.
Além disso, quando Carmen se refere ao fato de que a emergência “cega”, pode-se conjeturar que os trabalhadores estejam lançando mão de defesas coletivas como recursos de adaptação às pressões excessivas de uma organização do trabalho, segundo afirmam Dejours e Abdoucheli (1994). Para os autores, as estratégias coletivas de defesa também podem funcionar como um sistema de seleção psicológica dos trabalhadores, de modo a assegurar a coesão e a manutenção do coletivo, para atender aos objetivos da organização do trabalho, como o princípio de produtividade.
O estudo de Aspiazu (2017) reflete a maior vulnerabilidade dos enfermeiros, se comparados a outras ocupações na área da Saúde e relativa desvantagem e desvalorização da Enfermagem por parte das equipes de trabalho. Insuficientes valorização e reconhecimento no trabalho são narrados por Giselle:
As pessoas realmente encaram aquilo como se tu não fosse o mesmo organismo. Tu não fica doente, tu não precisa das mesmas necessidades delas. Tu não fica mal, não fica chateado, não fica triste (...) é uma profissão que não é muito valorizada (...) as pessoas acham que estás fazendo a tua obrigação e tem que fazer da melhor maneira possível e “ai de ti” que não faça.
Para Dejours (2012b), o reconhecimento abarca o sentimento de gratidão e a constatação da realidade da contribuição do sujeito à organização do trabalho, e sua retribuição simbólica passa por julgamentos sobre o fazer do trabalhador. O autor afirma que por meio do reconhecimento é possível transformar sofrimento em prazer, ao considerar a possibilidade de atribuir ao trabalho seu sentido subjetivo. Assim, o que mobiliza a inteligência do trabalhador não se restringe à retribuição material para os seus esforços, mas uma retribuição simbólica a qual constitui o reconhecimento pelo trabalho realizado (Dejours 2012b).
Sabe-se que, para o profissional cuidar-se e admitir ser cuidado, é essencial que haja o reconhecimento dos fatores emocionais implicados em seu trabalho por parte da instituição. Conforme Figueiredo (2007), para que sejam desenvolvidas a disposição e a prontidão necessárias no exercício do cuidado ao outro, é primordial a condição de o próprio sujeito cuidar-se e aceitar ser cuidado. Dessa condição decorre a garantia de mutualidade de cuidados, de exercício da alteridade, de reconhecimento das diferenças e dos limites inerentes a todo cuidador. Figueiredo (2007) compreende como “presença reservada” a modalidade de cuidado a qual oferece ao sujeito um espaço livre de excessos e de saturação, protegendo-o de uma prática tirânica de imposição por parte daquele que cuida. Este, então, se mantém disponível, sem exercer intromissões desmedidas ao desempenhar o cuidado. Para que ocorra um equilíbrio da combinação de “implicação” e de “reserva”, é essencial que o sujeito cuidador seja capaz de moderar suas ações, renunciando sua onipotência e reconhecendo sua própria dependência.
Um recurso importante na promoção do cuidado ao cuidador pode estar no ambiente coletivo de trabalho. Segundo Lancman e Uchida (2003), o sofrimento é vivido de forma singular, mas sua solução parte do coletivo, sendo imprescindível a construção de um espaço público para a circulação da palavra coletiva. A partir da escuta do expresso no ambiente de trabalho são criadas possibilidades do sofrimento aparecer e de seu enfrentamento surgir e ser pensado com base na reflexão do grupo. Nesse sentido, o foco exacerbado na utilização da técnica e do protocolo na realização do cuidado viabiliza a produtividade dos atendimentos e o desempenho profissional com eficiência e precisão, porém, não garante o necessário cuidado para com as condições psíquicas do trabalhador e sua proteção diante das intensidades vividas no trabalho. Ao considerar a vulnerabilidade e o risco, aos quais estão expostos os enfermeiros em função da precariedade das condições de trabalho, dos insuficientes reconhecimento institucional e valorização profissional, ressalta-se a relevância de espaços coletivos de discussão e de escuta voltados às necessidades de sujeitos, aos quais se exige a prontidão para cuidar do outro. Para tanto, é relevante a construção de um espaço de “retaguarda” na instituição hospitalar, que ofereça a suficiente "energia em reserva", retomando a perspectiva de Figueiredo e Coelho Junior (2008), na qual o cuidador possa recorrer frente às adversidades de sua prática de cuidado ao outro. Além dos mecanismos individuais, da crosta protetora e da “energia colocada em reserva” (Figueiredo e Coelho Junior 2008), construídos pelo próprio sujeito como meios de defesa, faz-se necessária a articulação de uma fonte de energia e de proteção promovida pela própria instituição aos seus funcionários. Tal proposta de cuidado voltada à subjetividade do profissional só pode ser assegurada se houver o reconhecimento das intensidades emocionais presentes no trabalho e da intensa demanda de aliar técnica a recursos psíquicos no exercício de cuidado ao outro. A capacitação profissional, nesse sentido, não pode ser restrita ao domínio da técnica. Trata-se de reconhecer o sujeito que exerce o trabalho de cuidar. Assim, não somente o profissional precisa adaptar-se ao contexto singular de trabalho, e se qualificar em prol do cuidado voltado ao outro, como a própria instituição precisa ser capaz de reconhecer e acolher as demandas dos sujeitos que ali atuam como cuidadores.
Considerações Finais
No contexto de urgência e emergência hospitalar, é constante a convocatória à prontidão do profissional de Enfermagem para agir imediatamente de modo a acolher e a atender a demanda do outro. Embora sejam reconhecidos o valor e a relevância do aparato técnico e da utilização do protocolo, a realização deste estudo permite constatar que o impacto frente às demandas do cuidado às urgências e emergências do outro não ficam restritas ao cumprimento das premissas protocolares. É evidente o valor da oferta de capacitações profissionais, porém, também, se faz inquestionável a necessidade de que essas não se restrinjam ao aprimoramento dos protocolos. A combinação entre o rigor técnico e a capacidade criativa, decorrente da abertura sensível ao real, sustentará uma efetiva prática de cuidado exercida pelo sujeito profissional no contexto de Enfermagem. Essa conjuntura de trabalho deflagra a vulnerabilidade e os riscos aos quais os profissionais estão expostos cotidianamente. O sujeito precisa recorrer a recursos próprios que viabilizem sua permanência no ambiente de trabalho e a solução dos diversos tensionamentos e desafios que devem ser enfrentados a todo momento. Constatou-se que, por meio do recurso a estratégias defensivas coletivas somadas aos recursos defensivos individuais, os sujeitos cuidadores encontram formas de proteção frente às intensidades, constantemente, vivenciadas no ambiente de trabalho. Para tanto, é imprescindível haver o reconhecimento institucional da implicação da subjetividade do cuidador no cuidado oferecido. Por meio da reflexão a respeito das reais condições de trabalho ofertadas, da legitimação do sofrimento do sujeito profissional e do acolhimento de suas demandas afetivas, o trabalho de Enfermagem poderá ser, efetivamente, valorizado e reconhecido. Acredita-se que, apenas mediante a oferta e a promoção de espaços de escuta e reflexão sobre as efetivas condições implicadas no fazer do cuidador, e a acolhida institucional ao sujeito e seus impasses, se viabiliza a prática laboral de um genuíno cuidado ancorado em sua condição imperiosa: a mutualidade.