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Psicología, Conocimiento y Sociedad

versión On-line ISSN 1688-7026

Psicol. Conoc. Soc. vol.9 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.26864/pcs.v9.n2.12 

Revisiones

A “clínica social” em psicologia e articulações que sustentam esse fazer: uma reflexão acerca do cenário brasileiro

La "clínica social" en psicología: articulaciones que sostienen ese hacer: una reflexión sobre el escenario brasileño

The "social clinic" in psychology and articulations that support this practice: a reflection about the Brazilian scenario

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Autor referente: esaraujo.psi@gmail.com


Resumo:

Clínica social ou atendimento social é uma prática recorrente nos atendimentos clínicos em psicologia sendo geralmente associada ao atendimento de baixo custo. Este trabalho busca provocar reflexões sobre esse fazer a partir dos múltiplos sentidos que podem ser dados a essa prática. Utilizando como referencial teórico principal a Teoria Ator-Rede e os estudos Ciência Tecnologia e Sociedade, tomamos como suporte reflexões a partir das práticas cotidianas e das convocações as quais o psicólogo recebe do campo. Pensamos em como a psicologia se manifesta e atua nesse fazer e, para além disso, como o campo atua na psicologia, provocando, questionando e atualizando o que é ser psicólogo clínico. Entendendo a psicologia como uma prática de cuidado, trazemos a importância de discutirmos esses fazeres como práticas políticas que constituem saberes e formas de atuação a partir das articulações locais, afetando tanto a sociedade quanto a própria psicologia clínica.

Palavras-chave: Psicologia social; clínica social; teoria ator-rede; cuidado

Resumen:

Clínica social o atención social es una práctica recurrente en las atenciones clínicas en psicología, generalmente asociada a la atención de bajo costo. Este trabajo busca provocar reflexiones sobre ese hacer a partir de los múltiples sentidos que pueden ser dados a esa práctica. Utilizando como referencial teórico principal la Teoría Actor-Red y los estudios Ciencia Tecnología y Sociedad, tomamos como soporte reflexiones a partir de las prácticas cotidianas y de las convocatorias que el psicólogo recibe del campo. Pensamos en cómo la psicología se manifiesta y actúa en ese hacer y, además, cómo el campo actúa en la psicología, provocando, cuestionando y actualizando lo que es ser un psicólogo clínico. Entendiendo la psicología como una práctica de cuidado, destacamos la importancia de discutir esos hechos como prácticas políticas que constituyen saberes y formas de actuación a partir de articulaciones locales, afectando tanto a la sociedad como a la propia psicología clínica.

Palabras-clave: Psicología social; clínica social; teoría actor-red; cuidado

Abstract:

Social clinic or social consultation is a recurring practice in psychological clinical appointments usually associated to a low cost consultation. This work aims to provoke reflections about a way of working from the multiple senses attributed to this practice. Using Actor-Network Theory and Science Technology and Society studies as the main theoretical references, we sustain our reflections upon everyday practices and from the summons the fields invokes to the psychologists. We think of how psychology manifests itself and acts in this practices, and beyond that, how does the field acts in psychology, provoking, questioning and updating what is to be a clinical psychologist. Acknowledging psychology as a care practice, we highlight the importance of discussing our doings as political practices that constitute knowledge and ways of acting from local articulations, affecting as society as the very own psychology.

Keywords: Social psychology; social clinic; actor-network theory; care

Há homens que apostam na possibilidade e homens que são contra a possibilidade, ‘homens de possibilidade’ e ‘homens de antipossibilidade’. Os primeiros acreditam sempre numa ‘reserva de possibilidades estrangeiras à nossa experiência atual’. Eles afirmam possibilidades puras. Para tais indeterministas pluralistas ‘as realidades parecem flutuar num mar vasto de possibilidades onde elas são extraídas e escolhidas’ (Pelbart, 2016, p. 356)

Peter Pal Pelbart ao falar de William James titula seu capítulo como “Acreditar no mundo” (Pelbart, 2016). O convite de William James é que nos lancemos na prática e nos deixemos surpreender por ela: mais o que coisas feitas, o empirismo radical aposta na feitura das coisas, das coisas se fazendo. Não é um capítulo sobre Deleuze, mas é um capítulo sobre a crença num mundo múltiplo e de possíveis. Em todo seu livro muitos paralelos entre diversos filósofos são contrastados com o pensamento Deleuziano e não é à toa, já que o convite de Deleuze é que nos deixemos surpreender pelas linhas de fuga que propiciam a descoberta de novos espaços. Ao falar sobre o Niilismo, e sobre as reinvenções e reconstruções a partir do esgotamento, impossível não pensar ao fundo nas linhas de fuga, nos rizomas, nas máquinas de guerra e nos corpos sem órgãos, “mil” conceitos, “mil” platôs que se mostram em possibilidades de se pensar o potencial transformador, instituinte, a todo momento ativo diante de um espaço estriado, ou de maneira mais interessante, a impossibilidade de se estriar completamente um espaço sem a partir daí provocar, favorecer justamente no estrangulamento das possibilidades, a criação de um novo espaço liso (Deleuze & Guattari, 2000). Talvez, acreditar no mundo a convite de William James e da proposta de um empirismo radical, na experiência como criadora de possibilidades, transformações e fazeres, no lidar com a insegurança como potencializador da reconstrução seja, numa certa dimensão, lidar com a necessidade de criação de novos espaços como Deleuze nos convida. E é a partir daí que iniciamos essas reflexões, a partir da criação desses novos espaços, indeterminados, plurais, espaços a serem preenchidos como um corpo sem órgãos, que uma leitura outra para o que se convencionou chamar de clínica social em psicologia possa ser articulada em outros possíveis. Alertamos o leitor que não é objeto desse texto discorrer acerca das diferentes abordagens clínicas em psicologia e muito menos as peculiaridades e produções desses modos distintos de intervenção. Destacamos, ainda, que nossas reflexões tomam como referência o cenário brasileiro e, para tal caracterização, recorremos as orientações dispostas nos Conselho Federal de Psicologia. É uma autarquia que tem como finalidade primordial regulamentar, orientar e fiscalizar o exercício profissional da psicologia no Brasil, e também se constitui num espaço de discussão de temas de interesse da categoria visando a qualificação dos serviços prestados à sociedade. A partir desse contexto, nosso propósito é nos atermos aos sentidos e efeitos que esse binômio clínica social produz em nossa prática clínica.

Para contornar essa discussão, alguns questionamentos se fazem necessários: Qual é o papel do processo terapêutico? Será que o fato de ser uma prestação de serviço que escapa a fixação rígida de uma tabela, de um protocolo absoluto, já produz por si efeitos de multiplicação de possibilidades, negociações sobre o valor de um serviço e reflexões sobre como compor esse valor, deslocamentos que provocam movimento no sentido do imprevisível, do risco, do espaço não dado, mas possível de ser criado? O termo “Clínica social” é corriqueiro entre os profissionais da psicologia clínica sobre o qual não existe um consenso além da implicação de um atendimento em valor abaixo dos valores de mercado ou mesmo gratuito. Não há consenso sobre quais valores são sociais, sobre a duração das sessões nessas condições, sobre a quantidade de pessoas em atendimento (grupo ou individual) e nem sobre a frequência ou lugar em que esses atendimentos acontecem. Alguns clínicos consideram como social um valor abaixo da tabela sugerida pelo Conselho Federal de Psicologia, outros um valor que pague apenas as despesas do consultório para aquele horário, outros praticam esse tipo de clínica em espaços como igrejas ou ONGs e, nos últimos tempos, frequentemente os atendimentos possuem horário reduzido de 50 minutos para 30 minutos, instaurando-se aí uma nova peculiaridade talvez adaptada às demandas atuais de celeridade. As justificativas para compor um valor bem abaixo da tabela sugerida pelo Conselho Regional/Federal de Psicologia, frequentemente flutuam entre uma ideologia de que a psicologia é para todos, reproduzindo um modelo de assistência, até uma forma de divulgação do trabalho para os iniciantes, numa certa distorção do que seria um treinamento de uma prática mesmo após a finalização da graduação. Todos esses pontos sobre a clínica social são controversos, geradores de polêmicas, motivo de fiscalização do conselho e vão compor um quadro extremamente múltiplo e complexo.

Esse envolvimento da psicologia com as demandas sociais faz parte do Código de Ética Profissional do Psicólogos (Conselho Federal de Psicologia (CFP), 2005) que em seus artigos busca orientar limites e possibilidades dessa relação da psicologia com a sociedade através das demandas tanto na dimensão subjetiva, quanto das relações financeiras. A relação de responsabilidade do psicólogo com a sociedade aparece já no princípio fundamental III do código de ética, que diz: “O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural” (CFP, 2005, p. 7). Esse princípio é reforçado no mesmo código de ética no artigo primeiro, alínea d, nos deveres fundamentais dos psicólogos: “Prestar serviços profissionais em situações de calamidade pública ou de emergência, sem visar benefício pessoal” (CFP, 2005, p.8). O código de ética também veda ao psicólogo “Induzir qualquer pessoa ou organização a recorrer a seus serviços” (CFP, 2005, p.10) em seu artigo 2°, alínea i. Pelo mesmo código no artigo 20, alínea d, é vedado ao psicólogo utilizar o preço dos serviços profissionais como forma de propaganda (CFP, 2005). Soma-se a isso, no artigo 2º, alínea j, restrições quanto ao estabelecimento de vínculos com familiares ou terceiros que possuam relação com a pessoa atendida e que possa interferir no processo/tratamento em curso (CFP, 2005). Isso traz algumas implicações relevantes para nossa discussão. A relação do psicólogo com o que chamamos de social é uma relação fortemente mediada por situações que supõe mais que um controle de um saber técnico do profissional, ela é mediada sobre quais relações na dimensão afetiva são permitidas ou não ao psicólogo clínico. Nesse contexto, ao olhar para o campo de atuação profissional do psicólogo não podemos descontextualiza-lo do campo das afetações, afetações essas que passam pela construção de um código de ética. Cabe aqui ressaltar que não faz parte desse trabalho estabelecer relações de certo ou errado, e ainda menos apontar uma crítica ao código, mas sim descrever como nos situamos na construção de uma prática e de um saber a partir do que é agenciado por esses atores. Para Latour (2012) um ator ou actante é todo aquele que tem agência, que faz fazer. Compomos uma profissão com responsabilidade social, que envolve uma convocação às mobilizações sempre que a sociedade necessitar e que não visem lucro, práticas de cuidados em nossas próprias relações e na escolha de que vamos atender para que não interfira nos processos terapêuticos das pessoas em atendimento, limitações quanto a divulgação do trabalho, onde não cabe induzir a pessoa ao atendimento nem tão pouco divulgação de valores em meios públicos.

Compreendendo a pertinência de todas as normas do código de ética, o psicólogo clínico surge como um profissional, frequentemente autônomo, com peculiaridades com relação a outros autônomos. Seu trabalho não é aplicável aos que fazem parte do seu círculo de relações, dependendo na maioria das vezes, de uma rede de indicações cuidadosa o suficiente para filtrar quais indicações são possíveis ou não para cada profissional. Além disso, as regulamentações sobre o dinheiro colocam esse aspecto da profissão fora do campo das discussões. Ele não deve ser exposto e é pouco falado aos estudantes nos cursos de graduação, numa dimensão quase profana. No entanto produz, especialmente nos que buscam se estabelecer na profissão, múltiplos efeitos, principalmente pela evitação dessa temática dinheiro - prática profissional - autonomia econômica. Isso nos convida a pensar que esta é uma profissão regida menos pelas discussões monetárias e que traz na sua própria regulamentação a dimensão política como norteadora de um fazer. Mas como pensar numa formação para o trabalho sem mencionar ou orientar as implicações que isso traz para um profissional que passa 5 anos se graduando em uma universidade? O que isso faz fazer em nossas práticas?

Dessa forma, esse adjetivo “social” que qualifica tal prática clínica merece um olhar mais expandido. Vale ressaltar que sequer o termo “social”, da forma como é usado na psicologia, não faria sentido à muitos sociólogos.

Latour (2012), em seu livro “Reagregando o Social” debruça-se sobre o que é esse social e sobre como olhar para ele de forma a apreender o que o social tem a nos dizer e a nos mostrar sobre sua construção e organização. Suas reflexões seguem contextualizando duas formas de entender o social: um social que é explicado pelos sociólogos, formulado por hipóteses inspiradas num pensamento causal, moderno e essencialmente formado por atores humanos; e uma outra proposta de leitura desse social, descritiva e não explicativa, onde é necessário seguir as articulações entre humanos e não humanos para poder compreender as redes formadas, que são únicas e locais. A proposta desse trabalho é provocar algumas reflexões sobre o que chamamos peculiarmente de “clínica social” ou “atendimento social” em psicologia, referenciados pela Teoria Ator-Rede (TAR) e pelos estudos em Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS) e como essa prática é performada e cria não só possibilidades de conhecimentos, mas novas realidades e práticas para se pensar a clínica psicológica a partir das demandas do campo. Essa provocação vai além do escopo do termo social do qual a clínica se apropriou em muitas regiões, mas de pensar a convite de Latour e outros autores que dialogam com a TAR, tais como Mol (2008); Moraes (2010); Despret (2011); Haraway (2011); Lin & Law (2017), as redes que sustentam essa prática a partir de situações cotidianas, situadas e que envolvem relações e articulações múltiplas, que vão desde as implicações e afetações subjetivas dos psicólogos clínicos, demandas sociais, lugar da clínica e da psicologia, valor do trabalho do clínico e as relações de sustento financeiro de uma profissão. Portanto, discorreremos aqui acerca de alguns aspectos que norteiam nossas indagações.

O Que Faz a Clínica Social?

Nessa caminhada para pensar a clínica social a partir de sua multiplicidade, o pensamento de Deleuze nos convida a ampliar o olhar e pensar essa articulação da prática clínica pelo viés da resistência. A primeira pergunta que nos atravessa nesse pesquisar é: o que faz um(a) profissional atender numa proposta “social”? Assistencialismo? Divulgação de seu trabalho? Não acreditamos que exista apenas uma resposta a essa pergunta, nem que ela seja simples, mas acreditamos que algumas das versões possíveis para essa resposta envolvem a dimensão de encontros e convocações a subjetividade do profissional. Não uma subjetividade endurecida, mas uma subjetividade fluxo, que circula, vagueia, reage ao contexto de um lugar e um momento, e por isso também passa inevitavelmente pelos espaços de criação que escapam à norma, ao instituído, à não reatividade, ao esvaziamento da vida, à redução da vida à sobrevivência biológica, ao absoluto niilismo, como Pelbart (2016) menciona:

Uma vida (ênfase adicionada), tal como Deleuze a concebe, é a vida como virtualidade, diferença, invenção de formas, potência impessoal, beatitude. Vida nua (ênfase adicionada), contrariamente, do modo como Agamben a teorizou, é a vida reduzida a seu estado de mera atualidade, indiferença, disformidade, impotência, banalidade biológica... (p.35).

O atendimento clínico social também existe sob a forma de instituições que se propõe a tal prática. Em muitos casos são instituições formadoras em psicologia clínica, universidades e pós-graduações que precisam oferecer a seus alunos pessoas que irão constituir o “objeto” base para o aprendizado de um fazer clínico. No entanto, de forma paralela, pessoa a pessoa, experiência a experiência, essa forma de atendimento vai sendo articulada fora desses estabelecimentos. Ela aparece em brechas de histórias que são contadas entre parceiros profissionais, em redes invisíveis, fazendo surgir possibilidades, onde antes não existiam, por meio da sensibilização diante de histórias. Diante do esgotamento niilista encontram-se as pessoas a serem atendidas, mas também os articuladores dos encontros e os profissionais, o cuidado de si e o cuidado do outro. A movimentos de pessoas em direção a outras pessoas com impactos que só podem ser seguidos, cartografados, uma dimensão experiencial e política de um fazer.

Um exemplo dessas articulações aconteceu recentemente, fim de 2016 e início de 2017. Com a crise financeira do Estado do Rio de Janeiro muitos servidores deixaram de receber seus salários de forma regular, previsível, capaz de sustentar um planejamento orçamentário. Situação improvável até pouco tempo antes, onde ter um emprego público era sinônimo de estabilidade e tranquilidade. Diante do improvável e de uma crise jamais vista no estado, o funcionalismo público estadual virou protagonista de notícias diárias. As histórias de sofrimento pelo atraso de dois, três meses seguidos de salários causou crise e rupturas em muitas vidas. Muitos servidores estaduais haviam contraído dívidas, vendido bens, perdido imóveis e a capacidade de se alimentar, comprar remédios, pagar seus planos de saúde. Cuidados básicos com a vida haviam sido comprometidos. A situação se agravara ainda mais em alguns casos, começaram a ser noticiados servidores com sequelas derivadas de situações cardiológicas e circulatórias provocadas por intenso stress, além alguns suicídios associados ao acentuado sofrimento provocado pela crise. Essas situações improváveis anos atrás, compartilhadas diariamente nos noticiários, provocaram reações em muitos psicólogos clínicos. Um movimento, iniciado nas redes sociais, convidava psicólogos clínicos a atenderem de forma social, ou gratuita, servidores do estado que estavam em sofrimento diante do não pagamento de salários. Surgiram muitas vagas para atendimento psicológico gratuito ou a baixo custo em todo o estado para esses servidores. Vagas que não existiam, que não foram abertas por instituições que ofereciam esse serviço, mas através da articulação de indivíduos, psicólogos clínicos que se sentiram convocados a agir.

Esse movimento/fluxo da clínica nessa situação não deve ser lido de forma simplificada, pois nada tem de único e vale sempre refletir sobre o que isso fala da psicologia, escapando à ideia simplista da solidariedade. Situações, especialmente as coletivas que envolvem intenso sofrimento, costumam ser noticiadas convocando a psicologia como saber e prática. Desastres naturais (como deslizamentos, enchentes) e outros provocados pelo homem (desastres com vítimas de armas de fogo, atiradores, desabamentos de construções e barragens...) mobilizam psicólogos que se propõem a atender de forma social ou mesmo voluntária, indivíduos e grupos. Mais que um conjunto de pessoas que se sensibilizam diante do sofrimento humano, os recursos que os profissionais de psicologia disponibilizam são também, em sua essência, recursos políticos. Falam de uma postura e forma de ação no mundo que podemos considerar movimentos de resistência. Tornam a clínica e a psicologia visíveis diante da sociedade como um fazer essencial quando se trata de sofrimento psíquico e cuidado.

A reação diante da impossibilidade ultrapassa o acolhimento imediato, articulando junto a um conjunto de outras pessoas e outros profissionais a criação de novos possíveis. O trabalho do clínico jamais escapa dessa articulação, quer seja num consultório privado ou num espaço compartilhado, numa clínica ampliada, uma profunda reflexão sobre como situações se sustentam. Lidar com os impossíveis, fazer surgir daí articulações criativas, diante do que está interrompido, capturado pelo universo da impossibilidade está no fundamento do fazer clínico (Prestrelo, Araujo, Moraes & Marques, 2016).

Seguindo esse fluxo, que se inicia na sensibilização do psicólogo clínico diante do sofrimento alheio e dos espaços criados para lidar com essa dimensão da dor de forma compartilhada, podemos dar mais um passo nessa contextualização. Se a clínica, e sua atuação ainda que individual possui uma dimensão social (Quadros, 2011), essa dimensão social também dá contornos à psicologia clínica como explorado de forma mais aprofundada por Foucault (1997) em “História da Loucura”, onde conclui que a psicologia nunca possuiria a verdade sobre a loucura, já que era a loucura que detinha a verdade sobre a psicologia. Se a psicologia se constitui como força político social, ainda que em sua dimensão mais íntima de contato com o ser humano, esse contato também dá contornos ao que chamamos de clínica e suas muitas peculiaridades.

O Que o Social Faz Na Clínica?

A sensibilidade diante do sofrimento alheio não é exclusividade do psicólogo. No entanto é esperado do psicólogo clínico dentro de um corpo social tal qual vivemos no Brasil, uma postura empática, de compaixão, de cuidado, de acolhimento. Essa postura frequentemente entra em conflito com demandas de valorização da profissão, fantasiada no senso comum como simples e fácil o trabalho do clínico, como “só escutar”. Essa desvalorização da profissão aparece em campanhas publicitárias e na fala popular onde o taxista, o cabeleireiro, a manicure e a agência de viagens se propõe substituir os saberes da clínica e produzir impactos semelhantes na vida das pessoas como os que acontecem em um processo psicoterapêutico. A profissão “terapeuta” também não é regulamentada no Brasil, portanto não fazendo parte do rol das práticas exclusivas da psicologia, situação que confunde a sociedade sobre o que faz a psicologia. Nos primeiros períodos do curso de psicologia é fácil observar entre os estudantes confusão ao descreverem o que é a profissão.

Se a psicologia ajuda a dar contornos políticos a uma sociedade diante de momentos de adversidade, é também nesse encontro, nessa mistura que a sociedade descobre e oferece a mesma psicologia contornos possíveis, formas e possibilidades de atuar que muitas vezes não foram pensadas. Um conhecimento que surge através da experiência do fazer e que a ambos questiona e oferece limites e possibilidades, a mesma dimensão da experiência a qual Pelbart (2016) se refere ao descrever o empirismo radical de William James. É nesse encontro com o social que o clínico se mostra em seu fazer, se faz conhecer diante da população e compreende o que dele é demandado.

Despret (2011), psicóloga por formação, descreve sua experiência em seu artigo sobre o segredo na clínica diante do desafio do encontro com uma outra realidade, num pós-guerra, onde essa relação entre a clínica individual, o lugar do psicólogo, o lugar do segredo e o contorno dado como definido pela academia sobre como deveria agir se veem desafiados naquele contexto. Seus contornos conhecidos sobre um fazer já não se sustentam diante daquelas pessoas. E quem sabe a grande armadilha para a clínica em psicologia esteja aí, em sua intensidade para cumprir sua função de criação de novas possibilidades, de acreditar nas pessoas como potencialidades criadoras capazes de se reinventar, ela se sistematize em métodos e técnicas e se torne rígida, e perca a sua própria capacidade de se reinventar. A quem servem as instituições na clínica? E a quem servem as normas estabelecidas sobre o fazer se não puderem ser pensadas e reinventadas? Como manter um contorno que a sustente em sua identidade como fazer e uma profissão sem que esse contorno a sufoque em certezas?.

O Que Esse Fazer Pode Fazer?

Acrescentando mais um aspecto dessa multiplicidade sobre a clínica e sua intersecção tão íntima com as demandas sociais, além da relação da experiência individual ao acolher situações de impossibilidade, da questão da criação de novos espaços lisos diante de situações que são políticas e da questão ligada ao próprio contorno que a psicologia só consegue traçar sobre si quando moldada pela sociedade quando a acolhe e valida como prática. Haraway (2011; 2016) nos convida a ir mais além em nossas reflexões. Convite esse que traz a reflexão sobre as práticas que envolvem cuidado, sofrimento e pesquisa como algo a ser reavaliado por toda a sociedade, toda uma era. Em “A partilha do sofrimento” (Haraway, 2011) sua pesquisa se volta para as relações de cuidado entre pesquisadores e seus objetos vivos de pesquisa, e de forma situada ela explora os espaços de negociação entre a ciência e o cuidado, entre a necessidade de se prosseguir com determinadas pesquisas e que espaços são criados nas relações para que esse sofrimento causado pelo ato de pesquisar seja somente o indispensavelmente necessário. Lendo após escrever as frases logo acima é possível ter um pequeno vislumbre da não simplicidade dessas afirmações. As frases parecem óbvias, afinal, que cientista poderia ser indiferente a infringir dor em um ser vivo? Especialmente sabendo que suas pesquisas frequentemente visam um “bem maior”, criação de medicamentos, cosméticos, técnicas que muitas vezes visam acabar com dores, moléstias, alergias, impactos na natureza? Visam salvar a vida na Terra! No entanto essas afirmações nada possuem de óbvio. Haraway, é bióloga e ainda que o próprio nome da profissão nos convide a pensar em uma relação íntima, de cuidado com a natureza, não é assim que o trabalho funciona em termos práticos para se alcançar objetivos. Toda uma negociação entre reconhecer as necessidades de um projeto em prol da natureza e da vida é acompanhada pela dessensibilização com relação ao sofrimento acaba acontecendo para o andamento do trabalho. Ao se trabalhar com zoologia é necessário matar muitos exemplares das espécies estudadas para que se possa ter esse material armazenado em coleções de museus e sua existência comprovada e possível de ser conferida e checada a cada momento cientificamente. Ao se trabalhar com ecologia, muitos grupos taxonômicos só podem ter sua população estimada a partir de coletas quantitativas, frequentemente envolvendo a morte de centenas a milhares de espécimens. Isso sem mencionar os estudos nas áreas de fisiologia, genética, medicina... estabelecer uma relação de vinculação com essas vidas é se permitir novamente a ser afetado e a reagir diante de uma comunidade científica atrás de brechas e novas possibilidades de trabalhar e produzir uma ciência sob outros parâmetros. A psicologia clínica trabalha com humanos, e produz pesquisas nesse fazer, no entanto, frequentemente esse movimento de afetação e não afetação faz parte da formação do clínico nas diferentes abordagens, exigências e discursos sobre uma boa clínica. Mais que discursos, são necessárias discussões sobre as relações de afetação, produções desse processo de encontro com o sofrimento de outros seres vivos que nunca é simples, sejam eles humanos ou não humanos.

As discussões de Haraway (2011) vão dessa forma atravessar os campos da política e da ética saindo da simplicidade das normas e entrando na complexidade das formas de fazer, dos valores que regem toda uma era e se esses valores dão conta do cuidado com o mundo para sua continuidade da vida na própria Terra, onde ela menciona que mais importante que fazer filhos é fazer relações de parentescos, cuidados de si e cuidados do outro. Nesse ponto, podemos voltar a pensar a clínica em psicologia em sua multiplicidade, não apenas incluindo nessa discussão a afetação ao sofrimento alheio como instrumento de potência em se buscar transformações de um fazer, instrumentos que podem nos ajudar a pensar uma clínica não moderna, quanto ampliar a noção de importância das relações de cuidado, tão características das carreiras de saúde, como práticas que transcendem essas relações profissionais, que como sugerido por muitos pensadores (Haraway, 2016; Mol, 2008; Prestrelo et al., 2016) que precisam ser pensadas como paradigmas necessários à sobrevivência humana na Terra. A clínica “social” também ocupa esse lugar, de se pensar e fazer circular relações de cuidado, o que nada tem a ver com assistencialismo, mas como práticas que se atualizam e que vão compor outras formas de experiências das realidades que queremos produzir, políticas de existência. Recorrendo a Mol (2008), pensamos no cuidado como um processo de entrelaçamentos de práticas que se constituem na própria ação de cuidar. Elas não são dadas a priori, são singularizadas e convocadas em cada situação. E a noção de cuidado na clínica em psicologia não se restringe à relação terapeuta cliente.

Há muitos atores envolvidos nesse processo e quando compreendemos essa prática pelo que Mol (2008) denominou a lógica do cuidado, somos convocados a pensar sobre toda a rede de atores que permeia a pessoa que busca esse atendimento a partir de um outro referencial, Para Mol (2008):

A arte do cuidado é descobrir como vários atores (profissionais, medicação, máquinas, a pessoa com a doença e outros envolvidos) podem melhor colaborar para melhorar, ou estabilizar, a situação de uma pessoa. O que fazer e como dividir o que é feito? Na lógica do cuidado pacientes não são um grupo alvo, mas membros cruciais da equipe de cuidado. (p. 26) (tradução dos autores).

Nesse sentido, o que a clínica pode produzir tem dimensões que atravessam materialidades, mas não se restringe ao aspecto econômico ou assistencialista, trazendo responsabilidades políticas e éticas à sua prática, para além do que é legislado em nosso código.

Considerações Finais

Passamos por autores como Bruno Latour, Donna Haraway, Annemarie Mol, Vincianne Despret, William James, Gilles Deleuze, Michael Foucault, Peter Pal Pelbart que surgem como prolongamentos desse rizoma de uma epistemologia do que é o fazer científico e de como ele se mescla com um social complexo, sensível, criativo, performático. Autores que se fazem ecoar por outros textos e autores e produzem ecos enriquecidos na ousadia de mergulhar em suas reflexões pelo lado avesso ao dado pela ciência moderna, pelas brechas seguindo ou fugindo do óbvio sempre que necessário para que outras possibilidades possam ser percebidas ou criadas. Mais que os discursos, são filósofos que convidam ao caminhar, à experimentação, à descrição e a vagar em busca de uma ciência que possa produzir sentidos outros para os discursos sobre as verdades dadas. Discursos que fujam a um binarismo e caminhem na direção da multiplicidade e do aspecto performativos da realidade, e explorando espaços que escapam ao óbvio, ao dado, mas que justamente vão surgir nos intervalos, nos espaços do entre, nas brechas das articulações visíveis, protocolares, formais (Lin & Law, 2017).

De forma complementar, o que propomos aqui é o afastamento de um fazer sobre o outro para produzirmos nossas pesquisas, conhecimentos e novas questões que se articulem COM esse campo (Moraes, 2010) questões práticas que precisam nos atravessar em nossas políticas e práticas profissionais. A preposição COM em letra maiúscula representa a ênfase dada pela autora aos laços que podem ser constituídos na pesquisa de forma simétrica, não hierárquica sendo um termo cunhado por ela o PesquisarCOM, destacando a função conectiva da preposição nas relações estabelecidas no campo da pesquisa. Dessa forma, entendemos que a temática aqui proposta é situada, nos permite reconfigurar algumas questões. Será que é o código de ética que se faz obedecer e cria as práticas e formas de fazer ou se são as práticas estabelecidas relacionalmente com as experiências concretas dos psicólogos com suas experiências vividas e compartilhadas com o que o campo convoca que inspiraram o código com suas peculiaridades e aproximações regulamentadas com as questões político-social? As histórias vividas carregam consigo as articulações improváveis e as soluções inesperadas, como a crise do Estado e suas dimensões. No âmbito do direito, por exemplo, são as repetições de histórias singulares que provocam os juízes a legislar sobre o não previsto na legislação. São as repetições sobre esses resultados, de situações locais diferentes em suas descrições básicas, mas semelhantes em seus questionamentos, que vão provocar a partir de reflexões que articulam éticas o que chamamos de jurisprudência. As jurisprudências podem inspirar as leis. O direito vem do campo vivido e diante disso as leis são constantemente sendo atualizadas, o que torna a disciplina alvo de constante atenção por parte do profissional. Dessa forma ela alcança uma dimensão de justiça social para muitos casos antes não considerados, como direito à herança e benefícios sociais a companheiros, casamento homoafetivo, feminicídio.

É nessa relação com o que é vivido, nesse trabalho especificamente, que a clínica social precisa se pensar como tal. Não podemos estabelecer uma dicotomia entre a clínica e a vida, onde o que nomeamos de psíquico abarca uma dimensão ampliada e não apenas animada dentro do indivíduo. Nos discursos acerca dessa prática e também nos modos de performá-la, propomos uma apropriação da noção de social tal qual Bruno Latour (2012) nos traz, ou seja, no trabalho de seguir, como formigas (referência à ANT - Actor-Network Theory, sigla para TAR - Teoria Ator-Rede em inglês) as articulações engendradas por seus atores e que colocam em ação os discursos produzidos nesse fazer.

Discursos não binários e que permitam abrir novos caminhos de reflexões sobre a prática de pesquisa e a prática clínica, entendendo que as dimensões de um fazer são profundamente complexas e locais, no entanto a circularidade desses fazerem inspiram teorias, políticas e formas de viver que ultrapassam a dimensão local, ou seja, práticas locais, situadas inspiram e constroem novos paradigmas (Mol, 2008; Moraes & Arendt, 2013), novas apostas num mundo melhor, mais cuidadoso, mais múltiplo. Os autores escolhidos sustentam a necessidade de olhar para as práticas situadas como suporte para as construções teóricas, nos permitindo surpreender por elas e pelo que essas práticas produzem. Nessa dimensão, a clínica “social” produz efeitos nas pessoas as quais atende, mas também nos profissionais e na própria concepção do lugar da clínica e da psicologia na sociedade, produz conhecimentos sobre os profissionais e suas práticas, mas também os modifica e questiona, impõe limites e novas formas de atuação e sustentabilidade. O mais importante de tudo, traz questões ao profissional que não estão nos manuais, provocações criativas que convocam a flexibilização e novas normas. Sobretudo, traz o cuidado como uma proposição política de ocupação profissional.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Referências

Conselho Federal De Psicologia (CFP). (2005). Código de Ética do Profissional Psicólogo. Brasília, DF: Conselho Federal De Psicologia. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdfLinks ]

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Declaração do contributo dos autores: ESA, LCTQ e RJJA contribuíram com as ideias e referencial teórico discutidos no texto, bem como para a escrita do manuscrito submetido e para sua versão final. Todos os autores contribuíram de forma igualitária com as discussões e escrita.

Recebido: 28 de Fevereiro de 2019; Aceito: 11 de Setembro de 2019

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