O Facebook é uma rede social criada por Mark Zuckerberg em fevereiro de 2004. Seu primeiro nome foi The FaceBook, aludindo aos livros com fotografias e nomes dos estudantes das universidades americanas no mesmo período. Inicialmente, o site era fechado para os estudantes de Harvard e gradualmente foi se expandindo para outras universidades americanas e para estudantes do Ensino Médio, até que qualquer pessoa com mais de 13 anos pudesse criar uma conta na rede social. O intuito foi, tornando o livro on-line, promover interações e incluir outras informações pessoais não disponíveis nos facebooks tradicionais.
Em entrevistas ao jornal universitário Stanford Daily, Mark Zuckerberg relatava seus objetivos ao criar a rede social: “Sei que soa piegas, mas eu adoraria melhorar a vida das pessoas, especialmente em termos sociais” (Kirkpatrick, 2010).
De fato, o mesmo autor aponta que a rede social era uma espécie de prolongamento das articulações que aconteciam dentro das universidades, tendo sido concebida para potencializar as relações face a face. Atualmente o Facebook conecta pessoas independente de associação off-line.
O artefato permite diversos usos e oferece novas possibilidades constantemente. A interação por fotografias e textos ampliou para vídeos compartilhados sincronicamente, símbolos que indicam emoções, conversas em grupo ou privadas, envio de documentos, divulgação de informações de localização, publicações com curta duração, jogos e, recentemente, conversa com robôs.
Entre tantas possibilidades de usos, a divulgação da vida íntima é a mais recorrente no Brasil. As nossas linhas do tempo estão repletas de pessoas que postam fotografias do que estão fazendo, contam o que estão comendo, escutando ou assistindo. Relatam pensamentos, relacionamentos e sentimentos. Questões em outro século compreendidas como de fórum privado habitam o Facebook.
Por outro lado, há uma potencialidade de engendrar uma diversidade de atores para articular movimentos, como aconteceu com os protestos sobre o aumento das passagens de ônibus no Brasil (Albuquerque & Pedro, 2013) e com o movimento na Colômbia contra as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) que reuniu milhares de colombianos nas ruas de diversas cidades não somente da Colômbia, mas em outros países, todo esse movimento iniciou com um grupo no Facebook e ficou conhecido como Un Million de Voces Contra Las FARC (Kirkpatrick, 2010).
Nesta pesquisa acompanhamos Latour (2012), pensando a chamada rede social como uma rede sócio-técnica, como resultado provisório de associações entre entes que se constituem pela ação. Essa associação não é entre humanos mediada por objetos técnicos como tradicionalmente pensaram as teorias da comunicação social, é entre agentes humanos e não-humanos. Nesta perspectiva os objetos possuem agência, ainda que sem intencionalidade, causam efeitos.
O desenvolvimento das tecnologias digitais de comunicação caracterizou segundo Pierre Lévy (1999) outros campos de interação e relação com o espaço-tempo, o ciberespaço, palco das interconexões em rede, produziu o que veio a se conhecer como cibercultura, ou cultura digital. Lévy define cibercultura como: “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (Lévy, 1999, p. 17).
Lemos (2003) sintetiza a definição nos relatando que a cibercultura é a cultura contemporânea marcada pelas tecnologias digitais. As potencialidades da cibercultura são múltiplas sobretudo no que diz respeito à construção de conhecimentos vivos e compartilhados caracterizando o que Lévy (1999) chamou de inteligências coletivas, porém há outra vertente que nos interessa analisar, os modos de interatividade midiática no cotidiano dos usuários e seus desdobramentos.
Afirmar uma Psicologia seria negligenciar as ramificações e práticas distintas que construíram saberes constituindo diferentes psicologias. A psicologia divulgada nas mídias é uma versão da psicologia (Despret, 2011) e não sua representação pois, de acordo com a autora, o que existe são diferentes versões que marcam um campo de saber e atuação da psicologia.
Nesta perspectiva construímos o problema proposto na pesquisa: que versões da Psicologia é produzida com a participação de psicólogos em páginas do Facebook? Nosso objetivo foi mapear os múltiplos modos pelos quais a psicologia é feita na interlocução com as tecnologias de comunicação.
Acompanhando Mol (2002) na afirmação de que nas práticas os objetos são feitos (enacted), algo existe por meio das práticas e não antes delas e para entender essa fabricação devemos seguir os rastros que as práticas produzem, rastreamos a participação de psicólogos no Facebook por meio do acompanhamento do perfil profissional de 5 psicólogos. Foram registrados os conteúdos das publicações e as interações com usuários a fim de compreender que versões da psicologia são produzidas neste dispositivo.
Com o objetivo de compreender e analisar os efeitos dessas práticas nas sociedades e na construção da Psicologia enquanto ciência e profissão, fez-se uso das diretrizes metodológicas propostas pelo campo de investigação dos estudos das Ciências, Tecnologias e Sociedades (CTS) em consonância com a Teoria Ator-Rede (TAR).
O desenvolvimento tecnológico possibilitou que um número significativo de pessoas tivesse contato com as práticas psicológicas, através dos mais diversos dispositivos midiáticos. Entretanto, não parece haver ainda uma ampliação das discussões, muito menos uma alteração no foco das intervenções dos psicólogos, nem sequer um viés de divulgação de conhecimento conforme propagado. Os psicólogos nas mídias continuam a se debruçar pelas questões ligadas à intimidade, contemplando pouco outras possibilidades de exercer suas práticas e saberes.
Metodologia
Etnografia On-line
As etnografias no ciberespaço emergem junto à disseminação do mesmo na década de 90. De acordo com Evans (2010), Michael Rosenberg publicou a primeira etnografia em 1992 em um programa de computador on-line que permite a participação de múltiplos usuários em jogos de RPG, O WolfMOO4. Em 1994, John Masterton conduz uma etnografia em programa semelhante, o Ancient Anguish5. Sherry Turkle, autora inicialmente entusiasta da Internet e atualmente crítica dos rumos tomados em seus usos, publica em 1995 o livro Life on the Screen: identity in the age of the Internet. Entre as mais influentes nesse campo a obra discute como as pessoas se apropriam dessas tecnologias e as significam.
Já no início do novo milênio, o livro Virtual Etnography é publicado por Cristine Hine, propondo o termo etnografia virtual para aplicação do método etnográfico em comunidades virtuais. De acordo com Hine:
Assim, a etnografia virtual funciona como um módulo que problematiza o uso da Internet: em vez de inerentemente sensível, o universo WWW adquire sensibilidade em seu uso. O status da Rede como forma de comunicação, como objeto dentro da vida das pessoas e como lugar de estabelecimento de comunidades, sobrevive através dos usos, interpretados e reinterpretados, que se fazem dela (Hine, 2000, p. 80).
Hine (2000), descreve sua pesquisa etnográfica virtual na qual acompanhou o caso de uma mulher chamada Louise Woodward, acusada de assassinar um bebê enquanto exercia seu ofício de babá. O caso ganhou grande repercussão nas comunidades de internautas na época, muitos sites dentro da internet foram criados para apoiar a acusada e discussões entre os internautas sobre o caso ganharam as redes. Foi nesse contexto que a autora realizou sua pesquisa nesses sites e também fez algumas entrevistas com os criadores dessas páginas web.
Outras pesquisas que envolvem a prática da etnografia em comunidades virtuais podem ser verificadas nos trabalhos de Amaral (2007), Segata (2007) e Leitão (2012). Entretanto, apesar de haver diversos estudos que discutem as possibilidades do uso da etnografia nas pesquisas em Psicologia Social, como apontam Bueno e Zanella (2017); Andrada (2018) e Justo, Lima e Cedeño (2019), na literatura ainda encontram- lacunas a respeito da produção de trabalhos que assumem essa metodologia dentro do campo psicológico.
No que se refere, especialmente, as etnografias virtuais, as contribuições de Pereira Neto, Barbosa, da Silva e Gomes Dantas (2015), Barros e Serpa Jr. (2017) e Martinhago (2018) vêm oferecendo importantes pistas na articulação entre os estudos psis e o fazer etnográfico no campo on-line. Considerando tais articulações, na presente pesquisa, optamos pela etnografia delimitando o campo como on-line, indicando a cibercultura como a comunidade que decidimos investigar.
Acompanhando Lemos, podemos compreender a Cibercultura como “a forma sócio-cultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônica (...) uma relação que se estabelece pela emergência de novas formas sociais” (Lemos, 2003, p. 11).
A internet é tanto um método de produzir interações quanto um produto destas interações, ou seja, é tanto uma cultura quanto um artefato cultural. Sendo assim, entender as práticas dos usuários na internet, e a internet em si, é uma possibilidade interessante de aplicação do método etnográfico. Segundo Hine:
Se a cultura e a comunidade não são produtos diretos de um lugar físico, então a etnografia não tem porque sê-lo. O objeto de investigação etnográfico pode ser formulado, convenientemente, para centrar-se nos fluxos e nas conexões em vez de nas localidades e limites como princípios organizadores (Hine, 2000, p. 81).
O etnógrafo precisa estar aberto a novas propostas que o campo negocia com os pesquisadores, algumas questões interessantes emergem do campo e não podem ser desprezadas por um roteiro estabelecido de antemão. Janice Caiafa (2007) nos mostra que a etnografia tem conexões com os relatos de viajantes que registravam e descreviam os encontros nas viagens e peregrinações pelo mundo. Segundo a autora:
A etnografia é ao mesmo tempo um tipo de investigação e um gênero de escritura que se desenvolveu na tradição antropológica. Mas ela surge de fato com outras tradições e experiências, sobretudo os relatos de viagem - dos diversos indivíduos, ilustres ou não, que por diferentes motivos se encontravam em situação de distanciamento geográfico e cultural (Caiafa, 2007, p. 135).
Nesse sentido acreditamos que pensar nossa pesquisa como uma viagem pela internet é uma maneira interessante de pensar nossa etnografia. As viagens denotam imprevisibilidade, doses de improviso, caminhos que foram planejados e deixados de lado pelo surgimento de rotas mais interessantes, andamos com um mapa, mas estamos sempre perdidos em meio ao fluxo de dados no qual estamos imersos.
Psicologia On-line: Algumas Versões da Psicologia
A entrada no campo teve início com a seleção das cinco páginas de psicólogos e psicólogas com os maiores números de curtidas entre o período de 01 setembro de 2017 até 31 janeiro de 2018. A página inicial de cada perfil profissional foi acessada como um usuário comum faria, não negligenciando o olhar do pesquisador que selecionou o material de pesquisa mas navegando no dispositivo.
Acompanhamos as publicações na linha do tempo registrando-os em diário de campo, anotando os conteúdos das postagens, as datas das publicações, o número de reações, comentários e compartilhamentos, e o conteúdo desses comentários. O diário produzido em meio digital foi ilustrado com imagens das páginas analisadas (prints) e uma planilha organizando as informações. Embora o campo e a metodologia estivessem adequados ao diário digital, não dispensamos a produção de um diário clássico registrando a impressões dos pesquisadores, tal como os diários produzidos por Malinowski em seus trabalhos nas ilhas Trobriand (Malinowski, 1976).
O grande número de postagens realizadas pelos psicólogos acompanhados se destaca, a maior parte posta todos os dias mais de uma vez, um psicólogo chegou a postar 13 vezes em um mesmo dia, inclusive muitas postagens são feitas no final de semana e feriados, assim como é comum esses profissionais continuarem suas atividades no Facebook mesmo em meio as suas férias ou em casos de hospitalização, como foi observado no campo em que duas das cinco páginas acompanhadas registravam fotos do profissional internado no hospital.
Os conteúdos das postagens das páginas guardam muitas semelhanças. A maior parte delas é realizada através de fotografias, imagens, fundos coloridos e vídeos. Até mesmo quando há um texto ou uma frase ele é acompanhado por esses estímulos predominantemente visuais. De alguma maneira isso parece funcionar melhor nessa rede social, as postagens com menos reações, compartilhamentos e comentários costumam ser aquelas poucas em que somente o texto está presente, particularmente os textos longos ou links que redirecionam o usuário para outros sites que a predominância é o texto; e as com maior número de interações, por outro lado, são exatamente as que têm em si algum estímulo visual mais lúdico - geralmente publicações referentes à intimidade dos profissionais como viagens de férias, foto com a família, publicações sobre o cotidiano do mesmo.
Tratam-se de práticas em que os chamados memes viram expressões de ideias, nas quais os usuários se utilizam de vários gifs como forma de interação com o conteúdo e o que poderia ser somente uma frase curta torna-se uma ilustração composta por imagens vibrantes combinadas com tipografias elaboradas, entre muitos outros exemplos. O que se observa é que os psicólogos não só passaram a ocupar as mídias, em especial as redes sociais, mas também se apropriaram da linguagem utilizada nesse espaço, abandonando o linguajar técnico do qual geralmente se utilizam em artigos ou textos acadêmicos.
É justamente se utilizando do lúdico que o conteúdo das postagens aborda a temáticas referentes às patologias, relacionamentos amorosos e orientações sobre o comportamento humano. Um dispositivo interessante utilizado por alguns desses psicólogos são as lives do Facebook.
Os vídeos produzidos por meio de streaming, uma forma de transmissão instantânea de dados, costumam reunir uma quantidade de público significativa e são nesses vídeos que há uma maior interação por parte dos profissionais e seus seguidores. Essas transmissões são utilizadas para se falar sobre temas da psicologia, que costumam girar em torno das temáticas supracitadas, em algumas ocasiões esses temas são de proposição do próprio profissional e em outros momentos são os seguidores que definem um determinado assunto de antemão para que seja apresentado em uma futura live.
Uma página acompanhada utilizava a live para esclarecer dúvidas, responder questões, fazer orientações e fortalecer outras redes sociais do próprio psicólogo. As perguntas que os usuários mandavam, e que eram respondidas ao vivo, deveriam ser enviadas através de outras redes sociais como o Youtube o Instagram e o próprio Facebook, o profissional dizia que se o seguidor enviasse dúvidas nessas três redes ele teria mais chance de ter sua pergunta respondida. Então observamos um movimento de fortalecer as outras redes sociais do mesmo psi, para além da página do Facebook, infelizmente o enquadramento da pesquisa impossibilitou um registro formal dessas outras atividades dos psicólogos nas redes sociais citadas.
Uma estratégia utilizada por um desses profissionais no fortalecimento de sua página foi o sorteio de livros para seus seguidores, contudo participaria do sorteio apenas quem estivesse curtindo a página, compartilhasse a imagem oficial do sorteio (que era uma publicação com a imagem dos livros “Ansiedade, como Enfrentar o Mal do Século” e “Ansiedade 2 - Autocontrole”, ambos de Augusto Cury e as regras para participar do mesmo) e marcasse nos comentários três amigos do Facebook. A intenção do psicólogo parecia divulgar sua página para o maior número de pessoas possível, ao menos é o que indicam essas estratégias.
Nesse momento a dificuldade em delimitar e recortar o campo de uma etnografia on-line aparece na pesquisa. Nos propusemos acompanhar as páginas do Facebook desses psicólogos, contudo há muitas articulações dessas páginas com outras redes, é comum o psicólogo partilhar um determinado link de uma postagem que nos direciona para um outro site, eles divulgam suas outras redes sociais e buscam articulá-las. Alguns limites se expandiram ao decorrer da pesquisa, ao avançar no texto o leitor vai encontrar uma discussão sobre alguns sites desses psicólogos que inicialmente não foi algo pensado por nós pesquisadores, mas que estabeleceu pontos interessantes para discussão.
Frases motivacionais, conteúdos da vida íntima dos psicólogos autores das páginas, ditados populares e frases de senso comum também fazem parte da rotina de publicações. Eram frequentes as postagens com um fundo colorido e uma frase popularmente conhecida, de cunho motivacional ou de impacto como, por exemplo: “Na vida não existe felicidade eterna, apenas horas boas, minutos ótimos e segundos inesquecíveis”. Fotos de lugares que o psicólogo visitava e vídeos mostrando uma viagem particular, também apareciam na linha do tempo das páginas. É difícil distinguir nessas páginas o psicólogo profissional e a sua vida particular, ambas parecem se misturar.
Curiosa a observação de que esse tipo de publicação íntima da vida do profissional também é compartilhado por seus seguidores, parece que estamos diante de um fenômeno do psicólogo popstar. Talvez por seu viés de propaganda que engloba o que atrai mais olhares e, na atualidade, seja a vida íntima o principal foco de atenção, psis intercalam em suas páginas profissionais conteúdos ditos científicos (raros) e fotografias e informações do próprio cotidiano que pouco diferenciam uma página profissional de um perfil pessoal.
Destaca-se ainda a exposição de conteúdos que parecem motivados pelo alcance e repercussão entre o público que curte e acompanha as páginas em questão, sendo frequente temas sobre relacionamentos interpessoais, em especial sobre as relações amorosas, e psicopatologias, principalmente ansiedade e depressão. Vê-se nas práticas a produção de uma psicologia que se restringe ao campo da autoajuda, prática frequente também em relação aos livros e revistas associados aos saberes psis, em que os profissionais centralizam suas intervenções nas referidas temáticas e atuam para “dar dicas” acerca de comportamentos e modos de viver, orientando e aconselhando em relação às questões mencionadas.
A autoria das postagens é uma questão difícil de demarcar, pois a maior parte aparece sendo feita pelo próprio psicólogo, como se fosse ele quem estivesse carregando a imagem na rede social, contudo muitas dessas imagens são encontradas em outras páginas do Facebook. Raramente os créditos são conferidos a página original que criou a imagem, quando isso acontece geralmente o crédito está na própria imagem. A sensação que foi gerada em nós pesquisadores, pelo menos em um primeiro contato, é de que as publicações eram de conteúdo do próprio psicólogo, quando na verdade isso acontece na minoria dos casos.
Tal ocorrido não é exclusividade das imagens mas também das frases e textos. Frequentemente encontramos conteúdo escrito acompanhados pelas assinaturas dos responsáveis pelas postagens e pelo perfil apropriando-se do material veiculado. Entretanto, algumas dessas frases já haviam sido compartilhadas por terceiros dando a autoria a outras pessoas. Quando o texto exerce um forte impacto sobre os seguidores não é incomum que os profissionais sejam elogiados e tenham seus status elevados a “sábios” e “filósofos”, “seres sensíveis” e “tocados pelo divino”, nas palavras dos seguidores.
A Docilidade dos Seguidores
“Bom dia”, “Boa tarde”, “Boa noite”, “Concordo”, “Verdade”, “Obrigada”, são esses tipos de comentários que mais se fazem presente nas postagens desses psicólogos. Isabelle Stengers e Vinciane Despret, citadas por Bruno Latour (1999), nos dizem que os humanos tendem a serem menos recalcitrantes do que os não-humanos, e que a tendência é uma obediência a autoridade científica, aos homens e mulheres da bata branca.
O autor aponta que a verdadeira revolução desta epistemologia das ciências é mostrar que a recalcitrância tende a ser mais difícil de aplicar em humanos que em não-humanos. “Ao contrário destes últimos, os humanos, quando confrontados com a autoridade científica, têm grande tendência a perder tudo o que têm de recalcitrante, comportando-se como objetos obedientes” (Latour, 1999, p. 50).
Para Ferreira (2015), a docilidade opera nas relações e articulações nas quais os entes assumem, ou/e são colocados, em uma posição de obediência; enquanto a recalcitrância toma estes como experts que propõe questões e se articulam de forma mais simétrica com os atores.
Nas páginas do Facebook desses profissionais é a docilidade que reina. O psicólogo é visto como alguém de muita sabedoria, chamado de doutor pelos seus seguidores, é um especialista na mente humana. O clima é de uma absoluta concordância com suas proposições, publicações, comentários e vídeos.
Não observamos interações significativas entre os usuários e os psicólogos das páginas, tampouco interações dos usuários entre si, o que prevalecia eram vozes que comentavam uma publicação de maneira que nos pareceu isoladas. O que Mark Zuckerberg queria para sua rede social parece não acontecer nas páginas que acompanhamos. A sensação que tivemos nesse campo eram de poucas interações que quando aconteciam se davam através das reações, com pouco texto e poucas discussões.
A própria palavra utilizada pelo Facebook, e também pelos usuários da rede social, para se referirem às pessoas que curtem uma página - chamadas de seguidores - nos indicam pistas em que a docilidade opera. Seguidor é uma palavra ambígua que indica tanto a ameaça de um perseguidor mas também um acompanhar depositando fé, seguir sem contestar.
O saber psicológico somente é questionado quando o posicionamento se opõe ao religioso. Como em outras discussões, a ciência perde espaço para as explicações religiosas e no lugar de discussões de ideias a internet adquire contornos de campos de batalhas fundamentalistas.
Descrevemos aqui o único momento, no período acompanhado, de um seguidor mudando o rumo em resposta à postagem de um psicólogo com a fotografia de uma mulher segurando um cartaz que dizia: “Psicólogo não cura gay!!! Psicólogo ajuda a curar preconceito!!!”. Um dos comentários feitos nesta publicação diz:
Psicólogo fala o que o paciente precisa escutar e não que ele quer, homossexualismo é problema psicológico e espiritual!!! E se achou ruim eu também vou votar no Bolsonaro para te deixar mais feliz obrigado pelo carinho beijos!!! Passar bem. (Comentário de um internauta na página do Facebook Psicólogo Júnior Scaliante).
O psicólogo argumenta: “Primeiro que não se diz homossexualismo, e problema psicológico é não saber que a homossexualidade é normal”. O seguidor replica dizendo: “É realmente, ser diferente é normal”. A discussão se encerra aí, sem outras interações nesta página em específico.
As avaliações das páginas do Facebook permitem que o usuário atribua uma nota para a página. É possível dar nota 1, a pior possível, até a nota 5, a melhor dentre as opções. Em duas dessas páginas as avaliações estão bloqueadas, não é possível atribuir esse tipo de nota. Em três dessas páginas as avaliações estão disponíveis e passíveis de consulta por parte de quem as visita. A maioria das avaliações dos seguidores das páginas são positivas, com médias altas, prevalecendo as avaliações cinco estrelas, quando os seguidores avaliam as páginas com uma estrela eles geralmente não comentam sobre o motivo.
Somente um usuário avaliou uma das páginas com uma estrela e deixou registrado em comentário sua insatisfação com o psicólogo que criou um grupo no Facebook afirmando a finalidade de ajudar os participantes, mas abandonou o grupo sem contribuir efetivamente com o mesmo. O psicólogo se justifica dizendo que criou o grupo por não conseguir atender sozinho toda a demanda que chega até ele. Cabe salientar que este se constituiu em um interessante espaço de troca entre os membros. Era comum presenciar desabafos e relatos íntimos, que sempre contavam com um número considerável de interação dos outros membros numa tentativa de confortar, orientar e ajudar a pessoa que está passando por uma situação complicada.
Temas controversos que poderiam fazer emergir discussões e debates mais acalorados eram evitados pelos profissionais. Em setembro de 2017, por exemplo, um juiz federal autorizou que psicólogos oferecessem o tratamento que ficou conhecido como a “cura gay”. abrindo brechas para determinados grupos de psicólogos realizarem tratamentos de reversão sexual. O tema foi amplamente discutido na época e muitos debates aconteceram entre psicólogos, instituições de formação em psicologia e outros profissionais, mas a temática ampliou seu alcance para além das redes profissionais. Contudo, por algum motivo, apenas um psicólogo dos que foram acompanhados durante a pesquisa se posicionou sobre o caso e postou algo em sua página, os outros preferiram evitar a polêmica.
Controvérsias de uma Psicologia On-line
O mapeamento dos perfis profissionais no Facebook evidenciou práticas controversas em relação ao campo, as atuações e aos discursos psis, que só foram possíveis por meio do rastreamento dos atores e suas conexões nas redes. Quando Latour (2012) está discutindo a questão das controvérsias em seu livro intitulado Reagregando o Social, ele afirma:
De igual modo, a ANT sustenta ser possível rastrear relações mais sólidas e descobrir padrões mais reveladores quando se encontra um meio de registrar os vínculos entre quadros de referência instáveis e mutáveis, em vez de tentar estabilizar um deles (Latour, 2012. p. 45).
Em outras palavras, Latour aponta que o interessante de uma pesquisa com os referenciais da Teoria Ator-Rede é exatamente seguir as controvérsias sem tentar por fim as mesmas, deixar que os atores falem por si evidenciando as redes através de suas conexões.
No que diz respeito às publicações nas páginas dos psis, verificamos que embora alguns profissionais explicitem suas linhas/abordagens teóricas, o conteúdo é, por vezes, desconexo com as mesmas. A título de exemplo, vê-se nos discursos de um dos profissionais e na própria descrição de seu perfil, referências a abordagem psicanalítica, mas nas práticas os temas abordados, quando se utilizam de um vocabulário mais técnico, são discutidos pelo viés teórico tradicionalmente das terapias cognitivas comportamentais.
Além disso, dentre as cinco páginas acompanhadas, em quatro delas era possível encontrar links que direcionavam o visitante para os sites dos seus respectivos autores. Em um desses sites, além da divulgação das redes sociais do profissional, haviam registrados suas entrevistas em programas de televisão e rádio e um portfólio de empresas que eram suas clientes. Em três havia a possibilidade de agendar um atendimento on-line com o psicólogo e dois seguiam a maior parte das diretrizes da resolução de número 011/2012 do Conselho Federal de Psicologia, que estava em vigor no momento desta pesquisa e foi substituída, ao decorrer da mesma, pela resolução de número 11/2018 ampliando as possibilidades de intervenções on-line.
A substituição das resoluções foi resultado de negociações intensas entre um Conselho Profissional que coibia a atuação on-line, profissionais que realizavam e divulgavam essa atuação, profissionais que resistiam e um público que consumia o serviço. Esse jogo de forças desestabilizou o que estava posto e refez o campo.
A resolução 011/2012 autoriza os profissionais a realizarem algumas modalidades de serviços por meio de dispositivos tecnológicos de comunicação, tais como: orientações psicológicas de até 20 sessões, seleção de pessoal, aplicação de testes desde que regulamentados, supervisão de trabalho de psicólogos de forma complementar a formação presencial e o atendimento de clientes que momentaneamente se encontram impedidos de comparecerem ao atendimento presencial. Esses serviços podiam ser realizados pelos psicólogos de forma pontual e informativa, por meio de um site com domínio próprio cadastrado no Conselho Regional de Psicologia.
Em dois sites de profissionais distintos, deparamo-nos com a divulgação de atendimento realizado via Skype e a solicitação do WhatsApp como requisito básico para atendimento. Em outros dois, depois de alguns cliques, encontramos um botão do Pagseguro para a realização dos pagamentos dos atendimentos, sendo possível inclusive, ao clicar nesse botão, visualizar os preços das consultas que cada profissional cobra.
O Código de Ética Profissional do Psicólogo, em seu Art. 20, determina que o preço não pode ser usado para propaganda (Conselho Federal de Psicologia, 2005). Encontramos uma controvérsia interessante neste ponto. Pensar as possibilidades de um atendimento on-line inclui pensar que o consumidor precisa ter uma forma segura de efetuar os pagamentos de suas consultas, e é exatamente isso que o Pagseguro oferece. Trata-se de sistema que funciona como um intermediário entre o comprador do serviço e quem está oferecendo, de maneira que fique garantido ao consumidor usufruir dos serviços a serem prestados, e ao profissional em receber seus honorários.
Apesar da existência de outros meios de pagamento, como depósito em conta bancária, não há garantias concretas para o consumidor de que o serviço que ele receberá é de fato o que lhe foi prometido e, por essa razão, o Pagseguro surge como meio mais transparente para realizar essa transação. Apesar de resolver o que se apresenta como uma problemática, a ferramenta exibe o preço da consulta indo de encontro às orientações do Conselho.
Ainda em relação aos sites, estes introduziram outro problema que surge quando um destes sai do ar inesperadamente e retorna somente quando já estávamos em processo de finalização da pesquisa. As descrições detalhadas em diário de campo do que estávamos acompanhando foi fundamental para que os dados não se perdessem. No universo on-line qualquer coisa pode desaparecer a qualquer momento, uma publicação pode ser apagada, um vídeo excluído, um site pode deixar de existir, os rastros que permanecem na rede podem não ser suficientes para prosseguir.
Destacamos a importância das anotações de nossas percepções sobre aquilo que debruçamos no campo em nossos diários. Apesar da possibilidade desses atores desaparecem da rede, os efeitos que eles produziram ainda permanecem, e podem voltar a fazer parte da rede a qualquer momento, principalmente tratando-se de páginas da internet que são desativadas e podem ser reativadas sem dificuldades.
Considerações Finais
Na presente pesquisa, o mapeamento nos perfis profissionais dos psicólogos trouxe à tona questões importantes acerca das práticas psis no âmbito das redes sociais. Conteúdos teóricos contraditórios, práticas nem sempre articuladas com as diretrizes formuladas pelos órgãos reguladores da profissão, exposição da intimidade dos profissionais nas redes sociais e o interesse de diferentes pessoas por esta prática da psicologia foram alguns dos pontos destacados no percurso de realização do estudo.
Durante o mapeamento, observamos a utilização das redes sociais para a exposição de conteúdos ligados à vida particular dos profissionais, como viagens, passeios, entre outros, momentos em que estes encontram-se imersos em situações divergentes àquelas das quais se espera encontrar em uma página considerada profissional e que tem por objetivo a divulgação de serviços.
Todavia, há de se considerar a boa recepção que este tipo de conteúdo tem pelos seguidores, constituindo, por efeito, o entrelace de aproximação, entrelace este que é mensurado tão somente através dos números de curtidas, comentários e compartilhamentos, que parecem revelar formas contemporâneas de relacionamento em que todos estamos inseridos.
Em linhas gerais, os resultados da pesquisa identificaram versões da psicologia que buscam aproximar psicólogos e usuários do Facebook por meio de linguagem informal, de certa maneira amigável e descontraída. Publicações de imagens ilustradas, coloridas, com frases curtas e objetivas, pautadas em dicas e aconselhamentos são comuns nas páginas dos profissionais e, ao que parece, a mediação entre estes e os demais usuários/clientes em potenciais se dá através de uma certa ludicidade, inerente à cibercultura.
Trata-se de um cenário em que textos dão lugar a fotos, emoticons e emojis tornam-se forma de expressar ideias e emoções, configurando estes como opções mais dinâmicas e afetivas nas comunicações.
Percebemos uma atuação diferente de determinadas práticas psicológicas que prezam distanciamento profissional, procurando revelar pouco do psicoterapeuta ao chamado paciente. Nas redes, verificamos psicólogos promovendo aproximação e uma relação íntima (no sentido de permitir conhecer a intimidade) com seus usuários. O discurso de atuar para além do consultório disseminando saberes psicológicos com o dito compromisso social parece atrelado ao ensino de formas de viver.
Não encontramos uma apropriação de questões para além dos temas tradicionais entre psicólogos nas mídias: psicopatologia, relacionamentos interpessoais e orientações para uma vida mais feliz. Em consonância os usuários recorrem com perguntas dirigidas aos psicólogos nessas páginas e marcam seus interesses por meio de curtidas nas mesmas temáticas.
Compreendemos tais práticas como efeitos da docilidade que opera diante dos saberes psis, em que frequentemente os seguidores clamam por conselhos ou fórmulas mágicas para lidar com seus anseios e ali parecem encontrar respostas desses profissionais. Por outro lado, observamos os usos das mídias voltados para divulgação de serviço e captação de clientes, sendo tal articulação mediada e propiciada pelos algoritmos. Os movimentos recalcitrantes, que colocam o dispositivo psi em questão ou que, pelo menos, buscam outras formas de expertise, são raros. Observamos apenas uma postagem na qual um usuário do Facebook vai contra o posicionamento de um psicólogo que afirma ser contra a cura gay. Ainda assim, esse tipo de embate de ideias assume posições muito bélicas, nesse caso principalmente por parte do internauta, que parece não estar aberto para uma discussão sobre o assunto, seu comentário assume características de uma total negação do que o psicólogo afirma, sem nenhum efeito de produzir novas questões sobre a afirmação do profissional.
Imersos na cibercultura, conectados e ampliando as formas de nos relacionarmos, consumirmos, conhecermos e produzirmos o ciberespaço, seria inevitável a psicologia também não ocupar esse campo. Não nos cabe avaliar essa ocupação, mas sim tentar entender com o que e como essas práticas se articulam.
Apostamos na capacidade de inventarmos outras versões da psicologia que possam promover usos interessantes das tecnologias de comunicação e acreditamos que dar visibilidade às práticas seja o vetor para outras articulações. As práticas, e sempre estas, desestabilizam o que estava posto e abrem novas possibilidades.