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Psicología, Conocimiento y Sociedad

versión On-line ISSN 1688-7026

Psicol. Conoc. Soc. vol.9 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.26864/pcs.v9.n2.3 

Trabajos originales

Abordagem CTS diante das interpelações da afrocentricidade: a saúde da população negra

Enfoque CTS ante las interpelaciones de la afrocentricidad: la salud de la población negra

CTS approach to afrocentricity interpellations: the health of the black population

Abrahão de Oliveira Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-7741-3020

Luiza Rodrigues de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-2264-1258

1Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil Autor referente: luiza.oliveira@gmail.com


Resumo:

Este artigo trata do exercício de pesquisadores negros para interpelar, a partir da tríade Psicologia - Abordagem CTS - Afrocentricidade, as práticas e os saberes instituídos diante da saúde da população negra. Trata-se da aposta em uma produção de psicologia, na qual esta ciência é questionada a partir da vivência social da população negra e da subjetividade afrodescendente.

Palavras-chave: Abordagem CTS; psicologia; afrocentricidade; saúde

Resumen:

Este artículo trata del ejercicio de investigadores negros para interpelar, a partir de la tríada Psicología - Enfoque CTS - Afrocentricidad, las prácticas y los saberes instituidos ante la salud de la población negra. Se trata de la apuesta en una producción de psicología, en la cual esta ciencia es cuestionada a partir de la vivencia social de la población negra y de la subjetividad afrodescendiente.

Palabras clave: Enfoque CTS; psicología; afrocentricidad; salud

Abstract:

This article deals with the practice of black researchers to question, from the triad Psychology - Approach CTS - Afrocentricity, the practices and knowledge instituted regarding the health of the black population. It is the bet in a production of psychology, in which this science is questioned from the social experience of the black population and the Afrodescendent subjectivity.

Keywords: CTS approach; Psychology; afrocentricity; health

A abordagem CTS, área de conhecimento que estuda as relações entre ciência, tecnologia e sociedade, se originou, como movimento político, em fins de 1940 e nos anos de 1950, devido aos horrores praticados na Segunda Guerra Mundial, levando a uma discussão acerca da neutralidade da ciência e dos desenvolvimentos tecnológicos diante das práticas sociais. Estudos em epistemologia da ciência incorporaram questões relativas aos aspectos econômicos e políticos constitutivos daciência, contribuindo, assim, também, para o engendramento da abordagem Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Portanto, podemos dizer que o princípio da abordagem CTS refere-se à análise histórico-cultural do desenvolvimento tecnológico e à produção de formas de intervenção que promove a sociedade a um papel de reivindicação na tomada de decisão das práticas sociais (Trigueiro, 2009). Na afirmação desses princípios, a universidade tem sido importante com o desenvolvimento discussões e práticas em diversos campos de saber - psicologia, educação, medicina entre outros, que buscam romper com a orientação unicamente técnica para estabelecer um estilo de vida em que os atores sociais sejam agentes da ação nas relações entre a técnica e a natureza.

Essa perspectiva traz à cena necessidade de mudanças, que muitos afirmam como mudança de paradigma (Khun, 1962), pois engendram e precisam ser engendradas por novas formas de relação, por outras subjetividades, que não o sujeito solipsista da filosofia cartesiana.

Fazendo um recorte e trazendo à cena a Saúde como uma das categorias apropriadas pela abordagem CTS, identificamos que essa forma de pensar a ciência gerou saberes e práticas supostamente inclusivos. O que não dizer da promoção de saúde? Uma crítica desenvolvida ao instrumentalismo que, no trato dos fenômenos humanos e sociais, rompe com a oposição diagnóstico-intervenção, negando a prevalência do modelo biomédico e a ancoragem em categorias universais, nas quais são aprisionados sujeitos concretos (Rey e Silva, 2010). Não podemos negar: isso é muito! Saberes e práticas para a melhoria das condições do estilo de vida das populações, para a prevenção das doenças, a partir da compreensão do binômio saúde-doença, buscando a compreensão dos fatores biológicos, afetivos, sociais e ambientais.

No entanto, mesmo com o desenvolvimento de práticas que acontecem de forma integrada à população, há um não-álibicom o qual nós, negros e negras, precisamos lidar: de que população estamos falando? Mudança de paradigma para quem? Esse modelo de promoção de saúde ancorada na abordagem CTS não nos livra de saberes e práticas direcionados ao embranquecimento da população negra. Esse processo é devastador, pois como diz Nobles (2009), o desejo incontrolável de ser branco precisa ser clinicamente diagnosticado como trauma consequente das ações racistas promovidas cotidianamente em nome do saber.

Este artigo trata do exercício de pesquisadores negros para interpelar, a partir da tríade Psicologia - Abordagem CTS - Afrocentricidade, as práticas e os saberes instituídos diante da saúde da população negra. Trata-se da aposta em uma abordagem CTS em que a subjetividade afrobrasileira ganhe e dê sentido às práticas e saberes em saúde. É importante ressaltarmos que afrocentricidade, longe de ser um modelo, é a possibilidade de os afrobrasileiros se constituírem como agentes conscientes no processo de produção de conhecimento, tal como afirma Nascimento (2009). É o ato de entender, criar e afirmar modos específicos de investigação, de análise e de intervenção instituídos pelo reconhecimento da subjetividade afrobrasileira. É uma busca por um modo que afirme a agência da população negra diante da invisibilidade e do silenciamento impostos pelo sentido do que é humano fundado pelo paradigma da modernidade (Mazama, 2009).

É essa a história que vamos contar neste artigo, pensando uma abordagem CTS, práticas e saberes em saúde em que a subjetividade afrobrasileira ganhe e dê sentido, pois "O escravo que mata o seu senhor pratica um legítimo ato de autodefesa." (Gama citado por Nascimento, 2002).

Abordagem CTS

Como dito anteriormente, no século XX o movimento pelos Direitos Humanos, após o fim da Segunda Guerra Mundial, engendrou a ideia de que o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico não significava naturalmente bem-estar social, tal como as perspectivas desenvolvimentistas e positivistas apregoavam desde meados do século XVIII. A relação entre a ciência e a tecnologia (C&T) tornou-se objeto de crítica e de análise diante do questionamento de como se dá a relação entre a ciência, a tecnologia e a vida das populações.

É nesse contexto que se institui o movimento CTS, em que a participação das populações é fundamental para que as decisões governamentais se tornem mais democráticas, inclusivas e menos tecnocráticas em diversas esferas da inserção da ciência e da tecnologia, tais como na educação e na saúde. No Brasil, as diretrizes curriculares, fundamentadas na abordagem CTS, objetivam ações de educação voltadas para formar cidadãos cientificamente letrados a fim de que se tornarem sujeitos diante das práticas sociais (Caamaño1995; Rubba e Wiesenmayer1988). Na saúde, os movimentos da promoção de saúde crítica e da saúde coletiva são emblemáticos no sentido de que as populações devem participar dos direcionamentos da pesquisa (produção de conhecimento) e da construção de políticas públicas.

Assim, definimos abordagem CTS como o vínculo entre o modo de relação de saber instituído pela Ciência e o modo de relação de produção instituído nas práticas sociais.

Neste artigo, trazemos um questionamento às pesquisas na psicologia, às práticas de formação e de atuação do psicólogo, a fim de trazer a vivência da população negra habitualmente ausente, para a confecção de novas perspectivas de práticas psicológicas no Brasil, associadas à direção de questionamento da CTS.

No Brasil, em que a maioria da população é negra, isto é 54,9% da população se declara negra (parda, 46,7%; preta, 8,02%) (Estatísticas Sociais. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2017), é preciso perguntar como podemos falar em letramento científico, isto é em participação das populações, sem discutir as relações entre a ciência e as relações raciais. Esta é a proposta deste artigo, discutir a abordagem CTS em práticas de saúde, a partir da análise das relações raciais.

Saúde da população negra: por uma psicologia que reconheça nossa história

A chegada de cotistas no curso de graduação em psicologia, com a Lei nº 12.711/2012, e no programa de pós-graduação, pela Portaria Normativa 11/05/2016, em psicologia da Universidade Federal Fluminense, no Brasil, é o cenário dessa história. A partir do que estudantes negros e negras, recém chegados, nos trazem sobre seus contextos de vida, nos dizem sobre suas vivências, suas necessidades intelectuais e de formação, suas práticas de ativismo e de militância, enfim sobre o que nos dizem acerca do pertencimento da população negra, temos sido confrontados por uma diversidade de questões com as quais a universidade e os saberes científicos e práticas profissionais, que ela vem legitimando, não sabem lidar, a não ser pelos princípios da produção do embranquecimento.

Especificando o cenário, relatamos cenas de uma disciplina particular do programa de pós-graduação citado. Sala de aula repleta de estudantes, para um curso a respeito da saúde mental da população negra. Era surpreendente que a maioria fosse de negras/os trabalhadoras/os do SUS (Sistema Único de Saúde), do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), e graduandas/os do curso de psicologia interessadas/os nesse campo no qual se inserem como profissionais e ou usuárias/os. Havia alguns poucos estudantes brancos/as com vivência em bairros de maioria branca. A leitura do texto “O desejo de ordem e a morte: a produção cotidiana do consentimento genocida no Rio de Janeiro”, de Celso de Moraes Vergne (2018), trouxe uma escrita que expressa o contexto, a experiência de vida e as condições da população negra:

No centro da cidade a noite começa a cair, e, nos cantos sujos e com pouca luz, começa a chegar a população que dorme nas ruas do coração econômico e comercial da Cidade Maravilhosa. Negros, quase sempre negros, nas ruas carregam em si as marcas de uma história de séculos de escravidão e preconceito. Uma história que ainda não acabou (Vergne, 2018, p. 17).

A primeira observação de um rapaz negro é o quanto o texto o fez lembrar sua infância e em seguida outra jovem negra continuou: “Um texto próximo a sua realidade e que traz uma identificação é bom e também nos faz pensar”. Assim dizia a participante sobre o “desejo de morte” que assujeita sua família ainda moradora da favela da cidade, desejo que vem montado nos caveirões como um cavalheiro do Apocalipse trazendo a devastação, sangue e morte. Um tanto quanto impactados pela proximidade da descrição realista do texto, os estudantes se deram conta de que nunca vemos expresso nos textos dos cursos de formação em Psicologia, a experiência de quem mora em São Gonçalo, Manguinhos, Niterói, na Baixada Fluminense, em Campo Grande, nas favelas. Não tem visibilidade nos textos da ciência psicológica a própria população negra. Nesse momento, notamos que a ação afirmativa não indica apenas a entrada de indivíduos negras/negros na universidade, mas demanda uma alteração da base epistêmica da produção de conhecimento e tecnologia, o que implica também na criação de epistemologias que viabilizam o diálogo das ciências com as agruras dessa população. Notamos aí também, um exemplo concreto da necessidade de uma visão aterrada, como falamos abaixo.

Colocamo-nos a pensar sobre os efeitos disso, de não ter expressão de nossa experiência, de nosso contexto, de nossa história, mas de ter refletido nos conceitos científicos sempre as referências de vidas que vêm de longe, dos povos de rostidade branca, como mostram Deleuze e Guattari (1996), os franceses, ingleses, alemães, italianos, norte-americanos. O viés do pensamento psicológico exerce assim o que chamamos de embranquecimento dos saberes. A formação em psicologia também não contempla referências bibliográficas de intelectuais negras/os. Clóvis Moura (1988) observava o quanto as ciências humanas e sociais somente valorizam o pensamento social europeu, ou uma "ciência, quase toda ela estruturada através de modelos teóricos e postulados metodológicos vindos de fora" (Moura, 1988, p. 17) para falar da realidade do negro brasileiro. São repetidoras de teorias estrangeiras e quase sempre escamoteiam o conflito racial e os modos de resistência da população negra. São exemplos, a psicologia comportamentalista que se baseia em produção de conhecimento vinda dos Estados Unidos da América; a psicologia crítica baseada no contexto francês; e a psicologia analítica vindas do pensamento alemão. Preocupados em não serem vistos como negros ou mestiços, recusando sua condição étnica, querendo se aproximar o quanto possível do ethos cultural civilizado, os intelectuais brasileiros impõem uma perspectiva colonizadora aos problemas que estudam e recusam refletir em seus escritos a luta da população negra e indígena contra o Estado. Os mecanismos de produção de conhecimento racistas postos em execução no Brasil colonial, depois imperial e, finalmente, na formação da República, perduram até hoje na academia altamente embranquecida (Moura, 1988; Carvalho, 2003).

Esses aspectos, compondo a nossa formação, têm efeitos no pensamento, na consciência do psicólogo e na sua intervenção. Se estudamos textos da psicologia e nosso lugar e nossa experiência não são refletidos, nem têm expressão nas teorias que lemos e estudamos, como poderemos reconhecer as questões colocadas pela população preta, dos povos indígenas e de toda a população brasileira? A situação de apagamento da condição social da população preta nas pesquisas em psicologia diz algo do esquecimento da população brasileira inteira, embora não de modo homogêneo, mas diferenciadamente em relação à população indígena, preta e branca. Disso decorre que não teremos ferramentas científicas para reconhecer certa particularidade sociorracial, certa modalidade de sofrimento psíquico, e as repercussões para crianças e adolescentes na escola, para os problemas nas relações afetivas, na organização familiar e no trabalho. Daí o imbróglio do psicólogo não pensar sobre as relações raciais e não saber que existe um sofrimento psíquico decorrente do racismo. Já que tal racismo não se apresenta como nos Estados Unidos, não há ferramentas para identificar as agruras vivenciadas pela população negra em termos daquilo que decorre das políticas de construção da identidade nacional no período pós-regime escravista, das políticas de embranquecimento e do “Gradiente étnico” (Moura, 1988), que conduz a subjetivação assujeitada da população brasileira. Entre nós há a ideologia da democracia social que oculta e até embeleza ou sublima, como faz a exímia escrita de Gilberto Freyre (2006), a violência sociorracial. Nada, do que o graduado em psicologia leu, refletiu a problemática de uma determinada população.

A formação profissional assim descrita não é uma falha do sistema educacional brasileiro, mas faz parte da política de não reconhecimento, de apagamento da maioria da população brasileira, ou do que Celso Vergne vem chamar, na esteira de Abdias Nascimento (2016), de extermínio ou genocídio. O reconhecimento da experiência é importante para a consideração da saúde mental do próprio psicóloga/o negra/o que vai assistir à população.

O primeiro passo para pensar as políticas de saúdeda população negra é a expressão, representação ou reconhecimento das vivências da população negra, o reconhecimento da particularidade histórica ou local do que vivenciamos no passado e no presente, levando em conta a luta dos nossos (antepassados e atuais) contra o aparato do Estado, da Colônia, da República Velha e do Estado de Direito. Trata-se de localidade e Agência, segundo Asante (2009), da história da população negra e indígena. Fazendo um recorte para pensar especificamente a psicologia em suas interfaces com a abordagem CTS, afirmamos que sem o reconhecimento dos modos de vida da população negra, não haverá política de saúde possível para os indivíduos negros, nem atenção psicológica na rede de saúde coletiva, e nem mesmo no campo da saúde mental da população brasileira, levando-se em conta que somos maioria demográfica. Sem esse aterramento na vida concreta das populações negras, ou seja, na sua história, em suas lutas e agências, não é possível falar em clínica ampliada na atenção à saúde da população brasileira, não é possível falar em promoção de saúde e nem em saúde coletiva, pois ficaria de fora a maioria da população brasileira. A memória e o reconhecimento de nossas vivências sociais são indispensáveis para aquilo que Lima Barreto chama de propósitos da literatura militante, que é o do reconhecimento de si, do “destino de revelar umas almas às outras, restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens” (Barreto, 2017, p. 129).

No entanto, perguntamos como psicólogas/os estarão no exercício da profissão diante da população brasileira, pois “(...) sua condição pessoal e subjetiva em termos de origem, classe social, pertencimento étnico é pouco ou quase nada considerada pelos agentes de transmissão social educacional (...)” (Oliveira, 2017, p. 172). Apesar de as leis e das diretrizes curriculares no campo das políticas da educação trazerem mudanças significativas, é preciso que se traduzam em uma formação em que não se negue mais a possibilidade de se pensar práticas de cuidado diante do reconhecimento da subjetividade negra. A formação em psicologia vem se dando por leituras e debates em sala de aula que não refletem a nossa situação enquanto negras/os, o que faz com que a/o psicóloga/o pense o tempo todo a partir de fora, com as ferramentas vindas de outro contexto sócio-político-existencial. O profissional da psicologia funciona fazendo analogia das ideias que ele apreendeu, dos conceitos e descrições vindas de além-mar ou do norte, sobre o campo de realidades e vivências históricas no território brasileiro. Há um desconhecimento sintomático da população brasileira, de suas lutas, suas formas de resistências cultural e política, dos quilombos, das comunas, das insurreições, conjuras e revoltas. A pesquisa aterrada deve levar em conta esses aspectos da população brasileira. Há uma escrita, uma racionalidade, um saber, que precisa vir, para trazer um povo que foi apagado, não aparece como agente da história nacional. Há um povo que quer vir e necessita de ver-se a si mesmo nas suas dinâmicas de luta, de produzir as condições para o reconhecimento de si, o assumir-se a si mesmo. A psicologia precisa lidar com o nosso povo. Trata-se, como dito acima, de Localidade e Agência da história da população negra, o que estamos nomeando de psicologia aterrada. Uma escrita, uma leitura, um saber são necessários na formação, para que a/o psicóloga/o possa reconhecer os modos de existência da população e deixe de intervir por analogia conceitual ou com ideias transcendentes ao contexto brasileiro. Diante das ferramentas que possui, na atual formação, o psicólogo vai para a abstração e universalização do homem, deixando de fora da concretude, do aterramento da vida das populações, o que não inclui a comunidade, as/os negras/os, as/os jovens negras/os. Nessa condição de sua formação, a/o psicóloga/o pensa e age com categorias conceituais que se sobrepõe à comunidade. No SUAS (Sistema único de Assistência Social), no SUS (Sistema único de Saúde), no sistema prisional, na escola, no campo do trabalho, o psicólogo, portando conceitos forjados distantes e identificados com os povos colonizadores, parte da ideia de que ele tem consciência do que está acontecendo e os indivíduos afrodescendentes e provenientes dos povos indígenas não têm. O psicólogo está no lugar do que Lacan chama de suposto saber.

A escuta qualificada é ferramenta-chave do psicólogo. Escutar é se dar conta do que se trata nos pedidos que o outro lhe faz. É a interpretação, a partir da qual, a/o psicóloga/o trata, pelo padrão normativo dos legados do colonizador, e, portanto, à distância da episteme cultural, social, local, de “ajudar” os indivíduos a saírem do seu estado de atordoamento, de alheamento de si, a reconstruírem suas vidas e somente então se tornarem agentes de sua história. Porém, o problema é que o padrão dessa abordagem é indicado pelo conceito (construído em outro contexto) ou pelo modo de vida da/o psicóloga/o (também pertinente a outro grupo social distinto do seu cliente ou paciente), uma vez que ele não reconhece as dinâmicas da resistência social, a história e as práticas daqueles que recebem sua atenção. Assim, o psicólogo está na transcendência, às vezes em posição contrária aos conceitossócio-históricos que o interpelam. A escuta obtida da demarche freudiana, por exemplo, já sinaliza essa exterioridade. O setting psicanalítico ou psicoterapêutico estabelece uma distância entre psicóloga/o e paciente muito bem marcada. Na atenção à saúde, ocorrendo na sala de atendimento, na praça ou na escola, essa distância é intransponível e estruturadora da relação de ajuda. Isso nos parece efeito da transcendência epistêmica ou da experiência de não estar junto no território, no local, da ausência do pensamento e da ação aterrados. O outro não sabe de si e a intervenção da/o psicóloga/o, baseada na escuta do homem universal, fará /o paciente conhecer um pouco de si mesmo e emancipar-se, o que significa, nesse modelo, ir ao encontro de modos de vida que não são seus, para os quais não há pertencimento. “Ao examinar o povo africano em toda a diáspora, poder-se-ia dizer que, coletivamente, precisamos ‘voltar atrás e reconstruirmos o que esquecemos’. Eu diria ainda que o que nós, coletivamente esquecemos, ou, de modo mais preciso, o que o nosso opressor tentou esvaziar de nossa mente foi o significado de ser africano” (Nobles, 2009, p. 277).

Teria alguma alternativa a esse dispositivo, a isso que sabemos fazer? Será que não há outro modo de funcionar senão nesse modelo do distanciamento, da analogia? Temos nos perguntado por que a psicologia progressista dos anos de 1980 acabou se afastando de Paulo Freire (2013) e dos trabalhos da educação popular. Tem algo interessante em Paulo Freire que é seu afastamento, como intelectual, do lugar do suposto saber. Para esse pedagogo pernambucano, o trabalho educativo é o de estar junto com as pessoas e com os saberes da comunidade. Talvez, mesmo os psicólogos progressistas foram se inclinando para as teorias que deixam mais marcadas as distinções dos saberes e conduzem a certa hierarquia na qual o saber universitário se punha como mais bem elaborado, a ponto de, desde então, querer indicar o caminho da luta para as populações pobres e negras. O saber que sabe fazer a análise, que conhece a história. É uma questão para pensar.

Estamos ensaiando uma pesquisa, uma escrita e uma prática na qual o pesquisador, a/o psicóloga/o não estejam à parte, mas explicitando seu lugar social, seja um participante da realidade comunitária. Queremos, assim, desenvolver a potência de estar junto nas práticas em psicologia em sua interface com a saúde. De experimentar a humildade de aprender, no sentido que temos ouvido deste termo no povo de terreiro, sobretudo, os terreiros de tradição bantu.

Seria o caso de não desvalorizar os saberes das pessoas (Foucault, 2005), mas de afirmá-los. Diante de muitos acontecimentos, as pessoas das comunidades, as mulheres da favela, as mães dos meninos executados nas periferias ou vítimas da violência do Estado brasileiro, as lideranças das favelas, sabem mais do que os que professores e pesquisadores, presos em seus arcabouços teóricos, na academia. Numa ocasião, quando de uma supervisão de estágio numa instituição sócio-educativa, percebemos que os garotos da unidade educativa, denominados “adolescentes em conflito com a lei”, sabiam, mais do que nós, os ‘especialistas acadêmicos’, como sobreviver naquele território. Nesse caso, o trabalho das/os estagiárias/os não deveria ser o de ensinar, mas o de aprender. Seria isso a prática da humildade na concepção dos saberes tradicionais dos terreiros bantos, tal como temos ali aprendido. Quantos dias nós professoras/es e alunas/os universitárias/os conseguiríamos viver sob os tiroteios que os garotos relatavam? Então, deveríamos aprender com os adolescentes, saber como eles viviam e inventavam formas de viver naquela realidade e, junto com eles, refletir sobre os valores que os acompanhavam, os seus destinos e sua condição de vida. Éramos nós que estávamos ali aprendendo e produzindo, juntos, um conhecimento capaz de direcionar a formação profissional. A atitude de valorizar o saber daqueles jovens poderia nos guiar na construção de uma ciência psicológica, primeiramente, capaz de reconhecer o modo como a vida deles podem subsistir, e em seguida, como pode a ciência elaborar ferramentas para que a comunidade daqueles jovens se desenvolva e ganhe autonomia.

Então, a nossa questão é pensar se não poderíamos desenvolver um tipo de atenção psicológica que não pretenda levar essas pessoas a se cuidarem, mas que as tomem como sujeitos de cuidado, não a partir de modelos que não representam as vidas das populações. Mas, a partir do não-álibi de sermos homens, mulheres, crianças negras e negros. Estamos propondo, assim, a abordagem Ciência, Tecnologia e Sociedade, como uma tríade que pode e deve ser desenvolvida junto à vida dos afrobrasileiros.

Desse modo, a ciência em geral e a psicologia em particular, passar a tratar esses grupos, mulheres, crianças, adolescentes, jovens e idosos negros e negras como agentes da sua própria história. Nós que sobrevivemos até aqui, que temos um jeito de lidar com a vida, temos também uma perspectiva própria constituída na diáspora africana. Essa história e modo de lidar podem não ter nada a ver com o modo universitário de pensar e viver, dos doutores e mestrandos formados nos moldes europeus. Eles trazem outro tipo de experiência.

Há aí uma postura que podemos aproximar do que sugere Paulo Freire (2013) nas suas práticas de educação popular. Seria uma intervenção de saúde que não esteja sustentada pelo dispositivo da “escuta”, todavia, que esteja baseada nos saberes locais, como nos propõe também Asante em sua perspectiva filosófica afrocentrada (Asante, 2009). Ora, seguindo essa direção, o psicólogoou o agente de saúde deve tomar os usuários dos serviços de saúde como protagonistas de sua própria história. As mulheres negras e homens negrostêm sua rede, seu coletivo, seus parceiros, seu território. Ninguém está isolado. Dentro do dispositivo de Estado do qual nós participamos, enquanto psicólogos, as pessoas ou os usuários dos serviços de saúde e seus saberes, vêm inferiorizados, subalternizados pelo psicólogo, branco, embranquecido, funcionário do Estado. Já o usuário é negra/o e pobre e sem formação universitária, mora em condições precárias da favela ou na periferia. Diante dessas condições e do dispositivo consultorial de atenção, a agência ou inserção social das pessoas já vem anulada. Em tal dispositivo, o médico branco facilmente, e previamente, se apresenta como superior. A história de luta e resistência das pessoas, da vizinhança, da família, dos antepassados, estão apagadas diante da esmagadora aparelhagem da psicologia autorizada pelo Estado brasileiro genocida. Assim que funciona o psicólogo e transmissor da força do Estado, pois o dispositivo de poder tem que funcionar na presença. O dispositivo de poder se concretiza no corpo do psicólogo diante do usuário do serviço de saúde que se apresenta como o carente, o de família desestruturada, o sem dinheiro, o drogado, o perigoso, o abandonado, o órfão, sem agência, o sem localidade. Na audiência, no encontro da mulher preta com o estagiário branco que atende no sistema judiciário, por exemplo, está posta a desigualdade, que é estabelecida não pelo estagiário, mas pelo próprio dispositivo da audiência e pelo título que a psicologia lhes confere.

Trata-se de outras ciência e profissão aserem construídas, lentamente, e isso parte do reconhecimento da história das mulheres, das crianças, dos jovens em sua condição de sujeito. Qual a possibilidade de que, sem que tenha que se tornar igual ao outro, seja possível reconhecer a condição de privilégio, a distância social, e ao mesmo tempo pensar o que fazer para construir com o usuário, com as pessoas com as quais se presta atenção de cuidar, o dispositivo de encontro? Eis um importante problema que não se resolve rapidamente, mas nos serve como ponto de partida. O ponto de partida não é o encontro que vai instituir o sujeito capaz de cuidar de si, mas é tomar a sua existência como agência, ao compreender a história de suas lutas do passado e do presente contra o Estado genocida. Afirmam-se aí Localidade e Agência, que estão presentes na perspectiva da filosofia africana de Asante (2009).

Escuta é um conceito, não é uma atribuição do ouvido. Escuta é um modo da atenção bem particular que vem do campo da clínica. Não se basear na escuta não quer dizer não ouvir o que as pessoas estão dizendo, seu grito, o clamor, a queixa, a dor e seus recursos. É necessário ouvir a história das pessoas, mas talvez, em vez de "escuta" a intervenção pode receber o sentido de "agência" ou de "construção", "participação". Então, qual a possibilidade do profissional de psicologia, no serviço público, em vez de se basear na escuta, que o torna distante demais, trabalhar na perspectiva da construção, de trabalhar junto com as pessoas na construção de alguma coisa social, familiar, do bairro, da localidade, de dispositivos comunitários? Não se trata aí de redução psicológica, de intervenção voltada para o deslocamento subjetivo, muito embora cada formação social desenvolvida na comunidade, possa ter efeitos psicológicos. Trata-se do acolhimento daquilo que a população negra nos coloca como constitutivo de suas condições de vida, de suas necessidades sociais e, sobretudo, de suas vulnerabilidades.

Considerações Finais

Pensar em uma abordagem CTS aterrada à vida, à história da população negra, é a aposta na ruptura com encarceramento mental, com diz Nobles (1984), trata-se de romper com o adoecimento que as práticas e os saberes científicos produzem, mesmo que aderentes à análise histórico-cultural do desenvolvimento tecnológico. É aproximar a abordagem CTS da afrocentricidade. É desenvolver o imperativo de definir a “localização do sujeito, isto é, de explicar o lugar de onde o olhar parte (Nascimento, 2009, p. 182). Não se trata de reduzir a abordagem CTS a um “essencialismo intrínseco” à identidade afrobrasileira, como alguns críticos da afrocentricidade anunciam, mas é o exercício de modos que afirmem a agência, a inserção social e a construção de redes da população negra diante do emaranhado da tríade Ciência-Tecnologia-Sociedade.

Referências

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Declaração do contributo dos autores: AOS contribuiu no desenho e implementação da investigação, LRO na discussão da Abordagem CTS. Todos os autores discutiram e escreveram a versão final do manuscrito.

Recebido: 01 de Março de 2019; Aceito: 08 de Outubro de 2019

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