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Psicología, Conocimiento y Sociedad

On-line version ISSN 1688-7026

Psicol. Conoc. Soc. vol.6 no.1 Montevideo May 2016

 

Violência: Relação entre a indústria cultural de T. W. Adorno & M. Horkheimer e o discurso capitalista de J. Lacan

Violence: Relation between culture industry of T. W. Adorno & M. Horkheimer and capitalist discourse of J. Lacan

Eliane Zanoni, Nohemí Brown

Autor referente: elianez.a@hotmail.com

Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil)

 

Historia editorial

Recibido: 24/09/2015

Aceptado: 23/05/2016

 

 

Resumen

 

O presente artigo tem o intuito de discutir a violência na contemporaneidade. Para poder fazê-lo, retomamos dois conceitos que consideramos contribuir para a reflexão no assunto: o conceito de Indústria Cultural dos expoentes da Escola de Frankfurt Theodo.

 

Palavras-chave: Violência; Indústria Cultural; Discurso Capitalista.

 

 

Abstract

 

The present article has the purpose of discuss about contemporary violence. To be able to do it, we consider two concepts we resumed contribute to the reflection on the subject: the concept of Culture Industry of frankfurtians Theodor W. Adorno and Max Horkheimer and the discourse elaborated by Jacques Lacan, under the name of Discourse Capitalist. Through analysis of these concepts, clarifying their convergences and divergences, we aim to contribute to clarify a way of locating violence in the contemporary world.

 

Keywords: Violence; Culture Industry; Capitalist Discourse.

 

 

Introdução

A violência é um tema que sempre chamou a atenção de estudiosos de variadas áreas da ciência de diferentes épocas. Entretanto, hoje parece existir a dificuldade de perceber como ela está imbricada nas nossas vidas, não somente a que vemos nos noticiários de TV, mas a da nossa constituição como ser e em todas nossas relaçõessociais. A violência não é algo novo, ela sempre existiu em todas as épocas, entretanto é diferente pensar, por exemplo, a violência do período moderno de Freud em relação à do mundo atual. Muitos historiadores denominam a nossa era como Pós-Modernismo, com advento da globalização, de políticas neoliberais, surgimento da internet, avanços tecnológicos, consumismo desenfreado, entre outros, que trouxeram extremas mudanças na sociedade e na subjetividade.

Enquanto na era Moderna, de acordo com Costa (2012), o indivíduo se encontrava em um mal-estar claustrofóbico, pois deixava de lado sua liberdade em nome da Ordem, com um Supereu rígido, devido aos controles de instituições como a religião, a família, a intervenção do Estado na esfera privada, entre outros; no pós-modernismo, o indivíduo aparece sob uma angústia agorafóbica, isto é, uma liberdade exacerbada, ditada pela lei do mercado. Desta forma, analisa-se que a mudança sobre a violência está no seu fundamento.

A partir deste fato, perguntamo-nos: em que consiste esta violência sutil que na contemporaneidade submete os sujeitos? Para pensar essa questão, retomaremos os desenvolvimentos de Lacan com relação ao Discurso Capitalista e de Adorno e Horkheimer quanto ao conceito de Indústria Cultural.

Para Safatle (2005), é verdade que não houve um diálogo entre essas duas escolas. Por um lado, na Alemanha, o encontro entre a filosofia e a psicanálise freudiana foi estudado na Escola de Frankfurt, por outro lado, na França, houve uma reconstrução da metapsicologia freudiana pelos estudos de Lacan. Na escola de Frankfurt, houve uma “tentativa de construir uma espécie de arqueologia dos vínculos sociais e dos processos de socialização a partir de leituras, muitas vezes divergentes, da teoria freudianas das pulsões” (p. 22). A psicanálise lacaniana partiu para o “reconhecimento da irredutibilidade do bloqueio produzido pelo campo doinconsciente, do sexual e do pulsional aos processos de auto-reflexão” (Safatle, 2005, p. 22).

Mesmo com essas diferenças, para Safatle (2005), atualmente admite-se semelhança entre essas escolas, especialmente entre Lacan e Adorno, mesmo porque ambos fizeram releitura das obras freudianas. Como refere o autor, Lacan também se interessou pela arqueologia dos vínculos sociais, o que é evidente na sua teoria dos discursos, que nos ajudará a entender e refletir a violência contemporânea com a contribuição da Indústria Cultura de Adorno e Horkheimer.

 

Violência e a indústria cultural de adornoeHorkheimer

Adorno eHorkheimer nos dão elementos, em sua teoria crítica, para pensar sobre a violência. Mas, para podermos entender seu desenvolvimento, faz-se necessário aprofundar o conceito de Indústria Cultural. Esse conceito foi criado por Adorno e Horkheimer em 1947, no capítulo “A Indústria Cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas” do livro Dialética do Esclarecimento. Em uma conferência radiofônica em 1962, na Alemanha, Adorno (1986b) explica o motivo da substituição do termo cultura de massa para Indústria Cultural. O autor aponta que a cultura de massa surge espontaneamente, ao passo que a Indústria Cultural haveria uma padronização do comportamento de forma imposta.

De acordo com Cohen (1986) a Indústria Cultural não pode ser vista como cultura, pois não foi criada pelo homem e sim imposta. Assim como, não poderia ser vista como uma indústria comum dos modos de produção de mercadoria, pois está mais conectada com a circulação do que a produção.

Desta forma, Adorno e Horkheimer (1985) referem-se à Indústria Cultural como “a falsa identidade universal e particular” (p. 100), que traz o sentido que seria um poderoso instrumento aliado à lucratividade e de controle social que o indivíduo aceita sem resistência, pois atende suas necessidades supérfluas. Nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985):

Os padrões teriam resultados originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistências. De fato, o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. (p. 100)

Como podemos perceber, para esses autores, a Indústria Cultural é uma meta do liberalismo. Sem percebermos, o cinema, as artes, a música, até o lazer perderam a sua essência de algo de comunicação com o próprio indivíduo, tornando-se algo de mercadoria, isto é, a Indústria Cultural impede a sublimação, o que ela faz é reprimir. A arte perde sua essência de apropriação.

Para Adorno (1986a), a Indústria Cultural faz o consumidor acreditar que é o “Rei” de seu destino, mas na verdade é apenas um objeto, igual ao seu consumismo, que o sustenta, isso significa que os produtos aparecem de forma individual para cada consumidor, e tal individualidade do consumo contribui com o fortalecimento dessa falsa ideologia. Em resumo, a Indústria Cultural, seria simples futilidade, forma de aliviar tensões.

Neste sentido, ela se enraíza nas nossas vidas que faz o conformismo substituir a consciência de uma forma escamoteada impondo uma ordem que passa despercebida aos homens. A Indústria Cultural impede a autonomia e a independência, o sujeito fica impossibilitado de julgar e tomar suas decisões conscientemente.

Na leitura de Caniato e Castro (2009) sobre a Indústria Cultural, ela pregaria o interesse da classe dominante no sentido que daria ênfase ao interesse do capital em contramão ao interesse do indivíduo. Essa indústria seria o principal instrumento de transmissão da cultura, propiciando uma compreensão ilusória e alienante por parte do indivíduo, pois apresenta partes de uma ideologia e não sua totalidade, que sãointernalizadas pelo indivíduo sem possibilidade de mudanças e transformação de sua realidade.

Para as autorastodos os indivíduos internalizariam crenças, costumes, leis e ordem de uma determinada sociedade por meio de práticas educativas. Entretanto, nas sociedades atuais, criam-se padronizações de conduta – extremamente difundidas por meios midiáticos – que devem ser seguidas por todos. Consequentemente, o que ocorre é a “morte da individualidade” (Caniato, 2009b, p. 68). Mesmo que haja um sentimento de ambivalência por parte do indivíduo perante essas imposições, ele aceita e acredita de forma ilusória nas suas realizações pessoais. Até mesmo porque, se o indivíduo rejeitar essa postura que ésubmetido, corre o risco de não estar inserido em uma coletividade, podendo perder até sua segurança. Como assevera Adorno e Horkheimer (1985):

O mestre não diz mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é livre de não pensar como eu: sua vida, seu bens, tudo você há de conservar, mas de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós. Quem não se conforma é punido com uma impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do individualista. (p. 110).

Além disso, para Caniato (2009b), rejeita-se qualquer manifestação do querer ser diferente. O diferente torna-se o bode expiatório da sociedade, pois se cria a “lógica do amigo (igual) – inimigo (diferente)” (Caniato, 2009b, p. 69), e o diferente é contestado irracionalmente por apelos passionais e de conotação mística, de forma vexatória, preconceituosa e discriminatória.Neste sentido, não seria por acaso que manifestação de violência como o bullying e assédio moral tomaram conta das pesquisas acadêmicas nas últimas décadas.

Embora presenciassem várias manifestações de violência diariamente, de acordo com Caniato (2009b) atualmente o indivíduo viveria violentado por meio da violência simbólica, que se refere à violência em que não há armas, mas que abafa e impede toda a atividade de oposição, induz uma forma de vida que todos devem seguir. Os processos identificatórios são perversos, pois o indivíduo não se identifica com o outro, mas com objetos ilusórios, distantes da realidade.

Essa forma de violência, conforme a autora, seria a essência dos modos de produção capitalista, de forma escamoteada está presente em todas as relações sociais. Como refere Enriquez (citado por Caniato, 2009b), através dessa violência se cria um princípio de realidade enganoso. Para Guinsberg (citado por Caniato, 2009b, p. 70): “Representa, portanto, para o sujeito, a ‘verdade’ para-si da realidade social, estabelecendo-se como o princípio de ‘autoridade’ quando internalizados pelos sujeitos de modo inconsciente, como se fossem produzidas por eles próprios.” Para Guinsberg (citado por Caniato, 2009b) a violência simbólica é sutil, mas muito mais efetiva, pois ela não é visível, porém afeta todos.

Esse modelo, soberano na sociedade contemporânea, faz com que o sujeito busque ser o que Costa (citado por Caniato & Castro, 2009) chama de “tipos psicológicos ordinários” (p. 268): o modelo identificatório que todos aspiram ser e que todos possam ter em comum no mundo neoliberal. De acordo com Caniato e Castro (2009), a política neoliberal faz com que o indivíduo viva uma falsa ilusão de que ele mesmo é responsável pela construção de sua vida, devendo ter alto desempenho, proatividade, flexibilidade; enfim, ser um trabalhador multifuncional, pronto para qualquer mudança e atividade – caso fracasse no mundo da supercompetitividade, o próprio indivíduo é responsável pelo seu fracasso. Ainda, assola o medo, como citam Caniato e Castro (2009), de fazer parte do grupo dos excluídos, do imenso número de desempregados ou subempregados existente atualmente. Como cita Dejours (citado por Caniato & Castro, 2009, p. 271), “Quem não consegue atingir esse patamar é considerado incompetente e passa a ser culpabilizado a nível individual pelo seu fracasso.”.

Caniato e Castro (2009) acreditam que vivemos uma época consubstanciada em modelos regressivos, na qual o narcisismo está majoritariamente presente, não só nas formas de patologias, mas na constituição de um sujeito dito “normal”. Segundo os autores, o narcisismo que impera hodiernamente se distingue do narcisismo de Freud: para este, a libido está direcionada ao próprio indivíduo; àquele, de acordo com Lipovetsky (citado por Caniato & Castro, 2009), está conectado um estilo de vida proposto pela mídia, que deve ser seguido por todos. Nesse contexto atual, ao mesmo tempo em que está voltado para si mesmo o indivíduo se desvincula dos signos sociais, como referem Caniato e Castro (2009, p. 273): “Daí o vazio do homem contemporâneo, porque não há investimento libidinal nem em si mesmo nem no outro, mas em modelos midiáticos, isto é, em uma ‘coisa’ mesmo, no nada.”

Para Caniato (2009b), há, de forma escamoteada, um autoritarismo na sociedade pós-moderna: destruíram-se todas as referências do indivíduo que o faziam viver em coletividade. O individualismo contemporâneo colocou um fim na confiança por outros homens, o homem “se basta a si mesmo” (Caniato, 2009b, p. 75).

A Indústria Cultural em prol do mercado está presente de forma sutil em toda a esfera pessoal e social, influenciou até as nossas leis, que se tornaram discriminatórias. O Código Penal brasileiro, por exemplo, segundo Caniato (2009a), foi construído historicamente a favor dos grupos que têm poder de consumo – isso pode ser notado, por exemplo, nos crimes de “colarinho branco”. Geralmente os envolvidos saem impunes de seus crimes, pois se aproveitam das instáveis leis brasileiras, encontrando nelas brechas, ao final os seus atos sequer são identificados como crimes: “São os sursis, os habeas-corpus, os indultos, as anistias, as extintivas da punibilidade, os substitutivos penais, etc. que se apoiam em jurisprudências casuísticas para favorecer a impunidade.” (Caniato, 2009a, p. 52). Enquanto a maioria que compõe o grupo dos não consumidores é desinformada e desprotegida, torna-se marginalizada na sociedade, é depositada nas prisões, que muitos denominam depósitos de “lixos humanos”, sem o direito de ressocialização, a sociedade, até mesmo pessoas com alto nível de instrução, clama por pena de morte, defende veementemente a diminuição da maioridade penal como forma de promover segurança mediante os altos índices de violência.

Algo que se pode notar na sociedade brasileira contemporânea é que os crimes de “colarinho branco” tornaram-se banais: para o indivíduo, crime mesmo é homicídio, estupro, latrocínio, roubo etc. – crimes que chocam a opinião pública. Porém, a violência que se aborda aqui é, também, a estrutural: sob definição de Ugalde e Zwi (citado por Caniato, 2009a, p. 55), aquela “quando os recursos e poderes sociais estão desigualmente distribuídos, concentrados nas mãos de uns poucos que não os usam para impulsionar a realização de toda coletividade, mas para a satisfação da elite e o controle dos despossuídos”.

Para Costa (2001) que no seu artigo trata da contribuição da Indústria Cultual nos estudos dos meios de comunicação. Para o autor, todos os meios de comunicação seguem a lei do mercado, isto é, a notícia também virou mercadoria e forma de manipulação ideológica. Segundo Costa (2001), pode-se notar que em todos os meios de comunicação predominam sempre as mesmas notícias. Marcondes Filho (citado por Costa, 2001) afirma que a notícia segue o caminho da “sensacionalização dos fatos sociais, personificação dos acontecimentos históricos, à redução do real ao factual” (p. 112). Para o autor, essas notícias chegam tão rápido ao telespectador, envolvem de tal modo suas emoções e seus estímulos multissensoriais que não dá tempo de o indivíduo ter uma opinião crítica em relação aos fatos; defrontamo-nos aqui com “a estética da mercadoria notícia”. De acordo com Costa (2001, p. 112).

A categoria estetização da violência já supõe a ideia de mediação da tecnologia como extensão sensorial, para utilizar uma conhecida expressão de Mcluhan, ou seja, a percepção humana cada vez mais se dá pela influência e mediação da tecnologia. Estetizar significa construir uma realidade que se configure como espetáculo. Até mesmo a violência de uma imagem forte, nos telejornais, por exemplo, tem maior capacidade de criar o desejo pela sua violência como espetáculo não requer da audiência outra representação que vá além do fato de ser entretenimento, momento de distração e de prazer.

Podemos interpretar em Adorno (1995a) uma crítica em todos os meios de comunicação, sejam elas revistas, rádios, livros, entre outros. Além disso, o filósofo não tem apenas ideias contrárias aos meios de comunicação de massas, pois também poderiam ser usados para uma boa formação da humanidade. A crítica de Adorno (1995a) é que a televisão seria uma consequência da ideologia da Indústria Cultural e seus questionamentos são como uma pessoa poderia entrar em contato com todos esses meios sem ser iludidos por essa falsa ideologia que criam pseudorealidades.

Por meio dessa falsa ideologia que internalizamos hodiernamente, podemos retomar ao texto “Educação após Auschwitz”. Adorno (1995b) afirma que o que ocorreu em Auschwistz foi uma regressão ao anticivilizatório e alerta: pode se repetir se os seus fundamentos persistirem. Para Adorno (1995b), a preocupação especial acerca do que ocorreu em Auschwistz é em relação aos “culpados”: tentar-se descobrir como o ser humano pode chega nessa brutalidade. Assim, através de um respaldo psicanalítico: é na primeira infância que se forma a personalidade do sujeito; portanto, para Adorno (1995b), é com essa idade que a sociedade precisa se preocupar, dando ao indivíduo uma educação de autocrítica: “a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica” (Adorno, 1995b, p. 121). Entretanto, Adorno não cria uma modelo de educação, apenas esboça-o.

Para Adorno (1995b), o fundamento básico para o que ocorreu em Auschwistz ainda perpetua nas sociedades atuais, só que sob o enfoque da tecnologia. Adorno (1995b) afirma que a tecnologia se encontra no primeiro plano da vida do indivíduo, como algo de apropriação e de sua individualidade de forma irracional, patológica e exagerada. A tecnologia se tornou algo essencial para a preservação da sociedade de formafetichizada. O que Adorno (1995b) denominou consciência coisificadaquando o indivíduo aceita tudo que está sendo dado, de forma legítima e incontestável –, explícita nos defensores de Auschwistz, predomina na sociedade de consumo, tornando as pessoas frias, incapazes de amar o próximo. Consequentemente, até nossas crianças são vítimas dessa frieza, pois os pais aderem a essa cultura sem resistência.

Freud (1996), em Mal-estar da civilização (1929), aborda três formas de sofrimento: pela supremacia da natureza; pela deterioração do corpo humano; e pela relação com o outro, que nada mais é que a própria cultura, criada pelo homem. Para Adorno (citado por Caniato, Cesnik & Rodrigues, 2012), a cultura deveria dar ao sujeito uma visão crítica sobre a realidade, uma maneira de buscar a autonomia, é “um elemento de amparo aos sujeitos, construída por eles próprios, sendo tais aquisições históricas transmissíveis às gerações seguintes a fim de melhorar as condições de existência dos homens” (Caniato, Cesnik & Rodrigues, 2012, p. 662). Caniato e Castro (2009) se preocupam com a questão da responsabilidade da psicologia, em todos os campos sociais, quanto a nunca ignorar a cultura, que é um agente culpabilizante, patologizador do indivíduo. Ignorá-la seria estar a favor da Indústria Cultural e não do indivíduo, haja vista que a violência no conceito de Indústria Cultural impera primordialmente pela tirania do mercado, violência que nos faz questionar a subjetividade contemporânea, e como o indivíduo vive uma vida verdadeira em um mundo falso, isto muito questionado por Adorno. Também traz uma preocupação na atividade clínica, como veremos em Lacan.

 

Violência no Discurso Capitalista em Lacan

 Para entender o Discurso Capitalista e, portanto, a violência na concepção lacaniana, é necessário fazer uma breve consideração acerca do conceito de “discurso” em Lacan. Lacan (1972, 1985) afirma que o discurso é o que faz o laço social e o que estabelece a relação do sujeito com o saber; propõe uma classificação: discurso do mestre; discurso histérico; discurso do universitário; discurso psicanalítico (Lacan, 1992). No entanto, não cabe aqui aprofundar cada um desses discursos, apenas tratá-los brevemente, a seguir, para então compreender o quinto discurso:o capitalista. Talvez devamos nos perguntar se realmente é um discurso enquanto laço social, ou, em que consiste o discurso capitalista que nos pode ajudar a pensar a questão da violência.

Lacan, em várias de suas obras, diz que o inconsciente é estruturado pela linguagem, portanto, o inconsciente é o discurso. Lacan estrutura os quatros discursos usando formas algébricas, e usa quatros elementos: dentre elas: letras e caractere. Nestas composições: a é o objeto; S1, significante-mestre; S2, o saber constituído na cadeia significante; e $, o sujeito dividido. Em cada discurso, as letras e caractere estão divididas em quatro lugares, separados de dois em dois ao modo de quadrante, e cada separação é dividida por duas barras (/), que significam a resistência à significação – o conteúdo recalcado.

Ainda, de acordo com Castro (2009), Lacan faz uso de flecha no sentido horário à e anti-horário ß para dar sentido à cadeia significante. A primeira tem um sentido de impossibilidade e a segunda de impotência. A impossibilidade está entre o agente/semblante e o Outro/outro ou trabalho do gozo, e a impotência é a proteção da verdade que é localizada entre Produção/perda ou mais-gozar e a verdade:

Fórmula 1

 

Discutamos brevemente a classificação de Lacan:

Discurso do Mestre: para Lacan (1992) é o discurso do Senhor, que impõe a verdade, que cria convicções, desvio e erros: “aquilo que ele confessa querer dominar” (p. 72).

Na interpretação de Castro (2009), a impossibilidade desse discurso está entre o significante-mestre (S1) e o saber (S2), dando um sentido da impossibilidade de “governar aquilo que não se domina” ou “de fazer o seu mundo do mestre funcionar” (Lacan 1992, citado por Castro, 2009, p. 251). A impotência está localizada entre objeto a e o sujeito $ – “não pode extrair tanto produto quanto da produção qualquer verdade subjetiva” (Castro, 2009, p. 252).

 

Discurso Histérico: pode-se analisar que o agente ocupa o lugar do sujeito barrado ($), no qual há dúvidas sobre a verdade da palavra e o qual é questionador do seu desejo ou a “lei questionada como sintoma” (Lacan, 1992, p. 45). Para Castro (2009), Lacan refere que a impossibilidade encontra-se no sujeito $ em direção ao significante-mestre (S1), que é a incapacidade de dominar o significante-mestre, e a impotência está na produção de saberes (S2) em direção ao objeto a, dando um sentido de não percepção do gozo, sendo um saber que não é capaz de analisar o objeto como mais-gozar.

Discurso Universitário: Lacan (1992) diz que é o saber que não se sabe, intitulado pelo S2, que nunca está sozinho, pois está acompanhado pelo Grande Outro. Seria o escravo submetido ao mestre. Segundo Castro (2009), Lacan refere que a impossibilidade é de educar pelo comando do saber, portanto, ela está localizada entre o saber S2 e o objeto a. Já a impotência é entre o sujeito $ e o significante-mestre (S1), colocando este no lugar da verdade e do reconhecimento.


 

Discurso Psicanalítico: Lacan (1992) diz que é o discurso da interpretação, nota-se o agente do discurso é ocupado por não ter o objeto de satisfação, questiona o sujeito do desejo. Para Castro (2009), a impossibilidade se encontra entre o objeto a e o sujeito $, discutindo a impossibilidade de psicanalisar, ou seja, de curar. Já a impotência é uma transposição da produção entre o S1 para o saber S2, que está na posição da verdade, superada, entretanto, pelo ato analítico.

 

Do quinto discurso, o capitalista, Lacan falou em 1972 em um seminário em Milão – o texto não se encontra em nenhum de seus livros publicados, é apenas um texto isolado e mencionado uma única vez. Para Lacan (1972), o discurso capitalista não estabelece laço social, é o discurso do mercado e da tecnociência capitalista. Segundo Cesarotto (2007), para Lacan no Discurso Capitalista o sujeito é dividido como agente discursivo, o que se questiona é o valor do saber e não mais a verdade. A estrutura do discurso capitalista é a seguinte:



Castro (2009) afirma que, para Lacan, o discurso capitalista também é denominado Discurso do Mestre Moderno: mais do que mestre é uma articulação entre o discurso do mestre, representado pela construção dos saberes contemporâneos e seus produtos tecnológicos, e o mercado, isto é, o que se chama de mestre contemporâneo é a tomada do mercado do saber da ciência, por isso, já não funciona como discurso propriamente dito. Se comparado ao discurso do mestre, pode-se notar no discurso capitalista uma inversão entre o significante-mestre (S1) e o sujeito ($), isto é, neste a verdade é o S1 e o agente/semblante é o $. Portanto, o $ é colocado diante do mercado como sujeito-consumidor, diferente do discurso do mestre, a verdade não é mais o sujeito dividido. Podemos ver nesta outra figura, de Teixeira e Santos (2003), que ambos são comparados:

Fórmula 7

     

De acordo com essas autoras, a impossibilidade está foracluída, ao passo quea flecha da impotência está localizada entre o significante-mestre (S1) e o objeto a; de acordo com Castro (2009), Lacan colocou o sujeito assentado sobre um saber estabelecido pela tecnociência capitalista, o saber do Outro, e o gozo é o consumo por objeto e o imperativo da ciência, portanto, a impotência é analisar a verdade do significante-mestre.

No discurso capitalista, o saber do trabalhador está, como no discurso do mestre, reduzido à condição de trabalho que gera mais-gozar – em forma de lucro para o capitalista e em forma de mais-gozar da mercadoria (S2/a) para o consumidor – porém, como a diferença de o sujeito estar colocado como dominante, diante da cena de consumo. Lacan inscreve aí uma mudança de posição do sujeito gerada, no discurso do mestre, pelo advento do capitalismo: o sujeito é deslocado do lugar da verdade para o lugar do agente. E essa mudança de posição do sujeito, além das razões históricas ligadas ao advento do capitalismo, contou ainda com a influência do discurso histérico enquanto fiel contestador do gozo do mestre, principalmente por nele denunciar a impotência subjetiva ($ ß a) que subjaz em sua ânsia de domínio (S1 à S2). (Castro, 2009, p. 252-253).

Se no discurso do mestre havia um pai tradicional que simbolicamente impunha um limite do gozo, como disse Lacan (1972) que o significante-mestre determinaria a castração. No discurso capitalista mantém o sujeito sempre insatisfeito perante as inovações tecnológicas que ocorrem dia a dia. Esta insaciedadee insatisfação são o que faz o mercado funcionar, pois ele sempre oferecerá “novos gozos”, por meio de objetos. Assim, o verdadeiro comando é o consumo.

Teixeira e Santos (2003) referem, ainda, que o Discurso Capitalista é algo inquietante na psicanálise pós-moderna, pois traz novas formas de produção de subjetividade e consequentemente novos sintomas, sob os quais a própria violência está inscrita. Quando falou do discurso do capitalista, Lacan usou termos e conceitos da teoria marxista, como “mais-valia” à qual designou mais-de-gozar. Lacan fala de mais-valia não para o discurso capitalista, o faz desde o seminário 17, para localizar o gozo nos discursos. De acordo com Ferrari (2006, p.51)

O próprio Lacan ensinou uma forma psicanalítica de se considerar a questão: com Marx falou de plus-valia como causa de desejo do capitalista, mas depois percebeu que, quando se está na plus-valia como causa de desejo, o que há é um regime de falta de gozar. Encontrou-se, nesse ponto, com a concepção do capitalismo como cultura de falta de gozar, expressa por Max Weber. Isso significa que o capitalista não é puramente um gozador, já que o capital é reinvestido no regime. Assim, em "Radiofonia" (1970/2003), Lacan afirma que a plus-valia é a causa de desejo de toda economia, ou seja, do proletário e do capitalista. Se todos têm como causa a plus-valia, é porque estão na avidez da falta de gozar. Conclui que, nesse regime, todos são proletários, despossuídos, nada têm para estabelecer laço social, vivem em insatisfação permanente, expressa na fórmula do nunca é bastante e na busca constante de um plus.

Todavia, há um ponto questionável: mais-valia não é o mesmo que causa de desejo. Por isso, Lacan (1972) vai situar a mais-valia no discurso do mestre como o que o mestre extrai do escravo ao fazê-lo trabalhar, isto é, o mestre extrai um gozo ao produzir um saber mestre. Já no discurso analítico, localiza o gozo como causa de desejo, ou seja, o que causa o desejo ao sujeito leva-lhe a obter satisfação e a falar, a viver, mas ele não o reconhece como causa, padece disto porque fala desde o discurso histérico.

O Discurso Capitalista se opõe à lógica dos quatros discursos: enquanto os quatros discursos são articulados por um Imperativo de renúncia que reduz o gozo, no Discurso Capitalista tudo é permitido, como se falasse: “Goze!”. Para Teixeira e Santos (2003), os sintomas da atualidade, assim como a violência, estão relacionados com a foraclusão do Nome-do-Pai, que nos quatros discursos Lacan apresenta como o agente da castração. “Este operador transfere a potência simbólica, do significante, para o imaginário. Permite transmitir real do gozo impossível para as vias imaginárias de um real de gozo proibido.” (Teixeira & Santos, 2003, p. 168). Já no Discurso Capitalista é uma forma de perder a condição de sujeito e se submeter ao imperativo superegoico de gozar – por isso a violência em jogo.

Teixeira (2008) retoma o texto Mal-estar na civilização de Freud e faz uma comparação com os Discursos de J. Lacan: para a autora, o que Freud chamou de “civilização” Lacan chama de “discurso”. Do texto de Freud, Teixeira (2008) extraiu o termo “pulsão de morte”, que Freud designou como “pulsões destrutivas” e em relação às quais afirmou a presença de um Imperativo na desfusão da pulsão erótica e destrutiva. Freud também coloca a responsabilidade no Supereu sobre os destinos da destrutividade. Teixeira (2008) fala que a pulsão freudiana tenha sido colocada como limite entre o psíquico e o somático, onde as pulsões eróticas estão localizadas nas zonas erógenas, já a pulsão de morte não se encontre no corpo, mas nos sintomas atribuídos ao Supereu. Afirma que falar de violência não se trata de discutir entre o psíquico e o somático, como proposto por Freud, “mas nos termos da incidência do significante sobre o corpo, das ressonâncias e dos efeitos imaginários, simbólicos e real de gozo, próprios das operações da linguagem ou, mais precisamente dos discursos” (Teixeira, 2008, p. 4).

Para Teixeira (2008), Lacan refaz os estudos da pulsão de morte de Freud criando a teoria do gozo; configurada, sobretudo, no Discurso do Mestre, em que há um Imperativo do gozo – correlatado à castração e ao recalque, ordenadores dos laços sociais. Portanto, enquanto para Freud o Supereu era herdeiro do complexo de Édipo, para Lacan o Supereu é o herdeiro do significante-mestre (S1), e este está presente na dinâmica dos discursos e na sua orientação do desejo e do gozo nos laços sociais. Lacan busca uma nova forma de mostrar o aparelho psíquico e a economia do gozo, através da explicação dos discursos: “economia de gozo pulsional, baseada na noção de entropia, perda e recuperação de gozo articulado como estrutura significante dos discursos (1969/70).” (Teixeira, 2008, p. 4).

Embora não tenha um texto específico sobre a violência, a violência instigou Freud, que ele trabalhou sobre esse tema de acordo com seus variados conceitos, como narcisismo, agressividade, acting out, pulsões etc. Lacan refez uma releitura de Freud, o que contribui para um estudo da psicanálise na sociedade pós-moderna, e a violência hodierna, dentro dessa concepção, está relacionada a excesso de gozo e satisfação pulsional, consequentemente, uma ruptura do laço social, a partir de uma sociedade fundamentada pelo discurso capitalista. Besset e Silva (2010) referem que Lacan indica que o discurso capitalista é “avesso às coisas do amor e à particularidade do desejo” (p. 328). Esse excesso de satisfação que se exige do sujeito hoje é o que causa sofrimento.

Para Teixeira (2008), a psicanálise denomina a violência como satisfação pulsional que determina os modos de produção da subjetividade e da construção e desconstrução da cultura. Ela se origina com a criação das leis, dos contratos e das entidades sociais, portanto, além de ser algo psicopatológico, a violência está presente na vida mental do sujeito, e o gozo se estabelece nos diferentes discursos que podem mudar de acordo com a civilização. Para Besset e Silva (2010), Lacan fala da relação do sujeito com o outro pautado na agressividade, mas na qual há um elemento pacificador: a linguagem. O sujeito precisa renunciar à violência e à agressividade para manter a vida em coletividade. Entretanto, o que mostra que a violência está inserida nos vínculos sociais, mas o que se discute aqui são mudanças no pós-modernismo e, consequentemente, as mudanças dos vínculos. Se para Freud a civilização se manteria com a redução pulsional destrutiva na era Moderna, o que se percebe atualmente é um crescimento alarmante da tecnociência capitalista: pode-se dizer que a violência é originada da estrutura do discurso capitalista. Isso faz a psicanálise se questionar sobre causa e efeitos da violência e o estabelecimento do laço social, dentro desse discurso, que mudou as formas de produção de subjetividade e as relações sociais e afetivas:

O surgimento do quinto discurso, que é o da tecnociência capitalista (Lacan, 1972, p. 79), transformou o mal-estar em devastação. Por esta razão, confrontamos a violência instituída e instituinte do discurso do mestre, discurso fundante da subjetividade regulada pela perda e recuperação de gozo, nos termos do sujeito e do objeto a, com a violência que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais, como desregulação do gozo no discurso capitalista. (Teixeira, 2008, p. 6).

O que ocorre de forma particular na violência de hoje, de acordo Besset e Silva (2010), são as perdas dos referenciais simbólicos, isto é, a forma como o mundo do sujeito é organizado pela linguagem e suas leis; estas leis são o que impossibilita o gozo pleno, nada mais é a castração pelo Pai. Entretanto, o Pai não exerce mais a sua função como em outras épocas, como na própria época de Freud. Os sujeitos apresentam-se marcados por um vazio identificatório, à mercê das exigências culturais que impõem não mais uma economia do desejo a partir do recalque, mas uma satisfação imediata.

Segundo Besset e Silva (2010), em consequência da fragilidade da função paterna, o sujeito procura a violência como um modo de expressão sem sentido, daquilo que estaria fora da linguagem do pensamento inconsciente. Para Teixeira e Santos (2003), a violência é prova da falha da função do imaginário da proibição; se o gozo não é impossível, é porque as vias da fantasia não sustentam um limite do sujeito de transgredir a lei. Na contemporaneidade, com o discurso tecnocientífico capitalista, o gozo se articula como um real sem lei, e não contra a lei.

Para Ferrari (2006), a violência mostra que algo não vai bem à sociedade pós-moderna, com um gozo que não caminha no mesmo ritmo do significante-mestre, responsável este pela ordenação da civilização.

Nesse contexto, hoje se diz, então, de violência como sintoma. A compreensão dessa afirmativa pode ser facilitada quando se pensa que todo sintoma, no sentido psicanalítico, é uma emergência de verdade que concerne ao gozo, é um gozo. Sintoma, como tanto já se escreveu, é o que condensa verdade e gozo. A violência, que é sintoma, supõe, então, uma ordem instituída da qual emerge, manifestando aquilo que não funciona bem em tal ordem estabelecida, aquilo que impede a intenção de felicidade, ou melhor, que impede o princípio do prazer. (Ferrari, 2006, p. 53).

A violência como sintoma é explicada por Besset e Silva (2010), que diferenciam o sintoma social e o sintoma subjetivo. Para os autores, o primeiro perturba uma ordem social, o segundo é algo da subjetividade de cada um, é pautado no desejo e no gozo. O sintoma é condensado pela verdade e pelo gozo – este, para Lacan, é a satisfação da pulsão. Para Besset e Silva (2010), a violência como sintoma impossibilita a felicidade pelo princípio de prazer, tornando visível o mal-estar onde o sujeito é consubstanciado pela civilização. Os autores afirmam que a violência atual é algo que insiste e se repete, portanto, considerá-la como sintoma é estabelecer que nela há algo de mais real que não cessa de se escrever.

A possibilidade de cura dessa violência, para Besset e Silva (2010), implica reintroduzir a palavra onde há violência. Entretanto, o sintoma só existe se o sujeito considerá-lo como tal. Na teoria lacaniana, é através da análise que se tem uma alternativa de o sujeito se desvincular do discurso da tecnociência capitalista, responsável pelo comportamento violentador tanto do indivíduo quanto da sociedade.

De acordo com Teixeira (2008), a psicanálise não pode ficar de fora do debate sobre a violência na sociedade atual; tudo que se refere ao laço social, até a sua ruptura, que é a resposta pela violência, relaciona-se com a psicanálise. Trabalhar os efeitos nefastos na clínica pelo advento do discurso do capitalista é resgatar o direito da insatisfação, não de forma insaciáveis pelo consumo, pois não é através de objetos que o sujeito se satisfaz. Teixeira (2008) propõe que a prática psicanalítica rediscuta a clínica, dadas às transformações ocorridas, pelo discurso capitalista – trata-se de um dever de comprometimento por parte do analista, um gesto interpretático e de compromisso na atualidade.

Como foi mencionado nesse capítulo, a violência sempre existiu, o que mudou ao longo das épocas foi o seu fundamento, que também está de acordo com fundamentos da sociedade. O que se discute na contemporaneidade, dentro da teoria psicanalítica lacaniana, é que a violência é estudada com o advento do discurso capitalista, em uma época que se internalizou “é proibido proibir”. Algo que traz grandes discussões, já que essa liberdade exacerbada que temos hoje, tão cara às outras épocas, também está trazendo novas subjetividades e vínculo social e, consequentemente, novos conflitos, sintomas e sofrimento. Portanto, a importância de discuti-las, com objetivo de tentativas de procurar resoluções para os efeitos nefasto do mundo pós-moderno.

 

Considerações finais

Como mencionado neste artigo, nunca houve um diálogo entre a escola de Frankfurt, na Alemanha, e a escola francesa de Lacan – até suas bases epistemológicas e metodológicas são divergentes. Muitos autores da escola de Frankfurt colocam uma concepção materialista na teoria freudiana, enquanto que Lacan se fundamentou com uma base estruturalista. Devido a isso, a dificuldade deste trabalho foi a da busca de referenciais teóricos que relacionassem ambos, principalmente sobre o tema violência.

Sobre a violência, Adorno eHorkheimer com o conceito de Indústria Cultural contribuem para um estudo mais aprofundado e objetivo dos estudos sociais e políticos dos modos de produção capitalista. Eles dão caminhos para uma abrangente reflexão acerca da violência simbólica, que impede e abafa qualquer tipo de oposição, cria modelos de vida que todos devem seguir no mundo neoliberal; numa sociedade de consumo, o indivíduo é rotulado pelo seu consumo, e sua essência de ser perde valor, pois o produto parece ganhar vida própria. Além disso, os autores colocam que a Indústria Cultural é dominada por uma minoria de pessoas com grande poder econômico, contribuindo para uma reflexão acerca de uma violência estrutural: da má distribuição de renda, de recursos repassados para interesses pessoais e não ao coletivo, fato tão notório na sociedade brasileira.

Lacan também nos traz alguma contribuição social sobre a violência, através da sua teoria dos discursos. A violência, segundo ele, entra nesse cenário através do advento do Discurso Capitalista, o discurso da tecnociência. Lacan contribui para repensar a psicanálise clínica na sociedade pós-moderna, pois coloca a violência como um sintoma contemporâneo. Para Lacan o sujeito é constituído por uma verdade, e esta no Discurso do Mestre é o que limitava o gozo, com a chegada do Discurso Capitalista na pós-modernidade, o gozo não é impossível, ele é insaciável, portanto este discurso rejeita a castração, o que mantia o sujeito a conviver em coletividade.

Este artigo não apresenta uma proposta ilusória de cessar a violência, ou clamar para o fim da globalização, do neoliberalismo, do consumismo desenfreado etc. Como uma maneira de impedir a violência assustadora, Freud mesmo já alertava que o inimigo da civilização é o próprio homem, ele não acreditava num belo futuro para humanidade. Este artigo propõe uma questão a ser pensada: o que podemos fazer como psicólogos de orientação psicanalítica, dadas todas essas circunstâncias, no mundo pós-moderno?

Sobre essa questão, que também implica a da violência atual, Adorno eHorkheimer têm ideias aparentemente distintas sobre o assunto em relação a Lacan. Adorno apresenta um esboço de uma educação que proporcione ao indivíduo uma autorreflexão crítica. Lacan sugere a reintrodução da palavra onde há violência, parte de uma ética do desejo, não da liberação ilimitada do desejo, mas da resolução da incompatibilidade entre o desejo e a palavra. Uma ideia não é melhor que a outra: ambas dão ao sujeito o direito de reflexão e consequentemente a responsabilidade por suas escolhas. Quando falamos do gozo na cultura atual não podemos descartar esclarecimentos com mediações sociais objetivos, mas também não podemos desconsiderar um inconsciente estruturado pela linguagem, onde o gozo se expressa no laço social.

 


 

Referencias

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Formato de citación

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